28.11.22

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 29-11--2022

Tenho sessenta e cinco anos e trabalho, porque não tenho reforma. Versão um. Versão dois: tenho sessenta e cinco anos e trabalho porque gosto do que faço. É uma diferença do caralho (para rimar, só). Bom, venham noites, venham copos, venham longos e solitários passeios, venham saudades e outras que tais. Venha tudo. Sou o que sou, estou onde estou. Nada a dizer e menos ainda a fazer. Infelizmente não me posso queixar. Sou o que quero ser: bolino com vento contra, ando à popa  om vento de popa ou a um largo com ele de través. Mas não fujo ao vento, nunca. Pelo menos enquanto gostar de uma Lua em crescente, como deviam ser todas.

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Jantámos num restaurante chamado Casa do Prego. Dar-lhe-ia um suficiente mais, talvez bom menos. Desta vez conta, porque fui eu que a paguei. Farto que me paguem tudo.

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Ao jantar seguiram-se muitas bebidas no Bon Vivant. Dark and Stormy no limite do aceitável, conversa chata: avaliação dos clientes, já meio grossos. Tenho de parar de dar aulas, suponho. Ou então avisá-los previamente que não sou de paninhos quentes. Aposto que esta última alternativa teria um mercado. Basta ter a paciência que não tenho.

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Vamos passar o dia de amanhã em Lagos. Podia ser pior. 

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Vida: amo-te. Mas por favor não te estiques. 

Being alive is overrated

- Quando é que pensas (ou queres) morrer?
- Sei lá. Daqui a dez ou quinze anos, no máximo. 
- Queres morrer antes de ser velho, não é?
- Não. Quero morrer depois depois de explicar ao meu neto que a modernidade pode ser diferente.
- Diferente de quê?
- Daquilo que lhe vão vender como inevitável. 

26.11.22

Apologia do capitalismo

Os homens não são iguais. Porém, tendem a agrupar-se em função de determinadas características comuns. A desigualdade social é inevitável. 

Civilização é o esforço que a humanidade faz para reduzir o impacto dessa desigualdade. A melhor forma que a civilização encontrou, até hoje, para tal fim foi o capitalismo. 

20.11.22

Fábula

Uma jovem repórter aborda um velhinho numa paragem de autocarros.
- Bom dia. O senhor desculpe. Sou repórter da TVTU e estou a fazer um inquérito sobre a vida sexual da terceira idade. Importa-se de responder a umas perguntas?
- Não me importo nada, se a menina me explicar primeiro o que entende por vida.

16.11.22

Rios, ribeiros e raciocínios

Não receio a contradição, nem mesmo a que se manifesta entre duas linhas de um post. Um raciocínio é um ribeiro na montanha, não é um rio na planície.

Viajar

A única viagem é no interior de nós mesmos. Não se pode viajar para fora se não nos levarmos, nos conhecermos, compreendermos e - sobretudo - aceitarmos tal como somos. Viajar não é uma fusão com o outro, é um confronto. Viajar é uma dupla afirmação: eu sou eu e tu és tu. Muito mais do que a paisagem, é o outro que me atrai na viagem - e no que do outro eu tenho em mim, do que de mim há nele.

Floating in space

Exposição de Bárbara Assis Pacheco: mais do que ver, deixar-se submergir, como se estivéssemos numa piscina de água salgada - ou no Mar Morto, já agora. Não se vai ao fundo, mas deixamo-nos flutuar numa água que nos eleva. Faz-me pensar num disco de um grupo chamado Spiritualized, que começa com «Ladies and Gentlemen, we are floating in space». Ali não é bem no espaço que flutuamos, é na sensualidade, no amor (no sentido de «aquilo de que se gosta»). Um amor sólido, nada dessas coisas semi-imersas em pieguice. Um amor que nos eleva: pássaros e úteros. Impossível exprimir melhor a essência da coisa.

O pesadelo do urso

Deveria escrever sobre o choro, mas o choro sem lágrimas. Como sofrer sem mostrar que se sofre? Sofrer para dentro, por assim dizer. Patxi Andion fala disso muito bem; Leonard Cohen também, quiçá melhor ainda. É esse o defeito do fado: não sabe esconder-se.

O único sofrimento aceitável é o do urso que se mete na sua caverna para hibernar. Será que sonham enquanto dormem? E quanto tempo duram os sonhos? Meses, semanas, dias? Serão sonhos ou pesadelos? De que será feito o pesadelo de um urso? 

Pouco diferente dos meus, aposto. Com uma diferença: as minhas lágrimas não têm choro por trás.

A língua que falas com o amor

Flutuas num espaço que te é estranho. Um espaço que é o teu, mas no qual não te reconheces. Não te conheces, sequer. É noite e está frio, estás sozinho - como sempre estiveste. Não sabes porque não te reconheces nesse espaço, porque não te conheces. Nada mudou excepto o teu corpo, mais velho, mais dorido, mais rígido, mais... menos. Mais menos em tudo o que lhe pedes. O que lhe pedes é impossível: que se esqueça do tempo. Que o tempo passe por ele como a água do mar sobre a pele de uma foca, como o frio sobre um esquimó. Falas com o teu corpo uma língua que ele não entende, não reconhece sequer. 

