30.10.23

Pêndulos, liberdade

Não nos podemos queixar. Foi a nossa (a minha) geração que deixou o mundo que aí vem à geração que aí vem. Não foram eles que o fizeram. Fomos nós. Foi nisto que o amor livre, façam amor e não a guerra, paz e amor descambaram.

E ainda há quem duvide da teoria dos pêndulos.

Direitos

O direito ao sono está a matar o direito à insónia. 

Diálogos inverosímeis mas reais

Fui jantar ao Alga com o Pietro, um italiano que veio para Portugal com o Manuel Passanha em mil trezentos e pouco e por cá ficou desde então. É um excelente navegador mas está velhote e decidiu ficar a trabalhar em terra, numa dessas escolas cuja principal utilidade é fazer crer aos ingénuos que uma carta disto ou daquilo os habilita a navegar fora de uma banheira ou - nos casos da «carta de patrão de alto mar» (aspas porque cito) - do lago do Campo Grande. 
- Nem para irem almoçar ao Seixal, Luís - dizia-me desesperado ainda antes da primeira garrafa de tinto. - Tenho mais confiança neles quando voltam grossos. Pelo menos esquecem a palermice da «segurança» e fazem asneiras sem se lembrarem da porcaria do colete de salvação.

Pietro tinha um asco profundo por tudo o que lhe cheirasse a estupidez e esse asco começava muito antes de o cheiro lhe chegar às narinas. 

- Não digas «estupidez», Luís. É muito violento. Diz «acefalia». Pelo menos não percebem e pensam que é um elogio.

Salto a maior parte do jantar. Ele pediu um bitoque («Quanto mais simples a cozinha portuguesa é, melhor é») e eu lulas recheadas («que dirias, se em Itália eu só comesse pasta agli e olio?») Limito-me a reportar a parte mais interessante do diálogo, que como sempre com a malta do mar aparece quando as mulheres se intrometem nos temas.
- Não sei que fazer, Luís. Estou desesperado. Tento vender-lhes a cabeça e não querem, ofereço-lhes a pila e dizem que não chega. Vaffanculo!
- E se não as venderes separadas? Isto é, se propuseres as duas juntas talvez encontres uma que queira o conjunto.
- Stronzo! E que pensas tu que eu faço? Não consigo vender aquilo em que não acredito e para mim uma sem a outra não serve de nada. O problema é que elas só as vêem separadas, coglione!

A vantagem de pôr o Pietro a beber aguardente Mangusto é que deixa de ser preciso responder-lhe. Alberga dentro dele uma espécie de debate daqueles da televisão em que os «comentadores» competem para ver quem diz mais disparates em menos tempo. A única diferença é que o Pietro não diz disparates e leva muito tempo a não-dizê-los.

(Para a A. I., que assim não pode queixar-se de que nunca lhe dedico posts.)

Em louvor de velhas lealdades e outras simplificações

Acabo de subscrever o plano de saúde da Vodafone. Não sei se deitei setenta euros e oitenta cêntimos para o lixo e só o saberei daqui a um ano (esse é o preço da subscrição anual). O que sei é que tudo indica que a Vodafone está no caminho de voltar a ser a Vodafone que eu conheci, com um serviço de apoio ao cliente absolutamente incomparável, pelo menos no universo das empresas que conheço (são muitas). Houve uma época em que a coisa parecia tremida mas isso, a julgar por duas recentes interacções com a empresa está a ser passado. Hallelujah!

Tempos, vidas

É tão estúpido viver no passado como o é no futuro ou - pior de todos - no presente. Ninguém vive só no presente. Todos temos um passado e um futuro, uma memória e um projecto. O que está errado é viver só no passado. Ou só no futuro. Um projecto sem uma memória está votado ao fracasso, tal como uma memória sem projecto não passa de uma inutilidade. O presente é a intersecção desses dois caminhos. Um cruzamento. Ninguém constrói uma casa num cruzamento, pois não? Não. Como ninguém constrói uma casa só com porta da frente ou vive só com uma janela para as traseiras.

Patias

Não deixa de ser estranho, quase inquiente, pensar que simpatia, empatia e antipatia têm em comum um sufixo que designa doença. 

Na foz do silêncio

A ternura é sempre hesitante. Incerta. Não sabe que caminho seguir. Perde-se nos incontáveis meandros do silêncio e só se encontra lá aonde esse silêncio desemboca.

Luz, paisagem, dia

Nessa paisagem iluminada pela luz terna e hesitante do dia que começa, nessa paisagem na qual não te passeias porque a trazes contigo, às costas - não a vês - nessa paisagem, enfim.

A luz - hesitante e terna - vai desenhando o dia,  pincelada a pincelada. Mas és tu - as tuas ternas mãos* - quem lhe dará forma.

E quando, ao fim do dia, a luz se for embora - decidida, quase rude - que olhes para trás e possas dizer: "tu pintaste-o mas eu esculpi-o."

* - Rilke, de novo.

29.10.23

Não ateies fogos

Diz-me acesamente - incendeia-me, se quiseres com palavras a arder - a paisagem que  carrego atrás de mim* para onde quer que vá - deita achas para a fogueira - lembra-te: não ateies incêndios que não podes apagar - diz-me com palavras de fogo de que fogo sou feito. Não faço nada senão vadiar por essas planícies de que por vezes me falavas,  nas noites cálidas da Primavera que passámos juntos. Sim, deita achas para essa fogueira.  Não a deixes extinguir-se. Não ateies fogos que não podes alimentar. 

* - a ideia, um bocadinho distorcida, vem de Rilke.

Hemodiálise alfacinha

A poética do desenraizamento e a ubiquidade do seu oposto, o enraizamento. As raízes que me seguem para onde quer que eu vá e aí nascem e se enterram cruzam-se com as raízes que se recusam a sair de Lisboa, inegavelmente Lisboa. Como se tivesse dois jogos de raízes: as que andam comigo e as que não saem daqui, desta cidade que está para mim como a máquina de hemodiálise para um doente dos rins. Sofro de cosmopolitismo tendência alfacinha, uma espécie de desenraizamento coxo.

Mais uma história do cosmopolita enraizado. 

(Cont.)

Rainer, meu querido Rilke

«E há também o momento em que à tua frente uma pessoa se destaca de forma calma e clara em todo o seu esplendor. São momentos de festa raros, que nunca mais se esquecem. A partir daí passas a amar essa pessoa. E isso quer dizer que te esforçarás por reproduzir com as tuas ternas mãos os contornos da sua personalidade, tal como os reconheceste nesse momento

(Rainer Maria Rilke in Notas sobre a melodia das coisas, ed. Averno, 2023, trad. de João Barrento.)

Urbanidades, modernidades

Eu só espero que os meus leitores - que os há - não pensem que eu sou um atrasado mental que detesta a modernidade. Não sou. Limito-me a desconfiar da modernidade como desconfio de um mulheraço que tenta seduzir-me: ninguém sabe a estranha motivação que está por detrás daquilo.

Por exemplo: mesmo reconhecendo as inegáveis vantagens das Uber, Bolt e afins, continuo a preferir esticar um braço para apanhar um táxi na rua. Pela razão simples de que acho mais elegante, mais bonito, se preferirem, estender um braço como um afogado a lutar pela salvação a olhar feito esfinge para um telefone portátil. Ou mesmo apanhar um autocarro, gesto eminentemente urbano.

Claro que apanho Bolts, sim. Mas também apanho táxis e autocarros e prefiro estes de longe. E de perto. Apesar da diferença de preço, prefiro ser conduzido por um senhor que conhece a cidade a sê-lo por alguém que - como recentemente aconteceu - me pergunta aonde é o Saldanha. Claro está que não acredito nesses mitos urbanos das senhoras violadas e que ter alguém calado porque não fala português tem vantagens sobre ter alguém a quem tenho de explicar que não quero conversar. Mas... mas apesar de tudo continuo a preferir apanhar um táxi ou um autocarro.

28.10.23

Pequenas historietas da vida urbana

Havia um café em Lisboa chamado Fábulas. Numa das salas tinha uns sofás muito bonitos. Depois de almoçar,  ao princípio da tarde - e às vezes já no meio - eu sentava-me num deles, o maior, e pedia um café. Aí a partir da terceira ou quarta vez, o empregado perguntava-me: "Quer o seu café agora, ou prefere que o traga quando acordar?"

27.10.23

Frios nocturnos

Conviver comigo é muito cansativo, uma chatice muito grande. Já levo quase cinquenta anos disto - ou mais, depende de onde se começa a contar - ainda não me habituei. 

Por isso me agasalho tanto à noite, suponho. 

24.10.23

Como viver seco?

Esguio-me por entre as correntes de ar frio. Isto é, agasalho-me. Abrigo-me das correntes da memória que me chegam investidas de ti. Tento transformá-las em cursos de água actuais, daqueles que nos molham se neles caímos. 

Verdade seja dita: não sei como viver seco. Isto é: de ti.

Plano de vida

A poesia é para ser gritada nas ruas, nas praças, em todo o lado.

