30.3.21

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 30-03-2021

Pouco a pouco, nos supermercados o verde substitui as outras cores todas. As pessoas querem «natureza» e é na secção «bio» das super-lojas que a vão procurar, embrulhada em todas as espécies de plástico - mas na caixa já só têm sacos de papel, o «verde» começa quando se vai para a rua. Antes disso, impera o transparente. Não se pode dar um passo sem dar com iogurtes «bio», leite «bio», carne «naturaplan», alfaces «sem glúten», fruta «sem fosfatos» - tudo embrulhado em plástico. Salva-se o peixe - é preciso perguntar e auscultar cada etiqueta cuidadosamente para se saber se a peça é de piscicultura se de pesca. Ninguém se preocupa com o salmão - um dos grandes crimes ecológicos da nossa época, sobretudo o da Noruega, esse país que se prepara para proibir nos fiordes embarcações a combustíveis fósseis. Não tenho nada contra a hipocrisia - sem ela não se viveria em sociedade e não haveria supermercados - nem contra os mitos - cada época tem os seus, grand bien leur fasse. Tenho contra a ignorância, contra a mentira, contra o holier than you que invadiu esta porra deste tempo, contra esta esquizofrenia dicotómica, maniqueísta.

Vá lá que a meio da tarde de uma terça-feira o supermercado está praticamente vazio, as caixeiras - quase todas obesas, até nisto o tempo apanhou a cidade desprevenida - aproveitam um erro qualquer do planeamento para olharem os tapetes vazios e de caminho as unhas ou os telefones portáteis. 

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Já o verde que vejo da janela é outro, melhor e menos invasivo: as árvores aproveitaram estes dias de calor para se vestirem de folhas novas. Por enquanto pequenas e poucas, mas mais e maiores a cada dia. Não tarda vem frio outra vez, mas as jovens folhas resistirão e depois disso as ruas, parques e jardins estarão cheias de verde e de flores. Genebra no Verão é menos austera - ou parece, pelo menos.

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As «coisas» avançam, as bolas continuam a girar no ar. Parece-me que descobri finalmente um porto onde amarrar os dias que faltam até tudo se transformar num pasto de insectos e bactérias variadas, castanho escuro ou negro. A ver. Um monitor do tamanho de uma piscina, filmes, livros, música, ervas na horta - se alguém um dia me tivesse dito que sonho ter ervas plantadas por mim ter-lhe-ia respondido para se ir tratar com urgência, eu que mal olho para uma planta a faço morrer, coitada - e viagens com bilhete de ida e volta, como toda a gente. 

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Enquanto espero, apareceu no horizonte uma luz fraquinha de um transporte para o Canadá. Está muito longe e é mesmo fraca, mas estou tão sedento de mar que é suficiente para me fazer sonhar.

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Entretanto, vou cozinhando, dormindo e fazendo muito menos do que queria fazer. «Aproveita». diz-me S., cujos dias estão cheios como um ovo. Gostaria de aproveitar muito mais, sim, mas ainda não estou capaz. A encosta está cada vez menos íngreme e verde, a pedra cada vez menos pesada e a Lua ontem estava fascinante, de tão branca e brilhante. O resto virá por acréscimo, degrau a degrau.

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A demência continua, em todo o lado. Tento não pensar nela, mas depois ocorre-me que representa muito provavelmente noventa e nove por cento do peso da pedra e amaldiçoo-a de novo: que chovam asteróides sobre os malditos que nos condenam a esta sub-vida, como se fosse um substituto de vida, como se valesse a pena não-viver para sobreviver, como se um ano de palhaçada não fosse um ano a mais, um ano demais, um ano subtraído a uma vida traída. Que morram esmagados pela sua demência, exalto-me no sonho, como se os asteróides fossem teleguiados e não obra do acaso, o grande - o verdadeiro - mestre disto tudo.

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A vida não me deve nada, mas eu devo-lhe muito. Deve ser a única assimetria de que sou claramente ganhador.  

27.3.21

Holofote encarnado

Não sou pessimista, não acredito que vamos ficar confinados mentalmente para o resto dos tempos, mas cada vez que penso nisso tenho uma luz encarnada a acender-se e essa luz é cada vez mais potente. «Isto não pode ser senão passageiro» e o raio do holofote acende-se. Não vamos passar o resto do tempo a desconfiar uns dos outros, a não perceber como funciona um sistema imunitário, a ouvir - e acreditar em - charlatões, a respeitar governos para quem a lei ou a constituição valem menos do que o papel higiénico com o qual se limpam (refiro-me à merda não metafórica, a literal. Da outra, não só não se limpam como se orgulham), não vamos transformar a ciência numa sessão da IURD, o jornalismo vai corrigir-se e voltar a ter um módico de decência, deixar de ser o megafone dos governos...

Raio do holofote.

O circunflexo no a

 «Il n'y a pas d'âge pour être heureux», diz-me uma publicidade qualquer numa montra, não sei se com o circunflexo no âge - é cada vez menos usado, o AO90 é simplesmente um cume numa cordilheira de conneries, não é de modo algum uma colina isolada. Não reparo no acento - reparo apenas neste assalto constante - ou melhor, na minha hiper-sensibilidade a este assalto constante, permanente, insistente como o cheiro de um esgoto. A vulgaridade, a banalidade, o lugar-comum, clichés saídos da cabeça de gajos pagos a peso de ouro para descobrir o menor denominador comum, o ponto mais baixo que atinje mais gente - necessariamente, naquilo que têm de mais básico: o lugar-comum, o lugar comum. Cada vez suporto menos esta modernidade, eu sempre tão tolerante, tão «il faut être moderne», tão «não deixes atingir-te aquilo que não te toca», tão «não deixes tocar-te aquilo que não te atinge», tão ao lado deste mundo. Não é uma frase feita, sempre estive ao lado e de repente agora parece-me que deixo de o estar, uma frase idiota numa montra fere-me, as idas aos supermercado estão cada vez mais difíceis, cedo às promoções só para não me chatear e para me despachar mais depressa, para não pensar, não procurar - para sair dali o mais depressa possível. 

Isto seria um sinal do além, se acreditasse em aléns, mas não acredito. Acredito no aqui e agora, no que vejo e sinto e imagino e penso e adivinho, mas em aléns não sou grande crente. Aliás, não vejo sequer a modernidade como um inferno - não passa de um lugar cheio de merda com muitas coisas boas (cada vez menos? Não sei. Só quem tinha grandes ilusões sobre a humanidade pode estar desiludido com esta palhaçada toda. Eu tinha, mas não deviam ser assim tão grandes porque me apercebi rapidamente do que nos esperava. Pelo menos percebo melhor agora porque sempre estive ao lado, porque nunca fui «parte disto», nunca integrei um rebanho. Nem um grupo, sequer, quanto mais uma manada. Só não percebo porque me magoa tanto, como se estivesse em carne viva, como se o mundo se tivesse transformado em papel de lixa quarenta, como se isto tudo me fosse dirigido a mim, só a mim).

