23.1.16

Diário de Bordos - Kalamakis, Atenas, Grécia, 23-01-2016 / II

Volto ao restaurante onde ontem acabei a noite. O bouzouki toca ainda melhor, o viola idem e a cantora mudou ligeiramente a cor do cabelo.

Vim com a tripulação,  Mas está cada um agarrado ao seu telefone. De qualquer forma é difícil ouvirmo-nos e vamos ter três meses e meio para falarmos.

Esta é uma das inegáveis vantagens da modernidade: estou aqui e na Praia das Maçãs, oiço música grega e leio um blog português, troco uma frase com um dos tripulantes e comento um post no Facebook.

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Aprecio a liberdade de fumar, na Grécia. Fuma-se em qualquer sítio. Mas às vezes é um pouco exagerado. Não percebo como num restaurante apinhado como este há pessoas a fumar à mesa.

Como antigamente...

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Estou subjugado, é o termo. Percebo finalmente porque é que este povo acreditou nas balelas do Tsipras: vive afogado em beleza.

E a um afogado não se pede que veja.

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Não sei o que melhor exprime a alma de um povo: se a sua música se a suas mulheres.

Neste caso coincidem. A rapariga pode não cantar tão bem como o bouzouki e o viola tocam mas têm uma voz bonita, grave, canta poucas vezes e é linda de morrer.

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Pena o cheiro a tabaco, verdadeiramente exagerado.

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Impus um recolher obrigatório porque saimos amanhã. Vai ser difícil respeitá-lo. É bom. Todas as partidas devem ser dolorosas.

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O ambiente é sublime. Que se lixe o cheiro a tabaco. Hoje comprei uma camisa no supermercado.

Diário de Bordos - Kalamakis, Atenas, Grécia, 23-01-2016

Esperava gostar de Atenas; tudo o que viesse depois do que por aqui passei seria bom. Nunca pensei que gostaria tanto e pelas razões porque gosto: a simpatia das pessoas, prestáveis e sempre com um sorriso na cara; a beleza absolutamente deslumbrante das mulheres - foi a isso que o Chico escreveu aquele magnífico hino, aposto -; a comida; poder andar de táxi à frente sem ser chateado com o cinto de segurança.

Há muito naturalmente duas ou três coisas que não mudaram. São poucas, felizmente. Uma delas, a pior, é a a absoluta falta de respeito dos automobilistas pelos peões.

Com o Mark em 1981 chegámos a um ponto tal de saturação que um dia começámos a dar murros num autocarro que nos tinha cortado o caminho numa passagem de peões. O condutor saiu, contornou o veículo pela frente e veio para nós. Quando nos viu parou e começou a desafiar os passageiros para virem também. O Mark e eu decidimos que não era o momento certo para criar um incidente diplomático envolvendo três países e saímos dali calma mas rapidamente, com a namorada dele, uma miúda magrinha e com as pernas em forma de x cujo nome acaba de me ocorrer - Debbie - pela mão. Ela não conseguia andar depressa e tínhamos de a puxar.

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Ontem voltava do Agora e tive uma pequena e esperava eu passageira necessidade de comer. Era meia-noite e queria comer uma coisa rápida. Entrei num restaurante no qual um trio tocava música grega. Bouzouki, voz e viola. O bouzouki era excepcional, a viola seguia e a voz acompanhava (como era bonita não se notava muito que havia um pequeno desfazamento). Acabei por ficar, pedir mais deste vinho tinto tão leve que parece água com um bocadinho de corante e mesmo assim consegue não ser rosé. Às duas o dono do restaurante veio chamar-me para a sua mesa, onde estava com a mulher e alguns amigos.

Fiquei até às três e quase meia, a conversar sobre o Tsipras, Syriza, Merkel e companhia. As opiniões na mesa divergiam mas a conversa foi civilizada. Hoje vou lá jantar com a tripulação.

O grupo é tão bom que merecia um convite para tocar em Portugal.

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E é isto. Amanhã largo. Se tudo corresse bem só pararia nas Canárias. Mas é raro as coisas correrem bem. Só espero que não corram muito mal e não apanhe nenhum arraial pela proa. É pedir muito, eu sei. O Mediterrâneo no inverno é um horror.

Mas são quinze dias. É um piscar de olhos.

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Se bem com o frio que está até passarmos a Sicília vai ser uma seca.

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Tenho tido sorte com as tripulações, ultimamente. Esta excede tudo o que tive até agora. Bato na madeira três vezes, ou as que forem precisas para que continuemos como estamos agora.

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Os gregos não são propriamente silenciosos mas numa mesa na outra ponta do restaurante está um grupo de brasileiros. São os únicos que se ouvem. No Brasil as pessoas habituaram-se a falar aos gritos por causa do ruído ambiente e depois é difícil adaptarem-se a outras necessidades.

22.1.16

Diário de Bordos - Kalamakis, Atenas, Grécia, 22-01-2016

A primeira vez que vim a Atenas foi em 1981 (isto diz-me agora a Wikipedia, abençoada seja. Não sei porquê estava convencido que tinha sido em 1983). Cheguei no dia seguinte a um tremor de terra que destruiu a cidade. As pessoas estavam aterrorizadas; nunca tinha visto tanto medo, um medo colectivo que se sentia por todo o lado e parecia água a espalhar-se pelas ruas, cheias de tendas. Muita gente ficara sem casa; outros tinham simplesmente medo. Foi em Fevereiro e estava frio.

