30.6.22

Água

Hoje bebi água.  Bastante refrescante. Experiência a repetir, sem dúvida.

Pequena nota à parte

Não fora a péssima relação que tenho com o dinheiro - não chega sequer a ser uma relação, é mais uma ausência de relação, um desinteresse total - e (agora) as maleitas deste corpo ingrato e estúpido, cheiram a vingança e ele não tem nada de que se vingar, a verdade é que não me posso queixar. Tenho a vida que sempre quis ter. É inegável que ignorava o elevado preço de ser livre; mas é ainda mais verdade que mesmo sabendo não teria escolhido outra.

29.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-06-2022

Bom. Isto foi assim: chegámos ontem pouco antes das dez da noite. As lanchas a motor são cansativas e chatas, sobretudo estas pequenas por causa do barulho. Fomos jantar à Cuadra, comer um gelado ao Claudio, beber um copo ao Antiquari. Os meus viacrucis têm pouco de dolorosos e gosto de os partilhar. A. aceitou com entusiasmo e apreciou a picanha da Cuadra. Fiquei a saber de onde vem o nome: os bois eram picados naquela zona. Isto é o que o Dani me disse, não sei se é verdade se não e pouco me interessa.

Hoje vim petiscar ao Minyones, outra das minhas casas aqui em Palma. Tenho muitas, graças a Deus (ou a quem O substitui quando fala com ateus). O almoço foi no Cisco, no mercat de l'Olivar. Esta minha vida tem algumas desvantagens, é certo. Mas se as pessoas sonhassem o bom que é ser capaz de atravessar bonanças e tempestades, viagens e escalas sem duração pré-definida, marés altas e marés baixas, dias de chuva e dias de seca...  se as pessoas soubessem o que é bom não ter uma casa mas ter vinte... não ter carro mas ter duas ou três bicicletas...

Enfim, pouco importa. Palma recebe-me de novo, braços abertos e sorriso na cara. Eu mergulho, de cabeça. Fomos feitos para nos entender, esta cidade e eu.

Não é a única, mas pouco importa.

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O S. R. está a ser tratado, astiqué. Os clientes cheguam sexta-feira e quero-o a brilhar. Já eu preferiria ver-me deitado agora mesmo, a dormir.

27.6.22

Breve tratado da solidão

É inegável que fui eu quem escolheu esta solidão. Mas isso não a torna mais fácil de suportar. Ainda menos quando não posso sequer estar sozinho.

Na verdade,  há solidão e solidões: as que escolhemos, as que não escolhemos, as que são leves e as outras. Destas (as pesadas), as piores são aquelas em que não se está sozinho com alguém que não se escolheu para estar só. 

A solidão é como o vinho tinto: mais vale pagar um bocadinho mais para não se ficar com dores de cabeça depois e ser boa durante.

26.6.22

Diário de Bordos - Santa Pola, Comunidad Valenciana, Espanha, 25 & 26-06-2022

Os milagres pagam-se caro. Quanto maiores ou mais inesperados são mais se fazem pagar. O marinheiro prudente (isto é simultaneamente um oxímoro e uma ironia) tem com o dinheiro a relação que a Lua tem com as marés: ora o atrai ora o repele. São é mais irregulares,  as marés financeiras do marinheiro. Por isso - também por isso - ele desconfia dos milagres.

Os quais, obra quase sempre de um mafarrico ou de um deus travestido, inventam outras formas de ser pagos. O de hoje - estou a quinze milhas (três quartos de hora) do porto onde vão instalar o piloto, ou seja: um dia e meio mais cedo do que o previsto - faz-se pagar com uma dor nas costas que só não me impede de respirar porque sou teimoso. De resto, tudo o que implique um movimento, mínimo que seja, está-me vedado. Ou pelo menos implica dores atrozes nas lombares. 

Fui à farmácia comprar um analgésico. Aparentemente, o uso do amuleto facial «nos estabelecimentos de saúde» continua a ser obrigatório, o que me valeu uma breve troca de palavras com a farmacêutica e que ela não considerasse sequer a possibilidade de me dar qualquer coisa que necessitasse de receita médica (o que me faz sentir um bocadinho estúpido, pois tenho um médico a bordo. Está é reformado).

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Felizmente o restaurante que fica mesmo à saída do pontão é bastante bom. Foi lá que almoçámos e jantámos. Ir mais longe teria sido um sacrifício absurdo: nem o melhor restaurante do mundo me teria feito andar mais um metro do queno estritamente necessário.

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Pedro Sanchéz aprovou agora um decreto que começa com «... a fim de paliar às consequências da guerra na Ucrânia» (a citação é de memória). Trata-se de distribuir apoios por causa da inflacção. Não somos o único país com um mentiroso patológico no governo.

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As duas ou três ruas de Santa Pola que vi até agora não são entusiasmantes. Prédios modernos, traçados rectilíneos. Vale a simpatia das pessoas - comparadas com os maiorquinos parecem uma espécie diferente - e não precisar de andar por elas (as ruas, quero dizer).

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Escrevo num café perto da marina, o único aberto a esta hora. A televisão está aos berros. Não há pior maneira de começar o dia: lombalgias, televisão aos gritos e mentiras. Ainda por cima a porcaria do café está cheia, não posso sequer sonhar em recorrer ao método habitual: pedir para baixar o volume de som.

Adenda: Hallelujah! Não foi preciso pedir. O empregado chegou, não sei se de motu proprio se por pedido de terceiro, à conclusão de que aquilo estava realmente insuportável. O café esvaziou-se e o som sobressaía ainda mais.

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Uma coisa que já tinha reparado ontem: aqui a única língua que se ouve na rua é espanhol (e por vezes valenciano, uma variante do catalão). Os menus não têm quarenta e duas línguas e salvo raras excepções as pessoas dirigem-se a mim em espanhol.  Os restaurantes são baratos.

Explicação: há pouquíssimos hotéis em Santa Pola. A maioria dos clientes das inúmeras empresas de day charter, motas de água, foras-de-borda «sem carta» são pessoas que ou têm casa aqui ou se juntam para alugar uma para as férias. 

24.6.22

Coisas simples

Daqui a uma hora faço rumo ao Cabo de Palos, esperando que o vento me force a ir para Cartagena e ao mesmo tempo serei o homem mais feliz do mundo se conseguir chegar anda hoje a Torrevieja ou algo ali perto.

Respeito, respeitinho

Se há um discurso que me irrita é o do "respeito". Temos de respeitar o outro, temos de respeitar os sentimentos e ou as ideias e ou as manias todas, sejam elas quais forem, do outro.

E se o outro for o Estaline, o Pol Pot ou o Hitler, também tenho de o respeitar?

Não, não tenho. Então onde se põe a linha? A linha passa onde eu quero que ela passe. De um lado as pessoas, ideias e sentimentos que me parecem respeitáveis. Do outro, os que não merecem respeito nenhum.

Como a linha é muito grossa, tem espaço para acomodar alguns assom-assim.

Diário de Bordos - Aguadulce, Andaluzia, Espanha, 24-06-2022

A razão pela qual um marinheiro digno desse nome não acredita em milagres é que eles existem. Os milagres são como as bruxas, que em galego se chamam meigas: que los hay los hay. Tudo isto para dizer que estou sessenta milhas mais longe do que pensava estar, porque os milagres se dividem em duas categorias: depois de ler as previsões meteorológicas e depois de as experimentar.  Visivelmente o tempo não leu as previsões e não sabia o que fazer. Na dúvida, baixou os braços.

Amanhã vai ser preciso outro: o objectivo é conseguir passar o cabo de Palos, sabendo que não vamos conseguir passá-lo e que muito provavelmente vamos ter de passar um ou dois dias em Cartagena. Espero sinceramente que desta vez o tempo leia as previsões e me force a ficar em Cartagena, um dos meus poisos favoritos nestas bandas. Se não, lá passarei o célebre cabo, outro milagre.

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A minha trotineta porta-se bastante bem. A ver como se portará amanhã. Faz barulho como um comboio de transporte de bisontes vivos, mas aguenta bem o mar - admitidamente hoje fraquito - e tem tudo o que precisa de ter, não tendo nada do que não precisa. Avança a quase vinte nós de média, mas cheira-me que amanhã vai adoptar um passo mais lento. Consome cinquenta litros à hora, o que faz dois litros e meio por milha. Trezentos e setenta metros por euro.  A minha bicicleta é mais barata. Infelizmente não anda no mar.

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A hermenêutica dos milagres tem que se lhe diga.

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Não é só a dos milagres, verdade seja dita. 