É provavelmente essa a língua que falas com o amor, já pensaste nisso?  

15.11.22

Panegírico

Nós marinheiros não somos muito dados a ser fãs deste ou daquele. Sabemos que alguns de nós são melhores do que outros - seja porque ganham mais regatas ou fazem qualquer coisa de especial - mas sabemos também que ser melhor é sinónimo de ser humilde. O mar é um grande nivelador de egos e quando alguém se põe em pontas dos pés para fazer sobressair a cabeça não tarda muito a cortar-lhe os pés. Ou pior ainda, a cabeça. Tenho uma admiração enorme por Loïc Peyron, Eric Tabarly, Joshua Slocum - mas não sou fã. Nada sei deles, ou muito pouco, fora das suas vidas de mar e mesmo essa não a conheço em todos os pormenores.

Hoje fui ao lançamento de um livro de Henrique Pereira dos Santos e confirmei muitas coisas que já sabia. Uma, a de que ele é bom, é provavelmente um dos melhores na sua área - só alguém extremamente bom consegue ser tão humilde. "Eu não sou original. Vou buscar aquilo que sei a quem sabe mais do que eu", diz (a citação não é verbatim). Outra: Henrique Pereira dos Santos é tão bom de ouvir como de ler. 

O livro chama-se Das pedras, pão e não sei como sugerir que acorram a comprá-lo se não dizendo Acorram a comprá-lo. Além do mais tem fotografias de Duarte Belo, outra pessoa que é um prazer ouvir e - sobretudo - extremamente boa na sua área. 

14.11.22

Inofensivo

Há uma necessidade estranha, na maioria das pessoas, de exprimir opiniões sobre a vida de outras pessoas. Nunca a compreendi, se de "nunca" excluirmos os anos até à adolescência. Desde que percebi a dificuldade que é ter uma opinião sobre a minha vida deixei de a ter sobre a dos outros. Talvez o cerne da questão esteja aí: pessoas que sabem tudo sobre as suas vidas aventuram-se a opinar sobre as dos outros. Não sei. Talvez.

Às vezes interpretam esta atitude como desprezo, arrogância, desinteresse, superioridade ou algo nessas linhas. Não é. É simples incapacidade. Inabilidade, se preferirem.

Seja o que for: mal não faz a ninguém. 

13.11.22

Avenida da Memória

As palavras buscam, tacteiam. Como a bengala de um cego num passeio cheio de obstáculos. Apontam para ti, desvio-me a tempo; para A, B, C. Desvio-me de todas essas memórias, de todos esses olhares que, tocados pela bengala, ganham vida, ressuscitam, como se num antiquário entrasse um mágico que levasse cada um dos objectos à data em que foram feitos, rutilantes de novos. Olhares, mãos, peles. A memória é um filtro que me ajuda a caminhar por esta avenida. Automóveis passam velozmente. Oiço as vozes, os murmúrios, os pedidos: vai-te embora. Fica. Amo-te. Acabou. Volta. 

Palavras. Buscam um ouvido, as bocas que lhes deram forma, as mãos que lhes responderam. A avenida está bem iluminada. Ou seja: tem muitas sombras. Cada candeeiro faz três ou quatro delas, umas escondidas no recanto de uma parede outras bem visíveis, tangíveis, sólidas, de todas as cores.

As palavras e o tempo: pilares do templo onde vivemos - eu, as memórias, as palavras, a bengala que uma mão estranha maneja desajeitadamente. Essa mão é a da vida, irmã mais nova do tempo como as palavras são as irmãs mais velhas das peles, dos olhares. Relações familiares, frágeis, rompem-se a cada passo, reconstituem-se por vezes. Raramente. Tocadas pela memória, se e quando esta as vê, escondidas nos raros becos esconsos da avenida tão bem iluminada. Loja de antiguidades novas, loja de novidades velhas, lojas atrás de lojas. Caminho tacteando no escuro o teu amor. Caminho tacteando no escuro o meu futuro. Caminho, tacteando no escuro. Caminho. Tacteando. Em ti.