Como se fossem geisers

«Bloqueio do escritor» é uma expressão enganadora. As palavras estão tudo menos bloqueadas. Antes pelo contrário: parecem água a esvair-se pelo ralo abaixo. Não é é o bom ralo. É o errado. Coisas que acontecem. Na verdade não sei como orientá-las para o lado certo. Falta de jeito, suponho. A verdade (outra) é que a amei muito mais do que agora me lembro de a ter amado e hoje vejo que tinha razão em amá-la assim, tal como tive em me vir embora e ela em mandar-me embora e tal como tenho em querê-la de novo na minha vida. Nunca sabemos bem aonde acabam estes ralos enganados e começam os certos. Que amamos, quando amamos alguém? Não sei, apesar de até agora só raramente me ter  enganado. Humor, distância, olhar, mamas, o pudor, a retenção... uma mistela, é o que é e a verdade (mais uma) é que não sou capaz de lhe separar os componentes. Nenhum deles vale por si, isso sei. Trágico seria se não soubesse, de resto. Trágico seria se não fosse capaz de lho dizer e como não sou sigo o conselho do outro: «Luís, você não devia falar. Você (era dos que tratava toda a gente por você, incluindo o cachorro) escreve muito melhor do que fala. Cale-se e escreva.» O problema, claro, é que escrevo para mim. Não é bem um problema, note-se. É uma vantagem. Assim sempre posso dizer tudo o que quero. Como por exemplo revisitar o passado, feito herói de um filme que só tinha uma personagem e essa personagem era eu. Bom, podemos dizer que tinha duas personagens: ela e eu. Hoje consigo pôr-me na cabeça dela. Duas. Três, se contarmos o gajo que nos pôs de novo em contacto. Quatro, se incluirmos o tempo, o cilindro compressor do tempo, que neste caso não comprimiu nada, de resto. Antes pelo contrário: descomprimiu. Como se alguém tivesse posto um tampo no ralo e as palavras começassem a flutuar. A verdade é que só temos vontade de reatar aquilo que não acabou, não é? As palavras flutuam, os sentimentos também, parece uma sopa, temos os ingredientes todos juntos mas se os separarmos já não é a mesma sopa. Escrevo isto tudo por causa do bloqueio do escritor, está bem de ver, é uma invenção do princípio ao fim. Enfim, mais ou menos. Do princípio? Ao fim? Mas aquilo teve um princípio? Teve um fim? As respostas são: não e não. Antes de começarmos ela já cá estava e depois de acabarmos continuou. Como os rios: todos pensamos que têm uma nascente e não têm. Têm muitas. E uma foz? Tão pouco. Isto é, ter têm, mas não passa de uma ilusão. Um rio nunca acaba, como alguns amores. Desaparecem para reaparecer alhures, disfarçados de amor novo. Mas não são. São o mesmo, revisitado pelo tempo. Como um fato que vem da lavandaria: alguém se lembra da nódoa que tinha quando para lá foi? Não, claro. Mas é o mesmo fato, um bocadinho mais usado (isto é uma qualidade), um bocadinho melhor, mais ajustado, mais conforme, mais... como dizer? mais epidérmico. Raio de amor este, que se me cola à pele como um rio ao leito e me veste como se a vida vestisse fatos. Não veste, meu caro: a vida anda de farrapos e tu, escritor, transformas esses farrapos em fatos de cerimónia, nos dias em que o bloqueio te leva para os estranhos territórios dos amores que não morrem, como se fossem geisers.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-10-2023

Turbilhão emocional de origens várias, com raízes que se espalham em todas as direcções, da mais ridícula à mais pungente. Curiosamente, têm todas a mesma força e à medida que as vagas emocionais se vão esbatendo - pensem numa pedra que se atira ao lago: as vagas vão ficando cada vez mais pequenas, mais longíquas. Mas sempre concêntricas. Agora pensem em demasiadas pedras e poucos lagos. Só um, na verdade. Demasiados penicos para tão pouco xixi. Hoje comprei uma garrafa de vermute na Antónia (Es 20 de Bonaire, se por acaso). Estou a encher o frigorífico de boas relações qualidade-preço, já que as outras escasseiam. 

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A Oeste nada de novo, escrevia o Remarque. As minhas frentes têm nomes diferentes - retranca, registo, lazy bag - mas só nisso diferem. Nada de novo, excepção feita para este último: pelo menos está pago, apesar dos protestos da T. Que não gosta de ter o pagamento finalizado antes de ter o trabalho terminado. Que a culpa do atraso não é dela. Que, que e que. Querida T., eu sei isso tudo. Mas agora somos dois a pôr pressão no D. e é isso que me interessa. 

Se um dia mudasse o nome do P., chamar-lhe-ia Pandemónio. Aqui em Palma, com um barco de menos de cinquenta metros, se precisarem de alguém para fazer um trabalho e vos disserem «fulano é o melhor ---- (substituir pelo nome do mester) de Mallorca» das duas uma: preparem-se para um rotundo «não» ou preparem-se para uma longa espera. Não há meio termo.

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Voltando às relações qualidade-preço: não pensem que isto se aplica unicamente às garrafas de rum, vermute, hierbas secas e vinho tinto.

23.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-10-2023

O "meu" P. hoje ganhou um prémio: uma garrafa de Flor de Caña 5 Años que a treze euros e noventa e cinco cêntimos é sem dúvida alguma a melhor relação qualidade preço do mercado rum-ístico desta cidade. É preciso reconhecer que não foi só o bote. Eu também. Estou cansado de tentar emborrachar-me e não conseguir, desgraça essa que já leva meses (ou meras semanas: quando é que foi o jantar no Tambarina?). Verdade seja dita: essa do Tambarina não conta. Foi caótica. Faltou-lhe método e propósito. Além disso acabou mal, comigo a guiar num estado em que nem para pedalar serviria. Vá lá que não aconteceu nada para além do vexame que foi perder-me na Costa da Caparica para ir de Santos a Carnaxide. Isto por aqui tem sido muito pior: não consigo sequer engrossar-me. Imaginem o Casanova com "disfunção eréctil" (aspas porque estou a gozar) e vejam como me sinto. Não admira que a burra ande melancólica, eu ansioso e o P. impaciente. A ver se com a Flor de Caña o acalmo um bocadinho.

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O De Passagem vai ter ainda mais páginas do que o Avenida. Cinquenta por cento mais, para ser exacto. Não fosse a crítica do João R. e cobrir-me-ia de areia e vergonha em iguais proporções. Assim, resta-me esperar que a IA (ou o F. G. de C.) tenham feito o que eu não fiz: corrigir as minhas iluminações informáticas, também conhecidas por estupidez. E beber Flor de Caña, en attendant. Uma coisa compensa a outra, espero. Tal como costas que se coçam ou mãos que se lavam.

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Os cumulus da tarde estratificaram-se e agora desapareceram, substituídos por cirrus devidamente estratificados também eles. Isto deve ser um pré-aviso dos "comboios de depressões",  que aqui entre nós bem podiam ter a amabilidade de escolher Portugal para estação terminal e não atravessar a Península Ibérica. Na verdade,  não lhes quero mal: estava a ficar farto do Verão. É bom poder sair de manhã com uma camisa de mangas compridas e a meio da tarde não estar a precisar de assaltar uma fábrica de desodorizantes. 

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Leio no FB um poema de Nuno Júdice que não conhecia. O poema é lindo, passe o pleonasmo e apetece-me gritá-lo no restaurante aonde estou, ele também lindo (é o Patrón Lunares, se por acaso). De Júdice a memória foge-me para o Celso, com quem comecei a ler poesia na rua. Foi em S. Luís do Maranhão, podia atribuir-se tudo ao sotaque português, era gente boa, acolhedora... Daqueles incuráveis sofrimentos que a morte de amigos me atribuiu, a do Celso está num dos lugares do pódio. Hei-de ler este poema, Celso. Juro-to.

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A julgar pela quantidade de água que bebi ao acordar da sesta, a mistura de vermute, vinho tinto e rum nas quantidades certas teve o efeito procurado. 

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«UMA PASSAGEM IMPOSSÍVEL

A mulher que espera o verde para atravessar
a rua olha para o infinito. Talvez não haja nada
do outro lado da rua que vai atravessar, e
talvez aquilo de que precisa esteja nesse ponto
para onde olha, para lá do estranho céu
que ela interroga. O vermelho passou a verde, e
o verde voltou a ficar vermelho; e a mulher
não se move, prendendo o meu olhar
com a sua imobilidade. E os braços
parecem esperar alguma coisa que não vem, como
se estivesse numa sala de baile à espera
do convite para dançar. Juntam-se à sua volta
as pombas da rua, como se os pedaços
de sombra do seu corpo as pudessem
alimentar antes do seu voo. E acabei
por me aproximar do poste onde o verde
e o vermelho alternavam, apenas para ter
a certeza de que ela não era uma estátua e
fixar os meus olhos no ponto para
onde o seu olhar se dirigia: esse pedaço
de infinito onde ela misturava o azul
com o branco, como se o céu fosse o quadro
que pintava com as mãos da sua alma.»

Nuno Júdice

22.10.23

Definição

Adormecer é um processo natural que consiste em deixarmos cada uma das células do nosso corpo separar-se das que a rodeiam e flutuar numa espécie de sopa escura e densa. De manhã - ou ao acordar, seja a que horas for - as células voltam ao seu lugar e tudo recomeça. 

Morrer é a mesma coisa, sem a última parte.

Alegoria, alegria

Um gajo passa cinquenta anos da sua vida a cortar-se aos bocadinhos e a tentar reconstituir-se. Ora falta uma peça, ora sobram duas, ora a forma não corresponde ao conteúdoou vice-versa.

Subitamente, aos sessenta e tantos parece-lhe que o puzzle está completo, harmonioso, não faltam nem sobram peças. Espanta-se, claro e especa-se no meio do caminho. Ainda procura uma bifurcação, um atalho, um beco sem saída, uma cancela que é preciso saltar mas não há nada disso. À frente dele o caminho é uma linha recta, sem obstáculos nem desvios.

Coitado do homem. Ele sabe bem aonde leva aquela estrada e que é inútil procurar outra. Só lhe resta dar corda aos sapatos e pôr-se a caminho. 

E aproveitar bem a paisagem, claro.

