31.7.18

Como seria?

A noite avança sem nós. Como seria, se nela estivéssemos?

Secas

É a boca seca do desejo que nos chama. Acorramos, querida. Nem as noites nem as securas duram muito.

Noite, partilha

Plácida a noite estende-se perante nós: acolhe-nos de braços abertos e um sorriso na face. Somos novos nisto da noite comum: como partilhar aquilo que até agora foi só de cada um de nós? 

És?

Há os corpos, a memória dos corpos e o que fica de uns e outras.

Não sei destrinçá-los muito bem. Lembro-me de um corpo e do que dele me lembro, mas nunca sei se coincidem. Diz-me tu, que sabes essas coisas: és o que de ti em mim deixaste?

Os dentes e a alma

Se se pegasse numa palavra e ela fosse uma pastilha elástica - uma chuínga - que palavra seria essa? A primeira que me ocorre é luz, se bem seja a menos elástica das coisas, das palavras. Tu (a palavra, não tu a pessoa)? Não sei. Não gosto de chuínga porque detesto mastigar as coisas, sejam elas o que forem.

Não gosto de nada que se deixem mastigar e acredita: não é por falta de dentes.

Passos, espaço

Há o espaço entre os passos. Mais letra menos letra é auto-explicatório. Há o espaço entre as palavras. Por vezes chama-se vida. Ou sorriso: é um bom espaço, o sorriso. Pode chamar-se silêncio. Idem. Há o espaço entre sorrisos, entre uma mão que se dá e outra que a acolhe. Há o espaço entre dois corpos estendidos um no outro. Chama-se amor, por vezes. Há o espaço entre aquilo que somos - tu e eu, juntos - e aquilo que queremos ser. Também se chama vida.

Ha muitos espaços e um passo só, para os percorrer.

"Oiça um bom conselho / eu lhe dou de graça" - Bloody Mary

Se fizerem Bloody Mary em casa façam-no com tomate coração-de-boi. Sal, pimenta, limão, molho Worcestershire, um pau de aipo para mexer (e vodka, para mim. Isso do gin é inovação tardia).

30.7.18

Dark & simple

Em Coral Bay, na ilha de St. John, USVI, há um bar que faz (ou pelo menos havia, pelo menos fazia) os melhores Dark 'n Stormy que alguma vez bebi.

O Dark 'n Stormy é uma mistura relativamente simples de Rum, Ginger Beer e sumo de lima.

Infelizmente não há nada mais complicado do que uma coisa simples.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-07-2018

"Por que palavra começar,
por que desordem?"

- Suporto melhor os erros dos outros do que os meus - disse um dia a uma senhora que percebia mais de manutenção de embarcações do que noventa por cento das pessoas com quem eu tinha trabalhado até ali chegar, todas juntas. Isto é, os saberes adicionados desses todos não lhe chegariam aos calcanhares.
- C'est gonflé, ça - respondeu ela, pequenina, magrinha, loira, bonita, parecia uma pilha AA pintada pelo Hockney. Em francês porque estávamos em St. Martin. (Para quem não fala francês, pode mais ou menos traduzir-se por "Isso é arrogante").

Foram este diálogo e aquela cabeça de fósforo loira que hoje me encheram o dia. Suporto mal os meus erros, por muito explicáveis que sejam. Explicável não é a mesma coisa do que justificável. Por muito que J., o surveyor, me diga que as instruções podiam estar num ingês mais claro. Por muito que eu saiba que a obsessão e a pressa juntas levam a mais erros do que separadas e já assim são muitos. Por muito que o trabalho de um skipper não seja fazer, mas mandar fazer.  Por muito que os caminhos do inferno estejam cheios de boas intenções. Por muitos muito que, fiz um erro e vou ter de viver com ele, por muito que a correcção esteja ao virar da esquina.

Daqui a uma semana não restarão traços desse erro senão na minha memória e nas contas: duas coisas que não se apagam.

Talvez seja pedante - é um grande talvez - mas arrogante não sou. Arrumemos então a borrada na sala de aulas da memória. É o melhor armazém de borradas, pelo menos sempre servem para alguma coisa. Concentremo-nos no resto.

.........
Falemos desta Palma: estou a vivê-la só na superfície, tanto dela se me escapa, de tanto fujo. Uma cidade é feita para se viver a dois. Sozinho é uma ilusão; como querer explicar um plano tridimensional com uma folha de papel. São precisas duas.

A menos que se dobre o papel, claro... Não é a mesma coisa.

29.7.18

Ilusões de óptica

O almoço foi uma costeleta de boi na grelha (enfim, parte dela) com batatas fritas. Como precisava de verduras acompanhei-o com um Bloody Mary (não é ironia: hoje tinha finalmente o pau de aipo, salvo seja, sem o qual um Bloody Mary é uma bebida para o pequeno-almoço dos castrati).

Acabei com um chocolate "85% cacao" (aspas porque cito e itálico porque é estrangeiro) e rum Flor de Caña, que no El Corte Inglés de hoje estava em promoção, bendito seja o senhor que trata das promoções. Foi mais barato o Flor de Caña - infelizmente só o de 5 anos. O de 7 estava ao preço normal - do que teria sido o Cacique.

(Este post, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, não é sobre comida).

28.7.18

Quilhado

O gajo que inventou o calão "estar quilhado" sabia do que estava a falar ou foi só um bambúrrio de sorte, uma daquelas coincidências que acontecem uma vez por civilização?

Serviço público - Onde comer mexicano (salvo seja) em Palma

Os meus leitores (generosos e tolerantes) sabem que o meu mais enraizado desejo é proporcionar um serviço público de qualidade, objectivo, sereno. Com esse objectivo na mira fui hoje ao restaurante Xoxotl, ali perto de Santa Catalina, Santa Cat para os yachties, gupo do qual não faço parte, seja Deus louvado (ou eu, já que Deus pouca influência teve nisto).

Ando a fazer uma lista dos melhores restaurantes mexicanos de Palma, pois nada impede os meus amáveis leitores de cá virem um dia, terem vontade de comer mexicano (salvo seja) e lendo-me saberão imediatamente onde ir ou não.