Viera à boleia desde La Chaux-de-Fonds com uma rapariga francesa jovem e insuportavelmente burra. Dormíamos na pensão de um sri-lankês cuja namorada era finlandesa ou dinamarquesa; tinha vindo para Atenas para se desintoxicar. A rapariga era heroinómana e em Atenas era difícil arranjar droga. Mais tarde descobri que estava longe de ser a única: havia muita gente nessa altura a fazer o mesmo. O sri-lankês fechou-a quinze dias num quarto e cobriu as paredes de colchões para ela não se magoar. Quando saiu do quarto ficou a trabalhar na pensão e pouco tempo depois mudou-se para o quarto dele.

A jovem francesa com quem eu tinha feito a viagem estava obcecada com o tremor de terra e com as suas sequelas. Todas as noites me acordava.

- Sentiste?
- Não. Deixa-me dormir, miúda. - Tinha dezoito anos e havia-me sido entregue com muitas recomendações por um tio com quem estava na Suíça a passar uns dias. Era gira e ao fim de dois dias não a podia nem ver.

Uma semana depois de chegarmos veio dizer-me que tinha encontrado um francês e se ia embora com ele. Não sei porquê tenho na cabeça que era sábado. Nesse dia fui almoçar com um casal de americanos que estava na mesma pensão. Durante o almoço ocorreu a grande sequela do terramoto. Foi a primeira vez que senti um tremor de terra. Parecia que estava num comboio em movimento.

Clientes e empregados esconderam-se debaixo das mesas. Ao nosso lado um grego - o único para além de nós que continuara sentado a comer - recebeu um pedaço de estuque no prato de sopa. Levantou-se para ir à cozinha reclamar mais sopa, mas o cozinheiro não quis sair de debaixo da mesa e recusou. O cliente serviu-se, voltou para o seu lugar e piscou-nos o olho.

Pouco tempo depois encontrei uma americana, judia e linda, com quem ouvia jazz num café da Plaka, o único em Atenas nessa altura onde se o podia ouvir. O dono tinha vivido na América, provavelmente. Não me lembro. Ela e a amiga com quem viajava iam para Creta e decidi ir também. Estávamos apaixonados. Em Creta iríamos finamente dormir juntos. Foi o meu primeiro contacto com a cultura, o sentido de humor, a beleza e a sensualidade judias.

Do grupo que se juntava naquele sítio por causa do jazz fazia parte um tunisiano que vivia em Atenas. Na véspera da saída para Creta, quando saímos do café convidou-me para ir a casa dele beber um copo e ouvir já não sei o quê.

Ao primeiro gole da bebida vi que tinha alguma coisa. Mas já não consegui reagir. O animal pôs tanta coisa no copo que um gole foi suficiente para me pôr a dormir a noite toda. Acordei no dia seguinte num jardim. Ainda corri para a pensão para fazer o saco e fui trôpego e cambaleante ao Pireus. Quando lá cheguei o ferry para Creta estava a sair. Nunca mais vi a minha americana, cujo nome esqueci. Eu estava mal, cheio de tonturas e náuseas. Não conseguia falar, não percebia o que me tinha acontecido. No caminho de regresso a Atenas senti uma dor no rabo, fortíssima.

Tinha uma queimadura de segundo grau nas nádegas; como se, explicou-me o médico, me tivesse sentado em cima da placa de um fogão eléctrico.

A minha memória deste episódio é obviamente inexistente. Por vezes ocorre-me de fugida que quando acordei no jardim estava em cima de qualquer coisa quente e talvez tenha sido aí que me queimei. Não sei. Interessa pouco. O médico disse-me também que não havia sinais de violação e enrolou-me uma ligadura a toda a volta da cintura. Não é preciso ser grande especialista para perceber que aquilo não era sustentável. Felizmente o casal americano tinha boas noções de primeiros socorros e foram eles que me trataram dali em diante.

Já não me lembro de quanto tempo passei em Atenas até a ferida cicatrizar e ser capaz de me sentar o tempo suficiente para regressar à Suíça. Eles vieram comigo e ficaram em minha casa cinco meses. Suponho, mas não tenho a certeza, que o tunisiano quis impedir-me de ir para Creta com a jovem americana.

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Estou de novo em Atenas. Enfim, "de novo" é um pormenor técnico que não corresponde à realidade. Nem a cidade nem eu somos os mesmos.

Hoje há jazz por todo o lado, a Plaka é um abominável antro de turistas, a minha saúde está boa e a senhora por quem espero apaixonar-me um dia em Lisboa, numa casa perto do mar. Atenas, uma cidade pela qual não tinha grande afecto encanta-me. Lembrava-me dela poluída e suja, dos gregos façanhudos (impressão que um cruzeiro num iate à vela pelas Cíclades em 2004 e uma recente passagem muito rápida por um porto na costa oeste do país não desfizeram) e não são. Antes pelo contrário: sorridentes, prestáveis, simpáticos. E bonitas, inesperadamente bonitas.