Uma espécie de continuação

Ou seja: deixo-me escorregar pela tarde a reboque da gravidade. Se houvesse um trenó o cão de fila seria ainda a velha Patti, que em breve será substituída pelo Lou Reed, Magic and Loss, se não é o seu melhor álbum anda lá perto, sou pouco dado a hierarquias e muito menos de coisas de que não percebo nada. Sei que ouvi esse álbum em loop na Marginal enquanto guiava o Fiat Panda e pensava no que fazer com a puta da vida, até que um dia derrapei na curva do Monte Estoril e tive bastante sorte, tanta que ainda hoje posso escrever estas merdas. Entretanto fiz bastantes coisas com a tal puta, de tal forma que ainda hoje por vezes me faço a mesma pergunta mas muito menos frequentemente. Também acho que o Songs for Drella não anda longe de ser o melhor, se bem haja quem pense que todos os discos de Lou Reed são os seus melhores. Não sei. Não percebo nada disso. Aliás são poucas as coisas de que percebo qualquer coisa que valha a pena mencionar e é por isso que não as menciono. 

A ficha «O P. não vai sair daqui este Inverno» está presa na ranhura, não cai nem sai e a ideia de ir para as Caraíbas sem esta puta - sim, eu sei, parece que vivo num bordel - deixa-me de rastos. Por outro lado faço parte daquele grupo de tristes que só se dá por derrotado quando já tem o pescoço cortado e a cabeça no cesto, daí o Lou Reed, a Patti Smith e não tarda o Leonard, para adocicar tudo isto. «Magician, please take my spirit. / Inside I'm young and vital...»

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If it be your will, L. Cohen

If it be your will
That I speak no more
And my voice be still
As it was before
I will speak no more
I shall abide until
I am spoken for
If it be your will
If it be your will
That a voice be true
From this broken hill
I will sing to you
From this broken hill
All your praises they shall ring
If it be your will
To let me sing
From this broken hill
All your praises they shall ring
If it be your will
To let me sing
If it be your will
If there is a choice
Let the rivers fill
Let the hills rejoice
Let your mercy spill
On all these burning hearts in hell
If it be your will
To make us well
And to draw us near
And bind us tight
All your children here
In their rags of light
In our rags of light
All dressed to kill
And end this night
If it be your will
If it be your will

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O P. mexe-se por tudo quanto é direcção. Ele não sabe, mas eu vou dormir uma sesta, apesar de ambos sabermos que não vou dormir a ponta de um chavelho. Isto do saber e do não-saber está muito mal partilhado.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-10-2023

Começo o dia com as Quatro Estações, história de celebrar a chegada do Outono, finalmente; e passo a manhã em modo outonal: a não fazer nada. Passar o aspirador, seleccionar algumas fotografias, ouvir música, beber o vinho que ficou de quinta-feira, responder a um pedido de informação sobre o BP. A lista poderia continar mas o resultado seria o mesmo: nada. «Um voo cego a nada»? Nem por isso. Mas não vamos agora estragar tão linda e terna melancolia com laivos de realismo, de explicações ou de desculpas. Basta vivê-la na sua plenitude e ir saltitando até a fome me obrigar a ir almoçar. Ou a cozinhar as costeletas que comprei ontem no Pere Garau. Quem falou em «nada»? Há lá coisa menos vazia do que saltitar de indecisão em indecisão, de dúvida em dúvida, de espera em espera, de desespero em desespero, de esperança em esperança? 

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Fast forward umas horitas.

As indecisões musicais levam-me a Patti Smith e a energia da senhora (fortemente aliada à fome) arrancam-me da letargia. Começo por terminar o pão que tinha a bordo com uma boa barradela de harissa, continuo por tomar a decisão de fazer harissa na terça-feira, quando o Cristian abrir e puder comprar alcaravia, pego decididamente na burra e vou almoçar ao Bar Coto Dos que é barato, está perto da marina e é bom. Dali vou ao El Corte Inglés comprar alho para as costeletas de logo, aproveito e compro uma cervejas checas para alargar o meu leque gambrinus-empírico (piada semi-privada), não menciono o gelado que comi no quinto andar porque tenho vergonha e ooops, venho para bordo. No caminho a Cantina salta-me à frente, obriga-me a parar e agora escrevo relaxadamente à frente daquela mistura de gelado de chocolate e rum perante a qual todas as indecisões, melancolias e desesperanças se desvanecem como alguns amores e as decisões, esperanças e alegrias se fortalecem como outros. (Ontem a garrafa de Cacique acabou e hoje bebo Matusalem. A ver se esta energia toda não se dissolve quando vir a conta. Isto dito, acho inadmissível que os encarregados dos diferentes waterholes por onde passo não consigam prever o fim portanto anunciado das garrafas de rum.)

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Penso na C. V., a quem de resto vou dedicar este post, mas não menciono o resultado de tão aturados pensamentos pela razão simples de que não os há; e se os houvesse seriam para mim (e quando muito para ela), não para um blogue público.

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De entre as decisões firmes: comprar uma garrafa de rum para o meu P. Bem sei que não sou grande bebedor quando estou sozinho a bordo, mas as porções que os empregados dos já mencionados waterholes me servem têm a curiosa e comum característica de se medirem mais em gotas do que em goles. Tudo isto sem proporção com o que as ditas gotas pesam no porta-moedas, coitado.

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Escrevi finalmente à Angel Pilot. O que é demais é demais. Se não me responderem publico a carta.


(Para a C. V.)

PS - A garrafa de hierbas secas que tenho a bordo está quase a acabar, eu sei. Mas a substituição está prevista, não está nas mãos desses indiferentes empregados de bares, cafés e restaurantes.

21.10.23

De onde sou

Angélique Ionatos, Evanthia Reboutsika, Néna Venetsánou: pequena viagem musical nocturna e melancólica à Grécia, de que tantas saudades tenho.

Nem sequer de onde estou sou, mas sim de aonde queria estar agora: em Keramikos a beber ouzo e a ouvir música.

Exegetas e outras tretas

- Espero que compreenda, meu caro: nem tudo o que digo é verdade. Ou melhor, tudo o que digo só se torna verdade depois de eu o dizer. Ou escrever, o que vem a dar no mesmo.
- Ou seja, não sabe mentir. É um escravo da verdade.
-Escravo não é o termo adequado. Eu transformo o que poderia ter sido no que é. Faço uma interpretação, por assim dizer. Sou um exegeta do possível.
- Poeta?
- Não, que horror. Esses não transformam nada. Limitam-se a descrever o que vêem. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-10-2023

Palma tem muitas coisas em comum com Lisboa. Uma delas é esta atitude de stripper preguiçosa, lenta, milimétrica, a marimbar-se para quem a está a ver. «Dá tu o primeiro passo, querido», diz-nos. «E talvez eu desagrafe o primeiro agrafo do soutien.» Tudo isto cheira a despedida, eu sei. Tresanda, melhor dizendo. Hoje fui ao Pere Garau, aonde já não ia há demasiado tempo. Não sendo grande fã da burguesia de onde venho tão pouco o sou do clube «a verdade está na classe operária, nos imigrantes, nas respectivas misturas.» A verdade não está em lado nenhum e está em cada pessoa, não na classe social, país, raça, religião ou mariquice a que pertence. (É de resto é aqui que para mim monárquicos e esquerdistas se enganam, mas isso são contas de outro rosário.)

Bom, tudo isto para dizer que hoje fui ao Pere Garau. A desculpa próxima sendo comprar merguez e a afastada pensar que antes de deixar Palma por largos meses tenho de a calcorrear de novo, tal como o amante de partida percorre as memórias que tem da amada que vai deixar, sabendo que ainda a ama mas tem de ir e que o que tem de ser tem muita força e assim por diante.

Resumindo (a preguiça é o melhor aliado do escritor, aquilo que transforma uma logorreia numa coisa legível): descobri um palos melhor do que o Garrott. Não é só melhor, é infinitamente melhor. Chama-se Tunel e, diz-me a Martina, é o mais antigo da ilha. Descobri uma maiorquina atípica: chama-se Martina (não é coincidência), é a dona do Ca na Martina (ditto - Ca na significa «casa da») e hoje deu-me a provar palos sifonados (marca Tunel, quem comprou o sifón fui eu, no supermercado), favas com lulas, almôndegas e umas hierbas mezcladas que só ficam atrás das do Toni (???) da Pamboleria em Colonia de San Jordi porque não são secas. Mas porra, são excelentes! A Martina é uma senhora sorridente, simpática, comunicativa cujos pais, diz-me, já tinham um bar. Talvez haja duas categorias de maiorquinos: aqueles cujos pais tinham bares e os outros.

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Por falar em atípico: hoje vi a placa de um restaurante asiático. Dizia: «Restaurante Atípico Asia». Olhar para aquilo foi como entrar numa sala com ar condicionado num daqueles dias de quarenta garus do Zaire.

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- Estas hierbas são as primeiras que fiz - diz-me a Martina.
- Sim, claro. E eu sou a cobaia - respondo.
- És. Se te acontecer alguma coisa, já sabes: veio daqui.

(A Martina deve fazer hierbas desde antes de ter idade para as beber e a mim ainda está por acontecer seja o que for por bebê-las. Abençoados sejam os atípicos.)

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Volto para bordo com duas qualidades de merguez: as compradas no talho que já conhecia e que não são maravilhosas e as compradas num outro talho que me aconselharam. Estão em sacos separados. Logo vou compará-las, acompanhdas por um bom tinto. Há coisas em que sou pela fusão.

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O badanal veio, o badanal foi e o «meu» P. ficou. Só tive de folgar um bocadinho um dos lançantes de ré e um dos springs (que por sinal também está a ré). O mais importante - os muertos - estão sólidos. O que eu gostava de os largar para me ir embora não tem descrição, por muitas atípicas que me apareçam.

Paradoxo, para mim

As pessoas que não querem que nada mude são as mesmas que dizem que tudo está mal.

