14.1.24

Resumo do terceiro capítulo, agora sem os dois precedentes

Resumo do terceiro capítulo:

A história adensa-se. Temos uma livreira apaixonada (ou com desejo de, não é a mesma coisa) por um autor que começou um pouco perdido este texto e agora o está ainda mais. Um leitor e uma personagem principal escorraçados pela senhora, que não quer testemunhas na sua tentativa de engate. Sendo bonita e tendo ar de bibliotecária é pouco provável que não consiga. A questão que se nos põe agora é: tem o autor vontade de ser engatado por uma livreira que cobra pelos pontapés que dá? A caldeirada está comida, o vinho branco bebido, o autor sugere uma aguardente e a senhora anui. De qualquer forma, «não» é uma palavra que fugiu subitamente do seu léxico, seja ela a proferi-la seja - mais arriscado - ela a ouvi-la. Para tentar salvar-se o autor muda o nome da senhora para Raquel. Não está muito longe do nome original - Nela, Nelita - e começa por um erre, letra que aguça os sentidos, por assim dizer. Está mais perto de tigreza, leoa, leãozinho. O homem pensa em música brasileira, percebe-se. Deixa-se invadir pela torpeza da serotonina, ouve meio distraído as perorações de Raquel (o nome fica-lhe bem), desiste de lhe tirar a mão dos joelhos, divaga aereamente pelos açudes da volúpia, por enquanto só imaginada. Decide-se:
- Se quiseres ir para a cama comigo podemos ir, mas quem faz tudo és tu. 
- Não queres acabar a tua aguardente?
- Quero. Mas quem faz tudo és tu. Eu estou em ponto morto. Deixo-me ir pela encosta abaixo. Ou acima. Depende de ti. Fico muitas vezes assim, depois de uma boa refeição (isto é mentira, mas não faz mal). Uma mistura de volúpia e abulismo. Sei o que quero e o que devia fazer para o conseguir mas não quero fazer nada porque se não o tiver fico igualmente bem. 

A isto chama-se em teatro uma saída pela esquerda baixa. O autor está ferido pelo seu último falhanço amoroso, não sabe se a cicatriz está fechada ou não - às vezes pensa que não, outras sim - e quer ter uma escapatória não vá dar-se o caso de a tal cicatriz ainda estar a sangrar e a sua falta de vontade manifestar-se ruidosamente.

- Sim, talvez seja isso. Mas também estou farto de ser um predador, percebes? Estou farto de ter de ser eu a dar o primeiro, o segundo e o terceiro passos. Foste gentil, já deste os dois primeiros. Continua, sim? Hoje sou a tua presa, a tua vítima, o teu troféu. Brinquedo. O que quiseres, desde que...
- Percebo. Às vezes acontece-me isso também. Uma vez um gajo quis comer-me e eu disse-lhe que sim. A coisa correu bem, o rapaz era atencioso e terno. Mas no dia seguinte tanta atenção e ternura enjoaram-me e limitei-me a ficar deitada na cama sem fazer nada, rigorosamente nada. Menos do que uma boneca, suponho. O homem vestiu-se e foi-se embora sem uma palavra.
- Não penso que chegarei tão longe.
- Veremos, como diz o ceguinho. 

Decidem encontrar um hotel nas imediações e deixar os carros aonde estão.

Vão a pé pela avenida Luísa Todi, a esta hora quase deserta - não é Verão, está visto.

- Gostava mais de Setúbal antes da autoestrada. Agora parece aquilo em que se transformou: um subúrbio de Lisboa. Dantes tinha um carácter muito próprio, era outra coisa. Tive aqui uma das mais bonitas histórias de amor da minha vida, mas infelizmente não me lembro do nome da rapariga. 
- Vais esquecer-te do meu? 
- Não sei.
- Desafio interessante, esse. 
- Não devias ver isto como um desafio. Não é. Desafio pressupõe um adversário, uma dificuldade, um obstáculo. Não é isso que vais ter. Vais ter um corpo e uma erecção - tua, só tua - mas não te prometo mais do que isso. 

O autor tem Jaime Queredo a chateá-lo - quer aparecer na história - e a personagem principal, que não pára de o inquietar. Até agora não tens nome, atira-lhe o rapaz, com a livreira pelo braço. Não sabes sequer se sou homem ou mulher, parvalhão. Decide-te! 

É com este diálogo na cabeça que o autor avança pela avenida. O hotel não é muito longe mas a noite está clara, ele vê Orion, Sirius não tardará a aparecer, os Gémeos estão claros. Estamos portanto no Outono. A rapariga é bonita e contida: não se atira a ele, imita-lhe o silêncio, limita-se a dar-lhe o braço quando se apercebe de que ele gosta. Há mulheres assim, sabes? (O autor dirige-se à personagem principal). São poucas. Percebem o silêncio. Falam silêncio, como se fosse uma língua estrangeira que levou muito tempo a aprender. Mas esta ainda é nova. Tem o quê? Quarentas? É a idade em que elas começam a ser mulheres. Antes disso têm aquilo tudo misturado: a reprodução, a segurança, o marido, os filhos se os há. Aos quarenta o novelo começa desenrolar-se. Têm os filhos na escola, estão divorciadas ou bem casadas, sabem o que querem na cama e fora dela. As melhores aprendem a falar silêncio, como esta. Melhores para mim, pelo menos. A língua mais bonita de todas é o francês. Logo a seguir vem o silêncio. Isto é, o silêncio em francês, porque cada idioma tem o seu silêncio. Como se fosse um sotaque, percebes?

Já passaram o hotel, mas Raquel não diz nada, não lhe puxa pelo braço. Deixa-se guiar por ele, numa curiosa e inesperada inversão de papéis. 


(Cont.)

Este texto é dedicado a duas senhoras: à C., que um dia me pediu desculpa pelo seu silêncio, sem saber que é uma das minhas línguas favoritas. E à D., que não o lerá porque não fala a nossa língua mas fala silêncio como eu falo português. 

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