Anteontem fomos a Atenas, a tripulação e eu. O meu objectivo era rever a Plaka, comer num restaurante daqueles onde ninguém fala inglês (reminiscência de uma tentativa de emprego da outra estadia, em que trabalhei num restaurante do qual nem os clientes nem o pessoal da cozinha falava uma palavra de qualquer língua que não fosse grego. Para as encomendas levava um menu às mesas e os clientes marcavam o que queriam com cruzinhas. Depois levava o menu à cozinha e eles davam-me um "novo" - isto é, com as cruzinhas apagadas -. Para entregar os pratos percorria o restaurante com eles numa travessa até uma mesa reconhecer a sua encomenda. Trabalhei pouco tempo porque o patrão me substituiu por uma ou duas canadianas obesas).

Começa por que hoje em Atenas toda a gente fala inglês. Até o funcionário da Carris local que vende bilhetes numa estação precária, gélida e longe de tudo foi capaz de me explicar como chegar à marina. Num bar - que não tinha rigorosamente nada a ver com os bares da Plaka dos quais tenho uma memória difusa - perguntei ao barman (um jovem elegantíssimo, alfaiate de profissão) qual o bairro dos artistas que ainda não são. Keramikos.

(Nesse bar vi mais ou menos o meu futuro: pequeno, lindo, com bebidas de qualidade e preços a condizer; e descobri uma bebida grega chamada Mastika, feita com a seiva de uma árvore que só cresce na ilha de Kios.)

Em Keramikos fiz uma das melhores noitadas da minha vida: comemos uma mistura de especialidades gregas no café Philos, ouvimos excelente jazz ao vivo no bar Kerameio, entrámos numa associação de artistas que estava a preparar uma exposição e tinha algumas fotografias interessantes, dancei música grega com os artistas e finalmente voltámos ao café Philos beber mais um copo (como se tivessem sido poucos os que até ali bebêramos ).

Voltámos para bordo às quatro da manhã bêbedos de Mastika, vinho, cerveja, raki (grego, mais uma descoberta), ouzo e bom humor.

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Na associação falei com um jovem artista sobre Tsipras. Para ele o homem não é um aldrabão. É uma vítima.

Quando me despedia das pessoas para nos virmos embora uma artista gorda e feia recusa o beijinho que lhe ia dar. Não percebi se por causa do Tsipras se por não dar beijos a estranhos, mas inclino-me mais para a primeira hipótese.

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Essa noite de festa fez-me pensar na quase inconcebível e fascinante fragilidade dos maus momentos. Não há um que resista a uma boa mistura de mar, música, boa comida e amor, mesmo longe.

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Uma boa maneira de se escolher um bar, café ou restaurante em Atenas é ver se ele tem o nome em cirílico. Se o tiver escrito em caracteres romanos pode passar-se.

19.1.16

Metade

É a história de um anjo a quem alguém chamou Ternura. Passava-me pela face todos os dias, roçava-me os lábios, olhava-me nos olhos a dizer-me Quando souberes voar estarei aqui para ti, mas até lá não.

Voar é fácil. Basta olhar atentamente para onde queres ir. A paz, por exemplo.

Mas os anjos são maus professores de voo. Aprenderam sozinhos a voar e voar sozinho é como beber metade do mar: parece muito, mas não passa de metade.

Arrogância, carências

Uma vez disseram-me "estás carente" como se me dissessem "tens gonorreia", "roubaste a gamela do pobre" ou "achas bem andar atrás da mulher do vizinho, que é gorda, careca, desdentada, mal-educada, não tem gosto nenhum e ainda por cima não se lava?"

Em Portugal estar sozinho contra vontade e tentar deixar de o estar é motivo de vergonha. Como de resto qualquer tentativa de mudar uma condição da qual não se gosta: a ambição é mal-vista, por exemplo. Querer um emprego melhor ou não se conformar com o que a sorte nos trouxe é ser fraco. Pobre. Carente.

Somos um país de super-homens estóicos, abúlicos e calados. Inconformado, apaixonado, impaciente, independente, desrespeituoso e livre pergunto-me se um estóico e abúlico involuntário não será simplesmente um palerma, mais um.

Acho que não. Seria arrogância, que tão pouco deve ser vista muito pela rua.

18.1.16

A palavra

Acordas a meio da noite. Queres dormir mas estás irrequieto, inseguro. Falta-te uma respiração ao lado, uma pele.

Não sabes o que te aconteceu e menos ainda o que fazer. Olhas à tua volta. O quarto está às escuras e não tem respostas. Não as teria, de qualquer forma, mesmo iluminado: é em ti que elas se escondem.

Vou dar-te uma sugestão: pega numa palavra, uma qualquer. Amor, céu, triângulo, via láctea, Sirius, que é a tu estrela favorita. Uma qualquer.

Escolhes amor - ou talvez tenha sido ela a escolher-te -? Não sabes. Massaja-a bem, afaga-a, acaricia-a, molda-a nas tuas mãos em concha, aperta-a com força. Talvez amor seja a palavra mais bonita do léxico porque nela cabes tu e o mundo, o passado e o futuro, a luz e a sombra, tu e a pessoa que amas, a alegria e a felicidade e a dor. Tens a palavra nas mãos. Molda-a. É tua.

Aconchega-a bem: é frágil. Dá -lhe de comer: tem fome. Acolhe-a no teu regaço como se tivesse acabado de nascer.

Quando tiveres a certeza oferece-a. Já não é só tua.

Para a M., co-exploradora dos caminhos incertos do futuro, com e ao nosso amor caril.