20.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-09-2023

Hoje tentei embebedar-me e (ainda, espero) não consegui. Não sei bem de quem é a culpa: se da carcaça, se do cerebelo (aquilo que em mim faz de cérebro), se - longe vá o agoiro - desta mistura de mim e do tempo, mistura essa que às vezes funciona e outras não, sem que eu consiga perceber como, porquê ou quando. Fui almoçar ao Es 20 de Bonaire (não tinham beringelas recheadas), voltei para bordo beber hierbas secas (V., temos de ir a Colonia de San Jordi) e que fiz da minha tarde? Trabalhei, em vez de beber ou dormir. Acho isto indecente e vou apresentar uma queixa à organização.

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Em Palma não há bons restaurantes indianos, já por aqui me tenho queixado disso. Dos que conheço o menos mau é o Jonny's Dhaba, aonde agora escrevo depois de comer um korma picante (!? - é a primeira vez que me propõem um korma picante.) Tão picante como medíocre - isto é, pouco - mas não me queixo. A verdade é que o Jonny's, como é afectuosamente conhecido, tem várias vantagens: a) é perto da marina; b) é barato; c) o homem é de uma simpatia inexcedível; d) a parte feminina da clientela (muito superior em número à «metade feminina etc.») está dentro da média de Palma, na sua franja superior - pode dizer-se que não é de espantar porque estamos em Santa Catalina e porque os yachties e porque e porque, mas essa é a verdade nua e crua. 

Enfim, nua e crua não é bem verdade e além disso há que ter presente um post infra sobre Balzac - a maioria das senhoras (aqui, hoje) está a pelo menos dez anos do tal patamar, de maneira são apenas alvo da minha desenfreada aptidão estética e não de outra qualquer. Antevejo porém com um gozo não dissimulado a sua (delas) ascensão a outro patamar, tendo eu, como tenho, esta capacidade de parar o tempo. Ou no tempo, não sei. Aliás, uma das mais bonitas está grávida. Vai ter de esperar alguns vinte anos, coitada.

PS - Disse vinte? Pelo menos trinta.

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O D. veio a bordo. Apresentámos o lazybag, ele fixou o lugar dos furos, voltámos a arrumar o coiso e eu pergunto-me se não será daí que vem esta necessidade de inundar o cerebelo de vinho tinto. É possível. Já imaginaram o que é ter uma retranca com um lazybag no sítio e só faltarer passar rizos, adriças, o cabo para a saia (como se diz outhaul?) e a escota? (Meu Deus, a escota... Isso vai ser outro par de mangas, passe o galicismo.)

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Quando eu era (ainda) mais adolescente do que sou hoje perguntava-me, cada vez que via um casal, «porquê ele e não eu?» Hoje já não faço essa pergunta - sei a resposta - mas continuo a pôr-me facilmente no lugar dos machos de alguns dos casais que vejo.

Salvo seja, claro.

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Depois do jantar venho ao Claudio. Quero ter a certeza de que aquele gelado de dulce de leche que comi no outro dia existe realmente e não resultou de um delírio, mais um... 

PS - Existe e, como de resto outras coisas, a segunda foi ainda melhor.

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PPPS - Noite das Igrejas. Em maiorquino fica La Nit de les Esglésies. Consiste em ter algumas igrejas iluminadas com velas. Foi o A. F. quem me falou nisto e como uma das igrejas fica ao lado do bar Rita vim ver. 

É preciso dizer que em Palma há mais igrejas do que eu tenho pólos brancos da Zara e que a mais feia, pequena e desinteressante delas é maior, mais bonita e mais atraente do que um lenço Hermés. Pois bem, a Església de la Mare de Déu dels Socors foi uma desilusão.  A minha ideia era ver uma igreja como a via quem a construiu e o que vi foi uma igreja alumiada com velas como num percurso turístico, com focos eléctricos à mistura. 

Acontece que esta igreja é uma das minhas favoritas porque concilia sobriedade (não tenho a certeza de que este seja o termo correcto) com a habitual grandeza e imponência das igrejas locais. Fico-me com uma hierbas mezcladas (não há secas) nesta praça, que é uma das provas de que Palma se incrustou tanto em mim como eu nela.

Volta, Balzac.

À medida que vou envelhecendo, a minha idade favorita nas senhoras vai aumentando. Não tarda apanham-me.

19.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-10-2023

O badanal vai entrar lá mais para o fim da tarde. Entretanto já vamos com vinte nós aqui no porto. Diz que vai andar pelos trinta. Nada que o "meu" P. não tenha visto e aguentado mas mesmo assim trouxe para bordo o que sobrou do almoço no "Mini restaurante casa Júlio", aspas porque cito. Se a previsão se enganar não precisarei de sair.

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Até agora não se enganou. Vim ao El Corte Inglés e à Royal Fruits & Co. O nome é demasiado pedante para o que é: uma pequena loja de rua que consegue o duplo prodígio de ter sempre fruta excelente e preços altíssimos. Imagino que haja uma relação de causalidade entre as duas coisas mas não tenho a certeza. O que sei é que a rua Bonaire merecia um post só para ela. Começando pela sua extremedidade sul: a já mencionada Royal etc.; mesmo em frente, o café Weyler, aonde venho pela primeira vez mas de longe não a última; um pouco mais acima a Es 20 Bonaire, ao lado a Lightwall. Em frente desta havia antigamente a Roche Bobois, agora trocada por outra loja de movéis que ainda não estudei atentamente; depois o La Vasca, cuja reputação está bastante exagerada, na minha modesta opinião. Esta rua faz-me pensar na rue Daguerre, em Paris. Tenho de verificar a acuidade desta analogia. (E já agora de ir ao Es 20 comprar vermute.)

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Amanhã o D. vai a bordo e já lá tenho o lazybag. O registo também levou mais um passo em frente. Daqui a uma semana tenho o lazybag montado, vai uma aposta? Não, não vai.

17.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-10-2023

Regresso a Palma com alguns dos objectivos atingidos, outros nem por isso e o resto nem de perto nem de longe. Resisto a fazer uma contabilidade quantitativa ou qualitativa, a adicionar uns, meios e zeros, a atribuir mais peso à aquele e menos a este. Limito-me a conformar-me com o que não posso mudar e a lutar pelo que posso. Um marinheiro é a soma algébrica de todos os opostos e o resultado dessa soma só não é zero porque por baixo está o mar. O mar não tolera mentiras mas valida todas as verdades, mesmo as mais contraditórias. Basta serem verdadeiras e não efabulações ou fingimentos. Nestes objectivos há diferentes graus de prioridades, claro. E de dificuldades, de urgências. E de adversários, sobretudo. O marinheiro sabe que o mais difícil de gerir é a sua energia e é nisso que se concentra: ele é o elo mais fraco da cadeia e é precisamente saber-se fraco que faz dele o mais forte. 

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Quanto mais vou a Lisboa mais gosto daquela cidade e mais ela me exaspera. É como viver no meio de uma lixeira rodeado das mais belas obras de arte. O T. disse-me um dia que Genebra era demasiado limpa, mas que Lisboa está no outro extremo. Não lhe disse o que penso: não há demasiado limpo. Há limpeza e o resto. Só a sujidade tem graus. Lisboa está um nojo repelente. Mas depois tem um conjunto de coisas que se sobrepõem à repelência. Há uns anos fiz uma lista dessas coisas. Acho que chegou a altura de fazer outra.

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Almoço no Aurelio. O homem faz-me pensar no Road Runner mas com dezenas de coiotes em vez de um só. São os clientes, que sentados esperam a comida e a energia que ele lhes traz.

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Amanhã entra badanal. Não sei que dizer. Por um lado estou farto deste Verão que se eterniza como uma mulher bonita mas chata; por outro, não me apetece nada ver o «meu» P. a abanar como uma alma perdida antes de chegar ao Inferno.

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Almoço no Aurelio, jantar no Fidel, gelado no Claudio, rum no Jaume. Para um paisano como eu, Palma-a-calma é uma sucessão de nomes. Não o fosse, ou em vez de saloio fosse TO (é o acrónimo de Tour Operator, não a abreviatura de Totó, como à primeira vista se poderia pensar),  organizaria viagens para provar o Dulce de Leche do Claudio primeiro, depois o rum do Jaume, depois os canelones de rabo de touro do Fidel e por fim o orujo do Aurelio. A ordem dos factores é mais ou menos indiferente, desde que comecem pelo Dulce de Leche. Nunca na puta da vida - peso as palavras - comi um tão bom como este. É feito na Galicia. Isto é, a base é feita na Galicia. O gelado é do Claudio. Porra, devia ser proibido. Que fazem os arautos da igualdade quando mais precisamos deles? Por que raio de carga de água não encontro gelados que nem à sombra dos calcanhares deste chegam?

É que isto é como as cerejas: orujo, canelones, gelado de dulce de leche, rum Santísima Trindade. Pode argumentar-se que há horas entre o princípio e o fim (e às vezes entre cada uma das etapas) deste percurso.

Não há. Há um fio contínuo de sorte, sorte e sorte. E do seu complemento directo: gratidão, gratidão, gratidão. 

(Cont.)

15.10.23

Obscuro labirinto; ou: insaciável fragilidade

É portanto no obscuro labirinto das ideias hesitantes que respiras. Vês pouco e ao perto, apenas. A luz insuficiente, as bruscas paredes, os caminhos que mudam de direcção abruptamente impedem-te de formar ideias claras sobre o que te rodeia. Para ti, o longínquo começa imediatamente para lá da mão quando tens o braço esticado. Do mar - a tua vida anterior - trouxeste dois ou três conceitos que te servem de lanternas: amizade; amor; a insuportável beleza da dúvida. A curiosidade, sua irmã siamesa. A única certeza que tens é a da tua fragilidade. O mar tem um insaciável apetite por pessoas fortes: engole-as mal elas se aventuram parafora de pé. Nele, só os frágeis sobrevivem. É essa experiência que te permite sobreviver no labirinto para onde a curiosidade te atirou. Às vezes consegues entrever um sorriso, dois seios, um corpo que dança longe de ti, através dos muros, através dos anos. Dessa fragilidade falo. Não: é dessa fragilidade que te falarei um dia, depois de alimentado o minotauro.