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A razão pela qual ninguém consegue perceber um marinheiro é que ele tão pouco é capaz de perceber ninguém que não o seja. Somos o povo eleito da humanidade. Resta saber quem nos elegeu - se Deus, se o Diabo, se uma mistura dos dois.

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Se por acaso algum dos meus leitores passar por Aguadulce: La Cantina del Marinero, na marina. É um erro confessar isto, mas é para ir a bares / cafés / restaurantes como este que nós navegamos. De bar em bar com o mar pelo meio.

A conta não incluía metade do que nós comemos e bebemos (enfim, bebemos). Avisei a senhora e ela responde-me: "a conta é essa e é isso que tens de pagar." Acresce que tudo o que comemos e bebemos estava magnifico. Como toda a gente,  os misantropos enganam-se. Resta saber se mais se menos do que "toda a gente".

23.6.22

Diário de Bordos - Puerto Banús, Andaluzia, Espanha, 23-06-2022 / II

Gosto de pequenos-almoços semi-vegan: sumo de laranja e café de um lado, ovos e bacon do outro. Não há, aliás, melhor cheiro ao começo do dia do que a mistura do do café a fazer com o do bacon a fritar. (Pelo menos para um solteiro. Um tipo casado talvez encontre outros.)

Hoje o meu foi assim, num sitio cujo nome não retive  infelizmente: é um dos raros cafés/ restaurantes aqui abertos antes das nove - aqui sendo Marbella. Em Banús não há um único. 

A clientela era a desses lugares em qualquer parte do mundo: policias, empregados de bombas de gasolina, taxistas a acabar o turno da noite, os mesmos mas outros a começar o dia. O restaurante é baratíssimo (mesmo em termos absolutos) e eu regalei-me tamto com a comida como com as pessoas que me rodeavam. Na marina não se vê gente assim.

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Por falar de gente assim: ontem o R., que sempre trabalhou no segmento gama alta da indústria automóvel e é daqui contou-me que acontece muitas vezes grupos de senhoras que ele designou pudicamente por "profissionais" juntarem-se três ou quatro e virem para Banús à caça de donos de Ferraris et simili. Por um lado. Por outro lado, três ou quatro alemães ou ingleses tesos juntam-se para alugar um Ferrari e vêm para aqui para o engate.

O resto é fácil de adivinhar.

Chama-se a isto um duplo engano. Ou será antes engano ao quadrado?

Diário de Bordos - Puerto Banús, Andaluzia, Espanha, 23-06-2022

Apesar deste estúpido poniente a estadia em Puerto Banús não se vai prolongar. Amanhã de manhã cedo vou a um estaleiro que fica a dez milhas daqui fazer uma limpeza aos fundos; à tarde chega o A., a quem pedi ajuda porque sem piloto não posso ir sozinho - para grande pena minha, mas isso... Com todas as minhas penas construir-se-ia uma passarola dez vezes maior do que a do bom padre Gusmão, portanto mais vale não lhes ligar muito. Vamos muito provavelmente navegar de noite para aproveitar as acalmias da besta. Como tantas vezes fazíamos quando subíamos a costa portuguesa: um opíparo jantar, um bom whisky ou dois e ala que se faz tarde. Só que hoje já não bebo antes de ir para o mar, isto de um gajo crescer é uma porra que aconselho todos os jovens a evitar. A vida tem muito menos piada - e muito menos a preservar, pelo que tantos cuidados parecem à primeira vista incompreensíveis.

Ao coro de vozes que me manda estar calado junta-se agora a do meu neto Leonardo. Ouve-se por cima de todas as outras, apesar dos seus escassos três meses. Tenho qualquer coisa que preservar, sim. De maneira que os sakes que agora bebo devem essa honra a só sair amanhã de manhã e não daqui a pouco.

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Sakes esses bebidos no restaurante Sakura, um dos melhores japoneses que conheço. Acontece de vez em quando: num porto por vezes sou invadido pela sombra do Rotschild e faço um disparate alimentar. Tão disparate que não posso repercuti-lo todo no pobre armador (para quem não tenha percebido: isto é uma ironia. Neste caso, o senhor é podre de rico. Podre de pobre sou eu). Ao meio dia entrei num japonês, provável (mas de certeza inconscientemente) atraído pelo nome - Kona (Kóná, para ser preciso) - e só quando já estava sentado e de computador aberto em cima da mesa dei pelos preços. Comi o menos que me foi possível e mesmo assim a refeição foi caríssima. Tão pouco foi o que me foi possível que saí dali e tive de ir ao Casa Blanca - uma sólida e respeitável cervejaria tradicional - comer mais qualquer coisa. Pois agora venho ao Sakura - o restaurante que já duas pessoas me tinham sugerido - e desmanchei-me de novo nesta mistura de fome e vontade de comer que faria o tio Benjamim franzir o sobrolho. Ainda não sei quanto vou pagar, mas vou-me preparando à força de sake, apesar de este ser exponencialmente mais barato do que o outro.

Seja como for: aconselho os dois restaurantes mencionados neste post. Seja como for: tenho uma atenuante, uma espécie de tsunami afectivo (o jogo de palavras não é gratuito). Seja como for: que se lixe. O armador paga uma parte, eu pago outra e não se fala mais nisso.

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Seja como for: tento não pensar na seca que é ter de ir a Alicante por causa da merda do piloto, pensando em vez disso que pela primeira vez em muito tempo vou navegar a motor sem constrangimentos de velocidade. Enquanto houver uma gota de sake no fundo da jarra ela não está vazia. Daqui a Alicante são duzentas e setenta milhas: treze ou catorze horas de navegação. Com um pouco de sorte faço isso em duas noites. Ou seja, lá para vinte e seis ou vinte sete estarei em Alicante e dali para a frente já poderei ir sozinho. Paragem em Ibiza para bancas e o mais tardar a trinta estarei em Palma. Com sorte, vinte e nove.

Não, hoje não há mais sake. Ainda acabas a acreditar no Pai Natal. A esperança e os ovos de serpente têm uma coisa em comum: há que matá-los no ninho. E a esta hora é tarde para tsunamis, sejam eles de que tipo forem.

Concentremo-nos no jantar de hoje e deixemo-nos de considerações espúrias. Daqui a pouco chega a conta, o Rotschild sai de fininho e cá fico, sozinho e entregue aos bichos. Preciso de ir para o mar, onde não há nada nem ninguém se não eu e um bote a vinte nós.

[PS: Sonha.

PPS: Um marinheiro é um gajo que sabe que nada vai correr como ele quer, que não acredita em milagres e apesar disso acredita que as previsões meteorológicas por vezes se enganam, que o poniente não dura sempre e que bastantes probabilidades de no dia tal estar no porto tal, como inicialmente previsto. Somos como aquelas longas varas dos funâmbulos - mas sem ninguém no meio a segurá-la.

PPPS - É que uma coisa é não acreditar em milagres e outra, completamente diferente, é não acreditar em milagres. Não se deve confundi-las uma com a outra.] 

22.6.22

Diário de Bordos - Puerto Banús, Andaluzia, Espanha, 22-06-2022

 A marina de Puerto Banús é daquelas que evito desde que pela primeira vez aqui pus os pés. lá para os idos de setenta e quatro ou cinco. Naquela altura ainda estava em construção, passei aqui de raspão quase de madrugada, paguei um café e uma torrada a um preço que me fez sobressaltar e ficou gravado para sempre. Hoje está pronta e continuo a evitá-la: a música nos cafés é abominável, os preços disparatados - até para quem acaba de chegar de Genebra - as lojas do mais pedante e nulo que se pode encontrar. O parque automóvel não me entusiasma por aí além - Ferrari, Jaguar, Bentley e Range Rover, Lexus, Porsche e Mercedes. Estranhamente não há mega-iates - nem tudo pode ser mau: os barcos maiores oscilam entre os setenta e os noventa pés. É uma marina para quem prefere ser visto de carro. (Não ha espaço nem fundos para maiores do que isso.)

Hoje, porém, encontrei mais uma razão para continuar a evitar pôr aqui os pés: os duches são do pior que já vi. Horríveis. Assim que de repente me lembre não me vem à memória marina nenhuma onde os duches sejam a) tão maus e b) tão desfasados do resto. De certa forma compreende-se: quem pode ir de Ferrari para casa não precisa de duches em condições. 

Isto tudo dito: se tudo correr como eu quero, esta não será nem de longe a última vez que virei aqui. Espero que haja muitas mais, na verdade: quero introduzir mais motor no meu mix de navegações e este é o local ideal para isso.