Ãté agora o meu afã levou-me a três restaurantes. Enfim, dois e meio: o 7 Machos, o Frida e Diego (ou coisa que o valha) e hoje o Xoxotl.

O melhor dos dois e meio é o meio: o 7 Machos não é bem um restaurante, é onde se vai à meia noite se se estiver bêbedo ou às oito antes de. É soberbo, o mais perto que já estive do México aqui na Europa. O Frida e qualquer coisa é pedante, como o nome indica Não é mau, mas eu não sou dado a pedantices, como toda a gente sabe. Pelo menos às alheias. O Xoxotl é uma merda.

Posso elaborar, mas agora não. Provei enchiladas, um tamale e Margaritas. Estas escapam. Os outros nem isso. Basta dizer que a empregada, pequenina e simpática, me avisou que a "folha" do tamale não "se come". Querida, um restaurante mexicano no qual se avisam os clientes de que as folhas de bananeira não se comem dá vontade de ir ao jamaicano mais perto.

Pode ser que tenham Red Stripe e façam um Dark & Stormy correcto, nunca se sabe. Até lá, mexicanos só no 7 Machos.

Ausência, Palma

Comecemos então pelo fim, se é isso que pretendes: a tua devastadora ausência já não me acompanha quando percorro as ruas de Palma.

27.7.18

Dúvida lunar

Hoje vou inaugurar o meu terraço, para ver o eclipse. Não sei o que acontecerá se levar uma garrafa de vodka: ou vejo dois eclipses ou as partes de Lua adicionam-se e não vejo eclipse nenhum.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-07-2018

É daqui que vem a expressão "Seca!": alguém esperava que o Chockfast secasse e disse Que scca! e a coisa pegou (sem jogo de palavras, claro). Não consegui encontrar em lado nenhum uma estimativa do tempo que aquilo leva até se poder trabalhar. Se vejo esta quilha arrumada benzo-me, vou em procissão a Fátima de joelhos e de costas, trepo às torres da Catedral de Palma só com uma mão e a outra amarrada atrás das costas (é mais ou menos assim que me sinto, mão amarrada atrás das costas e esmagado por coisas que não controlo de todo).

.........
E pelas que controlo ou devia controlar e não faço, tornei-me membro da igreja da procrastinação do último dia, como se o P. se tivesse tornado uma imensa esfera dentro da qual vivo e respiro e fora não há nada.

........
Alegrias do automóvel: a embraiagem patina de tal forma que não tenho a certeza de conseguir tirá-lo da garagem. M. vai dar-me outro. Felizmente posso esperar que o Chockfast seque aqui em Palma, não preciso de ir a bordo olhar para aquilo (ontem fui e fiquei tão deprimido com o ritmo da seca que mais vale esperar até amanhã ou pelo menos até logo à tarde).

...........
Refugio-me na Babel, excelente livraria e excelente café, boa música e a esta hora vazio. Algo me diz que a procrastinação vai perder um ponto.

Noite das Artes em S'Arracó - (cont. e fim)

Acabei por me vir embora. Não tenho luz na bicicleta e não me apetecia vir por aquela estrada de montanha às escuras. Além disso havia muita gente, para uma coisa que ainda mal tinha começado. Cada vez suporto pior multidões.

Em relação às artes, uma palavrinha de apreço à música: as três bandas que ouvi - country & western, jazz (esta uma banda juvenil bastante competente) e rock - eram bastante boas.

Outra palavrinha de apreço para outras obras de arte, produto da natureza e de um código genètico favorável. Eram muitas, benza-as Deus.

26.7.18

Entre aspas

Punha-lhe as mãos nos ombros nus como se fossem aspas à volta de uma palavra.

Só falta descobrir a palavra.

[A palavra sou eu, disse ela].

Noite das Artes em S'Arracó

Hoje há festa na aldeia: Nit des Arts (não garanto a ortografia). As ruas de S'Arracó estão cheias de pinturas, esculturas, fotografias, músicos e bares, sem os quais uma festa de aldeia não é nem festa nem artística.

Já fiz um pequeno e agradável passeio pelas artes e comecei a testar os diferentes Mojitos (sem açúcar). O primeiro, do bar Nou é aceitável e custa três euros e cinquenta cêntimos. Pormenor importante: só servem em copos de plástico. Como há muitos bares e vim de bicicleta vou experimentar os outros, com a diligência e cuidado que me são característicos.

À medida que a noite for avançando vou actualizando este boletim (enquanto houver baterias, claro).

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As ruas já estão cheias e isto ainda não começou a sério, visivelmente. Algo me diz que não vou ficar muito tempo.

Fiz outro passeio, mais completo. Sem querer parecer pedante - não sou de todo, como sabem - a proposta artística é relativamente fraca. Há mais decoração do que arte.

Mas as artes decorativas também são arte, não são?

25.7.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-07-2018

Hoje fiz mais uns riscos no carro. Enfim, não eu: a parede da garagem.

Espero que tenha seguro contra todos os riscos. Aquela garagem não é feita para quem está a fazer um refit desta amplitude.

Pelo menos tem dois pontos bons: a) faz-me sentir parte de um grupo, o que é raro - não há ali um único veículo que não esteja marcado -; b) lembra-me de que com barcos isto é raríssimo acontecer. Antes assim.

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Como de costume passei de uma série de dias a fazer praticamente nada para dias de trabalho infernal.

Tenho sorte: gosto do que faço e "infernal" não é o termo certo. "Paradisíaco" sim.

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Tive de refazer tudo o que fiz ontem. A senhora chinesa tinha razão: plasticina é para criancas. Hoje usei silicone, duas demãos. Comprei o mais barato, na esperança de que seja o mais fácil de arrancar.

Agora é esperar que amanhã esteja seco. Se não estiver, depois de amanhã. Quando a quilha estiver no lugar não vai ser Tripulação 1 - Quilha 0. Será Tripulação 1952 - Quilha 1951.