O que me tocou

Ainda esta velha questão do labirinto. Eu fechado do lado de fora e as palavras errando por dentro. Perco-me nestes canais estreitos de que só vejo o topo, os movimentos desordenados - como não o seriam, quando não se lhes percebe as razões? - a busca desesperada por uma saída, um reencontro. Falo da assimetria, do desencontro, de electrões livres que de repente se vêem prisioneiros de palavras, muros, labirintos, amontoados de sílabas. Falo daquilo que num olhar fala e nunca entenderei porque fala tão forte um olhar. Falo do que sei, do que toquei. Falo do que me toca. 

14.10.23

Falar do que se sabe

A senhora não é particularmente bonita, não é particularmente bem feita e é de longe a mulher mais magneticamente atraente que me foi dado ver em muito tempo. Uma beleza fulminante.

É um mistério, isto da atracção gravitacional, dos olhos que são o espelho da alma - os olhos ou o olhar? - das pessoas que dispensam a beleza e a trocam por outra beleza. 

Não serei de certeza o único homem na sala sensível a esta estética do avesso, mas há uma coisa de que estou certo: tenho sorte. Falo do que sei.

12.10.23

Diário de Bordos - Lisboa, 12-10-2023

No restaurante, uma das coisas boas de ficar mesmo por baixo da televisão é termos uma senhora a olhar fixamente para nós. Aqueles breves instantes até percebermos que não é para nós que ela está a olhar valem ouro.

Ainda por cima, quanto mais bonita a senhora é menos breves são os instantes. 

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Venho de metro do Aeroporto. Uma cidade é feita de pessoas, já aqui o disse muitas vezes.

(Cont.)

11.10.23

Hamas, Hitler

As pessoas que defendem o Hamas fazem-no porque não podem defender Hitler abertamente. E lamentar que ele tenha deixado o trabalho a meio.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-10-2023

«Pareço um caçador de ausências», escreve-me a M. E., que não se lembra do autor da frase. São bonitas (a frase e a M.) Toca-me particularmente (a frase): passo a vida a caçar e fugir de e a lutar com ausências, de resto um tema frequente neste DV, coitado. Ausências, esperas... même combat, diria se fosse francês ou de ali perto. E se fosse dado a optimismos, como sou. Entre a espera e a ausência o muro é estreito, não chega sequer para me sentar nele. Desabaria imediatamente.

Não me sento nesse muro. O objectivo agora é construir paredes, muralhas, pilares: refazer o passado, essa mãe de todas as ausências, ordená-lo e dar-lhe sentido. Como, escrevi uma vez e é hoje mais verdade ainda do que quando o escrevi, um arquitecto que fizesse os planos da casa uma vez esta cosntruída. Verdade seja dita, é normal que hoje seja mais verdade: a casa está muito maior. O arquitecto precisa de mais tempo e de mais cuidado, de maiores e mais fortes muralhas. Talvez assim retenha as ausências.

(Para a M. E.)

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Hoje pus mais um pé à frente do outro na equipa «Registo». Com sorte, daqui a duas ou três semanas tenho o registo feito. Depois passamos à fase da classificação. Depois estamos prontos a largar, porque de qualquer forma sem retranca não há classificação, o surveyor foi claro. Quer ver o P. a navegar à vela.

Mais do que eu não quer.

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O Hamas tem uma qualidade: expõe à luz do dia os Eichmann todos de quem somos amigos, com quem trocamos comentários, que apreciamos, com quem convivemos ou até sentimos ternura e afeição. A pergunta que fica no ar é: que aconteceria comigo, se esses «funcionários insignificantes» (aspas porque cito) tivessem um dia poder sobre mim?

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Apoiam o Hamas porque não podem apoiar Hitler abertamente.

10.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-09-2023

Mensagem para toda a gente que se sente atraída pelo glamour da vida de capitão de iate (incluindo iatezinhos): 1 - a tampa da retrete não só ainda não chegou mas também voltou para trás: alguém se enganou no meu e-mail e trocou o L de Luís por um I, erro dantes frequente mas agora cada vez mais raro; 2 - o R. não apareceu; 3 - o L. F. tão pouco (mas este, verdade seja dita, é quase uma benção não aparecer); 4 - o rigger não dá notícias - porque não as tem, claro -; 5 - o X. da Dinatec tão pouco - ditto. Boas notícias: 1 - O Janosh continua a trabalhar com a meticulosidade e a eficácia habituais; 2 - o comboio «registo» avançou mais um passo: chegou a tradução para polaco de um documento (reenviada illico presto - ou seja, imediatamente - para a Polónia, claro). De um ponto de vista puramente quantitativo, isto dá cinco a dois, mas como o palhaço não apareceu talvez se possa fazer quatro - três. E como no lado dos quatro há dois passivos - o Rigging Point e a Dinatec - vamos escamoteá-los da lista. Todos os subterfúgios são bons para equilibrar a balança.

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Outro comboio que avançou mais um passo: cozinhar a bordo. Mais notícias mais depois.

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O BP continua por vender, o livro e a exposição avançam bem - falta saber onde vou arranjar combustível, mas isso é outra história (tomem nota: dia vinte e três de Novembro às dezoito e trinta na Palavra de Viajante) - o olho esquerdo e a outra operação continuam sem notícias. Não é só a vida de skipper que é um antro de glamour. No fundo basta misturar isto tudo e pensar na frase francesa: pedalar na maionese.

No dia em que vir o «meu» P. daqui para fora e o olho esquerdo tratado deixo de comer maionese (excepto se for feita por mim, naturalmente...) O resto é amendoins, mais casca menos casca.

9.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-10-2023

Pode finalmente comer-se na Casa Julio. As filas de alemães barrigudos e alemás feias acabaram. A jovem loira que aqui trabalha desde que desembarcou da arca de Noé (reitero e sublinho a juventude da senhora) diz-me - quando lhe menciono esta sorte - que agora posso reservar mesa ao meio dia, quando houver estas filas todas (as de Verão). Detestáveis, acrescento mentalmente, estas filas de gente abominável que vem comer ao «mini-restaurante» (verbatim) porque um palerma qualquer num guia idiota lhes recomendou a  «experiência», a «não perder». É evidente, ou devia ser para todos, que as minhas razões para frequentar esta casa há dez anos são muito mais válidas do que as deles. Aliás: são as únicas válidas. A saber: venho aqui porque quero comer bem por pouco dinheiro; venho aqui porque quero comer maiorquino no meio de maiorquinos, informalmente e num sítio aonde sou reconhecido. Porque quero estar num restaurante aonde as empregadas mandam uma piada e ouvem outras em troca, apesar de andarem sempre a correr. Que vale a «experiência» face a isto tudo? Que vivemos, quando turistamos? Que sabemos das casas Julio deste mundo quando para lá somos enviados por um guia du Routard, ou Baedeker, ou o raio que o parta?

A questão é muito mais complexa do que à primeira vista parece. Leva-me imediatamente a outra, completamente desescalada (no sentido de fora de escala, desproporcionada): deveria o Ocidente acabar com a ajuda «ao desenvolvimento»? Face aos resultados: Sim, claro. Mas há ou não pessoas físicas, concretas, nomeáveis, tangíveis que beneficiam dessa ajuda? Há. Serias capaz de lhes dizer que vais deixar de lhes dar comida porque o que a elas chega é uma pequena percentagem do que lhes foi enviado? Serias capaz de proibir as filas de turistas palermas (passe a redundância) que esperam à porta do Julio porque a experiência deles não passa de um ersatz? Quem és tu para decidir assim da vontade - ou do destino - das pessoas? Felizmente este decidir pode levar aspas. Não decido nada. Limito-me a pensar e a escrever, duas actividades às quais reconhecidamente não devia ter acesso mas enfim, tenho.

Ninguém. Não sou ninguém. Ou seja: volto para bordo, não sem antes comprar um maço de cigarros na Cantina (mau sinal mas pretexto para um rum Cacique, o que atenua) e aqui chegado oiço música sacra russa, porque não há nem nunca houve ninguém como eles para falar com Deus. (E com o Diabo, acrescento agora que penso nisso. Andam sempre juntos.)

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Questão subsidiária: os homens que pedem ao patrão um aumento de salário porque não ganham o suficiente para fazer face às despesas são os mesmos que tentam seduzir uma mulher porque estão sozinhos? (É para um amigo, claro.) 

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E assim se esvai um dia do qual a única coisa que extraí foi ter o P. a brilhar (e ainda não acabou). O Janosh limpa-me esta merda melhor do que muitas mulheres e Deus sabe se estou precisado de um exército delas (para as limpezas). Amanhã vem o Ricardo (se vier. Esse é daqueles que só conta quando lhe tenho os olhos em cima). Lembram-se de quando escolhíamos as equipes pondo cuidadosamente um pé à frente do outro? Pois é mais ou menos assim.

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Pronto. Tal como os rios desaguam no mar eu desaguo nas Vésperas de Rachmaninoff, nas hierbas secas e no gozo com as palavras. Falta uma coisa, eu sei. Mas não se pode ter tudo. O que de certa forma é injusto: se pode ter-se nada, porque não ter tudo? A simetria deve ser seriamente reavaliada.

Espera, tortura

Será que os torturadores todos de todo o mundo já pensaram na tortura da espera? Ou essa ficou limitada aos escritores solitários e aos marinheiros apaixonados pelas suas embarcações?