Enfim, não tanto. «Não há idade para ser feliz»? Não reparei sequer se tinha o circunflexo no a, quanto mais que empresa era... 

25.3.21

Acontece a todos

"Ler maus livros ajuda-me a detectar melhor as minhas falhas do que ler bons. Os bons livros reduzem-me ao desespero."

(William Gaddis, in ágape, agonia, ed. Ahab)

Um primário binário...

Aos sessenta e três anos descubro-me binário: gosto de portas ou abertas ou fechadas. Tudo, menos entreabertas.

Direito de cidadania

Não estará já na altura de conceder a «constatar» direito de cidadania plena? «Detalhe» concordo em manter no limbo dos estrangeirismos porque temos «pormenor», muito mais bonito. Mas «constatar» não tem equivalentes tão bons na nossa língua. Enfim, talvez «comprovar». Não sei. A verificar.

24.3.21

Ao engano

Metade de nós anda à ròla do tempo e a outra metade tem um leme e um rumo.

Ambas estão enganadas. É o tempo que passa por nós, imóveis como as colunas do Cais. São o rio e a luz, para cima e para baixo, que lhes dão forma e vida.

Estação terminal

A linha (de metro? De comboio? De autocarro?) "Amo-te" tem imensas paragens. Pergunto-me se terá um término e se sim, quando lá chegarei?

Baça, vida

A beleza baça de uma vida sem lustro. Talvez levá-la ao engraxador dos Restauradores, à frente dos correios. É muito bom e é surdo-mudo, uma vantagem para algumas vidas. Já o L. da rua das Portas de Santo Antão, ao lado da Ginginha Popular, fala que se farta; mas não engraxa mal. Não tão bem como o Surdo (é a alcunha do outro), mas enfim, merece gorjeta e tem a vantagem de podermos comer uma tira de  choco enquanto esperamos. 

Não sei. Talvez seja melhor manter baça a vida.

Falar do silêncio...

... Com palavras?

Redundância

Farto de transparência. Quero opacidade, obscuridade, certezas. Farto de dúvidas. Dai-me a escuridão da certeza, o seu caminho balizado, alcochoado, almofadado. Duvidar cansa. É tão bom, acreditar. Olhai bem para os olhos termos do crente, tão suaves. Quase mortiços. Creis que é por acaso, o "vida" de dúvida? Desenganai-vos. Será quando muito uma redundância. Cansativa, como todas as redundâncias.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 24-03-2021

Passeio grande por este fantasma no qual me sinto o único sólido. Tudo o resto são sombras, plasmas, sapatos Loubotin a mais de mil euros (e horrorosos, ainda por cima), um Rolls que parece um Porsche, relógios Franck Muller que nem o preço têm marcado, canetas no Brachard a mil e quinhentos francos. Bem vindo à terceira cidade mais cara do mundo, a cidade na qual se fundem Calvin, o Mediterrâneo e o resto do mundo - separados, antitéticos mas não conflituosos porque estamos na Confederação Helvética, ao fim e ao cabo - a cidade em cujas ruas os meus fantasmas se dissolvem a tal ponto que invadem o espaço e se transformam nele. 

As mulheres continuam lindas, mas agora menos porque têm de usar máscara nas lojas e nos autocarros; valem-nos as ruas, a nós estetas adeptos de Darwin. E vale-nos este dia lindo, azul do céu e branco da neve nos cumes do Jura, as ruas limpas, os tramways quilométricos, enormes tapetes voadores que de cinco em cinco minutos traçam silenciosamente um risco na cidade.

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Dia de B. vir cá jantar. Lulas recheadas e St. Saphorin. Parece-me uma boa mistura.

23.3.21

Monólogo do poço

- Isto da solidão é como um poço sem água.

- Não digas nada a quem não te ouve.

- A quem te ouve tão pouco digas o que quer que seja.

- Limita-te a cair por esse buraco abaixo.

- Um poço ao qual não sabes se caíste empurrado, se por acidente...

- ... Se por escolha. Não sei.

- O poço não tem água. 

- Isso já tu sabias, a meio da queda.

- Não sabia. Era uma hipótese.

- É bom confirmar hipóteses. 

- Deixei de te ouvir.

Primavera

Amanhã,  a temperatura vai subir para uns estonteantes dezassete graus. A mínima, porém, continua cá por baixo, nos dois ou três. O mar, esse grande atenuador, não chega cá. 

As máximas voltarão a descer, a subir, as mínimas também e um dia as mulheres sairão à rua sem os aprestos de inverno. Esse sim, será o começo da Primavera.

Branco e limpo

Fazer nessa pela, nessa estepe, um plano de voo. Mergulhar em voo picado como os Stukas ou - sei que preferes - os cormorans. Perder-me na alvura das manhãs, reencontrar-te nas florestas, nos meandros do desejo, na gruta de onde nasce o Sol, nessas luzes com que me olhas e alumias . 

Perder-me em ti, reencontrar-me em nós, navegar nesse corpo de neve, esquecer-me do frio, abraçar essa vastidão, branca e limpa como o tempo.

Estratégia vencedora

O império do mal apercebeu-se de que com esse nome não ia lá. Mudou-o e agora sim, está vencedor. Chama-se império do bem.

A Besta está de volta

Um senhor acha que quem não acredita nas «medidas» (aspas porque é trocista) é estúpido, ignorante e arrogante. O modus cogitandi do tempo é sem dúvida religioso: os «negacionistas» são os novos hereges, a fogueira real é substituída por fogueiras virtuais nas redes sociais - apropriadamente chamadas flaming. Cada micro-religião laica tem as suas santas - santa Greta, santa Marielle e por aí fora - e a comunicação social faz de nova igreja, imitando a da Idade Média cuja uma das funções era transmitir ao povo as informações reais. Nada disto me parece glorioso. Malraux dizia que não disse mas afinal disse que o século XXI seria religioso ou não seria. O que não previu foi que a religião não seria uma - pelo menos no Ocidente - mas sim uma colecção de crenças laicas. O Frederico do final do século XXI não anunciará a morte de Deus, mas sim a dos deuses. A intolerância instala-se, vestida de «cidadania», «bem público», «altruísmo», «bondade». Por uma curiosa torção do bom senso, os que querem promover a «igualdade» e a «inclusão» fazem-no criando divisões e clivagens onde elas não existiam ou aprofundando as que sim.