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Amanhã encontro-me com o Edison às seis e meia da manhã. As instruções do Chockfast dizem que aplicar aquilo é "um trabalho de equipa": creio que nunca segui um folheto de instruções tão religiosamente.

A diferença entre isto e uma religião está nos resultados: aposto o que quiserem que o meu Chockfast vai ficar porreiro. Alguém pode garantir a mesma coisa quando eu morrer se daqui até lá seguir todas as prescrições de uma fé à vossa escolha, seja ela qual for?

Não.

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O Verão chegou e as mulheres de Palma ficaram pecaminosamente atraentes. Todas. Deve ser por isso que gosto tanto do Verão: pecar é bom, seja por actos, omissões ou pensamentos.

Os FP e o "sistema"

A minha saga com a carta de condução continua. É verdade que o sistema não está feito para casos atípicos como o meu e dou por isso o devido desconto.

Mas só o devido, não mais.

Há uns anos precisava de uma certidão da Escola Náutica para trabalhar na Martinique. Tinha tudo: o emprego, o contrato, o barco e a tripulação. Só me faltava a certidão, a fim de obter uma equivalência. A Escola Náutica Inf. D. Henrique levou três meses, três, a fornecer-me a dita coisa. Recebi-a numa quinta-feira (digitaizada, por e-mail) e fui à Capitania. O Capitão do Porto disse-me que precisava dela traduzida e deu-me a entender que se fosse eu a fazê-lo ele não se aperceberia. Fui para um café ao lado, traduzi a certidão, assinei-a com um nome bonito, que já não recordo mas devia ser Marie Estelle Desmers ou coisa que o valha; entreguei-o nessa mesma quinta-feira já ao fim da tarde e perguntei ao senhor se podia vir levantá-la "para a semana". "Para a semana? Venha amanhã. Você precisa de trabalhar, não precisa?" (Os trabalhos no charter começam ao sábado).

O "sistema" é o que é, mas são os funcionários públicos que fazem dele a máquina trituradora, torturadora que é.

24.7.18

Flagrante delitragem

Hoje apanhei o meu corpo em flagrante delito de delitros. Literalmente: transpirei de certeza alguns dez litros e quando voltei para casa o cinto não tinha mexido nem um milímetro.

Onde raio é que as minhas glândulas sudoríparas foram buscar aquele líquido todo?

Não sei. Enchi-me de água, cerveja, tinto de verano, tudo. Mas não bebi nem um décimo do que transpirei. Em casa meti-me num banho mas não entrou muita água, pelo menos que eu tivesse sentido (ainda bem, teria ficado cheio de espuma).

Enfim, seja o que for: transpirar assim é um mistério, mas fico orgulhoso. Acabo de provar que transpirar não diminui a barriga, descoberta essa que a humanidade saberá decerto agradecer-me. Amanhã vou muito cedo para bordo, o produto é birrento e não gosta de temperaturas elevadas.

Fico-lhe grato: por muito que se goste de calor o que é de mais é demasiado.

........
Além de não ser impossível eu tenha de recomeçar. Se assim for antes de manhã.

23.7.18

Palma, amada

Percorro-te as ruas, Palma minha amada, como percorro o corpo que amo: cada vez é a primeira e nunca haverá última.

Conheço-te os esconsos e as vielas que a cada passo descubro: conheço-te antes de te conhecer. As tuas ruas são as minhas mãos, os teus cafés a sua boca, a tua luz os seus olhos.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-07-2018

Visto de cima parece uma vida normal, não é? Um gajo levanta-se, mete-se no carro, vai para o "escritório", volta para casa, despe-se, prepara uma bebida, come qualquer coisa, estende-se no sofá para descansar um bocado e pensar...

As vistas de cima enganam. Desafio qualquer dos meus amigos que trabalha num escritório a conhecê-lo tão bem como eu conheço o meu P., tão intimamente. E a saber que se aquilo não ficar bem feito não é um "Bolas, que chatice" que resolverá o assunto. E a pensar que não tarda estará a navegar neste barco ressuscitado, todos os dias um pouco mais.

Mentiria se dissesse que não gosto deste ritmo, destes rituais quase novos para mim; gosto, muito. Mas gosto porque todos os dias olho para uma quilha e oiço "põe-me na água", porque se começa a desenhar uma data realista no horizonte, porque me imagino a ver de novo o Teide, já não o vejo há tanto tempo. E ir à presuntaria do gordo em Las Palmas, o homem conhece "pessoalmente" (aspas porque cito) os porcos de onde provêm todos e cada um dos presuntos que tem expostos na casa: antes de os comprar faz uma viagem de inspecção e vai visitar as criações e escolher os bichos que quer.

Todos os dias monto na minha bicicleta a caminho de Lanzarote.

Colonialismo

Abriu uma tasca nova em Puerto de Andratx. Hoje fui lá. Os donos são alemães, apesar do nome inglês. Pedi um Tinto de Verano, mas a senhora não sabia o que é. Suspeito que não me voltam a ver, apesar de a Kartoffelsalat estar boa e a Bratwurst decente.

É que não percebo como se pode abrir um tasco num país e desconhecer um dos seus pilares gastronómicos. Bolas, na Cidade de Panamá havia uma restaurante chamado Tinto de Verano! Até em Panamá sabem o que é.

Mas que eu volte lá ou não é totalmente irrelevante. Pior é este espírito de colonizador. Isto sim, é colonialismo.

22.7.18

A carne e o chili

O sacana do chili ficou podre de bom. Não vale a pena pôr a receita: é a de sempre, com duas particularidades: a carne e os chilies.

Uma vasta escolha de pimentos, carne excelente e tempo: parece que estou a falar de uma miúda de quem gosto, não é?

Resplandecências

A vermuteria La Rosa tem, sobre as outras vermuterias de Palma (pelo menos as que conheço) a vantagem de ter uma lista relativamente grande de vermutes - a qual inclui Noilly Pratt - e a desvantagem, quiçá relacionada, de estar sempre cheia. Passo à sua frente quase todos os dias. Hoje decidi-me e entrei - era cedo, estava vazia -.