14.1.16

Partir, partir

Os ingleses têm dois verbos: to leave e to break. Os franceses também: partir e casser. Os portugueses, que sabem do que falam usam o mesmo verbo: partir. Partir é partir-se e partir: algo se quebra a cada partida.

Abraço

Um par de pernas a abrir-se à minha frente antes e a ficar aberto depois, tão aberto que mais parecia braços do que pernas.

Respirava ela e respirava eu, devagar e ao mesmo tempo; olhávamos para o tecto. Talvez; ou talvez mais para dentro porque depois daquele abraço pouco ou nada há para ver que se queira ver ou não se tenha visto antes.

E depois, verdade seja dita: pára-nos o tempo, o ar flui mais devagar, mais de fundo, mais de como se não houvesse peso.

Era assim: ela na cama estendida de braços abertos até ao céu e eu calado não fosse o céu estragar-se e fechar-se.

- Queres um cigarro?
- Não, obrigado.
- E um whisky?
- Também não, obrigado.
- E um obrigado?
- É recíproco.
- E um beijo?
- Também.
- E silêncio, queres?

Não quero nada se não olhar-te e perder-me no abraço dessas pernas, nesse abraço que é o mundo todo inteiro, nos teus olhos gratos, saciados e felizes.

12.1.16

Diário de Bordos - Lisboa, 12-01-2016

Para fazer avançar uma bicicleta é normalmente necessário pedalar. Como a Vitus não é uma bicicleta dispensa essas trivialidades e avança sozinha. Eu só pedalo para fingir que estou numa burra. Não estou. A Vitus Turbo é um objecto não categorizável, ataxinómico, independente; que por acaso me trouxe até à Casa Independente porque foi rejeitada num outro local.

Foi a segunda vez que hoje alguém - pequenos Hitlers, preciso já - proibiram a Vitus de entrar. Não especifico quais porque não quero envergonhá-los. Há dois tipos de razões pelas quais isso é um erro.

a) Razões relativas: a Vitus é a bicicleta mais bonita que os ditos cujos pequenos ditadores viram, terão visto e verão na sua vida;

b) Razões absolutas: não há absolutamente razão alguma para se proibir a entrada de uma bicicleta - seja ela bonita, feia ou assim assim - num local.

Enfin, passons.

De modo é isto. Na Casa Independente não só me deixam entrar com a Vitus como ainda a elogiam. Uma bicicleta tem esta vantagem. Alguém imagina entrar num café e ouvir: "a sua senhora é muito bonita"? Não, claro. O que é pena. Devia ser prática habitual e socialmente aceite. "Que linda está a sua mulher hoje". "Eu tenho duas bastante parecidas, mas a sua é mais bonita". "E mais leve" (depois de lhe pegar. Podia ser "E as mamas são mais duras", por exemplo).

Duvido.

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Fui ao teatro ver uma peça de Beckett chamada Not I (Não Eu). Brilhante interpretação. Exemplar. Soberba. Deitou por terra todas as dúvidas que tinha a priori. Doze minutos de encantamento.

A actriz chama-se Inês Pereira, para quem quiser saber; e o encenador Miguel Sopas.

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"É difícil seguir o raciocínio", diz uma jovem espectadora à saída.

O meu cérebro ainda está meio anestesiado e só ouve: seguir; raciocínio; e depois, interior: Beckett.

"Seguir o raciocínio de Beckett"?

Raciocínio. Beckett. Alguém vê nestas duas palavras o mesmo que eu?

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Inês Pereira, Miguel Sopas. T'inquiète pas, Samuel. T'aurais accepté.

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Amo-te e não te desejo. Crueldade. Estupidez. Vida.

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"Les vieux cons" c'est un oximoron. Plus on devient vieux moins on devient con.

Lisboa, vida

I don't mean to suggest
That I loved you the best

(L. Cohen)

Estou longe de ser o melhor dos teus amantes, Lisboa. Há-os mais ricos, mais cultos, mais presentes. Mas dos tesos trogloditas e fugazes estou de certeza no pódio.

Amo-te e pedalo-te desde a livraria Galileu em Cascais àquela tasca em Alcochete onde há muitos anos me engrossei de tal forma que não me lembro nem do nome nem do que comi. Só me lembro do bom que estava a tasca e do bem eu.

Ficam-te bonitas as mulheres e bem a luz e as ruas, a ginja Sem Rival e a Merendinha do Arco.

Hoje foi dia de chamuças na D. Mónica em Belém e nos Primos em Alcântara; e de matar saudades no Beira-Rio em Santos. E de voltar ao Vertigo no Chiado, que parece foi feito para me acolher mai-là Vitus (sem quem tu serias tão menos, ó Lisboa minha de tantas das minhas vidas).

Amo-te Lisboa: tu percebes como ninguém que eu fujo de quem amo e a quem amo volto mas não fico em quem amo porque não fico em lado nenhum se não morto e tu és vida, não morte.

10.1.16

Declaração de voto

Não estarei em Portugal no dia 24 e não poderei portanto votar.

Confesso que tenho pena. Votaria em Henrique Neto, se votasse. De todos os candidatos que conheço  (uma minoria) é o único que espremido não produz uma versão táctil do vazio.

Seria, creio, um péssimo presidente; porém isso é irrelevante. Não vai ganhar. Mas face ao vazio - seja ele absoluto ou relativo - é o único que vale um deslocamento.

