3.10.24

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-10-2024

Mexo-me com notória dificuldade, o que de certa forma é injusto porque à minha volta tudo mexe. Tudo e todos: mesas, cadeiras, paredes, chão, pessoas, empregados (pessoas sendo para este efeito clientes, claro). Tudo mexe menos eu. As minhas costas parecem uma barra de aço inoxidável submetida a pressões do outro mundo.

Tive sorte: a barra acabou por ceder e lá consegui levantar-me da cadeira, ir buscar o bloco-notas e as canetas e voltar a sentar-me, tudo isto sem alertar e muito menos alarmar os restantes frequentadores do sítio. Estas costas são como a muralha de aço do camarada Vasco: uma fantasia.

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Janto no restaurante Reis, sugestão das senhoras do Ferradura, que fica praticamente ao lado. É o género de lugares aonde não entraria sem uma recomendação - e mesmo com esta vou meio desconfiado. Nada me garante que uma das senhoras não seja a mulher ou a prima do «senhor Reis». Reencontrei o Ferradura por acaso e por sorte, duas coisas que misturadas dão bom resultado. Ando há tempos para comer uma carne de porco à alentejana - um prato que de alentejano não tem nada, é algarvio, mas enfim - e as senhoras indicaram-me o Reis, lá fui porque andar mais de cinquenta metros só de táxi e aquilo é uma zona sem automóveis e ecco, presto, o restaurante é óptimo, deve ter sido ainda melhor e agora está cheio de turistas, as mesas uma em cima das outras... Ó pá, está calado e cala-te, fazes o favor? Toalhas e guardanapos de pano, um serviço de nível estratosférico apesar de a casa estar cheia, um dono adorável. Cala-te, bebe o teu vinho - sugestão abençoada do «senhor Reis» - aprecia a carne com amêijoas, sonha com o rum pós-prandial e com o sono que te espera.

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Os critérios para avaliar a passagem a ferro de casacos de linho branco são-me dolorosamente estrangeiros. Não percebo nada nem de passagem a ferro nem de casacos brancos, sejam de linho ou de outra matéria qualquer. Deste em particular - marca: Zara - sei que consegue o prodígio de não me fazer parecer um empregado de mesa na pausa para o almoço. Pois bem: levei-o a uma lavandaria em Vila Real de Santo António para lavar e passar e as senhoras (patroa e empregada) concordaram unanimemente que seria impossível garantir a qualidade do serviço e portanto o declinavam. Enfiei-o na máquina com o resto da roupa e levei-o a outra lavandaria para passar a ferro. A senhora explicou-me que não conseguiria garantir a qualidade do serviço mas aceitou-o e cá estou eu, de casaco de linho branco e chapéu novo, há uma fotografia do Joshua Slocum com um chapéu parecido, só não tem é casaco branco. Duvido muito que leia esta página, minha senhora, mas aqui fica o recado: ficou óptimo! Muito obrigado e parabéns pelo seu brio e pelo seu profissionalismo.

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Por falar de roupas: o dia esteve demasiado frio para envergar o meu uniforme «sozinho a bordo». Maldito seja o frio quando não se tem uma lareira, uma biblioteca e um fluxo regular de vinho tinto.

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Para que Portugal seja um país habitável a cem por cento faltam-lhe duas coisas principais: vermute, rum e palo.

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Uma das enhoras da mesa à frente da minha é parecida com a Virginia Wolf em jovem (enfim, quarentas. Ainda é uma jovem).

Tem uma parte das costas à vista, o que a faz perder pontos; e poignées d'amour correctamente dimensionadas, o que a faz recuperá-los ainda antes de os ter perdido.

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Não é a primeira vez que isto me acontece e não será a última: um sítio aonde não entraria sem uma recomendação revela-se excelente.

Morte aos preconceitos!
Viva os preconceitos!

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O jantar acaba. As costas estão mais flexíveis, as mesas e as paredes imóveis, o restaurante mais vazio, o medronho é bom mas não tão bom como o da Peixeirada (nenhum é, nunca será), a vontade de beber um bom rum esbate-se até ficar quase invisível e eu pergunto-me se trabalhar para comer e comprar livros é uma boa troca. Resposta: «Sim e a conversa fica por aqui.»

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A noite acaba com um cocktail qualquer no bar Peppers. A música é óptima: Doors, Led Zeppelin, etc. O cocktail dá vontade de me teletransportar para o Procópio. Há pessoas que não gostam de Lisboa. Sugiro-lhes vivamente que venham visitar a pré-história. Não percebo o que vêem nessas expedições etnográficas quando não muito longe têm uma cidade.

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