F. pergunta-se cada manhã se a vida é uma nuvem ou se, pelo contrário, é ele a nuvem e a vida a realidade sobre a qual por vezes ele chove ou filtra a luz do Sol ou a deixa passar enquanto uma leve brisa o afasta lentamente. Há sempre uma brisa que afasta F., é preciso dizê-lo.
F. tem uma visão distorcida do mundo e ainda mais inexacta dele no mundo, o que o leva a confundir tudo numa espécie de novelo de lã que para ser ordenado necessita de um par de braços alheios. Por vezes sou eu esses braços, palmas das mãos voltadas para cima e o fio a desfilar num movimento cujo ritmo é desigual. Às vezes regular, outras irregular, aos soluços, por vezes caótico, como se o fio se quisesse enrolar de novo.
F. e eu raramente falamos. Comunicamos através de silêncios e olhares, sendo ambos os métodos bastante semelhantes a sinais de fumo, arrastados pelo vento. F. tem a minha idade. Os nossos silêncios e os olhares passaram pelas mesmas paisagens emocionais - expressão esta que clarifica algumas das dúvidas de F.: o que é uma paisagem emocional? Em que é diferente de uma paisagem geográfica, por exemplo? Se ao contrário do que pretendem algumas filosofias orientais o mundo não é uma ilusão - hipótese que F. comunga todos os dias depois de se fazer as perguntas rituais; "o mundo é uma nuvem ou a nuvem sou eu?" - se o mundo não é uma ilusão, se o mundo existe realmente então as emoções - que nele nos situam - existem também e à forma como se organizam pode legitimamente chamar-se paisagem emocional.
F. considera que a maior razão de ser das suas dúvidas é estar permanentemente inserido nessa paisagem, ser parte integrante dela. "O mundo, essa realidade que me escapa sistematicamente, da qual sou parte efeito parte causa devia ter mais paisagens. Por exemplo: uma paisagem racional?" Explico a F., nessa estranha língua que utilizamos, essas paisagens existem, sim, mas juntas, misturadas uma na outra, porque sem as duas o mundo seria, sim, uma ilusão. Na verdade são uma só. Basta, continuo, olhares para as pessoas cuja vida não contem essas duas paisagens. Essas sim, vivem numa nuvem ou num bloco de basalto negro e duro. A harmonia nasce da fusão... "Não te ponhas com orientalices. Não quero saber de yings e yangs. Tretas. Continua."
Não continuo.
Seria contudo errado pensar que a vida de F. se resumia a tecer lindas camisolas teóricas com os novelos de lã - ele prefería chamar-lhes novelos de caos. F. possuía a rara capacidade de pôr em prática as suas dúvidas como outros dão formas tangíveis às suas ideias. Olhando para o seu mundo de um balão de ar quente arrastado pela ligeira brisa do dia apercebemo-nos facilmente dos diferentes traçados dos seus percursos, todos eles tendo uma coisa em comum: são todos, sem excepção, um conjunto de zigues e de zagues, com dimensões diferentes, irregulares, quase caóticos. Digo "quase" porque um olhar cuidado revela que esses traços, essas pistas, como dizem os índios pele-vermelha nos filmes de cowboys apontam todas, mais ou menos, na mesma direcção e não é a do passado.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.