Obrigado ab ante

Estou há horas a tentar encontrar uma definição de paraíso que não inclua as palavras Lisboa e Portugal e ainda não encontrei.

Se alguém puder ajudar: agradecimentos adiantados.

Tão: redescobertas

Redescubro a cada estadia estas mulheres tão pequenas, de pele tão branca e tão desconfiadas.

Lições do Tati

Estava para me ir embora e apareceu o puto do sax. É um pedante de merda e bom como tudo e estou-lhe grato: hoje confirmei que ser pedante é menos mau do que ser bom é bom.

Fico.

Lisboa é um privilégio

Várias centenas de milhar de pessoas têm o privilégio de viver em Lisboa. Quantas exactamente não sei: depende do que consideramos Lisboa e, numa menor medida, privilégio.

Para mim qualquer das definições é simples: privilégio é poder vir à jam do café Tati aos domingos e viver em Lisboa é poder fazê-lo todos os domingos.

Gabriel

Começo pela anjo. Alvas asas abertas estendidas de um lado ao outro das ruas da nossa cidade. Espessa sobrancelha negra, uma só, que lhe liga as orelhas como a faca liga a mão ao coração que acaba de matar. Espalha a doença e o ódio pela cidade.

Mais tarde a avó chamar-lhe-ia Angélica; o avô acrescentou Cimbra. As anjos não têm pais, como se sabe.

Uma anjo que distribui ódio e arrotos pelas ruas da cidade e canta Streets of London, melopeia melosa e merdosa feita para anjos merdosos e melosos.  Uma anjo atópica, assexuada como algumas dores alguns sorrisos. É por ela que começo.

Pede desculpa todos os dias várias vezes ao dia. Quer peidar-se em paz, suponho. Vai à Versailles tomar o pequeno-almoço mas as asas não lhe passam pela porta e fica cá fora. "É assim que gosto da cidade".

Pausa.

"Ventosa cinzenta e chuvosa".

Pausa.

Ninguém responde. A pausa deixou de ser pausa e transformou-se em vazio. Num canto alguém pigarreia, incomodado; cospe ruidosamente para partilhar o incómodo. "O egoísmo é muito feio", concorre a anjo Angélica.

Pausa. Parece uma peça do Beckett. Uma nódoa no silêncio.

Um pum no angélico silêncio. Gabriel traz boas notícias: a peste alastra na cidade. Precisa de aparar as asas. "Quantos anos têm as suas penas?" pergunta a alacure. "Não me lembro. Há anos que não as aparo". "Vamos a elas".

Gabriel interpreta mal as palavras da senhora mas nada diz. Vamos a elas. Às penas, palerma.

Angélica tem uma mama grande e outra pequena. "Mamas ecuménicas, para todos os gostos e todas as mãos. Fui eu que as fiz e recuso ser feita por elas (refere-se a si própria no feminino). Eu não sou as minhas mamas."

Todos podem olhar mas poucos tocar. O ecumenismo tem limites. Angélica sublinha cada olhar com um arroto. Um olhar mais intenso tem direito a um pum ruidoso. Gabriel desvia o olhar. A conversa cheira-lhe mal.

A anjo Angélica Cimbra, neta de avô cinéfilo e o anjo Gabriel, distribuidor e anunciante de pestes várias encontraram-se na rua.

(Cont.)

9.1.16

Diálogos prováveis

- Ela é boa mas chata de comer, como as mangas ou os lichees.

- Esse gajo é um dildo falante.

Reiterações

A imigração é um direito e um problema e tentar escamotear um dos lados da equação um erro, qualquer que seja o lado escamoteado.

8.1.16

Diário de Bordos - Barajas, em trânsito, 08-01-2016

São raros os aeroportos dos quais gosto: já apreciei - injustamente, é preciso sublinhar - a secção de partidas do aeroporto de Genève  (agora prefiro as chegadas); e sempre gostei da Portela, para chegar ou para me ir embora. Chegar a ou partir de Lisboa são duas aventuras quase sempre tão boas uma como a outra, novas e diferentes.

Barajas é um dos aeroportos cujo desgosto se mantém constante. Construído na lógica da estação de caminho de ferro é enorme, rectilíneo como a espada do aborrecimento e igualmente interminável, mal sinalizado e feio.

Fizeram-lhe um acrescento e conseguiram o prodígio de o tornar ainda pior.

Outro que lhe pede meças na categoria Detestáveis é o de Miami. Desta vez não passei por lá. (Em troca passei por um na República Dominicana que aposto integraria rapidamente o pódio. Era tão mau que tive de escolher entre a irritação e o fascínio. Preferi este: não tinha energia para a outra. Felizmente não faz parte da lista de aeroportos frequentes).

Agora estou em Barajas. Daqui a duas horas e pouco aterrarei na Portela. Tenho uma relação difícil e complicada com a modernidade mas reconheço-lhe os méritos.

6.1.16

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 06-01-2016

A desculpa para vir a Philipsburg foi conhecer Erik, dono de um estaleiro aqui e muito recomendado por C.

É sempre útil conhecer fornecedores de serviços e alguém tão recomendado justificava amplamente a viagem.

A verdadeira razão foi querer ver isto uma última vez antes de me ir embora. Por pouco que se goste de Philipsburg  (e é impossível gostar mais do que pouco) forçoso é reconhecer que despida das hordas de passageiros dos paquetes a cidade até nem é feia. E come-se bem, variadamente.

