2.6.21

Diário de Bordos - Bissau, Guiné, 02-06-2021

Hoje tive sorte: saí do Kais a pensar que teria de voltar a pé para o hotel e em dois minutos pára um moto-táxi à minha frente. Hoje tive sorte: voltei ao Kais, a música era aceitável, a caipirinha "tropical" era excelente. Tive sorte: o caldo verde de caldo verde só tinha o nome e a boa vontade do cozinheiro, mas o hambúrguer era quase um hambúrguer e o vinho não era mau.

Na mesa ao meu lado estavam sentadas três jovens "não governamentais". Uma era obesa, portanto não conta, perdoem-me os inclusivistas todos. As outras duas eram giras. Há uns anos teriam sido... Como se diz em português? Caça? Terreno de jogos? Desafio? Não sei. Pouco me interessa hoje o que hoje não me interessa de todo. (Isto faz lembrar aquela fábula do La Fontaine, não faz? Faz.)

África ainda é para mim o mesmo turbilhão de há uns vinte anos. Porque aceitamos aqui o que não aceitaríamos nos nossos países: ruas que são esgotos a céu aberto, com mais buracos do que as crateras lunares, pobreza (verdade seja dita: não vi miséria, aqui), nepotismo, o desprezo das castas superiores pelas inferiores, a pesporrência, o desperdício? Porque continuamos a viver na ilusão de que as independências foram boas, que trouxeram liberdade e prosperidade a esta gente? Porque desprezamos tanto estas pessoas que alimentamos tantas ilusões? Porque aceitamos lidar com estes governos corruptos?

Hoje olho para trás, lembro-me dos dez por cento de comissões que pagava (indirectamente. A agência para a qual trabalhava ignorava totalmente que estava a fazê-lo) ao governador da província na qual decorria a operação (trinta e seis mil pessoas, entre refugiados e IDP) lembro-me de quando ele nos veio pedir quinze por cento e lhe dissemos não, lembro-me disso tudo e admiro o meu pragmatismo. Hoje não seria capaz de fazer a mesma coisa.

Isto revolta-me. Cada vez sou menos capaz de compactuar com a mentira, com a hipocrisia, com o sofrimento alheio. Deve ser a isto que se chama velhice, não sei. Se for, a velhice não é tão má como a pintam.

O meu saco de pedras - todos nós carregamos um aos ombros - aligeirou-se bastante: as pedras grandes saíram e foram fazer brita para cimento; as outras deixaram de chocalhar. Brevemente juntar-se-ão às grandes na britadeira. A verdade é que nos últimos tempos não tive grande disponibilidade para fazer muita coisa. (Quando olho para trás, vejo que a entrevista com o ministro foi ontem, só. Chamar "últimos dias" a um dia e quase meio é um exagero.)

Não sei se tudo isto vai servir para alguma coisa, mas sei que prefiro tê-lo feito a não o ter feito. Talvez no fundo seja este o critério: não sei se perdi dinheiro, se perdi tempo,  mas sei que prefiro tê-los perdido a não ter sequer experimentado. Há sempre um moto-táxi à minha espera, nos momentos mais complicados.

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