23.9.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-09-2025

S. resolveu arrumar a casa. Se a ONU servisse para alguma coisa, seria para comentar - e aplaudir -  acontecimentos desta magnitude. Ainda por cima com a quantidade de agências que tem nesta cidade. (Infelizmente nem para isto serve, mas isso é outra história.) No processo encontrou um moinho e um pacote de café que a nossa filha me ofereceu, nenhum de nós se lembra quando. O café é um arábica da Nicarágua, bastante bom por sinal. Foi comprado no «comércio justo», uma dessas tretas que o Ocidente inventou para se flagelar e que - tal como a ONU - é completamente inútil. Mas sendo o Homem um animal simbólico e não, como na escola nos ensinam, racional, a coisa lá vai tendo alguma existência. Curiosamente, há uma relação directa e eu diria causal entre o nível económico de uma sociedade e a importância que atribui a determinados símbolos, o que só prova que nem estes conseguem escapar à influência do «vil metal». Mas isso também é outra história. 

O moinho é mais neutro: bonito, feito na China, comprado não sei aonde e manual, sobretudo. É a parte que eu mais aprecio: moer o café antes de o fazer prolonga o prazer; dá-lhe, por assim dizer, um sentido. Não se trata apenas de premir um botão ou de esvaziar um pouco de café numa panela e pô-la ao lume com água (fria de preferência). Agora tenho uma etapa antes dessa, manual. Acrescentou-se um degrau à escada. Talvez o mecanismo que me leva a apreciar isto seja o mesmo que me leva a gostar tanto de navegar, se possível à vela. Ou talvez seja simplesmente o facto de o meu trogloditismo se estar a depurar com a idade.

Talvez.

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O Outono instalou-se em Genebra e vai chover todos os dias que ainda tenho por aqui. Por sorte as minhas memórias desta cidade não se resumem aos intermináveis dias de chuva. Houve também dias gloriosos: de vela no lago, por exemplo. De trabalho no Marchand de Sable ou na Intermaritime Bank, a fazer a logística da construção de dois petroleiros na Rússia. Tudo era comprado no Ocidente e devia ser enviado para S. Petersburgo. Foi um ano exaltante. 

Penso muitas vezes num livro do Baricco no qual ele diz que vai escrever um romance como se fosse uma cidade. Talvez seja o City, não me lembro. [É]. Sei que o livro é bastante bom, como tudo o que o homem escreveu (ou eu li, que não foi tudo). Cruzamentos, sinais de trânsito que ora estão verdes ora encarnados, estacionamentos pagos ou gratuitos, limitados ou não... Será a memória o sinaleiro?

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