Hoje está cheia desses horrorosos seres que saem dos navios - como farão para os escolher? São todos igualmente feios -  e o meu almoço começou com um ceviche de entrada no restaurante Nazca, peruano; ao qual se seguiu um guisado de carneiro no The original jerk and roti house, Jamaica; e terminou na Taska com uma empanada da República Dominicana.

Ou seja: conheci Erik - um rapagão que inspira confiança à primeira vista - e viajei gastronomicamente pelas Caraíbas e pelo Pacífico. (Que o meu ceviche seja melhor do que o do Nazca entristeceu-me, mas enfim. Não se pode ter tudo).

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Último dia em St. Maarten. Fui jantar com a tripulante ao Yacht Club. Jantar simpático e simples.

Uma senhora vegetariana é chato em casa mas agradável no restaurante. Ainda por cima insistiu em pagar uma parte do seu jantar.

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Descubro com um certo horror que amanhã vou ter um dia cheio de trabalho.

O mito de Sísifo talvez seja uma metáfora para toda a humanidade. Para um marinheiro é uma descrição simples e realista do quotidiano.

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Sou um grande fã das insónias quando tenho um bar ao lado e dinheiro no bolso. São uma bênção. Dormir é aborrecido.

O pior é que essas duas condições são menos frequentes do que as impossibilidades de dormir, coisa que demonstra de forma definitiva a injustiça da vida.

E a beleza da sorte.

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Chove como se Deus estivesse a vomitar. Felizmente não bebe álcool. Faria se fosse eu.

Infelizmente isto levou a rapariga do bar onde me acolhia a pôr uma música execrável cujo tema é a chuva e consegue, espantosamente, ser ainda menos agradável.

Pena o Soggy ter voltado à sua condição habitual: infrequentável.

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Guterres diz que o seu candidato à presidência é quem o PS escolher.

A acefalia da política portuguesa seria inquietante se não fosse tão fascinante.

Por vezes comparo-a à adesão a um clube de futebol. Que longe estou! Apoiar um clube de futebol parece um acto racional, pensado e pesado ao lado das escolhas políticas.

E este foi primeiro-ministro. Imagine-se quem nele votou.

5.1.16

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 05-01-2016

A grande vantagem dos dias de ressaca é que um gajo bebe muito menos. A desvantagem sendo, claro, a razão pela qual se bebe menos.

A causa porém foi  nobre e bonita: um dos meus irmãos veio a St. Maarten e ou se é Serpa ou não se é. Ele sendo e eu também foi de caixão à cova.

Estou há quarenta minutos no Lagoonies e tudo o que bebi foi uma imperial. Ao almoço bebi água, provavelmente a maneira mais estúpida de se gastar dinheiro  (refiro-me à água engarrafada, não à água doce em geral).

Hoje não me parece que o divino rum punch da K. tenha sucesso. A mera imagem virtual que se me forma na mente quando penso nele dá origem a uma crise de azia só comparável às que tinha no Burundi, provocadas por uma dieta cujos pilares eram o whisky e o piripiri.

Um dia pedi um remédio para aquilo a uma rapariga dos Pharmaciens sans Frontières. Deu-me uma caixa de Maaloxsan e disse-me "isto é xarope, mas se fosse a ti, com o whisky que bebes e o piripiri que comes usava-o em perfusão intravenosa, vinte e quatro horas por dia". ( Era um exagero. Eu só bebia whisky à noite. Piripiri não: começava logo de manhã nos ovos mexidos. Nunca comi um molho picante tão bom como o das margens norte do Lago Tanganika. Uma pasta espessa, encarnada, picante como nunca tinha visto e igualmente saborosa. Pedi a receita mas nunca consegui fazer um que se aproximasse sequer dos que me serviam nos restaurantes).

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Desde ontem estou em modo partida, mas agora o voo está marcado. Já é mais chegada do que partida.

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O S. M. fica bem: electricidade, mastreação, velame, motor, carpintaria reparados por bons profissionais, dinghy limpo, ferramentas e peças arrumadas e classificadas. Se fosse meu não estaria melhor.

É bom.

4.1.16

Sem título visível

É mais ou menos isto. Uma palavra que abreviada fica mais longa um tempo encurtado que nunca mais acaba uma mulher a quem alguém pergunta Você não tem fim. Tem princípio? responde Tenho, baixinho. Mas não saberias encontrá-lo mesmo que quisesses.

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O caos é um sistema hipersensível que não se pode reproduzir porque a mais pequena variação leva a resultados completamente diferentes; um sistema cuja sequência de causalidades é inidentificável: não se pode deduzir onde começou e como chegou olhando para o que é.

Até breve pode assim transformar-se em até mais breve, por exemplo,  sem que seja possível deduzir de onde vem o mais.

(Mais é um erro, uma errância, um desvio, uma vagabundagem caótica por terrenos inexplorados).

(Mais é um medo, uma dúvida, uma pergunta sem resposta breve).

(Mais é um x que se revoltou).

(Mais é a luta de um texto entre parênteses pela liberdade).

(Mais uma tentativa para pôr ordem no caos).

(Mais é uma das suas palavras favoritas).

Mais rum mais sono mais tempo mais amor mais caos mais dúvidas mais medo mais curvas mais perguntas mais mar.