A Besta está aí, de novo. É preciso lutar contra ela.

22.3.21

Pequeno-almoço no hotel do tempo

Enigma com ovos estrelados, bacon e duas torradas, se faz favor.

Reconhecimento

Sobrevoar memórias futuras, como os aviões de reconhecimento das guerras: o que é hoje não será amanhã. 

Abismos e abismos

Gosto de cair para os abismos que estão por cima de mim. Às vezes engano-me, é verdade, e vou parar aos que estão por baixo.

Zeitgeist e fontes de informação

Não sou historiador e não posso afiançar, mas pergunto-me se o peso do zeitgeist hoje não estará ao nível do da Idade Média? Na Idade Média éramos poucos e a principal fonte de informação oficial era a Igreja - sublinho oficial: havia outras, como o rumor e o boato (que se mantiveram até hoje, mas com um alcance e uma rapidez bastante diferentes).

Não deixa de ser curioso - ou assustador - viver uma época na qual analisar problemas com recurso a dados quantificados seja visto como burrice, idiotice e outros mimos e acreditar acriticamente no que dizem governos e comunicação social seja sintoma de inteligência. (Só esta associação de governos e jornais tem que se lhe diga...) É como acreditar na Igreja da Idade Média, com uma vantagem: a alternativa não são apenas rumores e boatos. 

21.3.21

Dia do sono

Os dias disto e daquilo dão-me imenso sono, mas não consigo deixar de pensar em todas as pessoas que gostariam de os trocar todos por uma simples «Noite do sono». 

Se eu morrer (testamento covidiano)

A minha vida deixou de ter ameaças de morte («ameaças» no sentido de possibilidades), seja por minha «culpa», seja devido aos progressos da meteorologia, seja porque me meto menos em aventuras - ou ninguém me quer para elas, não sei. Pouco importa. Tenho o cabaz cheio de foices que me passaram ao lado, muito perto. Às vezes penso nelas, em tudo o que não teria feito se me tivessem acertado, na sorte que tive em quem as manejava ter sido desajeitado naquele dia, naquele momento, comigo. É possível que ainda me apareça alguma, claro - não tenciono passar o resto da vida confinado para não morrer - e se aparecer cá estarei para desafiar a sorte, a habilidade ou a carcaça, a quem tanto devo.

De todas, aquela de que tenho menos probabilidades de morrer é a Covid. Nem sequer de a apanhar, claro, porque sabe-se hoje que o vírus é muito menos contagioso do que se vendeu no início, porque ser gordo não é ser obeso, porque a diabetes que tenho não passa de uma ilusão de óptica (o meu médico de família não lê o DV, é um homem sensato), porque tudo indica que já a tive, porque - enfim - não me «apetece» (isto não é infantilidade, mas não vou desenvolver muito).

Aconteça o que acontecer, se o vírus me apanhar é a mim que apanha. Não mereço que se feche o país para eu não morrer de - ou, estatisticamente mais provável, com - Covid. 

Nem eu, nem ninguém. A morte, seja ela provocada pela doença, pelas escolhas de vida de cada um ou pela escolha simples de cada um é um processo individual, por muito que o Dylan diga que não é o fim. Mas não falo pelos outros - falo por mim, eu, rapazinho maior e vacinado (não contra a Covid), cujo cabaz de foices apesar de cheio ainda tem lugar para mais uma, inevitável. Não fechem o país por tão pouco, não fechem os cafés e bares e restaurantes onde espero que a minha morte seja celebrada com um inesgotável chorrilho de rhum punches, Alexanders, vinho tinto Haut Marbuzet, ti' ponches, cervejas Red Stripe e Smithwicks, whiskies Talisker, Lagavulin ou Laphroaig, rum Mount Gay (ou El Dorado ou Flor de Caña ou Trois Rivières ou assim), mai-los nacos de carne com três centímetros de espessura entre o cru e o mal passado, chili con carne picante de fazer um cavalo chorar, garoupa assada nas brasas ou no forno, as Vésperas de Rachmaninov, a Ressurreição de Mahler, as Suites Inglesas de Bach tocadas por Glenn Gould, a música eterna de Hildegarde von Bingen, leituras de Borges, Yourcenar, Beckett, García Márquez, Pessoa, Alexandra Pizarnik, Cavafis e miúdas giras, muitas e muito... E vida, vida, vida. Não vai acabar comigo - nem com mais ninguém. 

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-03-2021

Genebra recebe-me luminosa e fria, nobre e seca. Fria e nobre sempre foi. A novidade nesta altura do ano é não estar a chover. O dia está lindo, cheio de sol e de  vento - está de bise, esse vento gélido que vem do Norte e no Verão faz as delícias de quem navega à vela no lago. Sinto-me a visitar um fantasma - curiosa inversão do habitual, costumam ser eles a visitarem-nos e não nós a eles. Genebra é o fantasma de uma mulher bela quem em tempos amei e me recebeu e no qual agora passeio neste parque cheio de gente mas sem barulho, nestas ruas igualmente silenciosas. Plasma sem pés, desliza a meio metro do solo e atravessa-me sem que o veja, mas sinto-o. 
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Quase ninguém de máscara, menos de cinco por cento das pessoas, numa estimativa a olhómetro. Mas a loucura é a mesma - os cafés e restaurantes estavam para abrir por estes dias e vão continuar fechados mais um mês. Muda o grau. mas não a substância. Isto dito, não se cospe na sopa - aqui pelo menos não tenho de andar mascarado na rua e alegro-me com isso. Não tarda tenho uma bicicleta e safo-me dos transportes públicos. Sobrarão as lojas, nada a fazer. 

«Guernesey, severa e doce» E: «J’ai voulu indiquer que, lorsqu’il s’agit d’être aimé, Tout faire est vaincu par Ne rien faire.«»

«Je dédie ce livre au rocher d’hospitalité et de liberté, à ce coin de vieille terre normande où vit le noble petit peuple de la mer, à l’île de Guernesey, sévère et douce, mon asile actuel, mon tombeau probable.»