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Um obrigado especial à tripulação da easyJet que se está a marimbar na obrigação do porte de focinheira. No aeroporto de Genebra gastei dois euros e qualquer coisa a comprar aquelas coisas - para nada. Nem da embalagem as tirei. Nunca gastei dinheiro para nada com tanto gosto. Venham mais cinco, que eu pago já.

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Enchi o papo com o meu neto, mas isto é como o dinheiro para um rico ou a droga para um tóxico-dependente: quanto mais se tem mais quer. Já estou cheio de saudades e ainda ontem estive com ele.

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Está de poniente e não dá nem para pensar em sair. A última vez que esperei pelo fim de um passei uma semana em La Linea. Espero vivamente que este demore menos. Dia um de Julho tenho de estar em Palma (o que eu gosto destes «tenho de» não tem descrição. Tudo o que me faz rir é bom). O bote é pequeno, um trinta e seis pés e com os vinte vinte e cinco nós de vento que estão ali fora, só me resta praguejar contra estes cafés de merda, estas lojas bling bling e contra o facto de que afinal não vou assar quatro dias sozinho: o barco não tem o piloto instalado e até Alicante tenho de levar um tripulante. Vai ser o A., que veio comigo das BVI, é adorável e sabe fazer leme. Espero.

"Não avançamos para a verdade. Mudamos de dogma, é tudo"

"Não avançamos para a verdade. Mudamos de dogma, é tudo" é uma das grandes verdades sobre as quais alicerço a minha mundividência. 

É o dogma que une as sociedades, não é a verdade. A verdade é disruptiva, baseia-se na dúvida. O poder unificador e mobilizador da dúvida é nulo. O dogma tem uma função social importante. Não participar nele leva inevitavelmente à exclusão, mais ou menos violenta, mais ou menos intensa consoante por quem ou por quê se foi excluído. Não é por ser verdade que um lugar-comum é comum. É porque ele tece ligações que a verdade - sempre baseada no cepticismo - não conseguiria tecer.

Uma verdade começa sempre com uma pergunta. "A Terra é plana? Não será redonda? Como vou provar que a Terra é redonda?" Num diálogo, essas perguntas transformam-se em afirmações, tanto por «culpa» do receptor como do receptor da mensagem. «Culpa» vai entre aspas: não há culpa, aqui. Quando muito, responsabilidade. Ninguém segue um chefe que se pergunta.

(Cont.)

19.6.22

Constatação *

A entropia na solidão leva ao seu aumento e não à sua diminuição (dela, solidão). A solidão aumenta. Para a reduzir, há que fazer esforços.

* - "Constatação" já ganhou direito de cidadania. É uma palavra portuguesa.

Protesto contra o Facebook

 O Facebook baniu-me, uma vez mais. Restrições: dois dias impedido de postar e de comentar, quatro dias impedido de fazer parte de grupos (não sei bem o que isto é, mas pouco importa), posts deslocados «para baixo» (aspas porque cito) durante vinte e oito dias. Tudo isto porque usei a palavra «paneleirices». Não sei se foi o uso da palavra se o facto de a ter associado a «alterações climáticas». (Vejo agora que em 21 de Maio já tinha os posts «movidos para baixo» durante 90 dias. Como a 17 de Junho ainda estamos longe desses noventa dias, não sei onde é que eles os porão - não é jogo de palavras. Imagino que haja um porão no Facebook com vários níveis, como nos porões dos navios e os meus posts vão lá mais para o fundo, onde se põe a carga mais pesada ou que deve ser descarregada em último.

Seja pelo que for, isto é revoltante. Naturalmente, aceito que sendo o Facebook uma empresa privada tem o direito de decidir o que se pode e não pode dizer. Se eu for para uma mesquita gritar «Abaixo o Corão» é pouco provável que saia dela vivo ou pelo menos em bom estado. Já o mesmo não se pode dizer se em vez da mesquita para exprimir o meu ateísmo eu escolher uma Igreja - mas serei provavelmente convidado a sair. Se por acaso e por qualquer razão entrar em minha casa um senhor a dizer que Staline foi uma bênção para a Rússia, que os pretos ou as mulheres bonitas são estúpidos eu contradi-lo-ei; se ele insistir, mudarei de conversa. Gosto de discutir ideias, mas penso que quando se discutem ideias se deve partir de factos verificáveis (atenção: isto é um pleonasmo). 

Porém, o Facebook devia ter afixada uma lista das palavras que não se podem usar, uma espécie de Index Verba Prohibitorum. Assim não haveria surpresas. Quando muito, desobediências.

Isto dito, talvez não seja um exercício fútil pensar numa coisa: é óbvio que este clima de intolerância, de censura, de «inclusão», de «ofensa» permanente que estamos a viver não foi criado pelo FB. Este limita-se a respirar o ar do tempo, não o fabrica. Contudo, ao participar nele com tanto zelo ajuda a criar um mundo binário - de um lado os wokes, do outro os rebeldes, os independentes, solitários que se vêem assim excluídos da praça pública (não tenhamos ilusões - o FB é simultaneamente a praça pública, a taberna da esquina, o Speaker's Corner e a página de opinião dos jornais. Se estivesse atento à suas «responsabilidades sociais» o FB lutaria contra a censura e contra a intolerância, não as fomentaria).

Há uma doce ironia neste castigo - deve haver poucas pessoas por esse mundo fora a quem a sexualidade de cada um seja mais indiferente do que a mim. Cada um leva onde quer e dá onde pode, é a elegante e sofisticada máxima que há já muitos anos cunhei para exprimir a minha posição a esse respeito. Os únicos seres vivos que excluo deste «cada um» são as crianças e - em alguns casos - os deficientes mentais. De resto, acho que os outros não têm de se intrometer no que cada um faz de si e de quem quer fazê-lo consigo. É, ou devia ser, território proibido, fechado a «pessoas não autorizadas». O meu uso do termo «paneleirice» não tem nada a ver com o facto de eu pensar que só os maricas acreditam nas «alterações climáticas». Paneleirice, mariquice têm outros sentidos para além do primeiro (que já «panasquice» por exemplo não tem). Outras - ouso dizê-lo - denotações. Limitar a quantidade de palavras que podemos usar é mau - se bem tenha, como vimos, algumas atenuantes, em casos bastante precisos, em lugares privados. Limitar-lhes os sentidos é pior. Agir como se cada palavra tivesse um e um só significado é uma limitação não só da liberdade de expressão mas também daquilo que faz dos homens homens: a capacidade de abstrair, de imaginar, de figurar.

O Facebook não devia ser uma peça mais no rolo compressor que está a fazer da modernidade um sistema digital: quem passou debaixo do cilindro está bem, quem não se deixou esmagar vai para as beiras da estrada, rodeado de arame farpado. O Facebook não devia censurar. É um lugar público muito mais do que uma empresa privada.

17.6.22

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 17-06-2022

Li recentemente um texto de um tipo que tinha três países, três amores, dizia ele. Eu também tenho três amores, mas não são países. São cidades. Palma, Lisboa e Genebra, sem outra ordem do que a da politesse. A quantidade de coisas amáveis desta cidade é de muito longe superior à das detestáveis, isto sem sequer tomar em conta - naturalmente - o facto de agora aqui ter um neto.

Neto esse que desencadeou uma espécie de revolução em mim, uma revolução à qual o nome de sismo também serve, ambos tranquilos e sem sangue (na medida em que o amor pode ser uma coisa e outra...)

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Comprei um livro do Desproges na Atmosphère (a L'Ivresse já não é livraria, é só café. Felizmente conteve-se o vírus), fui ao mercado de Plainpalais comprar alhos e malaguetas para fazer harissa e agora bebo um copo de vinho na Ferblanterie. A cidade é feita de repetições (o numeral cardinal é dado a título indicativo). Uma senhora eritreiana vende comida do seu país. Tem um aspecto delicioso. Desta vez não levo. Fica para a próxima. Bebo um copo de branco (ditto) na La Devinière, acompanhado(s) por um croissant au jambon da Epi Doré, um café / pastelaria / padaria que pertence a uma senhora portuguesa e onde costumava ir para os croquetes e rissóis.

O meu coração tem quatro divisões. Três estão ocupadas, uma está livre.

Mentira. A quarta é para o mar, que já me chama impaciente. E eu impaciente respondo «Já vou!»

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É verdade: quarta que vem estou de novo no avião, desta vez para Málaga. Impaciente é um understatement. Quatro dias num bote, sozinho, a navegar só de dia? Venham mais mil, que quatro é pouco.

