2.1.24

Resumo do primeiro capítulo

Resumo do primeiro capítulo: o nosso herói reflecte sobre o ponto aonde se encontra na vida e tudo o que o levou ali. Reflexão curta, apresso-me a esclarecer o leitor não vá este pousar o livro na estante e desatar a correr pela livraria gritando silenciosamente "Socorro!"

Ou, pior ainda, quem se escapa do livro é o herói, feito personagem de uma rosa qualquer do Cairo. Nenhuma destas hipóteses agrada ao autor, que apesar de não fazer a mais pequena ideia do ponto em que ia pôr a personagem principal do livro a queria nele (isto é, no livro) e também muito gostaria de ter um leitor, um que fosse, a conversar com ela (a personagem principal) e não cada um a correr para seu lado, coitada da livreira, uma rapariga bonita dos seus quarenta anos que quer tudo menos confusão,  disso já ela tem que chegue em casa com um marido que só não lhe bate porque ela é especialista em krav-maga ou lá como se chama a arte marcial dos israelitas. De maneira sugiro veementemente ao autor que faça curta a reflexão do herói,  que está agora num ponto qualquer da sua vida mas não sabe bem qual. Os pontos da vida têm nomes como as paragens de autocarros ou as estações dos comboios - infância, adolescência, idade adulta, etc. - mas estão muito longe uns dos outros. Devia haver paragens intermédias e o caminho entre elas devia ter mais árvores para que um herói desorientado se possa sentar à sombra, proteger da chuva ou fazer xixi.

O herói não é marinheiro mas visualiza o caos como se este fosse um conjunto de ventos. Quando tem a vida ordenada - isto é, naqueles breves momentos em que o comboio de tempestades pára para meter água ou combustível - o vento é só um e chega-lhe da alheta; depois o tal comboio ganha movimento outra vez e os ventos vêm de todas as direcções. "Vá lá que o que tenho de frente é fraquinho" diz o herói que não é marinheiro. Não se sabe bem a quem fala. À livreira lutadora? Ao leitor assustado?

"Que raio de trio me foi este palerma arranjar", diz o leitor antes de fechar o livro e sair calmamente com ele debaixo do sobretudo. Mas a livreira viu-o e com dois pontapés e um murro pô-lo no chão. A cena compõe-se. Pode facilmente imaginar-se a continuação. A livreira diz-lhe "cada pontapé dos meus vale trinta euros e cada murro vinte. O senhor deve-me oitenta euros da pancada e vinte do livro". "Mas o livro só custa dezoito e noventa", responde o homem titubeante. "Pois, mas eu não tenho troco. Se quiseres dou-te uma chapadinha a um e dez, para não te sentires lesado". "Não, obrigado. Posso pagar com o cartão?" "E o rabinho untado com água de rosas, não?"

A livreira é bonita, tem um corpo harmonioso e óculos que a fazem parecer uma bibliotecária. O leitor está por terra, ainda. A seu tempo levantar-se-á, irá ao multibanco que fica ao lado da livraria, levantará os cem euros, despedir-se-á da senhora - Nelita, fica aqui baptizada - e ir-se-á embora a jurar que nunca mais na vida roubará um livro deste autor ou com esta personagem. 

........

Nela apercebe-se de que ficou com o livro e decide ver se encontra o inábil ladrão de livros.

Não teria a mais pequena hipótese de o encontrar se, a pensar nas necessidades da narrativa, o leitor não tivesse deixado cair um pacote com cartões de visita.  Chama-se Jaime Queredo e mora a caminho de Setúbal. A personagem principal regozija-se. Gosta de Setúbal e assim pode convidar a livreira para uma caldeirada na tasca da Tia Rosa, que bem boas as faz. O autor lembra-se de que ainda não deu um nome à personagem mas agora não lhe apetece pensar nisso. O importante é reencontrar a tasca e ter a certeza de que está aberta.

(Cont.)

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