V. H.

«La religion, la société, la nature, telles sont les trois luttes de l’homme. Ces trois luttes sont en même temps ses trois besoins ; il faut qu’il croie, de là le temple ; il faut qu’il crée, de là la cité ; il faut qu’il vive, de là la charrue et le navire. Mais ces trois solutions contiennent trois guerres. La mystérieuse difficulté de la vie sort de toutes les trois. L’homme a affaire à l’obstacle sous la forme superstition, sous la forme préjugé, et sous la forme élément. Un triple ananké1 pèse sur nous, l’ananké des dogmes, l’ananké des lois, l’ananké des choses. Dans Notre-Dame de Paris, l’auteur a dénoncé le premier ; dans les Misérables, il a signalé le second ; dans ce livre, il indique le troisième. 

À ces trois fatalités qui enveloppent l’homme se mêle la fatalité intérieure, l’ananké suprême, le cœur humain. »

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«J’ai voulu glorifier le travail, la volonté, le dévouement, tout ce qui fait l’homme grand. J’ai voulu montrer que le plus implacable des abîmes, c’est le cœur, et que ce qui échappe à la mer n’échappe pas à la femme. J’ai voulu indiquer que, lorsqu’il s’agit d’être aimé, Tout faire est vaincu par Ne rien faire, Gilliat par Ebenezer. J’ai voulu prouver que vouloir et comprendre suffisent, même à l’atome, pour triompher du plus formidable des despotes, l’infini.»

Victor Hugo

20.3.21

Biologia, ética

O homem é um animal gregário, como os elefantes, os golfinhos, os lobos ou os cães, por exemplo. Mas destas espécies todas, é a única que está sujeito a duas forças centrípetas, por assim dizer: a biologia (que tanto pode ser centrípeta como centrífuga) e a ética. Sobre a primeira, pouco ou nada pode agir; sobre a segunda, não só pode como deve.

A mecânica das coisas

A questão não é atribuir culpas. Cada um dos actores desempenhou o seu papel: 

  • Os media rentabilizaram a crise e (espero) capitalizaram-se. Fica por definir o papel dos media públicos, como a RTP, mas isso é outra história; 
  • Os políticos geriram a sua carreira política - o verdadeiro trabalho de um político é ser reeleito. Eleito qualquer um é; 
  • As pessoas tiveram medo - uma emoção primária. Ninguém «escolhe» ter medo. Todos temos níveis diferentes  de aceitação do risco e pode eventualmente elaborar-se, mas o medo não é uma opção voluntária.

Nada disto é questão de complots ou «great resets». É simplesmente a mecânica das coisas. Poderia ter sido diferente? Sim, claro. Mas isso implicaria políticos que fossem homens de Estado ou não tivessem acesso às rédeas - como na Suécia -, media que ainda fossem media - coisa que deixaram de ser há muito tempo - e pessoas que se informassem antes de reagir - suponho que nunca houve. Só nos indignamos agora porque pensamos que a informação está acessível e blablablá. Não está. A informação só está acessível para quem a ela quer aceder. Só somos gansos a quem enfiam o que querem pelas goelas abaixo para parte da informação, não para a totalidade. E - ao contrário dos gansos - engolimos porque «queremos». Porque temos medo. Porque a biologia é o que é.

17.3.21

Diário de Bordos - Lisboa, 17-03-2021

A minha Mãe fazia isto muitas vezes. «Hoje é dia de restos», anunciava. Por vezes convidava-se um ou outro amigo mais próximo; outras, aparecia alguém impromptu para jantar. Era sempre uma festa: revisitavam-se os pratos de que mais gostáramos durante a semana, evitavam-se - com uma boa desculpa - aqueles que nos atraíram menos. Na Marinha Mercante é (ou pelo menos era) um «prato» frequente aos domingos. Chamava-se Roupa velha e consistia numa mistura dos restos da semana envolvidos em ovo, disfarçados com tomate. Na Suíça é um insulto convidar alguém para os restos. Fazia-o frequentemente, para... - para quê? Para chatear? Para mostrar que «eu não sou daqui»? Para... - Nada disso. Simplesmente porque para mim é uma forma de me aproximar das pessoas que me são queridas, de me dar informalmente, de lhes «revelar» um pouco do que foi a semana, como num caleidoscópio se vê melhor a imagem, dividida em pequenos sectores.

Hoje vêm convivas que conheço há muito e uma que não conheço de todo. Vamos ver como funciona a mágica. Porque é disso que se trata: mágica, alquimia, muito mais do que química, termo que é mais utilizado. Química é uma ciência exacta, senhores. A alquimia e a hospitalidade não. 

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Vou chegar a Genebra com temperaturas máximas de 6º e mínimas de -3º. Revisito o passado, quando as épocas mais difíceis para mim eram a Primavera e o Outono. Andava a queixar-me - nos circuitos internos de queixas e reclamações, nada de coisas públicas - da temperatura, que me parecia fria. Agora vais ver o que é frio, outra vez. Vá lá, compensado pelo calor do amor, etc. Já os olhos se me pingam, só de pensar nisso.

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Estou igualmente ansioso por ir e por ficar. Antigamente, chamava-se a isso um double bind. Enfim, quase. Isto é, quase igualmente. Lisboa, o calor, o Tejo - hoje vim do almoço em casa do H. (V. D.) pela beira-rio, deslumbrante, abissal de beleza, resplandecente - tudo o que aqui me prende, me atrai, este amor não correspondido - este amor de que não tenho vergonha de revelar a falta de correspondência, Lisboa é desavergonhada, já o sabemos todos há muito - tudo o que aqui amo e me desespera não chega à vista da S., do T. e da H., amores correspondidos, partes de mim, passados e futuros de mim.

Enfim, há pelo menos um argumento importante: em Genebra trabalho melhor, sou mais produtivo. Não sei porquê - nem procuro saber - mas sou. Com a quantidade de bolas que tenho no ar, isto pesa.

16.3.21

Longa-metragem 2

Nunca gostei de filmes de terror. Este Covid - 2 (ou 3 ou 4) é ainda pior do que o primeiro. E deste não sou o realizador, sou espectador e vítima,  como se tivesse um pé dentro e outro fora.

A Rosa Púrpura da Covid-19.

(O -19 quer dizer que vai haver dezanove episódios?)

Longa-metragem

Vesti a pele do adeus. É a única pele que não me larga. Gostaria de conseguir explicar ao realizador do filme que a pele do olá não se refere só a gelados, mas depois lembro-me: o realizador sou eu. Actor, realizador, som, montagem, distribuição... faço tudo no filme. Às vezes com ajuda, outras não. É uma longa-metragem e não há maneira de acabar. "Ainda bem", penso antes do adeus.