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Este post não pode ir para o Facebook. Estou censurado: escrevi «paneleirices». O FB devia publicar um index palabrorum prohibitorum e isso feito ir para a pata que o pôs. É esta a comunidade na qual querem que vivamos? Ná. A minha é azul e tolera todas as palavras, sem excepção.

15.6.22

Actualidade, passado

Revisão do texto para a continuação do Avenida. Há pouco passei por um post segundo o qual refugiarmo-nos no passado não é muito seguro. Talvez não seja, mas que é mais agradável do que a actualidade (a presente, quero dizer) é de certeza.

Reedição - Bashô

 Outono

Admirável aquele

cuja vida é um contínuo

relâmpago

 

Matsuo Bashô, in "O Gosto Solitário do Orvalho, seguido de O Caminho Estreito", Assírio & Alvim.

14.6.22

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 13 & 14-06-2022

Quatro horas de marcha em Genebra: casa - Rive (comprar café na Carasso) - rue du Rhône - Corraterie (ver as montras da Brachard e comprar tinta para as canetas) - place Neuve (fotografar os jogadores de xadrwz dos Bastions) - rue de Carouge (beber um copo na Livresse, que deixou de ser livraria há dois anos) - Bains des Pâquis (encontrar-me com a filha e com o neto) - passeio até onde foi possível andar (há uma conferência da OMC e para aquelas bandas está tudo vedado).

Regresso a casa de autocarro, exausto. Nunca gostei muito de viver na Suíça - La Chaux-de-Fonds, Zurique e Genebra, por esta ordem, com um ano em Aveiro e uma viagem a Moçambique entre la Tchaux e Zurique, um ano no Burundi, quase seis meses no então Zaire, três verões nos Açores - e como ao mesmo tempo pensava que as vantagens superavam as desvantagens andava numa permanente dissonância cognitiva: como não gostar de viver num país ao qual sempre gostei tanto de regressar?

A explicação começa a delinear-se agora (sou um rapazinho lento, nada a fazer). Desde quando aqui cheguei, em finais de setenta e nove e até pouco antes de voltar a Moçambique em noventa e sete, não era dono do meu tempo. Isto é: o meu tempo era organizado pelo governo. Quando podia fazer compras - em oitenta e três havia duas mercearias abertas ao domingo para todo o cantão de Genebra - quando podia divertir-me - as horas de fecho dos bares e cafés eram apropriadas para crianças e ferozmente aplicadas pela polícia - as horas a que podia fazer barulho em casa (um problema que, verdade seja dita, nunca tive. Questão de sorte).  O governo (na verdade, os governos, federal e cantonal) geriam o tempo dos cidadãos. Porque estes queriam ou pelos menos permitiam, é certo. Mas não por isso deixa de ser insuportável para quem não queria.

Nos anos noventa as coisas começaram a mudar. As pressões para liberalizar e as naturais reacções para manter o status quo tornaram-se demasiado visíveis. Os referendos para permitir aberturas mais longas e aos domingos eram sistematicamente ganhos por quem não queria mudanças (o argumento sendo a defesa dos trabalhadores. Quando me ouvirem apodar a esquerda de reaccionária não se espantem. O exemplo está longe de ser único). A resposta do governo federal foi simples: aproveitou um buraco na lei segundo o qual estações de caminho-de-ferro e aeroportos são territórios federais e permitiu a abertura de supermercados nesses lugares. Depois, o cantão de Genebra começou a permitir a abertura alargada de pequenos negócios - os patrões não precisam de defesa, toda a gente sabe.

O efeito foi o mesmo que teve em França a chegada do "árabe da esquina" nos anos oitenta: semelhante a descalçar um sapato demasiado apertado. Agora posso ir ao supermercado ao domingo - na gare dos comboios e no aeroporto - e posso comprar mercearias à meia-noite.

Ao mesmo tempo fui envelhecendo, claro. Tenho cada vez menos necessidade de comprar uma lata de ervilhas à meia-noite (ervilhas deveria talvez levar aspas) e não me importo de ter de ir à estação ou ao aeroporto se precisar de um supermercado ao domingo. Com a idade perdemos em paciência o que ganhamos em tolerância.

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Os telejornais são bastante melhores na forma, mas o conteúdo é igual em todo o lado: ele é a "pandemia" - uma antiga presidente da Confederação, socialista obviamente, vem à televisão explicar porque é que as farmacêuticas devem abdicar do produto do seu trabalho nas vacinas (se as vacinas serviram ou não é outro debate). 

[Felizmente na Suíça os políticos não têm poder nenhum, o que limita bastante os danos por eles provocados. E ainda há quem seja contra a democracia. Não quer dizer que na Suíça não haja resultados «errados» de votações. Há, claro. A democracia consiste exactamente em dar ao povo a possibilidade de se «enganar». Quem sabe tudo são os ditadores. Mas isso fica para depois.

Estávamos nos telejornais: pandemia, alterações climáticas, etc. A actualidade é tão maçadora como a modernidade na qual se inscreve. Talvez seja isso que distingue a nossa modernidade das anteriores, que tiveram pelo menos o mérito de ser excitantes.

10.6.22

O maior arco de Valdevez do planeta

Enjoa muito, este hábito português de ter o ... (inserir o que se quiser) maior / mais bonito / mais sei lá o quê do mundo / da Europa / da galáxia. Sobretudo porque essas listas nunca incluem políticos. Por exemplo: Pedro Nuno Santos é o ministro mais caro do mundo; João Galamba é o ministro mais sinistro da galáxia; António Costa é o pior primeiro-ministro da Europa (esta seria mentira: o dos nossos vizinhos é pior).

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 10-06-2022

1 (Por ordem cronológica) - A easyJet já não obriga os passageiros a usar máscara. Isso não impede a maioria deles de a levar posta. Foram bem amestrados, tal animaizinhos de circo. É por isso que as cartas fora do baralho, os peixes fora do aquário, os que não jogam em clubes, bandos, equipas, partidos, multidões são atacados em todo o lado: somos uma ameaça, como se na fila para saltar um aro em chamas um dos cãezinhos dissesse ao domador "Salta tu". Lá se iria o espectáculo por água abaixo.

Impossível não me lembrar daqueles palermas que agora em Palma esperam pelo sinal verde nas passadeiras. Devem tomar aquilo por um símbolo da "civilização". Se calhar é: ser incapaz de usar o próprio cérebro e os próprios olhos para ver se vem um carro e depender de um sinal que não tem nem um nem os outros é "civilizado". E não têm vergonha, ainda por cima, imbuídos que estão da sua "civilização".

2 - Chegada ao aeroporto. Passo o pormenor da rapidez com que as bagagens aparecem no carrossel e vou ao mais importante: ser esperado por uma filha que já é mãe, círculo que se fecha, ciclo novo, novo princípio. Quando o irmão (primeiro) e depois ela nasceu eu dizia que sempre gostara de jovens mães e que por isso tinha uma em casa.  Volta a ser verdade, só que agora não a tenho em casa, tenho-a no coração, na cabeça, na memória, no orgulho.

3 - Vejo um bocadinho das notícias ao meio-dia, com a S. Foi na Suíça que deixei de ver televisão e não estou perto de recomeçar, mas a diferença entre estes telejornais e os nossos quase seriam capazes de me pôr todos os dias à frente da espécie de piscina deitada que nesta casa faz as vezes de televisão. 

4 - S. foi jantar com amigas, ou colegas ou coisa que o valha. Passei a maior parte da tarde em casa sozinho. Em bónus, fiquei de guarda ao miúdo enquanto a L. ia não sei onde. Deve haver poucas maneiras melhores de iniciar esta estadia. Aproveitei para ouvir velhos LP de jazz, beber absinto do Val-de-Travers e dormir, que a noite foi curta.

O passeio no parque Bertrand com o puto no carrinho foi uma espécie de tremor de terra silencioso. Nenhuma das pessoas por quem passei se apercebeu do sismo com duas pernas e um chapéu que lhes passava ao lado.

M. - Reedição

Não me lembro de quem era a senhora e ainda menos o namorado, mas hoje reli esta história e gostei dela. Espero que o mesmo se passe com os meus generosos e tolerantes leitores. É de quinze de Setembro de dois mil e oito e eu estava em La Rochelle. 
 ......... 

M.