Agora, enquanto o chili con carne coze a "fogo" lento, depois de ter ido a uma farmácia comprar material decente para fazer um penso no dedo (estava com meio metro de papel higiénico e cerca de dez pensos rápidos) voltei à La Rosa, beber não um Noilly Pratt que tenho em todo o lado mas um vermut del grifo con soda.

A casa está cheia e venho para a praça, linda e vazia. A Obra Social La Caixa anuncia uma exposição de Chirico, a temperatura está perfeita, Palma resplandece nas suas praças vazias e nesta luz de fim de dia, quase tão densa como a de Lisboa.

Eu resplandeço com ela, mas não é tão aparente.

Alarmes

As manhãs são alarmantes: a porta do frigorífico alarma-se (e -me) porque a deixo aberta; as placas de indução alarmam-se (ditto) porque levanto a frigideira dos ovos numa ou a cafeteira na outra (hoje saiu-se com um alarme novo: a panela estava descentrada!). O telefone alarma-se quando os ovos mal cozidos chegam aos três minutos.

Não há nada nesta cozinha que não se alarme mal me vê chegar.

Bicho-carpinteiro

Farto de ser feliz em Palma. Quero voltar a ser infeliz em Bocas del Toro, feliz em S. Luís, expectante em Salvador da Bahia, excitado em Cape Town, hiper-activo em Bujumbura, evacuado em Kindu, espantado e receptivo em Panamá, apaixonado em Paris, optimista no mundo todo.

[Adenda: a próxima etapa é Lanzarote. Não te queixes, homem. Não te impacientes].

Multi-tarefas

Versão masculina de Multi-tarefas: um gajo ser capaz de cozinhar, dobrar roupa e fazer um golpe profundo no indicador esquerdo ao mesmo tempo.

Sesta

Deixa ir. Deixa correr. Deixa o tempo escorrer-te pele abaixo como a gota de suor de ontem, ou a mão que tanto amaste anteontem. Dissolve-te lentamente no dia, no sono, no sonho. Não apresses nada, nem atrases.

21.7.18

Memórias velhas num café novo

Vim parar ao Novo Café Lisboa, em Santa Catalina. St. Cat para os íntimos. É uma zona da cidade que me interessa pouco. Com a possivel (enfim, comprovada) excepção do 7 Machos nada há nela de particularmente sedutor.

Desconheço como era o velho café Lisboa. O novo traz-me à memória os bares de putas do velho Cais do Sodré, parte do cheiro incluido. Falta-lhe a outra parte: a do cheiro a esperma, cigarros, suor e desejo. Este só tem o odor a mofo, móveis velhos e quebrados, fastio.

Está vazio, ainda é cedo. Espero que assim continue até me ir embora: cheio de putos e miúdas giras, dessas que trabalham nos mega-iates e pensam que St. Cat é um "pólo" perderá decerto o encanto que só a memória melancólica de um velho marinheiro solitário lhe encontra.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-07-2018

É sábado, andam os horários trocados. Eu não: nenhum dia da semana me dá a volta. Tanto faço de uma terça sábado como de uma quinta domingo, de um domingo sexta e por aí fora. Nunca (ou raramente) percebi quem se alegra à sexta ou entristece à segunda: ou se gosta do que se faz ou não se faz.

Tive um dia feliz: fui deixar a armadora ao aeroporto, fui a bordo, dei um passeio de bicicleta durante o qual conheci uma aldeia chamada S'Arracó, fui beber um copo com o I. a Peguera, comprei carne num dos melhores talhos da ilha, vim para casa escrever disparates. Daqui a pouco saio beber umas hierbas secas e lamentar estar reduzido a escrever disparates em vez de os fazer também.

........
Uma cidade que se conhece de bicicleta muda quando percorrida de carro. Não é a mesma cidade. Redescubro Palma ao volante do Seat Ibiza que volta e meia arranho na garagem e me cansa tanto ou mais do que a burra (mas infinitamente menos do que os autocarros de e para Puerto de Andratx).

M. (o senhor que me aluga o carro e vendeu o motor do barco) viu os arranhões e ficou-se nas tintas. M. (a armadora) comentou "se fosse uma empresa não ficaria tão indiferente". Não, sem dúvida.

Não faz mal. A verdade é que até agora só houve dois raspanços nas paredes da garagem, que é mais apertada do que os bolsos de um milionário e eu espero não haja mais. Não quero deitar o prédio abaixo.

........
Palma de Mallorca é uma senhora excessivamente bonita que sorri a todos mas não se dá au premier venu.

É impossível, fútil e infantil resistir-lhe: um homem não foge, nem de uma derrota anunciada.

Verão / (Tudo menos o Inverno)

Mergulha-se no Verão como numa piscina de mel (para um árabe), whisky (para um escocês) ou outra coisa qualquer para outro gajo qualquer. Eu mergulho no Verão ao contrário: deixo que seja ele a mergulhar em mim, sem quaiquer conotações de outra índole. Como se fosse eu a piscina do Verão.

Entra por todos os poros (lembram-se daquele poema do Charles Baudoin sobre a Primavera?):

Mais l'air du printemps est une chose souple et tendre.
Les pores s'ouvrent, tout l'espace entre
en nous, et nous nous répandons délicieusement en lui.

Pois eu sinto-me assim na Primavera e no Verão (e às vezes no Outono, mas isso é outra história).

São cebolas, senhora

Geometria da cebola: circular, concêntrica, lacrimogénea (refiro-me à cebola, não à respectiva geometria). Descascar uma cebola é uma tarefa maçadora (diria alguém proveniente da faixa alta da média burguesia). Há que resistir à tentação de tirar-lhe a primeira camada, indesculpável desperdício.

(Pode, claro, recorrer-se à memória de um vinho rosé da Provence chamado Pelure d'Oignon. Abafa as lágrimas e aligeira a tristeza. Mas não é a mesma coisa.)

Uma cebola deve descascar-se conscienciosa e metodicamente, incluindo as lágrimas. Abafá-las é batota.