Demónios, sono

Com o despojamento de uma comporta que se abre e vê a água correr em todas as direcções: assim me entrego à noite, à tua ausência, à tua presença, às palavras que o vento não leva, traz. Os demónios voltam à jaula onde passarão as próximas horas a fazer-me companhia. Durante o dia saem, mal os vejo. Acalmam, parecem vacas na pastagem, nem se lhes ouve os sinos. À noite são diferentes. Bailam e batem-se, bebem e gritam, revoltam-se e atacam-me.

É nos seus braços que durmo.

Andaimes, obras, ilusões

Construímos andaimes no ar, querida. Sempre: palavras sobre palavras, ar sobre ar, vento sobre vento, olhar sobre olhar. É a isso que correctamente se chama amor. Pele sobre pele, corpo sobre corpo, boca sobre boca é outra coisa.

Não é um andaime, não é obra. Só o que não se vê vale. O resto ilude.

Classismo...

...é não me surpreender / arreliar que o caixa do supermercado ou o senhor do talho (ninguém é perfeito, nem mesmo o talho O Naco) acreditem que as máscaras os "protegem", mas não conseguir compreender que pessoas inteligentes e cultas embarquem na narrativa vigente sem sequer hesitar, sem o menor espírito crítico. 

Concedo que tenho mais tempo livre do que muitos e o posso dedicar a investigar, em vez de me limitar a ouvir. Mas bolas, isto não explica tudo. Quando a farsa começou estava tão ocupado como qualquer outro. Além disso, o tempo que passam a ouvir a televisão podia ser dedicado a outros canais de informação. 

Urgência democrática (luta contra o classismo): dar acesso a todas as classes sociais à informação. Fazer com que a comunicação dita social deixe de ser associal, como é na realidade.

15.3.21

Diário de Bordos - Lisboa, 15-03-2021

Bilhete comprado. Vou para Genebra sexta-feira. Se tudo andar como espero (já nem ouso o verbo correr) só sairei de lá para Palma, de onde o P. me chama aos uivos. Deixo Lisboa com a habitual mistura de alívio e desespero. A ideia de que provavelmente o terminal de contentores da Alcântara vai mesmo avançar sem oposição deixa-me doente. Pagaria para que me tirassem o chip português da mona. Que vergonha, que desprezo pela cidade para benefício de meia dúzia de accionistas! Como é que um governo socialista aceita isto, promove esta fraude?

Outra fraude: o "desconfinamento". Como é que este povo engole estas patranhas? 

Mais do que uma arte, ser português - e  gostar de o ser, o que só piora a questão  - é uma descida aos infernos. Faz-me pensar naquela experiência do liceu em que se punha uma bola de pingpong por cima de uma fonte de ar quente. A bola subia enquanto o ar estava quente. Mal arrefecia, voltava a cair até reencontrar o ar quente, ascendente. E assim andava, ad aeternum, para cima e para baixo, sempre no mesmo sítio. Como nós: não saímos da cepa torta, enquanto os governos vendem ou dão as boas aos primos e amigos.

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A ginjinha Sem Rival está fechada, mas consegui beber duas cervejas (ao almoço) e dous mojitos (antes do jantar) "ao postigo".  É ilegal, eu sei, uma verdadeira aventura, um desafio. Vá lá, esta crise contribuiu para melhorar o meu léxico. Não fazia ideia de que se pode  vender qualquer ao postigo. Como chamarão a isto em inglês, francês ou alemão?

Simples curiosidade, claro; na verdade, estou-me nas tintas. Com o mal dos outros posso eu bem. E com o bem igualmente, de resto.

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Fui cortar o cabelo. Há mais de um ano que não entrava num barbeiro. Já não podia ver-me ao espelho. Einstein nem sempre acertava. Ir ao barbeiro não é uma perda de tempo.

Moscas e vinagre, carneiros e liberdade

Para um liberal, tudo isto é grave. Ver abaladas uma série de crenças basilares exige bastante reflexão, reposicionamento, trabalho intelectual, ir às fontes, etc. Felizmente, há confirmações, para compensar.

Primeiro, a ideia de que as pessoas sabem o que é melhor para elas. Não sabem, não querem saber. Se alguém lhes diz que "vem aí o lobo" (aspas porque cito) elas primeiro acreditam, depois não vão verificar a fonte, e a seguir atacam quem não acredita. Pode pensar-se, é certo, que o medo lhes dá algum conforto e esse conforto é bom, logo as pessoas sabem o que é bom para elas. Falácia. Não é o medo que está em causa, é aquilo que se troca por ele, aquilo que se perde em nome do pânico. 

Segundo, as pessoas não ligam peva à liberdade. Trocam-na ao mais pequeno alarme. Os chineses perceberam isso há muito tempo. Se não queremos que os nossos governantes se deixem tentar e os imitem, teremos de lutar muito, mais afincadamente e sobretudo mudar a mensagem. Não se matam moscas com vinagre e não se seduzem carneiros com liberdades.

Terceiro, o código deontológico dos media deve ser revisitado. Aquilo que pensávamos adquirido não o está. A comunicação social continua comunicação, mas deixou de ser social. Existe para si. Dir-se-á que sempre foi assim. Talvez, mas agora o outro prato da balança ficou vazio. Tudo pende para o lado da comunicação. O social desapareceu do radar, pura e simplesmente.

Do lado das confirmações, há uma, mas importante: os governos não querem o bem das pessoas que governam. Buscam apenas a sua sobrevivência política. Um dia vai poder demonstrar-se isso a quem hoje apoia esta farsa. Qualquer liberal o sabia. É tempo de passar a mensagem aos estatistas.

Do lado muro das lamentações: quem duvidava da viabilidade de um partido liberal em Portugal estava podre de razão. O comportamento da IL nesta crise tem sido desprezível. 

Covid-19: resumo e um voto piedoso

A narrativa oficial apoia-se em três pilares: 

1 - O número de "casos";
2 - O número de mortos;
3 - A contagiosidade do vírus;

(Podemos acrescentar, talvez, um quarto: a incapacidade de os serviços de saúde tratarem todos os doentes. Não sei como se passa noutros países, mas em Portugal essa incapacidade foi ao nível do pessoal de saúde, não de instalações.)