8.10.23

Exíguo, uma paráfrase

A paráfrase perfeita seria deito-me "nos braços da exígua noite", límpida e linear. Contudo  hesito: deito-me "nos exíguos braços da noite"? Deitamo-nos? A noite é exígua para nos acolher aos dois. Tem os braços demasiado curtos para nos abraçar. Os exíguos braços desta luz que acendeste e agora não sei apagar. Procuro-te nesta exígua noite, neste pequeno beliche cuja forma de V me faz pensar em ti, no nosso exíguo amor, tão breve, tão eterno. Como se o V estivesse deitado, pássaros em formação de voo migratório no exíguo espaço que nos coube em sorte. Ou que construímos os dois, pedra a pedra, olhar a olhar. Nos exíguos braços do imenso amor que nos acolheu.

Mercados, Papa e outras coisas

Tal como não acredito na infalibilidade papal, duvido muito da dos mercados e pelos mesmos motivos: o homem é falível e os mercados não passam de conjuntos de homens.  Isto é, de seres faliveis. É verdade que o são menos do que o Papa, pela simples razão de que há mais pessoas nos mercados do que no Sumo Pontífice, por muito esquizo que este seja. Os erros de muita gente tendem a anular-se, se bem isso nem sempre aconteça. Ou seja: sendo falíveis, os mercados são-no menos do que meia dúzia de iluminárias num ministério. 

7.10.23

Sarau de poesia

Venho deitar-me com tudo o que tenho de poesia na biblioteca de bordo. Não é muito, porque levo regularmente - ou levava, quando tinha casa - os livros para Lisboa.

"Despedida en la orilla del sur

Triste despedida en la orilla del sur
ondeante otoño al viento del oeste.
Mirarnos nos desgarra las entrañas.
Cuídate y no vuelvas la vista atrás."

111 Cuartetos de Bai Juyi, Editorial Pre-textos, col. La cruz del sur.

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"Sendo criadora de férias e guardadora
de expressões vulcânicas tenho
sempre a palavra errada para soltar
no momento certo.
..."

Rita Tormenta, Centrifugar angústias a 1600 RPM, ed. Safe Space Portugal [porquê o inglês? Espaço seguro não serve?]

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"É tão suave ter bons sentimentos 
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem
..."

Ruy Belo, Soneto superdesenvolvido, in Homem de Palavra(s), cadernos de poesia n° 9,  Publicações D. Quixote

A chave para o universo

 "Vi coisas extraordinárias
Um leão que tomava conta 
das vacas que pastavam
Uma mãe que nasceu
depois do próprio filho
Um mestre prostrado
perante o seu discípulo
Peixes desovando
na copa das árvores 
Um gato dando a mão 
a um cão      Um saco de juta
puxando um carro de bois
Um búfalo que saía para
pastar a cavalo
Uma árvore com os ramos 
na terra e as raízes no céu 

É esta
a tua chave para o universo "

Kabir in O nome daquele que não tem nome, Versões de Jorge Sousa Braga,  ed. Assírio & Alvim, Março de 2016

O burguês marxista

A minha versão favorita do banqueiro anarquista é o burgês marxista. No FB tenho meia dúzia deles - vêm da média ou alta burguesia e são mais esquerdistas do que eu sou feio. Gosto muito deles: desmentem aquela tese idiota do Marx segundo a qual o que pensamos é directamente influenciado pelo nossa situação na pirâmide social. Passei por isso quando partilhei um apartamento em Genebra com dois marxistas - um althusseriano e o outro ambientalista de esquerda, passe o pleonasmo. «Não percebo como alguém na tua situação [trabalhador clandestino] pode defender essas ideias», diziam-me.

A burguesia - da qual provenho e de que não sou grande fã, devo dizer - produziu o que de melhor e de pior há no nosso mundo. Viva ela. E viva o Marx, coitado, que não acertou uma.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-10-2023

Em Palma não há um único bom restaurante indiano. Atribuo essa triste situação à falta de bons clientes de restaurantes indianos.

(PS - Tenho ido ao Johnny's. Não é grande coisa mas tão pouco é péssimo e pelo menos o gajo é simpático.) 

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Ontem a U. falou-me num mercado biológico na Plaza de los Patines e hoje lá fui, rapazinho obediente que sou. É pequeno - um terço, um quarto do do Princípe Real, ou daquilo que dele me lembro. Comprei alguma fruta a preços bastante biológicos e vim para o Sa Caravana, o café que fica ao lado. Os mercados e as praias apreciam-se melhor de fora, dos cafés que os rodeiam. O Caravana está cheio, o pessoal é visivelmente insufuciente - mais tarde perguntarei a dois dos empregados e deram-me a mesma resposta: não é habitual estar assim com tanto movimento - e eu aprecio esta azáfama, o barulho que é muito mas consegue não ser agressivo, a clientela jovem - famílias nos trinta, quarenta, quase todas com crianças - branchée (já consigo dar um desconto às malditas tatuagens, tão feias mas tão ubíquas que um tipo acaba por não as ver). Tenho pena de só agora ter sabido deste mercado e ao mesmo tempo regozijo-me do empurrão motivacional que ele é: tenho de pôr esta p. deste P. a funcionar!

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Escrevo com a Parker que comprei na Feira da Ladra. Fico com as mãos cheias de tinta. Esta não tarda vai para casa fazer de decoração. Só me faz lembrar o dia nefasto em que perdi uma igual em Antigua, herança do meu Pai. E não, não preciso de uma caneta para me lembrar Dele.

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As manhãs de sábado misturam o movimento das da semana e a calma, o relaxamento e a atmosfera das de domingo. Os judeus escolheram mal o dia de repouso.

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Um «prego» no Joan, um gelado no Claudio e um rum na Cantina. Ainda há quem seja contra o aquecimento global? Por mim, venha ele, muito e forte.

Um prego aqui chama-se «serranito» ou llonguet serranito, de seu nome completo. Llonguet é o nome genérico das sanduíches feitas com um pão igual ao nosso papo-seco. O Joan tem duas versões - a normal e a picante. Com os croquetes de chipirones são o meu prato favorito do bar Rita, aonde ontem fui com a U. e aonde já não ia há muito tempo. Tempo demais, aliás: aquele lugar é uma pequena injecção de pertença.

Périplo do dia, que à tarde intitulei «Bem vindos ao mundo encantado do Luisinho Serpa» e agora só alteraria para Luís Serpa, porque o tempo fez das suas e amaciou os ângulos. Acontece que ao lado do mercado biológico há um restaurante chamado Celler de Sa Premsa que é um clássico de Palma. É o único restaurante do mundo aonde um empregado me desaconselhou o vinho da casa - podre de razão, como vim a comprovar por o ter pedido na mesma. É imbebível. Acontece que no menu têm beringelas recheadas, um prato que a minha Mãe fazia amiúde e do qual sou apreciador impenitente. Meteu-se-me na cabeça que hoje o almoço seria isso. Vim a bordo deixar a fruta do mercado e avisar a senhora do Corb Marí de que teríamos de deixar o schweinshaxe para segunda-feira e ala para o Celler. O qual estava cheio, só com reserva, filas à porta. Até as reservas tinham de esperar. «Pouco importa», penso. «Vou ao Don Caracol», outro clássico, «lá terão as beringelas». Não têm, Vou ao Puente. Idem. Espreito na Cantina Patrón Lunares, um restaurante de resto lindo aonde fui uma vez com a T. e nunca mais voltei, injustamente.A dona foi de uma simpatia indescrítivel, a coisa menos maiorquina que me foi dado ver desde que aqui cheguei pela primeira vez. Enquanto eu bebia um sublime vermute «caseiro» (aspas porque cito, não porque duvide da origem caseira da coisa) telefonou para tudo quanto lhe ocorria que poderia ter as beringelas. Neste ponto começo a lembrar-me de um conto de O'Henry em que a mulher da personagem principal, grávida, quer comer creio que morangos mas é Natal e o desgraçado do marido dá três voltas à cidade até encontrar os morangos (?), só para chegar a casa triunfante e ouvir a mulher dizer-lhe que afinal o que ela quer é laranjas - o homem tinha ouvido, durante todo o périplo, «não temos morangos, mas se quiser laranjas...» Não é o melhor conto de O'Henry, o desfecho é demasiado previsível, mas é um conto do qual me lembro frequentemente. Hoje tendo sido uma dessas frequências. Saio do Lunares rumo à casa Maruka, que não conheço mas que aparentemente tem o raio das coisas. Há fila à porta e lembro-me de telefonar ao Sa Premsa - agora, uma hora e quase meia depois talvez haja mesa. 

Há. Resultado: fiquei a saber que o El Puente está transformado num buraco para turistas, que o Can Frau, no mercado de Santa Catalina - propriedade ou gerido ou assim de um português que está em Mallorca há tanto tempo que já nem sabe bem de onde é - costuma ter beringelas recheadas, que a casa Maruka talvez não seja má mas parece cara e - sobretudo - que tenho de ir mais vezes ao Sa Premsa e tenho absolutamente de ir ao Lunares. Confirmei ainda que a bicicleta BH Glasgow foi feita para circular pelas ruas desta - ou de outra - cidade (e eu para ela), que o plano, quase abandonado, de partilhar o meu tempo entre Lisboa, Genebra e Palma deixa de estar abandonado pela mesma razão que leva as árvores a desenvolver raízes aonde as plantamos e não só aonde elas apareceram e, finalmente, que nos vinte anos que me restam de vida tenho de aprender a fazer carne picada como a minha Mãe fazia porque as beringelas recheadas de Mallorca não têm nada a ver com as da tia Blá - Blazinha sem tia para o meu Pai - apesar de serem muito boas. (Não há prato que leve beringelas e seja mau, mas isso são contas de outro rosário.) 

