O valor das coisas que me roubaram ascende a mil e algumas centenas de euros. Sei-o porque recorri aos seguros. Fiquei igualmente a saber que o telefone tinha sido comprado em Junho deste ano, a máquina fotográfica em Maio de 2020 - para alguma coisa os confinamentos serviram - e o computador em Dezembro de 2023. Tudo tão recente e tão parte de mim. O estojo com as Parker acrescenta às algumas centenas, mas como foi pago em dinheiro ignoro a data. Do montante lembro-me, porque as comprei para substituir umas iguais que o meu Pai me oferecera e eu perdi estupidamente em Antigua. Juntamente com uma máquina fotográfica, isto anda tudo ligado.
O dinheiro líquido apaga a história? Nunca tinha pensado nisso. Que apaga traços - ou não os deixa - sim. Mas apagá-los? Os meus critérios cash vs. cartão vão começar a incluir um parâmetro mais (as canetas foram compradas na Feira da Ladra. Os parâmetros novos são líquidos).
Resta saber se e quanto os seguros vão reembolsar a minha inaceitável confiança. Ou melhor: a minha inaceitável falta de desconfiança.
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Uma das expressões portuguesas de que menos gosto é «pôr-se a jeito». Acontece-te alguma coisa má e lá está, «puseste-te a jeito».
Desloca a vítima do seu lugar para o de culpado, quase desculpa o verdadeiro autor da maldade: puseste-te a jeito...
Isto dito, é verdade que fui uma besta e mais - tive uma luzinha encarnada a acender-se-me no cérebro. "Não ponhas aí a mochila, é fácil roubarem-ta."
Mas só no mar presto atenção às luzinhas que se me acendem no cérebro. Em terra ignoro-as, com alguma desculpa mal amanhada, como um peixe que vem para a mesa cheio de escamas.
A luzinha encarnada lembrava-se de Barcelona, quando me roubaram um saco de computador - história pior, porque estava ao meu lado na mesa da estação de Sants. E melhor, porque o ladrão me veio devolver o saco. Estava vazio, ao contrário deste.
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Tenho sessenta e sete anos e com esta idade já se pode fazer um balanço desapaixonado - ou pelo menos pouco apaixonado - da vida que se viveu e compará-la à que se queria ter vivido.
Consegui dois objectivos, creio. Um antigo, de juventude: ser livre. Outro mais maduro: ser um gajo decente. Nenhum deles é fácil, ao contrário do que a «literatura» moderna quer que se pense. Literatura vai entre aspas por uma carrada de razões. Comecemos pelo fim: é preciso fazer muita merda para se tornar um gajo decente. Ser decente não resulta do que se fez ou faz, mas de como se olha para o que se fez. E de não querer repetir a porcaria e querer repetir o bem, que nem só de asneiras vive um homem.
Já a liberdade tem mais que se lhe diga. Em primeiro lugar porque a liberdade não existe. O que há são liberdades. Muitas, contraditórias. Em segundo lugar porque a liberdade é um oxímoro: ser livre consiste em poder escolher as suas prisões e Deus sabe se eu as tenho, prisões. Tenho muitas. Ter sido eu quem as escolheu ajuda, mas não é por isso que deixam de ser prisões. São apenas mais suportáveis. Mais. Como dizer? Inevitáveis. Não se pode fugir de uma prisão que se escolheu, porque isso seria saltar de uma para as outras todas.
E depois: ninguém é livre sozinho. A minha liberdade deve muito a muita gente. Todos nós devemos? «Nenhum homem é uma ilha»? Sem dúvida. Isso significa apenas que não sou diferente, é tudo. Sou livre porque não sei não o ser. É uma escolha? Não sei. Nunca experimentei a alternativa. Nunca deixei de ser livre, mesmo quando não o era. «Sou o que sou e é tudo o que sou», dizia Popeye. Sou livre porque é tudo o que sou, poderia acrescentar eu.
Com a devida gratidão.
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PS - Quando acordo às três ou quatro da manhã vejo um planeta pelo albói. Esta noite fui investigar qual é.
Saturno.
(Para a L.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.