Mar é a resposta fácil a todas as perguntas. Mais mar. Mais vento. Mais.

Caos. Amor é metade do caos? Têm cinquenta por cento das letras em comum.

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Poder-se-ia talvez dizer que um mar sem vento é uma vida sem amor. Ambos porém os termos da equação soam falso.

Não se pode por exemplo dizer de um mar sem amor que é um dia sem vento. Uma analogia só o é se for simétrica. O caos não é simétrico. Mais é.

Mais distância, mais tempo. Menos caos.

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Nada. O caos não funciona autonomamente; tende para a ordem se não receber energia do exterior.

Talvez o amor seja uma das formas da entropia cuja função é introduzir ordem no caos. Ou a luta entre o caos e a entropia.

Talvez o caos seja uma mistura disto tudo: amor, mar, vento, desejo, distância, até mais breve.

Talvez o amor seja breve ou longo, caótico ou ordenado; entropia negativa: neguentropia. Talvez.

a) Ordenar por ordem alfabética:

  • Amor
  • Até 
  • Breve
  • Caos
  • Distância
  • Mais
  • Mar
  • Tempo
  • Vento


b) Misturar e agitar num copo de dados ou num shaker.

c) Procurar um recipiente suficientemente grande para receber o resultado.

Faltam bastantes ingredientes.

Num processo caótico a introdução aleatória de um elemento pode alterar profundamente o resultado e torná-lo irreconhecível.

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Alguns sistemas ordenam-se internamente numa lógica curvilínea, multi-axial que por vezes assume a forma transitória do sinal mais: rectilínea, perpendicular, bi-axial, simétrica. Acontece. Raramente. Acontece.

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É preciso segmentar a vida em subsistemas:

  • Amor,
  • Mar (por vezes e erradamente associado ao vento),
  • Tempo (frequentemente coincide com distância).


Como definir um tempo sem vida / vida sem tempo / amor sem vida tempo?

Talvez o tempo seja a vida. Mais tempo mais vida.

Como explicar então que mais breve é mais vida?

Uma vida não tem sinónimos. Tem antónimos; extremos; caos.

Hesitante. Caos hesitante.

Chegámos.

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Voltemos atrás.

A complexidade de um sistema mede-se pela entropia que gera?

Somos leves e livres. Por onde passámos?

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O horizonte é uma fraude que se move com o observador. Não há caos no horizonte. É linear e explicável. Intocável.

Viajar não é procurar o horizonte; é fugir dele.

Trace-se por exemplo um rumo (setenta e cinco por cento de amor) numa carta. É preciso ter um plano se se quiser não o seguir. Não há caos num rumo mas a viagem é caótica. Um rumo, ou seja um conjunto de direcções. Quase um amor.

Um amor: quase um tempo. Mais amor: mais tempo mais breve. Mais hesitante. Mais vida.

Menos caos.

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Estabilidade é um caos hesitante. Uma das formas do medo. Um rumo numa carta: é para ali que vamos mas não sabemos como ou quando chegaremos.

É preciso ver no medo a aventura. A aventura da estabilidade, por exemplo. O desafio. Um desafio hesitante.

Invisível.

3.1.16

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 03-01-2016

A Sucrière está a abarrotar. Sento-me na esplanada que dá para a laguna e espero que passe. Por uma razão qualquer não há serviço de mesa, nem aos domingos.

Se a bicha não diminuir vou-me embora, escritos os disparates do dia. Tenho um dia cheio, entre passeio de dinghy pela laguna, compras no lado francês e preparação dos hambúrgueres perfeitos (enfim, uma etapa, mais uma num caminho sem fim).

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Estes eram os planos. Acabo de saber que o embarque em Atenas é daqui a duas semanas.

Há coisas que vão mudar.

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Jantar com R. e D. Bom, como sempre (trouxeram-no do S., o que é uma garantia de qualidade).

Depois de jantar converso com D. sobre o novo presidente argentino (a rapariga é brasileira mas vive na Argentina há oito anos). Pensei que depois da horrível Kirchner tudo seria bem vindo,  mas não é.

Apercebo-me sobretudo de que não tenho informação suficiente. Falta-me a leitura regular do Economist, do WSJ, do FT, do Monde.

O mar é um mundo mas não é o mundo.

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Daqui a três semanas estou a navegar outra vez. É nestes momentos que queria saber cantar.

Não sei e entro esfuziante na pastelaria ao lado da Sucrière. Não tem nem a vista nem a qualidade da outra mas tudo o que quero é um croissant e um café.

A empregada - uma francesa bonita e mal-encarada - pergunta-me o que quero.

- Um sorriso, por favor.

O rosto fecha-se-lhe como se lhe tivesse pedido uma felação terna e carinhosa.

2.1.16

Profissões

Um coxim e uma almofada no poço, vento não muito forte, temperatura perfeita e música  (agora Lou Reed, Magic and Loss, um milagre, uma epifania a primeira vez que o ouvi na Marginal a caminho de Lisboa, uma contradição absoluta com a imagem que tenho de Lou Reed), um Ti'Punch puxado a Boulogne, na minha opinião o melhor rum para Ti'Punch tirando o Clément e vinte outros.

Esta mistura e a possibilidade de a repetir frequentemente são dois dos pontos fortes da minha profissão.

São tantos...