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A retranca está a bordo e só não está no sítio porque quero pôr uma porca no cachimbo, aquilo está demasiado frágil (o J. W. diz que está no limite). Os passos podem ser milimétricos mas pelo menos são dados, todos os dias, um após outro. Já não sei quem me recomendou a Rigging Point quando cá cheguei vai para quase seis anos mas sabe Deus que foi uma divina recomendação.

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O objectivo para a semana é pôr a cozinha do P. a funcionar. Vamos ver quanto tempo leva? Já falta muito pouco. O principal problema é que ainda há trabalho a fazer no interior e eu não quero encher aquela porcaria toda de pó de kevlar / carbono...

Às vezes - raramente, verdade seja dita - penso no que era o P. quando aqui cheguei, no dia dez de Março de 2018 - e no que é hoje. É uma homenagem àquele dito segundo o qual «as aparências iludem»; e outra à minha convicção de que o essencial não é o que se vê; e uma ferida aberta: eu queria muito que o exterior reflectisse todo o esforço que foi feito no que não se vê. Tenho de começar a jogar no totomilhões... 

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Tenho, sobretudo, de começar a pensar no que será a minha vida quando a começar a vivê-la do interior. De passagem, até em mim...

(Bom, mas quem não está?)

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Comprei mais uma tartaruga ao gajo das madeiras, no Paseig. Não é que queira viver tanto como elas - não quero - mas quero viver à velocidade a que elas envelhecem.

6.10.23

A beleza dos números pares

Deslizo silenciosamente pela noite e encosto-me a ti. Chegámos, querida, à idade em que acordar um ao lado do outro é mais importante do que adormecer. Um dia adormeceremos e não acordaremos. Já acordar não há sem adormecer.

Mamas, redundâncias

- Uma mulher inteligente e com sentido de humor...

- Estás a dar-lhe nos pleonasmos?

- ... vale uma com um bom par de mamas.

- E continuas!

Duas ou três coisas que sei dele; ou: auto-retrato de um homem simples

  • Anda de bicicleta não para salvar o planeta - este desenrasca-se muito bem se o deixarem em paz - mas por causa da liberdade que a burra lhe dá;
  • Usa canetas de tinta permanente que transporta em estojos de duas. Assim perde-as aos pares, que acha muito melhor do que perdê-las uma a uma;
  • Está-se completamente nas tintas para a aristocracia, para as ascendências, descendências e outras linhagens, não por causa da igualdade - da qual não é grande apóstolo - mas simplesmente porque pensa que cada um vale e responde por si e não pelo que os seus tetravós fizeram ou deixaram de fazer;
  • É ateu por cepticismo mas aprecia os mitos das religiões. Destas, prefere a católica, porque é a que conhece melhor e porque acha mais interessante espetar pregos em pessoas do que alfinetes em bonecos;
  • Acredita no amor como valor basilar, fundacional e essencial: de todos os desequilíbrios é o que traz mais alegria - e dor, sua irmã siamesa;
  • Recusa terminantemente o zeitgeist, quaisquer que sejam o zeit ou o geist: não acredita em bandos, clubes, grupos e pensa que os erros de julgamento de qualquer agrupamento de mais de duas pessoas têm forçosamente ou podem ter piores consequências do que os mesmos erros vindos de uma pessoa só;
  • Não é ferozmente independente porque isso seria como dizer que respira com ferocidade ou que é dextro por escolha. É independente e livre como uma baleia-azul é grande: sem saber porquê ou para quê;
  • Pensa que a função de uma teoria é simplificar o que é complexo e provar que toda a simplicidade é ilusória: não acredita em maniqueísmos, bipolaridades ou causas. Tal como ser livre é poder escolher as suas prisões, acreditar numa ideia é abraçar as outras, as que se lhe opõem; dar-lhes, por assim dizer, direito de cidadania;
  • Acredita na Razão: é a outra face da moeda do Amor. Uma vida guiada por estes dois valores terá talvez muitos ziguezagues, mas não será vã;
  • Acredita no mar, mas disso não sabe falar. Questão de pudor, sem dúvida. 

5.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-10-2023

Lórien é um desses bares especializados em cerveja - há quem lhes chame cervejarias, mas enfim - o que explica que até hoje só aqui tenha vindo duas ou três vezes, esta incluída. Tem comida parca e barata, o que seduz um tipo que acaba de descobrir a frugalidade. Descoberta forçada, é verdade e demasiado recente para ser correctamente apreciada, mas descoberta. O estranho nisto tudo não é eu ver-me a beber cerveja - às vezes acontece - e esta súbita necessidade de alargar os limites do meu ecossistema, agora que sinto a hora da partida no ar e ele, o ecossistema, me parecia consolidado e delimitado. 

O bar está cheio - escrevo ao balcão e à frente do «piano» das cervejas - o homem é simpático, sabe o que é uma Smithwicks (pedi-lhe a cerveja mais parecida com essa que ele tem e acertou em cheio) e agora provo uma IPA (Indian Pale Ale, para quem não sabe) feita em Menorca, menos boa do que as primeiras, mas isto de gostos e cores.

Lórien vem do nome de um livro cujo nome já não recordo - ouvi-o há mais de cinco minutos - e vou ter de googlar porque me lembro do autor mas não do título (Tolkien e Senhor dos Anéis, respectivamente. Tenho de ler isto um dia).

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O «meu» P. tem neste momento dois estaleiros importantes («projectos», como agora dizem os que importam anglicismos) para ficar pronto: a retranca e tudo o que ela envolve e o registo. Qualquer dos dois são comboios em movimento. Há ainda uma miríade de pequenos «projectos» mas com esses preocupo-me pouco, são coisas simples. O pior são estes dois. O Janosh disse-me que admirava a minha persistência. Há dias em que até eu a admiro, Janosh! E me espanto.

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O tempo está óptimo, ainda há turistas mas as ruas já não estão a abarrotar. Alguém - que não o pode fazer - dizia-me hoje que não se importaria nada de viver em Palma. Ninguém se importaria, respondi. Até eu, que não vejo a hora de me pôr a andar e estou mais ansioso por vê-la chegar do que um baptista pelo baptismo. Temos que fugir daquilo que amamos, não é? Se não somos engolidos, deglutidos, transformados, metamorfoseados - tout en continuant à l'aimer, ça va de soi. Estranho exercício de desiquilibrismo, este de amar.

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Amanhã encontro-me com a P. à tarde na Rambla e com a U. depois, no bar Rita. Ver se reato com a vida social, que já tive e pouco a pouco fui abandonando. Não sei porquê mas tão pouco tempo perco a perguntar-mo. Basta usar o telefone para telefonar e não só para ler artigos e facebooks.

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A noite acabou (acabou?) da maneira mais palmitana possível: apetecia-me fumar um cigarro, fui ao 7 Machos porque sei que o Alex os tem, bebi um mezcal e uma margarita, aprendi uma série de coisas - incluindo a receita de um spaghetti com ouriços do mar que juro, juro jurado vou experimentar - e vim para bordo saciado: viver é saber que estamos de passagem, qualquer que seja o nível da passagem.

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Programa para amanhã: Radu, retranca e registo. A minha vida parece uma música do Philipp Glass.

Diálogos possíveis

- Tenho tantas coisas para dizer...
- Calado farias uma fortuna.

Trabalho, respeito e geografia

Envio um e-mail a uma empresa em Inglaterra, Suíça ou Alemanha e tenho uma resposta uma hora depois. Envio um e-mail a uma empresa ou organismo portugueses e das duas uma: ou não tenho resposta ou tenho-a uma semana depois. Quando reclamo, a explicação é quase sempre a mesma: demasiado trabalho. De onde se conclui  que naqueles países ninguém faz nada. Só em Portugal é que se trabalha.

4.10.23

Dispersas de hoje - Palma, 04-10-2023

Fui deixar oito calções Napapijri a uma loja de roupa em segunda mão. Estão-me grandes. A porra da injecção que me tira o apetite fez-me emagrecer uma quantidade séria de quilos. Vejo pelos calções, pelas calças e pelo cinto que os sustenta, ao qual não paro de acrescentar furos. Pelos calções é fácil de ver: comecei no quarenta e já vou no trinta e quatro. Os que deixei hoje na loja são os trinta e oito e os trinta e seis. Quatro de cada. Os quarenta ficaram em Lisboa (e provavelmente alguns dos outros também). O meu guarda-roupa de Verão é constituído por cinco calções (na verdade seis, mas isto não é um inventário) e dez pólos brancos. A senhora mostrou-se interessada nestes, também os tenho em excesso - mas não por causa do tamanho. Vou ver quantos lhe posso levar na segunda-feira. Tenho uma quantidade absurda deles. Agora vem o Outono e entram as camisas de linho brancas. Tenho cinco, uma para cada dia útil da semana. No Inverno, aos sábados e domingos visto outra coisa. Às vezes penso que andar sempre vestido da mesma maneira é sinal de falta de imaginação. Mas enfim, é um uniforme: polo branco e calções azuis Napapijri porque são os melhores e só os compro nos saldos - e a Rossella ainda me faz um desconto, para além dos saldos. No outro dia disse-me para levar uma cor diferente, "para variar", e eu fiz-lhe a vontade. Sou um rapazinho obediente e o que visto é-me relativamente indiferente, por assim dizer. Antigamente gostava de comprar gravatas e tinha uma bonita colecção delas. Hoje não as uso, graças a Deus. Gosto deste uniforme e lamento não o poder usar para as outras coisas que faço. Não gosto de andar de calções em Lisboa, por exemplo. Em Genebra ainda passa, porque lá sou turista. Em Lisboa não sou, mesmo estando de passagem (retenham esta expressão: De Passagem. Em breve haverá notícias). Enfim, tudo isto para dizer que invejo as pessoas que percebem de moda, de computadores Apple e telefones iPhone. Há pouco vi no FB um post de uma senhora que percebe imenso de moda. Eu não percebo. A quantidade de coisas de que não percebo nada tiraria o fôlego a um soprador de vidro, se tivesse algum a ouvir-me. O post era sobre uns sapatos chamados Sabrina. Pensava que sabrinas são coisas que se usam para o ballet, mas afinal parece que se podem usar no escritório. Há outra razão por detrás deste chorrilho, não  apenas os sabrinos, ou sabrinas: a Rossella disse-me para não passar abaixo do trinta e dois. Às vezes imagino-me a emagrecer sem parar, como num filme francês que vi há imenso tempo. Era um daqueles grandes actores frances, não recordo o nome. Claude? Marcel? Não sei. Pouco importa. Sei que vou ter de ir jantar a qualquer sítio, mas não sei nem onde nem o quê. Falei com a Rossella sobre a comida (fui comprar dois trinta e quatro, só tinha três e o meu guarda-roupa... Espera, já falaste nisto). Tirou-me sete euros a cada um. Estás a desviar-te. A Rossella disse-me para só comer qualquer coisa de que goste muito. Passei pelo Fidel, mas não têm vitello tonato. Vou comer uma spaghettata qualquer. Deixo metade, seja o que for. Vá lá que pelo menos consigo beber. Pergunto-me quanto me vão propor pelos calções. Seja o que for, é uma boa indicação do valor de mercado daquilo. Na Mercanautic Segunda Mano oferecem um terço, valor que me parece correcto. Não sei se na roupa a proporção é igual. Se for muito baixo vendo-os na página do Radu. A minha grande feira de fim de refit vai ser virtual? Mas que vou ter o Vicenç a tocar vou. Já estará frio e levarei uma camisa de linho branca e umas calças azul escuro. Isto não é só um uniforme. É falta de imaginação. Ou de interesse, não sei.