(Como não havia Pelure d'Oignon no supermercado comprei um rosé local. Não corro portanto o risco de ser batoteiro).

Uma cebola deve fazer chorar no início e excitar as glândulas gustativas em seguida. Pode ver-se nesta sequência uma alegoria, se se quiser. Eu quero.

Círculos

Uma senhora polaca queixa-se num post do Facebook que a Polónia "está a andar para trás". Não percebi porquê: o post está em Polaco. Só compreendi a parte em português. A Polónia não respeita "a diferença" e por isso, na opinião da senhora, "recua".

Para recuar seria preciso que antes tivesse avançado, o que não é o caso. Nem da Polónia nem de mais ninguém. O progresso não é uma linha recta ao longo da qual se "avança". É um círculo que se percorre ora para um lado ora para outro.

20.7.18

A idade do interesse, o interesse da idade

As clientes do Moltabarra são mais interessantes do que as do Antiquari.

Pelo menos dez anos mais interessantes, em média.

Hors-jeu de position

Há pouco mencionei as minhas duas cervejas preferidas: Aguila, que um pequeno restaurante colombiano aqui em Palma tem em stock e Red Stripe, cerveja jamaicana que só não é melhor do que a Aguila por ser um milionésimo de miligrama mais pesada.

Os milhões de leitores atentos deste blog terão certamente franzido as sobrancelhas: "então e a Smithwicks?"

Meus caros: a Smithwicks está para as cervejas todas do mundo como a Virgem Maria para uma mulher a dias irlandesa (do tempo em que as havia). Não pode portanto integrar listas.

Cervejas e falhas do mercado

Todas as cidades do mundo deviam ter um restaurante colombiano como o Sabor Criollo, en Palma. Devia ser obrigatório. A ausência de um Sabor Criollo faz parte da lista das deficiências de mercado e merece ser corrigida pela mão protectora, carinhosa e leve do Estado.

Felizmente Palma tem o Sabor Criollo, cerveja Aguila e arepas con carne que roçam o sublime. Melhor ainda: fica a caminho de casa. Tudo isto sem ingerência do Estado.

(Agora preciso de encontrar um restaurante jamaicano que apresente Red Stripe e um bom Jerk à consideração).

19.7.18

Arte

A função da Arte é transformar coisas obscuras em evidências.

Salários, objectos e respectivas transformações

Às vezes acusam-me de não me saber vender, de trabalhar por salários inferiores aos que devia ter.

Estou-me um bocadinho nas tintas, confesso. Com a passagem do tempo aprendi que os bons salários se transformam frequentemente em muitos objectos e estes se desvanecem em muitos nadas.

Antes ir directamente ao fim.

Avenidas, vidas

Há em todas as vidas uma Avenida da Liberdade. Nalgumas ela é habitada; outras é nela que vivem.

Infelizmente, a maioria só a conhece de ouvir falar.

(Para a Ana V., com amizade e inveja.)

Percepções, ciganos e bicicletas roubadas

A história conta-se depressa, mas prefiro a versão lenta. (Como em quase tudo, troçarão decerto alguns, pobre de mim.) A minha bicicleta Órbita Estoril II era deixada no Club de Vela de Puerto Andratx todos os dias vai para mais de um mês sem cadeado. Recentemente houve uma feira, o porto encheu-se das respectivas animações e a bicicleta desapareceu.

Para mim não havia relação de causa a efeito: na minha mente simplex a bicicleta desapareceu porque estava sem cadeado, ou seja: devido à minha negligência. Andava há coisa de um mês a pensar que devia comprar um, mas o meu indefectível optimismo procura permanentemente uma oportunidade de ser derrotado. Não comprei e a oportunidade materializou-se.

A primeira coisa que me ocorreu - devo dizer que não fui o único - é que alguém pegou na burra para ir até ao barco e a tinha deixado num pontão. Essa intuição não foi partilhada nem pelos factos nem pela maioria dos funcionários da marina, desde o director aos marinheiros.

[Diversão: um desses marinheiros faz parte de um duo ao qual chamo Dupont e Dupond, porque andam sempre juntos e são ambos divertidíssimos. Um deles, não sei se o t se o d, disse-me "Foram os ciganos. E olha que são ciganos portugueses"].

Reacção unânime: foi "a ciganagem" (aspas porque cito); "o porto estava cheio de ciganos; o que esperavas?" (idem); "eram as festas do porto; essa gente..."

[Re-diversão: ao Dupon(d,t) respondi: "Roubar bicicletas é a nossa especialidade"]

Intuitivamente eu diria que sim, foi a ciganagem.  Estou-me nas tintas para os Mamadou Bas, Gorjões Henriques et al. As palavras servem para descrever a realidade, não a alteram.  Ou as percepções da realidade, o que vem a dar no mesmo.

[Hoje comprei outra Órbita Estoril II, um modelo mais recente e a meu ver não tão bom nem bonito como o que os ciganos me levaram. Sorte a deles. Agora tenho um cadeado.]

18.7.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-07-2018

Os dias passam demasiados e demasiado depressa: mais dias do que tempo. Este Diário de Bordos bem podia passar a semanário.

Não que tenha trabalhado muito: este compasso de espera para a decapagem das obras-vivas foi isso mesmo: uma pausa.

Mas uma embarcação é como a natureza: tem horror ao vazio. Se não se faz uma coisa fazem-se outras, que o futuro se não for feito é sofrido. Antes fazê-lo do que desfazer-nos ele a nós.

Agora casco nuzinho no gelcoat, resina encomendada, contra-placas para os pernos da quilha a caminho a máquina embala-se. Uma vez terminada a quilha começa a instalação do motor. Depois a electricidade e a electrónica, mastreação e panos: se os dias continuarem assim amanhã de manhã estou a caminho das Canárias com o P. como novo, mais novo do que quando saiu dos estaleiros Green Marine em oitenta e três.

O longo prazo é uma sucessão de curtos prazos, diziam nos anos oitenta os gurus da gestão. Pois eu penso o contrário: o presente é uma sucessão de futuros.