Ponto a ponto:
1 - Os testes PCR são fiáveis até 25 ciclos. Acima disso, produzem lixo. Em Portugal estavam a fazer mais de 40 ciclos. Há pouco tempo (coisa de semanas) o governo impôs, fnalmente, que se fizessem apenas 25 ciclos. O número de casos vai baixar bastante. Porque só o fizeram agora?
2 - Os critérios de atribuição das causas de morte são aberrantes. Concentram -se apenas na presença de vírus (agravada pelo que mencionei no ponto 1). Quanto a isto, ainda não há alterações, que eu saiba. Isto é, o número de mortes atribuídos à Covid vai continuar inflacionado. Porque não alteram os critérios e os põem a dizer a verdade médica e não a verdade política?
3 - A contagiosidade do vírus - que desde os casos do DIAMOND PRINCESS e dos dois porta-aviões se sabia ser relativamente baixa - vai ser agora confirmada com o levantamento das restrições nos Estados americanos. Porque não se incluem estes casos na narrativa mediática?

No fim disto tudo, ficam outras perguntas: Porquê? Para que é que serviu está trágica palhaçada? Porque é que os governos embarcaram todos nela? (Não tenhamos ilusões: se na Suécia tivessem sido os políticos a gerir a pandemia, teriam fito a mesma coisa.)

Fomos vítimas da ganância e da avidez dos media? De certa forma, é compreensível: quem está à beira da asfixia não olha a meios por uma lufada de ar. Qualquer salvador-nadador sabe que um dos riscos da profissão é ser afogado pela pessoa que se está a tentar salvar. É exactamente o que se está a passar: no afã de se salvarem, os media matam-nos. Mas nada obrigava os governos a ir-lhes atrás. 

Pode dizer-se, claro, que no fim da linha a culpa é das pessoas que acreditaram nos jornais e nas televisões e apoiaram os governos. É, sem dúvida. Se alguém me quiser vender a torre Eiffel e eu a comprar, a culpa é minha; se alguém me vender o fim do mundo feito vírus e eu comprar, igualmente. Mas a responsabilidade é dos governos livremente eleitos, não das «pessoas».  

A menos que se aceite livremente a legitimidade de um suicídio colectivo numa seita - como o da Guiana em 1978 - e estando os media cobertos pela liberdade de imprensa, é aos governos que se deve pedir responsabilidades. Acto fútil, claro: vão escudar-se em todas as explicações, desde o «nós não sabíamos» até a «os especialistas disseram que...» «Especialistas» esses também protegidos, claro (e muito bem) pela liberdade de expressão.

Por muito que a culpa seja das pessoas que acreditaram nas e defenderam as «medidas», a responsabilidade é dos governos. Não há muito que se possa fazer, senão esperar pelas diferentes «bazookas» (que designação mais triste). E aprender, claro - mas isto não passa de um voto piedoso. 

13.3.21

Noite, iceberg

A noite avança como um navio sem radar rumo a um iceberg.

Droga, esperança

Falo-te de jorros e tu respondes jarros; pergunto-me: «que fiz deste eu que fui e já não sou? Que fiz do que serei?» «Estende-te como agora estendes essa roupa ao sol a secar, presa com molas, espera que seque, espera que o vento e o calor ta preparem. Espera.»

A esperança é uma droga. Liberta-te dela rapidamente. A roupa seca a cada molécula de água que liberta, não porque espera um dia estar seca.

De improviso

O problema é esta maldita tendência que as garrafas de vinho têm para acabar no pior momento. Gosto de as ver cheias, como quando saem das lojas. Acabam sempre vazias, mais vazias do que os sentimentos de uma puta depois do último cliente. Não tenho nada contra as putas, repara: a minha vida sexual começou com elas e só não acaba porque não quero. Mas tenho contra a ausência de sentimentos e contra a de vinho a horas impróprias para o comércio. Já reparaste que as horas das putas começam quando as do comércio acabam? Felizmente consigo viver sem putas e sem vinho, embora reconheça que preciso mais deste do que daquelas. O vinho leva-nos pelo tempo, como a música de Virginia Astley: parece que voamos num tapete e o chão é um imenso relógio cujos ponteiros não sabem em que direcção avançar. Como se viajássemos na página de um livro de Sindbad, o marinheiro e acordássemos um dia no dorso de uma baleia. Como se tudo isto se misturasse e víssemos tudo, desde os homens das vindimas até ao que depõs as caixas com as garrafas no supermercado - agora fechado - onde as comprámos. As bruxas voam m vassouras e nós em garrafas de vinho. Cada um faz o que pode. 

Não posso fazer mais do que agora faço: preparar a insónia enquanto a música me leva para jardins onde me sinto seguro. Estas coisas preparam-se, não se entra numa noite de improviso. Não se entra na solidão de improviso, queres dizer.

Tudo o que está à volta

Não passa de um enche-conas, meu querido. Não te preocupes. Tu viajas muito e eu preciso de a ter cheia, de tempos a tempos. Aquilo é como chamar os bombeiros: ligo-lhe e dez minutos depois está aqui em casa. Enche-me e vai-se embora. Nunca o deixo ficar para dormir. Imagina tu que no outro dia me chamou saco de esperma. Fiquei contentíssima, claro: ser amada por tão detestável homem seria um calvário. O desgraçado ficou zangado por eu não me ter zangado. Desatei a rir-me e dei-lhe um beijo. Não me bateu por um triz. Não consigo deixar de lhe achar piada: parece um vibrador com pernas e com língua. Usa-a bem, coitado, mas nunca o deixo falar muito, não vá ele acreditar que oiço. Isto dito, confesso-te que preferiria ter-te mais vezes em casa. É que tu não me enches só a cona, enches também tudo o que está à volta e essa é a melhor parte de mim, não achas?

Origem das religiões

Face ao absurdo, há três hipóteses: ou se lhe obedece cega e acriticamente; ou se o racionaliza em teorias conspirativas, complotistas, great reset, «Nova Ordem Mundial», etc. A terceira é minoritária e a mais difícil de todas: manter a razão.

12.3.21

Diário de Bordos - Lisboa, 12-03-2021

Jantar com A. e namorada, herança da sua adolescência. Aos dezasseis anos somos muito mais sábios do que pensamos. Depois convencem-nos do contrário e passamos o resto da vida a tentar esquecer essa sabedoria, substituindo-a por outra, que não passa de  um ersatz. É preciso chegar à idade madura para reencontrar a verdadeira sageza.

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Regresso a Hildegarde, com quem comecei a soirée. Os ciclos fecham-se, quer durem três horas quer trinta anos.

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Começo a antever o fim da minha estadia em Lisboa. Não há maneira de me habituar a este amor não correspondido. De todos, é o único ao qual não me habituo, que não aceito. Gosto de Genebra, amo quem lá tenho, mas não é comparável a Lisboa, cidade que amo e continuamente me rejeita. Perpétuo amputado: aqui deles, lá daqui.