Hoje encontrei uma jovem e muito bonita senhora. Conheci-a há muitos anos, aqui em La Rochelle. Era a namorada de um tipo que eu detesto, sempre detestei, mais ainda desde que trabalhei com ele numa regata. Um dia tive a impressão que ela me perseguia, um pouco; não dei seguimento, para – forçoso é reconhecê-lo - meu grandes e posteriores espanto e insatisfação. Depois – isto é, agora - vim a saber que ela tinha uma “relação aberta” com o namorado. Não gosto de “relações abertas”. Gosto de regras – seja para as seguir, seja para as infringir. Mas detesto a ausência de regras. 

Já me aconteceu ter uma ou outra relação adúltera. Já tive algumas (poucas, apresso-me a esclarecer), relações livres, voluntárias, simétricas, inevitáveis, imperiosas, mesmo, algumas delas; mas “abertas”, não. As relações são, por natureza, definição e tradição coisas fechadas. Não são abertas. 

M. hoje estava mais bonita do que a última vez que a vi, mais redonda, madura, como um bom vinho que envelheceu calmamente, ao abrigo de grandes tremores de terra, excessos de calor e frios calamitosos. Pediu-me para lhe telefonar quando cá voltasse – mas não me disse para ir jantar com ela. 

Não é só o desejo que tem um prazo de validade. A abertura das relações também, provavelmente.

9.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-06-2022 / II

O cancelamento do voo provocou algumas «inconveniências» (aspas porque gozo ou porque cito, depende), as quais foram felizmente ultrapassadas, desta vez no bar Rita, bar dos meus amores há muito tempo e cada vez mais. Esta capacidade de me desenrascar é um dos piores traços do meu carácter, um dos que mais detesto: tem tanto de bom como de mau. Se não a tivesse seria provavelmente um excelente manga-de-alpaca numa repartição (das finanças, de preferência), ganharia um salário mínimo e meio e a minha vida seria o longo rio tranquilo com o qual sonho - nas noites de pesadelo? Talvez.

Continuo inquieto com a hora insuficientemente tardia para o despertar, mas enfim. Creio que o despertador do meu telefone funcionará, amanhã. Normalmente acordo sem despertador, mas desta vez tenho um neto à espera. Perder o avião não é simplesmente uma opção.

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Se um dia me reformasse teria imenso trabalho. Assim, não sei como vai ser. Jogar no totó-milhões não me atrai por aí além e não sou suficientemente ganancioso para aturar mulheres só porque são ricas. Resta-me trabalhar até ao fim e arranjar tempo entre trabalhos para pôr ordem nos meus vastíssimos talentos, sem os quais a humanidade não terá, decerto, um futuro feliz. Como sou um rapazinho com sorte talvez as coisas se componham e acabe tudo bem, como a pandemia ou a guerra na Ucrânia. Não: como as tempestades, que acabam sempre, mais cedo ou mais tarde e só sobrevivem na memória - naquela parte dela que nos serve para aprender e, se formos generosos, ensinar.

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Quando escrevo no Joan venho para o interior e não beneficio, portanto, desta esplêndida praça, sempre cheia a abarrotar - o bar abre às seis e às seis um quarto está cheio. É um dos sítios em Palma em que sou frequentemente o único estrangeiro, em que a língua que se ouve é maiorquino e no qual sei que sim, estou em casa. Como este não há muitos. O que este homem trabalha é vertiginoso. O gajo não só não pára como anda por estas mesas a uma velocidade alucinante. A esplanada é grande e ele está sozinho. Tem uma rapariga chamada Paz no balcão, o Rodri (que conheço de outras guerras) na cozinha e é tudo.

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Apareceu-me agora a possibilidade de ir trabalhar para Malta, coisa que «procuro» há algum tempo. As aspas são essenciais: nunca fiz nada por isso. Como de costume, limito-me a esperar que os astros se alinhem com a minha vontade, coisa que de vez em quando fazem e de quando em vez não. Ainda é demasiado cedo para gritar vitória, mas a mera possibilidade já me faz sonhar, coisa que me serve de combustível tanto quanto o desenrascanço, um barco rápido nas mãos ou outras coisas que agora não dá jeito mencionar.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-05-2022

Aos sessenta e quatro anos e tendo vivido tudo o que viveu, um gajo sabe que quando se está na corda bamba não há lugar para oprimismo. Isto é, qualquer optimismo é excessivo. Tanto mais que uma  (ou as duas) extremidades da dita corda têm os nós a desfazer-se.

Hoje a easyJet fez-me o favor de desatar um desses nós: anulou o voo. O meu excessivo optimismo de ontem realizou-se. Isto dito, que noitada magnífica! Por causa dela amanhã vou ter de andar meia hora com o saco às costas e hoje exploro o lado barato (isto é um eufemismo) de Palma. De certa forma, conhecer os dois lados da moeda tem as suas vantagens. De todas as moedas. O pior vai ser levantar-me esta noite às três e meia. O resto aguenta.

Tudo aguenta, quando - ou enquanto - o centro aguenta.

Passemos aos factos. Deixemo-nos de tergiversações. Estou no Carrer dels Oms a oscilar (metaforicamente) entre as pizzas à fatia, o bar España e as arepas colombianas. O objectivo sendo evitar a supra-mencionada marcha matinal amanhã (esta madrugada). É pouco provável que consiga, porque isso implicaria uma simetria absoluta com os píncaros de ontem. A ver, como dizia o ceguinho, que é pouco dado a simetrias, absolutas ou não. 

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Palma é um destino bastante apreciado pelas camadas mais jovens dos países emissores.  (Não é bem Palma, é mais os arredores: Magaluf pelos ingleses, S'Arenal pelos alemães.) Isto permite a um velho marinheiro, isolado das últimas evoluções, ficar a par das tendências da moda jovem. Cor: branco. Decotes: grandes. Gigantescos. Cavados. Profundos. Numa palavra: abençoados. Ou em duas: benditos. (A esta hora não há jovens no carrer dels Oms. Estão na praia. Falo de memória, não por observação directa e síncrona.)

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Tornei-me dependente dos gelados do Claudio. Ontem deu-me a provar o de avelã. Um tipo capaz de fazer-me gostar de avelã (ainda por cima, em forma de gelado) tem o mundo à espera. O de pistaccio não era grande coisa e ele avisou-me. Disse-me "esse não está grande coisa", literalmente. Insisti. Para me compensar (ou terá sido recompensar?) deu-me uma colherzita do de avelã. Penso nisto agora e escrevo de seguida. Pode ser que isto me faça passar a vontade necessidade de gelado. Tenho um Häagen-Dazs a cem metros, mas podia estar a cem quilómetros que o efeito seria o mesmo.

Pode ser que a roupa já esteja pronta. De qualquer forma preciso de trocar de pólo, este está cheio de picante da colombiana. E está muito calor a bordo para a sesta. E... o stock de desculpas está no fim.

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Muito gosto eu de ver estes casais muçulmanos com eles vestidos como um alemão e elas cobertas da ponta dos cabelos à ponta dos pés. É que fico logo com saudades das feministas, de quem tanto gosto.

(Cont.)

8.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-06-2022

Uma tortilla, uma caña e um copo de vinho no bar Dia: nove euros e sessenta cêntimos. Sanchéz, é na estratosfera que vais ter de procurar a tua inflação este ano.

A menos, claro, que a meças só no bar España: a palomita continua ao mesmo preço, com um bónus: fico a saber que sou o único cliente que a bebe. Acho que me fica bem, esta função de guardador de tradições, sejam elas de onde forem. (Nunca me esquecerei da interjeição do Joan, uma das vezes que lhe pedi um Palos: "¿Pero tu eres campesino [o estranjero]?" (Este "estrangeiro" acrescento-o eu agora: conheço melhor o Joan.)

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07-06-2022

O Gustar está cheio a abarrotar, pessoas de pé à espera de mesa. O Tom deu-me uma no porche, uma para quatro pessoas apesar de lhe ter dito que só lhe poderia pagar ou quinta-feira ou no fim do mês. Respondeu-me com aquela expressão de que tanto gosto: «Faltaria más!» e ali fiquei, a perceber que nunca compreenderei os vegetarianos e que esse é um problema que pouco me afecta: cada um come o que quer (aonde é outra história). O que faria este cozinheiro com a carne do leste do Zaire, se com esta faz esta maravilha?

Relermbro os inícios desta amizade - eu morava na praça ao lado da plaza Mayor e passava por eles todas as noites a caminho de casa, comecei a parar para uma grappa, depois uma grappa e um cigarro e depois - muito rapidamente - uma grappa, um cigarro e dois dedos de conversa. 