Começo

Os meus dias começam invariavelmente com um duche, ao qual se segue vestir-me e o pequeno-almoço. Excepto quando não começam. Este «invariavelmente» não deve ser levado à letra. Às vezes começo com tudo menos o duche. Procrastino e faço aquilo que toda a gente faz quando procrastina: nada, disfarçado de fazer qualquer coisa. Sei lá, arrumar loiça, fazer a cama, ver televisão, pensar em tudo o que devia estar a fazer e não estou, escrever disparates e repetir palavras de que não gosto, como procrastinar. Faço-o com o objectivo único e mais ou menos confesso de protelar o começo do dia, de fazer como se vivesse alternadamente nos dois pólos durante o respectivo inverno, passar de uma noite para outra com o mínimo possível de luz. Como se lava a loiça num igloo? Será que aquilo derrete e começa a pingar água em cima dos edredons, como nos barcos de madeira nos quais comecei a navegar? A televisão é muito depressiva e só fala de coisas que não interessam, como hoje, por exemplo: meia dúzia de putos querem «salvar o planeta». Invadiram umas instalações de não sei o quê porque estava lá um ministro e eles querem que o homem deixe de o ser. E ainda há quem queira baixar a idade do voto. Ver adultos a querer «salvar o planeta» já é doloroso; mas putos ainda é pior. Ainda por cima «apoiados» pelos professores e por políticos oportunistas, tão débeis mentais como os ditos «activistas climáticos» (quem esfregasse um pano sujo nas trombas de alguns jornalistas e repórteres de televisão mereceria uma medalha de mérito. E não é só por causa do «c» em activistas, é por causa da palavra toda). O planeta sobreviveu a terramotos, asteróides, incêndios, dilúvios, ciclones, extinções em massa e estes palermas querem «salvá-lo». Salvá-lo? Só se for da sua própria estupidez, que essa sim é uma ameaça. Enfim, o dia lá acaba por começar, expressão deliciosa, saborosa e maliciosa, «acabar por começar». Já o inverso não existe, as coisas não começam por acabar, nada começa...? Não sei: o dia começou por acabar a noite, por exemplo. Não é a mesma coisa. O dia continuou a começar, agora com Sonny Rollins no leitor de CD, eu a debitar disparates, saco de ontem desfeito, caldo verde comido, duche tomado, vinho tinto oxidado de tanto tempo aberto, há lá direito, estragar vinho tinto é pecado, de qualquer foma tenho de ir ao supermercado comprar leite e o vinho vem por arrasto, apesar de ter decidido que agora só compro vinho na adega aqui perto e na casa Cafélia, onde descobri Magarogipe da Nicarágua, um dos meus cafés preferidos, juntamente com o de Sumatra e também tem vinho bom e barato e assim se arrasta o começo de um dia que para variar não começou com um duche, começou cinzento e não começou no Pólo Norte mas sim a trinta e oito graus, quase trinta e nove (norte também, claro). Quase poderia dizer que o dia pegou de tchova, não fosse o duplo sentido do termo. Para clarificar: o dia pegou de tchova, não eu. 

E quem diz o dia diz a vida.

Adenda: «Salvar o planeta»? Pensar que o homem o poderia destruir já é uma insuportável hubris; que o poderia salvar (se fosse caso disso) é ainda pior.

11.11.22

Mais deslumbramentos

Já que estou em maré de louvação, acrescento uma à anterior. Trata-se desta vez do quiosque S. Paulo (creio que se chama assim. Fica no canto nordeste da praça de S. Paulo). Sou cliente esporádico e irregular, mas cada vez que lá vou confirmo a excelência do sítio. Começa pela simpatia, amabilidade e eficácia dos jovens empregados; continua com a qualidade e variedade dos petiscos, coisas tradicionais e bastante bem feitas; e atinge o auge com o vinho a copo: se o critério for a relação qualidade/ preço, está em primeiro lugar de toda a Lisboa e arredores. Primeiro, segundo e terceiro. Se o critério for a qualidade tout court, integra facilmente o top três dos vinhos a copo de Lisboa. Foi ali que hoje fui diluir o deslumbramento de Do Deslumbramento e não podia ter escolhido melhor local.

Multi-poli-fonia a três vozes e quatro tempos

Do Deslumbramento é uma peça que está em cena no teatro Meridional e que eu sugiro a todos os meus leitores e afins vão ver. Vão ver. Creio que nunca vi um título tão adequado ao conteúdo como este: do deslumbramento. E se fosse só deslumbramento continuaria adequado. Um trabalho sublime sobre o teatro, a memória, o amor, o sonho. Não uso o adjectivo à toa: o grau de maestria de Miguel Seabra e dos seus dois colegas de palco não roça o sublime: é sublime. O texto, os tempos, a encenação levam esta peça directamente ao meu pódio teatral.

Tomando como base Bruscamente no Verão Passado, a peça leva-nos a uma teia hipnótica, onírica, teatral, memorial da qual não nos libertamos facilmente. Deslumbrados.

9.11.22

Agradeço

Bebo-te vida num copo de vinho ou nesta tarde encharcada de sol ou em tudo o que te fiz de que estou orgulhoso ou em tudo o que lamento, bebo-te de um trago só, até ao fim e como-te também.  Às vezes de garfo e faca, outras com as mãos lambuzadas, outras ainda como-te só com os olhos ("os olhos também comem"), pouco importa. Esfrego-me em ti, agradeço-te as carícias e as porradas todas que me deste e foram tantas, juro que nunca te serei fiel, que nunca deixarei de flirtar com outras vidas, com as outras cores. Conheço-te como se te tivesse feito e de ti nada sei. Nem de mim sei, quanto mais de ti. Limito-me a comer-te, beber-te, viver-te.

E agradeço-te, claro.


Nómadas

Pergunto-me durante quanto tempo haverá lugar para nós, nómadas analógicos?

6.11.22

Analogía

É como nadar numa piscina sem água.