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Afinal a "spaghettata qualquer" transformou-se nuns scaloppine alla marsala all'uovo no Gigi's Piccolo, Ristorante, o da slow food e da cozinha com amor de que guardo uma terna recordação da primeira e única vez que aqui estive. Por muito que se considere a cozinha italiana uma praga - é (não é a cozinha. São os restaurantes) - a verdade é que está imediatamente atrás da francesa, quase ao lado e quando se está desorientado (gastronomicamente falando, claro) é um porto de abrigo seguro. A ver como vêm os escalopezinhos. Pedi à senhora uma porção pequena porque detesto deitar comida fora. Pergunto-me se não seria sensato deixar de ir a restaurantes aonde se come bem (e barato) e começar a frequentar só os horríveis. Sempre seria mais fácil deixar comida no prato. 

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O conselho da Rossella surtiu efeito. A carne foi praticamente toda. As batatas quase. Só o tomate regressou intacto. Este restaurante vai entrar no meu ecossistema e aí ocupar lugar proeminente. 

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Penso na miúda francesa que vi hoje no Mercat de l'Olivar, vestida com um mau gosto de fazer doer. Vista pela alheta viam-se-lhe as mamas, caídas até ao umbigo. Vinte e poucos anos. Por agora ainda tinham um pouco de volume mas não tarda ficarão aquilo a que o meu Pai chamava sacos de café. Será que percebia de moda? As duas amigas que a acompanhavam estavam vestidas normalmente (e eram menos jeitosas, mas isso é outra história).

3.10.23

A que chamas

Deixa-me que a mão entre nessa cavidade a que chamas solidão. Deixa que o meu olhar te entre por essa planície a que chamas pele. Deixa-me entrar por essa esfera a que chamo tu.

Pasmo, Chevetogne, eternidade

Oiço os Chants de la Liturgie Slavonne cantados pelo Coro dos Monges de Chevetogne. A música é um tapete pelo qual deslizo e que desliza ele próprio sobre uma vasta planície. Faltam-me os termos para nomear tudo isto: eu no tapete, o tapete no mundo, o mundo.

Tento eternidade. Funciona. Divindade. Também. Tento pasmo. É isso. Encontrei. Sublime pasmo. Esquece a eternidade, a divindade e tudo o que não seja isto: pasmo, divino e eterno espanto. 

Digestão, hierbas secas

A insónia é voluntária. Não me apetece dormir, nem sair, nem fazer outra coisa do que a que faço: ler posts antigos (mais de dez anos e de Outubro) do DV. Apercebo-me - uma vez mais - de que o que escrevo precisa de envelhecer para ser potável. A "blogosfera" desapareceu e a Facebookosfera não a substituíu. Publicar o resto do blogue não é uma ideia nascida da vanidade ou da estultícia, sua irmã quase gémea. Apetece-me voltar a pôr política no DV. E ficção. Vou beber umas hierbas secas para digerir e esquecer tudo isto.

ADENDA: Acabo a ouvir as Vésperas de Rachmaninov enquanto bebo as hierbas e penso em tudo o que precisa de envelhecer para ser potável. Eu, por exemplo.

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«Quando o amor morrer

Quando o amor morrer dentro de ti, 
Caminha para o alto onde haja espaço, 
E com o silêncio outrora pressentido 
Molda em duas colunas os teus braços. 
Relembra a confusão dos pensamentos, 
E neles ateia o fogo adormecido 
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido 
Espalhou generoso aos quatro ventos. 
Aos que passarem dá-lhes o abrigo 
E o nocturno calor que se debruça 
Sobre as faces brilhantes de soluços. 
E se ninguém vier, ergue o sudário 
Que mil saudosas lágrimas velaram; 
Desfralda na tua alma o inventário 
Do templo onde a vida ora de bruços, 
A Deus e aos sonhos que gelaram.»

Ruy Cinatti

(08-10-2013)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-10-23

Chegada a Palma num estilo que um dia virá a ser conhecido por Estilo Luisinho. O avião aterra, o telefone é ligado e o meu pandemónio da minha vida anuncia-se: mensagem do Nikki, que está na lancha quase (piada íntima) ao lado. "Tens um alarme a tocar há dois dias". Peço-lhe para ir a bordo apagar o interruptor da Navegação, aquilo vem dali. Primeiro acto. Segundo: apanho um taxista de esquerda e apreciador de história. Dei-lhe um bocadinho de corda e o homem não parou. Estava nitidamente a gostar da conversa: fizemos o último quilómetro a dez à hora, enquanto me falava da "catastrófica colonização europeia em África", de que a prova, segundo ele, era o milhão de moçambicanos brancos (nisto não se enganou) que teve de regressar a Portugal.  Chegámos ao clube no momento em que eu lhe disse que sou um desses. Terceiro acto: saio do táxi, vou para a bicicleta e apercebo-me de que o telefone tinha ficado na viatura do taxista-historiador.

Safou-me o Nikki, outra vez. Estava a bordo da lancha de que trata e deu-me acesso à rede dele. 

Tout est bien qui fini bien: vim jantar ao Sa Ronda, a morcela de Burgos e a salada russa ("especialidade da casa") estavam óptimas e só me revoltou ter deixado metade, maldita injecção que não me deixa honrar o trabalho dos bons cozinheiros. Bebo um americano e um Cacique e penso na sorte: amanhã às nove da manhã tenho o pessoal da Dinatec (ámen) a bordo.

Esta coisa entre mim e o P. está a tornar-se quase pessoal (ditto). O motto agora é: "não és homem não és nada". Segue-se a condição - se esta porra não estiver pronta em Novembro; se aparecer mais merda maior; se se e se. Não és homem não és nada. Se.

P., garanto-te que sou homem para ti.

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Vinte e três graus centígrados em Palma agora (dez da noite). A quem se queixa do aquecimento global sugiro um inferno de gelo.

Palhaçadas...

...há muitas, seu palerma. Os gajos que inventaram as vacinas anti-coisa recebem o Nobel. As palhaçadas são para levar até ao fim, sejam globais ou locais, como os da cachopa que veio agora anunciar ao planeta - ou à sua parte lusa - que ter sorte dá trabalho. Novidade essa que nós, cachopos de uma certa idade, sabíamos há pelo menos meia dúzia de décadas. Os suíços debatem-se  com um problema que eles mesmos criaram: há quarenta anos tornaram obrigatórios os seguros de saúde e hey, ecco, o sistema torna-se ingovernável. (Isto não é de agora.) Os jornais insistem em chamar "activistas" (corrijo-lhes a grafia) a palhaços que insistem em mostrar a toda a gente que não têm cérebro. Têm cerebelo e já é um pau por uma pedra. A publicidade a um "fitness club" (aspas porque cito) de Genebra tenta persuadir os potenciais clientes a fazer já não sei o quê ao seu (deles) summer body. Corps d'été não tem a mesma capacidade de persuasão, deduz-se. No meio disto tudo preparo-me para aprofundar a minha pegada carbónica (não me lembro do nome exacto, se é que "exacto" se pode usar neste contexto) e deixo o tempo passar por mim no aeroporto de Genebra, a caminho de Palma. O tempo que passe à velocidade que lhe apetecer. As palhaçadas aligeiram-no.

2.10.23

Omnipotência, limites

Os deuses carregam o pesado grilhão da omnipotência. Por isso fazem tantos disparates: revoltam-se contra a ausência de limites. É impossível viver sem eles.

Mesmo quando se quer.

Paradoxos helvéticos

Quanto mais se envelhece mais se gosta da Suíça e quanto mais se gosta da Suíça menos se envelhece.

1.10.23

Morte às pragas

Tal como não há liberdade - há liberdades - não há fascismo. Há fascismos e os dias de hoje são-lhes terreno fértil. Florescem como as mil flores do assassino chinês. Ele é o fascismo da segurança, o fascismo verde, o feminista,  o fascismo dos indignados e ofendidos, o da "inclusão" (aspas porque separar as pessoas em grupos cada vez mais pequenos é tudo menos incluí-las).

Se o antigo testamento fosse escrito hoje as pragas não seriam sete.