Se um dia eu tivesse um restaurante seria assim: pequeno, bonito e excessivamente bom. E situado na praça mais bonita da cidade. (O facto indesmentível e singelo de que esta cidade conta com duzentas e cinquenta praças que são, cada uma delas, «a mais bonita da cidade» deve ser mantido onde merece: no armário dos realismos).

Nunca terei, claro: um restaurante é affaire de profissionais, não de amadores como eu. A nós cabe-nos frequentá-los, saboreá-los e usufruir deles como se o mundo fosse acabar logo a seguir ao jantar.

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(Regresso a hoje)

Vim ao Jaume. Fez-me descobrir um novo vermute. Chama-se Rumbo e é de Mallorca. O meu projecto de me engrossar avança bem. Infelizmente, é um projecto que nunca posso verbalizar: quando digo «Vou engrossar-me» isso nunca acontece. Aquele polícia que temos no cérebro (segundo o tio Segismundo) interfere no metabolismo do álcool e acabo sempre por me ficar nos entremeses. Hoje, porém, pensei que sim, queria engrossar-me, mas não verbalizei interiormente. A ver se funciona. As palomitas do bar España  foram uma boa pista de lançamento. Talvez o resto da noite colabore em tão nobres desígnios.

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O Jaume acaba de me servir umas patatas bravas que são, sem sombra de hesitação, as melhores da cidade. Penso no trabalhão que vou ter quando o C. F. vier visitar-me. O Jaume vai ser um dos primeiros sítios aonde o trarei.

(Cont.)

PS - O vermute chama-se Rumbo, um nome que, espero, não terei muita dificuldade em relembrar.

PPS - A Chinchilla fechou. Menos uma para ti, Carlos. Não te falo de mim: é como se me tivessem amputado.

Cont.

Jantar no Divino: carpaccio de polvo. O Roberto é sobrinho de um produtor de azeite siciliano e tem sempre uns azeites magníficos. Este não destoou. Acompanhei com um desfile de vinhos, prineiro tinto e depois branco. A Nuria conhece-me, dá-me vinho como gosto. Nada a dizer, se não que os mejs objectivos para hoje estavam quase quase.

Dalu fhi ao Antiquari beber um rum.  Fui pelas escadas, com a burra na mão.  Quase?

Palma-a-abençoada.

6.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-06-2022 / II

"Jantar" no Toni. Vai com aspas: comi duas tapas, uma de salada russa e outra de pimento de Padrón. Esta minha nova frugalidade não cessa de me maravilhar. Se há um ano alguém me dissesse que um dia conseguiria comer duas tapas, nenhuma delas de carne ou peixe e considerar-me comido eu ter-me-ia rido. Compensei com tintos de verano, para mim os melhores - e mais baratos - de Palma. Dos vários mistérios no pricing das coisas ha dois que me sideram: o dos bilhetes de avião e os do tinto de verano em Palma. Aquilo é uma mistura de vinho tinto (normal e naturalmente a pior zurrapa da casa) com gasosa.  Nos sítios mais sofisticados leva uma rodela de limão. É vendido uns trinta, às vezes cinquenta por cento mais do que um copo de vinho. 

Claro que é raríssimo beber um sem ser no Toni. Hoje fiz-lhe uma observação sobre isso, mas ele não percebeu e desatou numa litania sobre o aumento de preços. A inflação em Espanha vai ser linda, vai.

Votem socialista, votem. A felicidade está ali ao virar da esquina, somos todos iguais, braços dados ou não e por aí fora.

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A bomba da retrete está a funcionar, mas do advogado nem uma palavra. Não é um empate técnico: este é muito mais importante do que a bomba. A ver amanhã, mas estou pessimista.

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Vários telefonemas e o Facebook absorveram-me durante o "jantar". Mal olhei para a praça de Santa Eulália, de que tanto gosto. Amanhã voltarei lá só para olhar.

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O P. precisa de algum trabalho para sair perfeito. Deixar o refit inacabado seria como levar uma beleza para a cama e no fim não terem um orgasmo (os dois, é importante. Não precisam é de ser simultâneos, mas isto são areias de outras praias).

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Ver se amanhã faço enfim as recensões para o P1. Porém, primeiro vou à Dream Yachts, claro. Ainda só tenho quatro semanas de trabalho e isso não chega. Isto dito, estou contente por três delas serem numa lancha a motor. Gostava de mudar, não radicalmente mas comecar a diminuir a vela e aumentar o motor. Paga melhor e dá menos trabalho. (Em compensação, os clientes são geralmente mais chatos. Tudo se paga, neste meio.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-06-2022

Compro duas brevas no mercado. Dois euros e noventa e cinco cêntimos. Um e meio cada. As pessoas que não distinguem uma breva de um figo não sabem a sorte que têm. Provavelmente passa-se o mesmo com o salmorejo e o gaspacho andaluz. Provavelmente passa-se o mesmo com tudo. Até com as pessoas se passa: há brevas e há figos. Prefiro as brevas, nada a fazer.

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Encontro com J. W., surveyor emeritus do meu P. Comecei por não o reconhecer: teve Covid e perdeu "dez por cento do [s]eu corpo". Não precisavas de perder tanto, J. A minha memória nunca foi boa e o tempo não a afinou. Estamos ambos doidos por navegar no P. e ambos felizes por nos reencontrarmos. É como se dois homens amassem a mesma mulher e em vez de terem ciúmes se sentissem irmanados nesse amor.

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X. vai mandar um dos seus funcionários ao P. para ver o que se passa com a bomba da retrete. A vida é feita destas vitórias. Bem sei que parecem minúsculas - são, de certeza - mas quando se sobe uma montanha cada passo conta, por pequeno que seja.

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"Problemas de dinheiro resolvem-se com dinheiro, não com palavras", dizem os argentinos. Estou a tentar resolver aqueles com estas. Não muda a altura da montanha, mas modifica a inclinação das encostas.  Oh se modifica.

Póstuma

Ocupado que estava a fazer da sua vida uma obra de arte, descobriu que não tinha tempo para mais nada. Aquela obra absorvia-o inteiramente. Morreu e não deixou obras póstumas. 

O que tens à mão

Por ordem: Geraldo Vandré, Mercedes Sousa com um grupo de cantores beasileiros, Simone, Sandy Denny, Maddy Prior, Virginia Astley, Beckett. O Flexiban acabou, meu caro. Agora és tu, a noite e o diabo. Não há música que te valha. Não há nada senão esta noite que insiste em intrometer-se. O sono devia deixar-te em paz. O que tu ouvias ou lias quando ouvias ou lias não interessa a ninguém. Nem a ti devia interessar, de resto. Que pensas vais levar do passado quando fores a enterrar? Ou a queimar, melhor ainda. Ficam as cinzas e essas não têm memória, nem servem para plantar flores. Deixa a noite em paz, não a vasculhes, ela retribuirá e o perdedor serás tu. És sempre tu, na verdade, faças o que fizeres.  Aliás devias deixar as dores em paz  também. Tudo, devias deixar em paz tudo o que te rodeia.

...

Que estejam dentro de ti, tanto faz: dá-lhes paz. Não as chames ao caminho, só servirá para o prolongar. Para prolongar a agonia. A paz é a melhor forma de a abreviar, de a tornar suportável. Imagina o discurso funebre: "Morreu em paz". Queres melhor?

Não há melhor, meu caro. É o que tens à mão. 

5.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-06-2022

Não sei aonde vão os economistas buscar dados para calcular a inflação. Aos restaurantes de Palma não é certamente: seria duas vezes superior ao que anunciam.

Vim jantar ao mini-restaurante Casa Julio. Também aqui os empregados mais antigos se lembram de mim e me cumprimentam com um sorriso franco de alegria. Não consigo deixar de achar infantil e risível este prazer e tão pouco consigo deixar de o sentir.

Na Casa Julio a inflação foi comparativamente baixa: doze e meio por cento. Metade (ou menos) da da Bottega Bolognese, por exemplo, que - verdade seja dita - estava estupidamente barata. Pois bem, agora já não está. Quando muito, passou à categoria "barata".

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Valente esfrega no P. De tal forma que a escova se mandou ao mar, exausta. Nem flutuar conseguiu: afundou-se de seguida. Felizmente já estava no fim.

Está outra vez a meter água pelos gualdropes. O P. gosta de uma boa luta. Eu também. P., vamos a isso, meu caro. Não penses que me ganhas por KO técnico (seja lá isso o que for). Posso não saber dar murros, mas sei domar embarcações selvagens. 

Às vezes até penso que nasci para isso, vê lá tu.

