10.4.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-04-2024

Já não estou sozinho a bordo e recomecei a cozinhar. Uma parte significativa da minha felicidade passa pelo estômago. Ou melhor: pelas papilas gustativas. Quando sou eu que cozinho e o resultado me sai bem essa felicidade é multiplicada por dois. Por três quando é apreciada pelo ou pelos convivas. Hoje foi um desses dias. Costeletas de porco num molho de vinho tinto, gengibre, salsa e tomilho - previamente marinadas nesse mesmo vinho tinto, alho, paprika e pimenta - e puré de batata com a exacta quantidade de noz moscada e leite. Tudo isto regado por um Bergerac mais do que bebível e que não chega a cinco euros a garrafa (para a cozinha usei uma coisa do Aude a dois vírgula oitenta e oito, o que no Marin deve ser um recorde. Nem o vinagre é tão barato). O jantar foi acompanhado por Koko Taylor porque o tripulante é jovem e não o quero massacrar com Hildegarde von Bingen, que é o que a situação mereceria. O horrível ano de dois mil e vinte e três está quase a acabar: as dores são cada vez mais meros incómodos, o jovem é uma maravilha que me traz à memória os meus chauffeurs etíopes no Burundi - todos eles dignos, sóbrios nas manifestações, competentes, profissionais até dizer chega. Pouco efusivos e dignos. Deixo aqui uma mensagem pública de gratidão ao H. P., prova viva - juntamente com a M. T. - de que é possível trabalhar com portugueses. Basta ter sorte e isso é coisa de que me sinto inundado, apesar de a época não ter corrido de acordo com o plano. ¿Qué importa? Teria navegado e ganhado mais, sofrido menos, ido às Grenadines e quem sabe mesmo até Grenada. Não fui. Em vez disso fui operado por uma médica competente - e linda, o que não estraga nada -, tratei do S. D., tarefa de que gosto tanto como de tratar de uma pessoa que precisa de mim, vou navegar a direito daqui para St. Maarten - dois dias e meio de mar no mínimo, um excelente aperitivo para a travessia, que me permitirá conhecer o bote mais do que o conheço hoje. A minha luta em favor do TCA (ou contra, depende da perspectiva) deu um gigantesco passo em frente. O projecto de Caminha está em marcha. Vai demorar anos? Vai. Não terei massa para a exposição? Paciência. Haverá outras. Continuo a pensar que devia gerir a minha massa como faço com a dos outros? Antes assim do que ao contrário. Continuo a pensar que não devia ser como sou e devia ser como não sou? Continuo, mas isso pouco muda à realidade - «sou como sou e é tudo o que sou» -  e ao fim destes anos todos isso não me aquece nem arrefece. Só tenho pena de quem tem de me aguentar como sou - mas não obrigo ninguém a fazê-lo. A mistura de Koko Taylor, Bergerac, rum HSE (em breve), um tripulante que é uma dádiva, uma travessia em perspectiva, a capacidade de ler recuperada muito aos poucos mas crescente... Reinaldo Ferreira resume tudo num poema: 

«A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu

Não estou perto do fim mas estou na recta final e este poema acompanha-me todos os dias. Tenho a vida que fiz, terei um dia a morte que quis. Numa vida cheia de altos e baixos, muito altos e muito baixos, apercebo-me de que não é amanhã que o cardiograma (se algum dos meus leitores souber como se chama aquela máquina dos hospitais ficar-lhe-ia grato por mo dizer) vai ficar liso. Antes assim. Prefiro uma descida íngreme a uma recta plana. (Talvez preferir não seja o verbo adequado. Suportar melhor é, de certeza.) Sobretudo porque depois de uma descida íngreme vem uma subida igualmente abrupta. Sobretudo porque depois de uma coisa vem outra e não a mesma.

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Esperam-me três semanas de mar. Há algum melhor resumo de tudo o que acabo de dizer? Não, não há.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.