Dito de outra forma: o presente é lindo e o futuro mais ainda, porque é a soma destas belezas todas.

16.7.18

Definição

Uma insónia provocada por excesso de palavras ou de sesta não conta como insónia.

Relações lexicais

Declaro formalmente que a palavra mais bonita de todos os léxicos conhecidos e por conhecer é bourlingue. La bourlingue. É uma palavra francesa que se tivesse tradução se poderia traduzir por errância.

Felizmente não tem. Bourlinguer é infinitamente mais bonito do que errar, se bem estejam intimamente relacionados.

Taxonomia dilemática

Fica ainda por resolver o problema da mulher com quem se devia ter feito amor e não se fez: é mais fácil definir a segunda do que a primeira.

Água, azeite

Sou pela verdade. Isto é: sei que a mentira existe e às vezes é necessária, mas penso que deve estar reservada para aqueles momentos em que - por exemplo - precisamos de um copo de água, se não tivermos água morremos. Aí sim, podemos mentir. Sem isso - sem um risco de vida - a mentira é inadmissível.

O problema é que a verdade nos faz perder muitos copos de água. É um círculo. Um pêndulo: uma leva à outra, tal como a humidade e a luz levam ao arco-íris. Ser-se pela verdade é portanto encorajar a mentira? Não tão depressa: podemos aprender a viver sem água.

Refiro-me ao relvado

Um relvado no qual crescem embondeiros é uma contradição botânica?

Vejo-o todos os dias.

Paisagem, melancolia

As paisagens da melancolia são vastas: contempla-as devagar, como se fossem eternas.

Não são: nada dura para sempre. Nem a tristeza, nem o teu olhar.

13.7.18

Talvez: caos, entropia e vida

Um trajecto por Palma é caótico: depende demasiado das condições iniciais. O mais pequeno desvio do caminho leva-nos a milhas de para onde queríamos ir.

É uma das definições de caos: altera pouco que seja uma sequência e os resultados que obtens são totalmente diferentes dos esperados. Se na Baixa lisboeta te enganares numa rua viras na próxima e vais ter ao mesmo sítio. Se isso te acontecer em Palma só dás por ti atrás do sol posto.

Outra forma de identificar um sistema caótico: olhando para o resultado não consegues reproduzir o conjunto de situações que levaram a ele. Olhas para um empregado bancário, para um funcionário público e sabes o trajecto que fez: podes quase vê-lo a desenrolar-se à tua frente como um spaghetti a cair do garfo onde cuidadosamente o enrolaste.

(Talvez as cidades caóticas acolham com especial carinho as vidas caóticas.)

O caos tem um irmão geméo chamado entropia e um adversário, a neguentropia. A entropia aumenta o caos num sistema. A neguentropia diminui-o.

Quanto mais ordenada for uma vida menos entropia tem; quanto mais organizado for um sistema maior a sua neguentropia.

Paradoxalmente, a neguentropia é característica de um sistema aberto: a ordem precisa de energia exterior. A desordem consome mais energia do que a que gera.

Um sistema caótico consome energia e leva a resultados inesperados. Sem essa energia morre. Isto é, organiza-se.

É por isso que a liberdade é tão cara e tão cansativa, esgotante. Mas sem ela não há vida. 

(Post dedicado aos meus jovens amigos Leonor e Vasco B.)

12.7.18

Sonhos e incêndios

Hoje acordei com um sonho bonito: uma ruiva a fazer-me um broche matinal, impromptu. Allegro, por vezes staccato. Enfim, percebem a ideia: um sonho melo-erótico.

Era bonito porque sou completamente preto (gosto de dizer assim, completamente, em vez de muito, por exemplo) e aquela cabeleira ruiva ao acordar pareceu-me um incêndio: tinha o ventre em fogo.

O resto já está ardido, queimado. 

10.7.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-07-2018

Não é a primeira vez que termino uma relação profissional ao fim de muito pouco tempo. Esta durou dois dias. Não são eles, claro. Sou eu. E o P., que a partir de agora vai precisar de muita atenção e eu sou demasiado simples, troglodita, simplório para me dispersar. Ao contrário de uma mulher - ser autónomo, independente - uma embarcação requer uma atenção permanente, mesmo estando longe (o P. está a cerca de quinze milhas de Palma, o mesmo que de Lisboa a Cascais).
Isto é: não quero nem posso aqui desenvolver grandes teorias sobre a fidelidade, o poliamor (uma treta cuja utilidade me parece dispensável, como usar o amor aos animais para justificar o vegetarianismo ou teorias tântricas para o gozo sexual). O P. vai entrar numa fase do refit que não me apetece partilhar com outras embarcações.

Refit é uma palavra doce. Uso-a com certo deleite. Curiosamente, rejeito o seu equivalente - cirurgia plástica - numa senhora. Penso que as pessoas devem envelhecer com graça e naturalidade.

Um barco, ao contrário - sobretudo se for construído em sandwich de Kevlar / carbono e espuma de alta densidade, tiver sido desenhado por Hugh Welbourne e construído nos estaleiros Green Marine - não deve envelhecer. Deve rejuvenescer.

Nunca mais ganhará uma Fastnet, claro. Mal estaria o desporto da vela se isso fosse possível. Mas merece uma, duas, três operações plásticas, da mesma forma que um monumento deve ser mantido e uma mulher amada: com carinho, devoção e uma entrega total.

Por isso me despedi tão depressa do meu novo emprego.

Às vezes a liberdade parece-se tanto com uma prisão, não é?

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Como sempre, alguma coisa boa ficou. Neste caso, a carta de condução. Se a burocracia portuguesa não implicar muito em breve terei a minha carta na mão. Por agora já posso conduzir, com a carta internacional.

Na cidade ando de bicicleta - não há melhor forma de locomoção urbana -. Para ir e vir de bordo o carro é insubstituível. Os transportes públicos inter-urbanos nesta ilha são uma porcaria. Através do M., O senhor a quem comprei o motor do P., encontrei um carro mais barato por dia do que uma viagem de ida e volta de Palma para Puerto de Andratx (enfim, isto não é totalmente verdade. O carro tem custos extras que a viagem de autocarro não tem).