Diário de Bordos - Simpson Bay Marina, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 02-01-2016

M. é uma senhora francesa, pequena, magra, com a pele e a voz de quem teve muito tempo exposto ao sol e ao rum dos trópicos.

Já pouco francês fala. Exprime-se melhor em espanhol. Melhor talvez não seja o termo certo. Mais fluentemente. Na verdade não percebo nada do que ela me diz seja em que língua for. Devem ser poucas as sinapses alinhadas que ainda lhe sobram.

Como todos os franceses M. tem um problema não com uma coisa em particular mas com o mundo em geral. É com o alojamento  (mora no barco de uns amigos); o trabalho (tema vasto e abrangente. Vende timeshares na rua); o filho que lhe pediu cinco mil euros (ela mandou); o "dinheiro da Grécia" (chega para a semana. Não faço ideia). E por aí adiante, uma catadupa de contratempos mencionados numa voz rouca em espanhol correcto mas sincopado, elíptico, como se todos nós soubéssemos o que é "o dinheiro da Grécia" e porque tarda a chegar; ou porque é que ela não pode nem pôr uma garrafa de água no frigorífico do barco onde vive e de onde quer sair mas para isso precisa de arranjar casa e ela não vai pagar setecentos dólares por mês por uma casa mai-lo depósito  (dois meses) porque "não é loira" (por acaso ou por escolha é) e e e e.

Hoje apareceu-me a bordo. Disse-lhe que J. ( a tripulante, através de quem a conheci) não estava e ela respondeu-me que sim, sabia, mas vinha por mim. Fiquei um nadinha assustado e lamentei não ter bebido mais uma cerveja no Lagoonies. Cheguei a bordo exactamente ao mesmo tempo que ela.

Queria levar-me ao lado francês, a uma empresa onde eu estava para ir segunda-feira porque talvez tenham trabalho e o S. M. está praticamente pronto.

Anuí contrafeito. Antes tinha de pôr a carne picada a marinar e depois ir comer qualquer coisa ao Market Garden. Que sim e veio comigo. Por acaso esquecera-se da carteira no carro e portanto paguei-lhe o almoço. Depois já no Time Out Boatyard, TOBY para habitués paguei-lhe uma cerveja.

Tentei encontrar um tema de conversa que nos permitisse trocar meia dúzia de palavras mas foi como jogar pingpong com um paralítico.

No regresso explica-me que tem duas casas. Uma em França está alugada. Na outra, em Fuerteventura, mora a filha. Por esta altura começo a perceber ligeiramente o que ela me diz, mas expliquei-lhe que tinha uma sesta por dormir e despedi-me.

(Havia uma festa qualquer no estaleiro e o dono da empresa estava lá. Estão com muito trabalho e é possível que haja algum para mim. Diz-me na segunda-feira.)

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R. voltou do charter e hoje vamos jantar a bordo do S. M. É a nossa vez de retribuir os inúmeros jantares que fizemos no S.

É bom.

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Ando entusiasmado com as fotografias, mas gostava de ter uma máquina e de as fazer mais sistematicamente.

A máquina não vai tardar muito. Já o resto não sei.

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Estou ansioso por ter o S. M. pronto e estar sentado num avião a caminho de Atenas.

Ou seja: estou ansioso por me ver com saudades dele.

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A alguns metros de mim uma jovem senhora fala ao telefone. Não presto atenção até que uma frase me bate nos ouvidos e entra sem pedir licença: "onde estás agora?"

De repente pareceu-me que ela estava a falar comigo, de tantas vezes me fazem essa pergunta.

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O Natal afasta-se e o vento cai. O programa de amanhã é aparelhar a grande e tudo indica que vai ser cumprido.

É o último "grande" trabalho no S. M. Depois vão ser só festinhas, carícias e coisas ligeiras para pagar o alojamento.

Uma hora por dia de ternura post-coital. Post coitum omni animal...

1.1.16

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 01-01-2016

Resumindo: no frigorífico tenho carne para dois ou três dias, vinho para um e uns poucos legumes; fora dele tenho uma garrafa de rum Boulogne (50 graus, apropriado para ti'punch) e bastantes latas.

Nas colunas passa Leonard Cohen e o livro do Canal entra na fase final.

Ou seja: só preciso de comprar limas para o ti'punch e uma garrafa de vinho para estar preparado para o que aí vem.

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Encontrei E. P. no Lagoonies. Continua em Oyster Pond, mas agora só trabalha em mastreação.

Continua o mesmo écorché vif, um mordido da vida. O nome do barco dele é um programa.

Está outra vez sozinho. Deve ser difícil viver com uma ferida aberta que se esconde atrás de uma muralha de auto-suficiência tão espessa; parece arrogância mas não é.

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Ontem deixei cair o telefone e partiu-se o vidro. Nada de grave; tudo funciona normalmente.

Uma ferida superficial. A superfície das coisas aparece-me cada vez mais longe das coisas.

Nunca estiveram perto, verdade seja dita. Mas agora afastam-se ainda mais depressa e em mais coisas.

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Vim a Marigot na burrica. O programa é o de sempre: ti'punch num dos lolos, cerveja no Arahwak, Marina Port St.-Louis ver os barcos.

Se estivesse deste lado acrescentaria um croissant na Sucrière. E se não tivesse almoçado accras e boudin juntamente com o ti'punch.

Se tivesse dinheiro uma visita à livraria. E se tivesse vontade uma visita ao passado. Não tenho.