24.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 24-01-2024 / II

São precisos três meses para se conhecer uma cidade. E mesmo assim depende da cidade. Não se conhece Nova Iorque, São Francisco, Chicago, Londres, Paris em três meses. Ou seja: é preciso reformular. São precisos três meses para saber se queremos ou não amar uma cidade. 

- Como se uma cidade fosse uma mulher.
- É. Conheces alguma coisa feita pelo homem que não seja uma mulher?

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Às vezes penso que dizia mal do serviço em Palma. Quero retractar-me: não chega aos calcanhares do de Fort-de-France. Aqui é tão mau que chega a poupar-me dinheiro, coisa pela qual lhe estou infinitamente grato.

«Amar alguém é amar-lhe os defeitos», dizia já não sei quem. Deve haver poucas definições de amor mais precisas e lapidares do que esta. Pelo menos é o que eu penso cada vez que vou ao Impératrice (isto é, todos os dias).

Aquilo de que nele gosto vale mais do que o serviço, que é na verdade a única coisa abominável, por um lado. E por outro: está longe, muito longe, de ser o único sítio com um serviço de bradar aos céus. Começo por lhe gostar da beleza (sejamos justos: é um dos sítios mais bonitos que conheço) e continuo por lhe gostar do tempo. Tempo, aqui, sendo aquela noção de que é uma ponte entre um tempo que já foi e outro que há-de vir e apreciar as mesmas coisas que eu aprecio. Como se fôssemos um traço de união, o Impératrice e eu.

Gosto de me sentir assim unido a qualquer coisa, união que não é só ocasional. Como se fosse uma mulher, não é?

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Hoje li um artigo escrito por um senhor com quem tive, há tempos, uma divergência pessoal. Tão divergência que me levou a «cortar relações», expressão que abomino tanto que lhe ponho aspas. O artigo é óptimo e deu-me vontade de escrever ao dito senhor - coisa que de resto vou fazer. Ele que responda como achar melhor.

A verdade é que sou capaz de distinguir as esferas pessoais das outras - intelectuais, culturais, sociais, humanas, e por aí fora. Porém, pensando melhor, pergunto-me se não devia formular isto ao revés: sou incapaz de não distinguir as diferentes esferas que em cada indivíduo coabitam.

A verdade é que ser assim tem vários aspectos negativos, dos quais o desinteresse pelas biografias é o mais gritante. Li pouquíssimas biografias e agora quero recuperar esse atraso. Mas a verdade é que sempre me interessou mais o que as pessoas fazem (ou escrevem, pintam, compõem, esculpem, etc.) do que o que dizem. Ou, menos ainda, aquilo que delas dizem. 

Máxima essa que de resto me aplico: o que as pessoas pensam interessa-me, aquilo que pensam de mim é-me total e quase dolorosamente indiferente. 

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A chuva parou, o vento voltou e leva com ele a luz. A noite senta-se à mesa, convidada daquelas que não se podem ignorar. A Lua está cheia, coisa que lhe acontece todos os vinte e oito dias, mais coisa menos coisa. Sou um selenita que não emprenha pela Lua e por isso penso nesta mesa, aonde gostaria que estivesse outra pessoa e não só a Lua e eu. 

Qual mesa? Esta, aonde estou sozinho contigo ou esta, aonde estou sozinho comigo?

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Venho para bordo e - mais uma vez - o mundo virtual salva-me: tenho Glenn Gould a tocar nos altifalantes de bordo. Uma embarcação não é uma residência secundária, mas quando se aproxima é tão bom, não é? A seguir virá Leonard Cohen, a sequência lógica.

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Estou a bordo de uma embarcação de vela, escrevo disparates, bebo rum, faço uma maionese (ficou óptima) e oiço Glenn Gould. Talvez isto seja um resumo da minha vida, mas deixo isso aos eventuais biógrafos.

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