A verdade é que graças ao automóvel redescubro a liberdade que lhe vem associada.

De manhã saio de casa e vou de bicicleta até à garagem, que fica - diz-me o Google - a dois quilómetros. Encadeio-a a uma árvore e ali a reencontro à tarde.

Há quem chame a isto o melhor de dois mundos. Não é totalmente falso, mas eu prefiro outra designação: sorte.

8.7.18

Cidades, tempo

As cidades são tão feitas de futuro como de passados, de sonhos como de memórias. O vento frio que hoje encana pelos prédios amanhã será quente. A mulher que ontem te acolheu dir-te-á um dia que é tempo de ires.

As cidades têm esta magnífica capacidade de ser hoje o contrário de ontem e amanhã o mesmo que antes de ontem.

Teologia matinal

Uma das vantagens das religiões organizadas sobre esta espécie de politeísmo sequencial que hoje vivemos é a estabilidade. O Deus e o Diabo dos católicos são os mesmos há dois mil anos.

No século XIX o Ocidente resolveu deixar de acreditar em Deus (e muito bem, de resto). Infelizmente ninguém previu que em vez de Deus (e correspondente diabo) as pessoas - incapazes de viver sem fé, o ateísmo exige um certo esforço - começariam a abraçar uma série de religiões temporárias, umas a seguir às outras. O comunismo terá sido a pior, mais mortífera dessas religiões. A seguir veio o ambientalismo mai-los seus ritos e demónios. Agora vêm os animais.

Por mim tudo bem: idolatrem quem quiserem, demonizem o que lhes apetecer. Se o demónio da semana são as palhinhas, parem de as usar; desde que não obriguem os outros tudo bem. Se ir para uma arena é pecado, não pequem. Levem os cãezinhos ao cabeleireiro canino e os gatos ao veterinário para ser operados às cataratas.

Acreditem no que vos apetecer, quando vos apetecer. Mas aprendam uma coisa que a santa madre igreja aprendeu há duzentos anos: a vossa salvação não depende da minha. Se eu viver em pecado vocês não deixarão de ir para o vosso céu. Se eu não separar a merda do lixo o planeta sobrevive, se acabarem com as touradas a crueldade e a violência não desaparecerão. Vão para os diabos que vos carreguem. Se há coisa que não vos falta é demónios.

Infelizmente estas religiões são demasiado recentes para se cansarem do proselitismo. Esse é um privilégio reservado às velhas crenças, que já viram muito, quase tudo.

7.7.18

Jantar improvisado - Entrecosto em gengibre e cerveja

A ver no que isto desagua: porco, gengibre, sumo de limão, cerveja (a Aurum, cujo consumo tenho de refrear por questões de números), molho de soja, montes de pimenta negra, um bocadinho de curcuma e outro de pimentão picante.

Está de molho até a fome apertar, se apertar. Se não for hoje é amanhã. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-07-2018

AVURNAV (a ver se desta me fica): o Antiquari faz os piores Mojitos do universo e arredores.

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É curioso: acordei a pensar nas vantagens e desvantagens comparativas das mulheres feias que sabem que são feias, bonitas que se sabem bonitas e nas diferentes combinações e estados intermédios. Por exemplo: uma mulher bonita que se crê feia, o oposto e por aí fora. Cheguei ao esboço do princípio de uma conclusão, mas ainda esta demasiado complexa para ser exposta aqui; tem de passar pelo crivo da simplificadora. O Don Vivo - coitado - não é um manual de estética. É um repositório desajeitado da sombra dos dias, espuma das noites e - vejo agora - ideias confusas da madrugada.

Tudo isto a propósito do Mojito do Antiquari: um dos meus bares favoritos do mundo (ou seja: um dos melhores bares do mundo, deixemos o relativismo no caixote do lixo de onde nunca devia ter saído) não sabe fazer um cocktail relativamente simples. Imaginemos que o Antiquari é uma mulher bonita: a que casa deste complicadíssimo xadrez o levaria um Mojito de merda? Excesso de confiança das mulheres bonitas que confundem beleza e qualidade? Charme manipulador das mulheres bonitas que não tentam esconder os defeitos com a beldade - pelo contrário, usam-nos para a realçar -?

Não sei. É tarde, vou para casa fazer o jantar e lavar roupa. Pode ser que amanhã acorde com uma grelha de leitura deste importante problema, no cruzamento da estética e da consciência, psico-estética por assim dizer. Auto-epistemologia estética; poderia quase esticar-se à hermenêutica da beleza: como interpretar a beleza - ou a fealdade - que a lotaria genética nos reservou? A Bíblia está cheia de mulheres bonitas e se formos a ver o Céu e o Inferno devem ter uma quota igual delas. E de feias também, aliás: devem estar igualmente repartidas pelos escaninhos da vida depois da vida na qual os crentes crêem. Talvez.

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O refit do P. desemperrou. Terça-feira que vem vai ser decapado, final, final, final, finalmente.

Dizem-me que o homem que vai fazer o serviço é o mais perfeito decapador da ilha, um artista do jacto de areia: a ser verdade o P. vai ficar com a pele de uma mulher bonita. E eu orgulhoso como se fosse minha namorada (e uma pessoa decente, que a beleza só não chega).

3.7.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-07-2018

A ideia de que não há má cerveja a vinte cêntimos a lata é defensável. Isto é, discutível: o que não se pode defender não se pode discutir e muito menos atacar. Impõe-se portanto uma abordagem empírica da questão.

A única lata de cerveja a esse preco no supermercado Eroski chama-se Aurum, coisa que por si só me faria desconfiar. As únicas pedantices que suporto são as minhas, as dos amigos próximos, as das pessoas a quem reconheço o direito - ou o dever - de ser pedantes e mais umas poucas. Cervejas não fazem parte desse grupo.