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Palma está cheia de turistas. Parece que o calendário se enganou de mês e estamos em Julho e não em Junho. Nho, Palma. Nho. Hoje chegou o primeiro voo directo de Nova Iorque (na verdade, de Newark). Algo me diz que a inflação não vai ficar por aqui.

A língua mais ouvida continua a ser o alemão, seguido do francês. Depois inglês e espanhol. Maiorquino vem no fim: só falam entre eles quando longe da "multidão enlouquecedora", suponho.

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À tarde fui de passeio ciclista até Portixol, aqui ao lado. A ciclovia passa mesmo por cima da praia. A moda do topless passou, está visto e revisto. Já a dos malditos fatos de banho que se metem rabo adentro veio para ficar. Um horror nunca vem só, como aquelas nádegas desgostosamente expostas e os seios frustrantemente escondidos demonstram. Só as senhoras mais avançadas no tempo resistem a uma e outra, prova de que a nossa geração tem um saudável relação com o bom gosto. 

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Continuo a encomendar livros que nunca lerei, a menos que uma abençoada doença me ponha de vez em casa, para sempre.

("Para sempre tendo aqui o prosaico valor de "até acabar os livros todos que tenho para ler". Nada de extrapolações líricas, por favor.)

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O bar Bog Foot não faz parte das minhas deambulações habituais, mas devia fazer. Descobri-o porque numa das minhas estadias airBnb fiquei num quarto ali à frente. Boa música, decoração decente, vinho bom e barato e - isto vale por tudo, naquela zona - sempre vazio ou quase. Fica perto do Corner Bar, o poiso dos yachties, gente por quem não nutro nem respeito nem afecto por aí além. 

4.6.22

Bolha, solidão

Vivia numa bolha de solidão que de vez em quando era furada.  Nunca se esvaziava: simplesmente alguém entrava nela e ali ficava até descobrir que a bolha era impenetrável e que na verdade estava do lado de fora. E se por qualquer razão conseguia entrar era ele que a expulsava: na bolha só havia lugar para um.

Assim foi passando os anos, como se desse ao mundo a volta num barco a remos: devagar, laboriosamente, contrariando os elementos. "A solidão constrói-se",  pensava a cada remada. "Estar sozinho é mais trabalhoso do que estar acompanhado."

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-06-2022

Qualquer pessoa com mais de dezoito anos sabe que o mundo é injusto; aos vinte aprende a aceitar esse facto singelo e irremediável. A vida é injusta, ponto. Saber viver limita-se a tentar estar no bom lado da injustiça, ou pelo menos num dos pontos do círculo em que se sofra pouco - a roda não está dividida em duas metades; a pizza do real tem muitas fatias. De tamanho desigual, é certo, mas quem as cortou fê-lo ao sabor do acaso e não segundo um plano premeditado. Nada a fazer senão tentar não apanhar a mais pequena de todas ou - ainda menos - aquelas em que te pedem para colaborares na farinha, no tomate e no queijo.

Uma das injustiças deste mundo é a Bottega Bolognese, sita no Mercat de l'Olivar (não fazem pizze, aviso) não poder servir comida a quem quer comer sentado. Regras do mercado: aquilo não é um bar nem um restaurante nem um snack nem nada que se pareça. É simplesmente um stand onde se fazem as melhores pastas do mundo e pouco mais. Quem quiser comer ali come de pé, «como os cavalos» (aspas porque cito o meu Pai).

(Outra injustiça é o brutal aumento de preço das ditas pastas, mas isso fica para depois.)

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La Cuadra del Mano é uma máquina de imprimir dinheiro que tem a forma de um restaurante (uma churrascaria, para ser mais exacto). Apresso-me a esclarecer os meus leitores do Bloco de Esquerda - se tiver alguns - que raramente tenho visto máquinas de imprimir dinheiro tão justo, tão merecido como esta. É uma empresa familiar. Helena (a mãe) e Luis e Dany (os filhos) dirigem a coisa, com a ajuda de Karina e uma outra jovem com cara de tutsi cujo nome desconheço. Penso que já aqui falei muitas vezes deste restaurante. Não sei. Sei apenas que para mim deixou há muito de ser um restaurante: é uma casa, uma das minhas muitas casas em Palma.

A carne não é a melhor que já comi na vida - a de Lubumbashi não tem rivais - mas é grelhada pelo Luis com amor, com ternura, com saber, com mão de mestre; e servida pelo Dani ou pela Karina com amizade, com ternura (a ternura é importante, mesmo quando se está soterrado em trabalho). O Luis grelha, o Dani serve e a Helena gere - isto dá para um artigo sobre empresas familiares, não dá?

Já aqui contei, disto lembro-me, que a última vez que lá fui e pedi uma dose pequena o Dany me perguntou:
- Onde está o Luís que eu conheci?

Hoje limitou-se a dizer que sim, realmente estou mais magro. Respondo-lhe que como menos mas bebo o mesmo, ele sorri-me aquele sorriso cúmplice e rápido de quem está muito ocupado, eu janto meia dose (feita à medida, não está na carta) de picanha. Isto de beber o mesmo é uma pequena mentira, aceitável dadas as circunstâncias. Não bebo o mesmo. Bebo menos, muito menos. Pouco menos, às vezes. Mas sempre menos. O sorriso de Dani é de amigo - amigo de balcão, mas amigo. Aquilo está sempre cheio a abarrotar, eu felicito-me silenciosamente por não precisar de reservar - ela encontra sempre um lugar ao balcão para mim - e penso nas minhas casas. Em Lisboa tenho uma, agora, finalmente; em Palma tenho muitas; em Genebra tenho um sofá e uma família. No mundo tenho sorte.

A sorte é uma casa que leva muito tempo a construir. O mundo é uma sorte que já está quando a ele chegamos.

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Decididamente não consigo compreender os vegetarianos. Esta carne está sublime. O que não faria este homem da carne do leste do Zaire? Esta vem «de onde lhe parece boa».

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De passagem. Estou de passagem. Todos estamos. O que muda é por onde passamos, nada mais. Isso é pouco, bem pouco.

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Os sistemas eléctricos das embarcações mudaram de tal forma que hoje olhei para o interruptor da bomba da retrete e limitei-me a fechar os olhos (ou seja: a tampa do quadro). Não percebo nada daquilo. Pergunto-me se a mesma incompreensão não se aplicará ao resto da realidade? É possível. 

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A minha relação com Palma continua a ser a de um paisano com a sua comunidade: vou jantar à Helena porque o Toni está fechado, bebo tinto de verano no Giuseppe, depois de jantar vou à Cantina porque o Jaume está fechado (que raio se passa nesta cidade? Está a abarrotar de turistas).

É um prazer inesperado (isto é um understatement) vê-la assim, carregada como as tetas de uma vaca que não foi ordenhada.

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Dormir no P. é outro prazer inesperado. Como será, navegar aquilo? Recuo quarenta anos no tempo. Ainda não parei de dar cabeçadas em tudo quanto é sítio. É o barco a entrar, dizem os franceses. E os anos a sair, respondo eu.

Simetria?

Um franciscano ganha o totó-milhões; um bilionário perde subitamente tudo o que tem e encontra-se de um dia para o outro numa situação de pobreza absoluta: estas situações serão simétricas?

3.6.22

Teimosia, estupidez

A linha que separa a estupidez da teimosia não é apenas muito ténue. É também muito sinuosa, muito flexivel. A teimosia é capaz de levar qualquer pessoa inteligente a fazer uma estupidez e - o que é muito pior - a prolongá-la para lá do razoável.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-06-2022

O Cabriz e o Flexiban fizeram bem o seu trabalho: dormi até às nove da manhã. São três da tarde, fui comer sushi ao alemão do mercado - ainda se lembrava de mim. Ele há coisas que não deixam de me surpreender - beber vinho e vermute ao Cisco... enfim, uma primeira manhã em Palma igual a todas as prévias primeiras manhãs nesta cidade, de que contiuo a gostar como gostei quando cá cheguei pela primeira vez. 
Comi um gelado no Claudio (estão cada vez melhores? Sim, estão), quase encontrei um trabalho num Oyster (mas ainda não está completamente perdido), estou em paz comigo e com o mundo. Agora vou completar a segunda parte dos objectivos: tornar o P. habitável. Passo a passo. Hoje são os lençóis. Os mais baratos são no Ikea, ao qual é difícil chegar. Passeio devagar pela cidade, faço fotografias e olho para as mulheres. Palma partilha com Genebra o privilégio de serem as cidades com o mais elevado ratio de mulheres bonitas / mulheres. Que encontrou Deus nestas cidades para as abençoar de tal forma? Será Ele sensível à beleza feminina, também? Ou tê-la-á espalhado pelas duas cidades de que mais gosto  e mais frequento (depois da Lisboa) para me compensar da solitária e míope vida que levo?