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O frango com banana-pão ficou bom e compensou largamente o trabalho que me dei. Cozinhar é uma forma de me relacionar comigo e de me dar aos outros. Não há entropia, melancolia ou  depressão que vença esta combinação de caos e generosidade: comei e bebei, esta é a minha desordem, este é o meu amor, estas são as horas de mim que são vossas, para vós. (Parágrafo influenciado pela Hildegarde, é preciso dar desconto. Ou contexto, quem preferir.)

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Consegui finalmente furar o bloqueio. Questão somática, simplesmente. Enfim, quase. Mas a verdade fica: sobrevalorizamos a mente. Devíamos olhar mais pela carcaça e preocuparmo-nos menos com  mona. (Monólogo em modo majestático.)

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Esta música atravessa-nos como atravessou os séculos. Somos feitos de poeira, nós e o tempo. Música que vai para «aquele ponto, exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais.» De onde vem? Desse mesmo ponto. Ciclo que se fecha ou nunca se abriu.

11.3.21

Tratado de saber viver para uso das novas gerações - a escolha de uma banheira

Há muito tempo que não publico um post dirigido aos jovens casais. Está mal: os jovens têm tudo a ganhar com a experiência dos mais velhos, que por sua vez têm a obrigação de a partilhar com os mais jovens.

O conselho de hoje refere-se às banheiras, tantas vezes e injustamente desprezadas no momento da compra da casa. Uma banheira é uma peça essencial para a felicidade de um jovem casal.

Deve ser suficientemente grande para acolher os dois. Este é o primeiro parâmetro. Em segundo lugar, a banheira deve ter a torneira no meio e não numa das extremidades. Isto porque frequentemente a senhora fica do lado da torneira, o que é desvantajoso em termos de conforto e causa desigualdade: será ela quem se verá na obrigação de regular a temperatura da água, uma tarefa que ganha em ser partilhada. Em seguida, uma banheira deve ter um dos bordos suficientemente largo para pousar o copo de rum e o cinzeiro para o charuto do jovem (a uma senhora a quem desagrade o cheiro de um bom charuto desaconselha-se o casamento. Há muitos conventos a precisar de freiras.)

Estes três quesitos preenchidos, pode ir-se ao banho propriamente dito. Sais de banho são, por assim dizer, sine qua non. Misturados com espuma, claro. Ambos devem ser escolhidos de comum acordo. Quanto à temperatura da agua, a biologia torna o compromisso quase impossível: as senhoras preferem água muito quente, enquanto um cavalheiro a prefere morna (daí a importância da localização da torneira). Os ajustes são milimétricos, centésimo de grau para aqui, centésimo de grau para ali.

O senhor deve entrar primeiro. Saber se já vem com o rum e o charuto ou se é a senhora que lhos traz é irrelevante. O charuto não deve ser demasiado grande. Um petit corona é a dimensão ideal: nunca se deve fazer esperar demasiado uma jovem senhora, sobretudo quando ela partilha uma banheira connosco. Enterrados em espuma, envolvidos pelo cheiro do tabaco puro, amaciado o senhor pelo rum, a conversa orientar-se-á inevitavelmente para temas sensuais e para a exploração do potencial da tepidez no desenvolvimento de actividades lúdicas. 

Infelizmente, isto excede o âmbito deste artigo, cujo objectivo se limita a explicar aos jovens casais alguns pontos importantes sobre as banheiras. O que fazer dentro delas e como fica - talvez - para uma próxima publicação. 

(A marca Vega Robaina produz uns charutos excelentes, que combinam muito bem com um rum El Dorado 15 anos, mas isto são simples e inocentes sugestões.)

Dúvida

A única hesitação possível é entre "sim" e "sim", não achas?

Confissão - Reedição (Post de 01-02-2010)

Chegamos a 1 de Fevereiro de 2010 e o que me sai na rifa? Isto:

Confissão

Recentemente utilizei a palavra "panilas"; deitei no contentor do lixo doméstico as garrafas de vidro; chamei "grunho" a um preto (por acaso é um bocadinho mais do que amigo - é um irmão, o meu irmão preto. Mas enfim, é preto e eu chamei-lhe grunho); duvidei em voz alta da origem antropogénica do aquecimento global e das suas terríveis consequências; defendi os judeus contra os palestinianos, a quem (como se não fosse suficiente) acuso de selvagens, machistas, corruptos e sabe Deus que mais; preferiria que houvesse duas grandes potências no mundo, mas a haver só uma acho melhor que sejam os EUA do que a China ou a União Soviética; penso, digo e escrevo que os «alterglobalistas» e os «verde eufémias» «activistas» são bandos de atrasados mentais, criminosos, reaccionários cujo lugar é num tribunal, a defenderem-se; só há pouco tempo comecei a gostar de árvores (ou pelo menos a ser-lhes sensível à beleza - e foi preciso uma flor daquelas altas, magras e com duas pernas bem feitas, vejam lá); prefiro qualquer whisky ou um bom bife a um Licor Beirão ou a salada de alface.

A quem devo confessar estes pecados todos, alguém me sabe dizer? Ao menos a Santa Madre Igreja tinha essa vantagem - e tem, para quem ainda acredita: sabemos a quem confessar os pecados. Porque isto do tribunal da opinião pública é uma chatice muito grande, acho eu. E vaga. onde encontrá-la - nos jornais? Tenho um bocadinho mais de respeito pelos interditos da igreja do que pelos do zeitgeist apesar de tão pouco lhes obedecer: prefiro saber a quem desobedeço.
 
PS - e não imaginam sequer o que digo da maioria dos Governos africanos, das feministas, dos vegans, dos automobilistas que buzinam quando vêem uma bicicleta e de quem não tem sentido de humor.

Inveja

Cada vez suporto pior esta fantochada e compreendo melhor os gajos das conspirações e os que querem ver políticos e jornalistas em tribunal.

Mais do que compreendê-los, invejo-os: deve ser bom ter onde se apoiar, face a este abismo.

10.3.21

Agora, sempre

De que é o tempo feito? De anos, séculos, milénios ou de segundos, minutos e horas? De agora. E agora. E agora. Como um dedo que te desce pela coluna e a cada vértebra dá um pequeno salto. Um sobressalto que sabes onde começa e onde acaba: agora, sempre.