Reconheço com agrado que a cerveja Aurum passou o teste. Não merece latinices no nome, mas pode ser vendida a vinte cêntimos sem desmerecer. Hoje bebi uma lata e usei outra para cozinhar. A carne (um primo muito afastado do chili com carne) ficou bastante boa, sem dúvida por causa da cerveja Aurum. Pelo menos parcialmente.

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Habitei hoje pela primeira vez o apartamento ao lado da Plaza Mayor. Isto é: tomei banho, dormi, cozinhei, ouvi música, olhei pela janela e sentei-me no sofá da sala.

Conduzia na autoestrada e pensava na continuidade.

Parece que tudo vem a seguir a tudo como carruagens num comboio, apesar de ter passado quase quinze anos sem conduzir - parar nos sinais encarnados, não virar onde me dá na gana, não travar de repente só porque vem um carro de uma rua à esquerda ou à direita, ver (e respeitar) os traços, não entrar numa rua de sentido proibido -. Tudo isso flui com pouquíssimos sobressaltos, como se quinze anos (salvo raríssimas excepções) fossem quinze minutos sem excepções nenhumas (enfim, poucas). Como ter uma casa minha, só para mim, sem ter de me preocupar com a água no chão da casa de banho ou se posso sair nu do quarto: oito anos, exceptuando os intervalos na Martinique e em Antigua.

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O Antiquari é o meu bar favorito. É uma mistura de Marchand de Sable, Café Tati e um café qualquer cujas empregadas sejam lésbicas, as clientes bonitas, a música porreira, a decoração soberba porque orgânica e um gajo se sinta bem mal entra e tenha dificuldade em sair porque lá fora estará pior.

Se tivesse de escolher um só dos ingredientes seria o Marchand, sem dúvida, mais dois ou três cafés de Carouge dos anos oitenta.

Daqui penso na boîte do maricas em Lubumbashi. Gosto de pessoas com tomates, sejam homens, mulheres ou uma mistura dos dois. Daqui penso no futuro.

"Não tens medo?" perguntaram-me um dia. Não, não tenho. Há quinze dias tinha menos quinze anos e ontem menos trinta.

1.7.18

Troca

Pouco a pouco, gole a gole a vodka substitui o sangue. Vida por vida.

Viagem

Lisboa: aterramos pelas bordinhas, foda matinal de actriz amadora plena de emoções. Sublime.

Palma: aterramos e os portugueses batem palmas. Comovente.

Recomendações médicas

Estou a precisar de um bocadinho de mar. Foi-me recomendado pelo médico.

Enfim, pelo psiquiatra.

Taylor & rigidezes

Já alguém tentou escrever (ou ler) e esvaziar uma garrafa de vodka enquanto ouve Cecil Taylor? Impossível. O homem parece um ciclone: só deixa de pé aquela parte de nós que se molda à vida. Garrafas, livros ou canetas são demasiado rigídos.

[Isto esquecendo de mencionar que "Cecil Taylor Unit" é provavelmente o nome de uma banda de jazz mais bonito que jamais existiu.]

Histórias curtas

Coitado do António anda desesperado: se promete às mulheres um coração elas chamam-lhe tolo; se lhes oferece mãos "sem coração atrás" chamam-lhe bruto. Ando cheio de pena do rapaz, coitado e disse-lhe:

- E que tal um pontapé no cu?

Mas ele não percebeu, pensou que era ao meu que me referia e levou a coisa à letra. Não é de certeza amanhã que me apanham a ajudar o Toino outra vez; seja quem for, de resto: isto de mãos e corações mais vale deixar às manicures. Percebem do assunto como ninguém, eu incluído.

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Vivi dois anos com uma mulher que se cagava cada vez que tinha um orgasmo. A minha namorada de agora não acredita e diz que me vai deixar. Acha que ser mal-fodida é uma merda. Eu respondo-lhe que para mim ser bem-fodida é que é uma grande merda.

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Uma vez fui a uma puta e vim-me mal pus a pila lá dentro. Ela perguntou-me:

- Já?
- Sim. És demasiado bonita e estava com medo de começar a gostar de ti.

Infelizmente a mulher era feia como os trovões e sabia-o. Deu-me um pontapé nos tomates e deixou-me no quarto aos urros, agarrado a eles.

- Para a próxima escolhe uma mais feia, se encontrares.

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Uma das vantagens de se foder a bordo de uma embarcação de vela é que podemos deixar a parte física ao mar. Nós ficamos só com o sentimento.

De repente, um de cada vez

Se de repente nos déssemos a conhecer seríamos uma decepção um para o outro, eu sei. Ainda bem. De repente, o sempre é assustador. Deve ser construído degrau a degrau, passo a passo, dia a dia, minuto a minuto, dedo a dedo, medo a medo, tentativa a tentativa.

Falhanço a falhanço, um de cada vez.

O preço do bilhete

Gostar de animais tornou-se uma espécie de bilhete de entrada para a humanidade. Qualquer dia o preço vai aumentar e para se ser humano será preciso ser-se vegetariano. A seguir vegan.

É uma injustiça a imbecilidade nunca ter sido considerada.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2018

Ando com vontades de México e vim jantar à Cantina de Frida. A cozinha mexicana não se exportava muito bem, até descobrir este (os Estados Unidos não contam como exportação para o México).

Penso no Pistola Y Corazón, coitado; ou no Clandestino, coitado de mim; ou numa coisa inominável do Cais do Sodré, coitada da cozinha mexicana. Depois lembro-me: não estou em Lisboa. Estou em Palma, onde ontem comi nachos no 7 Machos e hoje me alambuzei com Margaritas quase tão boas como as de Vallarta (que Deus as abençoe) e nachos e quesadillas. Ainda não é isto, mas para ser isto tenho de voltar ao México (e não ter de comer tacos a um dólar).

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As feministas lutam exactamente por quê, depois de Margaret Tatcher, Golda Meir, Angela Merkel, Marguerite Yourcenar, Hannah Arendt, Sapho, Indira Gandhi, Hildegarde von Bingen, Teresa d'Ávila e mais um milhão de outras?