Tal como a mão percorre a pele

Escrevendo-te escrevo-me, muito mais do que me descrevo, como se me emprestasses os olhos para ler o que acabei de te escrever. És a ponte entre o que sou e o que o tempo trará, a forma no forno das palavras, tempo feito corpo e alma. Lendo-te, leio de ti o que me mostras: o silêncio veste-te, as palavras despem-te. Ler-te, escrever-te são os dois lados dessa moeda a que chamamos vida, à falta de melhor. Escrever-te é como olhar para a nascente e para a foz. Quando te leio, vejo-te agora, resplandecente.  Como se de palavras fizesses bolas de luz. Ler-te é bom, escrever-te é preciso. Ou será ao contrário? Que importa? És as duas faces das palavras, do vento. Da vida, à falta de melhor.

(Tal como a mão percorre a pele toca a alma.)

9.3.21

Uma hipótese

Provavelmente, a razão pela qual o registo diarístico, a biografia e a autobiografia são tão escassos em Portugal é que somos um povo de carneiros, cobardolas que só encontram conforto e alívio fundidos no rebanho.

Não me compreendam mal: gosto dos portugueses e penso que temos muitas qualidades. Mas as nossas qualidades levam-nos a não gostar de ser únicos, indivíduos, fora do rebanho. Com a rara excepção de futebolistas - que duram o que duram e jogam em equipas e clubes - não admiramos  ninguém.  

Como escrever diários, se o objectivo é ser como os outros e não ser diferente?

PS - Andem pelas ruas e perguntem aos transeuntes se sabem quem é João Garcia, João Rodrigues, João Cabeçadas? (Os nomes são iguais por coincidência, juro.)

8.3.21

A esta hora

São quatro da manhã e o tapete rolante das palavras pôs-se em movimento. Descarrega-me centenas delas nos braços, sem nexo. Desde piadas do Andy Capp a poemas de Rosa Oliveira, há de tudo. Se fosse dia, seria mais fácil, claro. Arrumá-las-ia por categorias, faria um malabarismo ou dois, trocá-las-ia por um copo de vinho. A esta hora não sei que fazer delas. 

Porque será que as palavras não dormem, como toda a gente?

7.3.21

Reedição - Domingo (Post de 15.03.2009)

Descrever este domingo de sol que me espera na rua o sol e tu me esperas ao pequeno almoço, os seios pequenos a espreitar do roupão gratos pela festa da noite e se calhar quem sabe a pedir mais festas iremos os dois para o jardim beber o sol gota a gota e passear pelas margens do rio e pensar nas festas que aí vêm fumar charros trepar às árvores lançarmo-nos de pára-quedas dos pilares da ponte nadar no rio como se estivéssemos em campanha eleitoral o teu ventre a dizer vem vem vem "põe o Rei na sua penumbra" mas a penumbra não era penumbra era sol e queimava vem vem vem e vejo os seios a espreitar do roupão o sol na cidade o calor que aí vem o calor que foi a vida é assim a vida: dois seios pequenos num roupão entreaberto o rio o amor que desfizemos esta noite as tuas pernas cruzadas por cima de mim vem vem vem não me deixes nunca sozinha vem os cabelos grandes e densos e pretos uma acção de graças a pele a praça das Flores o sol o calor e o rio o vento um longo passeio pelas margens da vida da noite do amor da felicidade.

Quem me conhece...

... sabe que não me conhece. 

Fragmento

Que fazer? Que desfazer? 
...
Entre as vésperas e as matinas há um vasto território no qual se fazem e desfazem dias, noites, passados e futuros. Como Penélope fazia e desfazia os seus tricots, eu faço-me e desfaço-me, faço e desfaço, espero, desespero e deixo de desesperar - consigo sempre desfazer-me do desespero, verdade seja dita, maldita seja a esperança... Quem é que dizia que temia mais a esperança do que qualquer outra coisa? Não me lembro.

4.3.21

Balelas, ou: louvor da neguentropia

Este vago e indefinido conjunto de coisas a que chamamos «coisas» acena-me contente e grato: avança na direcção que quer (e por coincidência é a que eu quero também, mas isso é outra história). Respondo-lhe com um gesto amplo, a dizer "força, pá, não esmoreças. Deixa as coisas seguir o seu ritmo, não as forces, não as empurres". 

Balelas, claro. Deixadas a si próprias as «coisas» não se mexem. A entropia limita-se a degradá-las.

3.3.21

Arcos e alvos

Não deixes que seja a flecha a vir a ti. Vai tu a ela, com força, peito aberto, olhos nos olhos de quem ta atirou. Seja ela feita do que for: amor, dor, força ou desespero; olhos postos no alvo, ela irá a ti. Vai tu a ela. Faz tu tudo o que querem fazer de ti: não há arqueiro como tu nem flechas como as tuas. 

Nem alvo como tu, de resto.

Amor e outras coisas

O amor não é miscível na gratidão. Em nada, de facto: nem na submissão, na ganância... Nem sequer na amizade, da qual nasce e na qual deve desaguar. Ao contrário do ódio,  que precisa de uma razão, o amor basta-se a si próprio. Se não, não é amor. 

Reacções

A acreditar no Statcounter, o Don Vivo está sistematicamente (isto é, há semanas) com mais de cem visitas por dia. A minha primeira reacção é dizer «Obrigado!» a quem me lê. A segunda também. A terceira é não acreditar no Statcounter.

2.3.21

Ler

«Em cada verdadeiro homem há uma certa reserva, como se, face à mulher amada, ansiasse por parte do seu ser e da sua alma e lhe dissesse: "Até aqui, querida. Não mais. Aqui, na sétima sala, desejo ficar sozinho." As mulheres estúpidas estalam de raiva. As inteligentes ficam tristes, tornam-se curiosas e, por fim, resignam-se.»

(Sándor Márai, in A Mulher Certa, Ed. D. Quixote.)

Márai é um dos mais finos e precisos psicólogos da literatura ocidental e mistura como ninguém a psicologia e o fatalismo centro-europeu. Comecei agora A mulher certa e já estou infinitamente grato à senhora que mo sugeriu. 

1.3.21

Quem começa

Pôr-me-ias os olhos em lágrimas, mulher, se ainda as tivesse. Mas já não tenho. Secaram-se-me todas, de tantas foram as que chorei. Agora, só choro por quem tiver chorado por mim antes, toma lá dá cá, uma por uma e não serei eu quem começa. 

Beleza feminina e navegação à vela

O vento forte está para a vela como a beleza para uma mulher: amar uma senhora bonita é fácil. Qualquer um ama (e lhe perdoa os outros defeitos todos, pelo menos durante um certo lapso de tempo). Difícil é amar uma mulher feia, ver-lhe as qualidades por trás do que está à vista. Navegar com vento fraco é isso: adivinhar, sentir o que não se vê.

(Devo dizer que prefiro o vento forte, mas isso é porque sou um troglodita.)