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A única coisa que me aborrece é este maldito cansaço. Não me larga. Não sei se é resultado dos comprimidos que ando a tomar para a maleita-sabor-da-semana se é um bicho que me rói do interior. Como hoje é o último dia dos ditos comprimidos, daqui por dois ou três dias terei a resposta. Saio da cama e meia hora depois mal posso com uma gata pelo rabo.

Talvez seja um demónio, dos muitos que albergo, cada um mais tarado do que o seguinte.

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Vim ao IKEA. Deve ser a primeira vez que entro num sozinho. O processo de compra foi rápido. Pior foi percorrer o interminável labirinto para sair. Aguentei o stress como um homenzinho e agora bebo uma cerveja para ter combustível até à cidade. Para cá chegar, pedalei mais do que o necessário, sinal seguro de que a sesta foi demasiado curta ou de que o meu cansaço é pervasivo. Não atinge só os músculos. 

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Hoje fui averiguar as possíveis causas da "fatiga crónica" (aspas porque cito). São tantas e tão variadas em gravidade que resolvi esquecer o assunto.

2.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-06-2022

Forçoso é reconhecer que isto é uma infantilidade indescritível: bebo vinho às escondidas no avião da Vueling. Porém, a história começa com uma preocupação bem adulta: poupar dinheiro. No Hediard pediam-me cinco euros e noventa cêntimos por uma minúscula garrafa de uma zurrapa qualquer (manifesta injustiça: não faço ideia se o vinho é bom ou mau); no Duty Free uma botelha normal de Cabriz Reserva custa seis e trinta. Claro que com as demoras atinentes aos diferentes processos só consegui beber um copo sentado - e sentido - enquanto comia a correr o que pude da sandes de panado de frango (sete e não sei quanto. Um roubo). O resto da garrafa veio para bordo, bem rolhada e ensacada.

Como os preços do vinho no avião não são muito diferentes dos da Hediard e como hoje, excepcionalmente, vou dormir numa camarata (mais uma preocupação de pessoa crescida, os airbnb e os hotéis em Palma estão pela hora da morte) achei que valia a pena correr o risco de ser apanhado pela hospedeira - a que tem o cabelo em forma de lódão ou de queda de água num rio africano na estação das chuvas, espero - e aqui vou no meu terceiro copo aviónico.

A cada um penso no ex-presidiário com quem trabalhei em Genebra. Todos os dias me trazia um exemplar do Journal de Genève surripiado da caixa. Uma vez disse-lhe que não precisava de roubar o jornal para mim e ele respondeu:

- Preciso de fazer uma malandrice todos os dias.

O homem passara seis anos na prisão (e isto suspeito que fora só a ultima pena. Deve ter havido mais antes), fartava-se de me contar histórias sobre a vida encarcerado - eu não sobreviveria - e consolo-me pensando que o que faço não passa de uma infantilidade, como as malandrices do outro, por muito nobres que sejam as minhas motivações. 

De maneira vou no terceiro copo, suspeito que a garrafa de Cabriz já só tem o rótulo ou lá perto e imagino que vou dormir bem. Isto chega para me consolar.

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Satisfaço-me com pouco, é verdade. Vinho no copo, comida no prato, amor na vida, livros nas estantes ou na mesa de cabeceira, luz bonita para fotografar, um barco para navegar, tudo isto embrulhado em solidão, aquela solidão boa, da Bayer, que nunca me larga mesmo qando estou acompanhado e à qual regresso feliz entre cada companhia ("feliz" nem sempre é verdade, mas é mais bonito do que "resignado", por exemplo).

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Daqui a meia-hora aterro em Palma-a-suave. Não sei quanto tempo lá ficarei porque depois vou a Genebra ver a descendência. Integrei finalmente o clube dos avôs, momento esse que era para mim,  até lá chegar, fonte de inquietação e interrogação: como seria, ser avô? Sou o último dos meus amigos próximos a fazer parte desse grupo e tudo o que eles me diziam sobre a grande-paternalidade (?) me parecia clichés de velhos ou clichés tout court. É uma coisa e outra, dois prazeres bem escondidos num galicismo. Ou seja: deve ser reacção biológica, coisa darwiniana, talvez aquele gajo das formigas não estivesse assim tão enganado (não estava. Só estava incompleto.)

(Cont. Talvez)

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Sim, continua. Cheguei ao albergue e a minha reserva - confirmada e tudo - não estava lá. O porteiro da noite já tem experiência na situação. Esconde-se atrás de "yo soy solo el nochero y no puedo hacer nada", repetidamente - a cada exclamação minha, que verdade seja dita não são muitas. É óbvio que a) aquilo já aconteceu muitas vezes e b) não há nada a fazer, excepto ir para o P. e esperar que me deixem lá dormir. 

Deixam.

É portanto da sublime embarcação que agora escrevo, comprimidos da noite tomados com a réstea de Cabriz - não daria para mais -, luzes encontradas - as etiquetas dos interruptores estão quase todas ilegíveis - bomba da retrete inoperacional. O beliche não tem lençóis, o tempo está quente e amaldiçoo a minha vaidade: trouxe o casaco em pele de carneiro que comprei em Gibraltar (por cem euros em vez de trezentos) e tive de o tirar ainda antes de entrar no táxi do aeroporto. Vai para as caixas que estão aí para ir para Lisboa. Amanhã será um dia de trabalhos: tornar o P. mais habitável, preparar a mudança de armazém, procurar trabalho para o que me resta de Julho e Agosto, tentar encontrar uns dias de trabalho já para encher o mealheiro, quase vazio. Nada de inesperado, em suma. Até de vir acampar no P. estava à espera, como esperava a noite que me espera. 

Apesar de tudo, não consigo invejar os mangas-de-alpaca, prova de que no fundo tenho aquilo que quero ter. Às vezes mais, outras menos, mas o que tenho é o que fiz por ter. 

Claro que não me importaria nada de trabalhar para um armador menos peculiar, é verdade. Mas isso paga-se, não com noites desconfortáveis mas com outras coisas. É simples: não se pode ter tudo ao mesmo tempo. E eu tenho aquilo que mais prezo na vida: liberdade. 

Liberdade. É cara? Sem dúvida. Mas é a única coisa cujo preço estou disposto a pagar. Seja em que moeda for, desde que não seja dessas emitidas por bancos centrais ou por computadores,  claro. Por ela, sujeito-me a noites mal dormidas, a não saber do que amanhã será feito (não sei sequer de que fiz o ontem...), a ser "incompreendido" (entre aspas porque é gozo. Poucas coisas há que me interessam menos do que a "compreensão" dos outros. Nem o conforto me interessa tão pouco).

Estou rodeado de gente que está "bem na vida": amigos, familiares, todos passam os natais em família, recebem e dão prendas, vão de férias em Agosto, têm trabalho todos os dias e tomam conta dos netos quando os filhos vão ao cinema. Por vezes estou aflito e recorro a esses estar-bem-na-vida. Mas são momentos fugazes e não põem em causa a minha liberdade. Ela é a fortaleza que construí e me acolhe desde muito jovem. Não conseguiria mudar de casa, mesmo querendo.

E assim entro na noite que me espera. A mistura de Cabriz e Flexiban fará certamente aquilo para que a química serve: melhorar a vida dos homens (e dos animais e das plantas  mas isso são outras histórias).

Trabalho

- Não trabalho para ficar rico, construir uma casa, guiar um carro potente ou ter mulheres-troféu, percebes? Trabalho para poder fingir que sou rico. Fico-me pelo fingimento, que ser rico a sério exige mais do que eu posso dar. Não me refiro apenas ao trabalho, mas a outras qualidades - ou defeitos? - que de todo não possuo.

- Pelo menos consegues fingir que és pobre.

- É mais difícil. 

- Difícil, sinónimo de penoso, não?

- Não. É muito mais dificil escolher.... sei lá,  por exemplo, uma garrafa de vinho bom e barato do que uma de bom e caro. O mesmo se passa com tudo. Fingindo que sou rico isso não acontece. Basta dares a entender que és forreta, como todos os verdadeiros ricos.

- Vives para fingir?

- Que queres, começa no trabalho. Finjo que trabalho para fingir que sou rico para fingir que sou forreta. Só não finjo que vivo: isso faço mais do que a maioria das pessoas com quem te cruzas na rua.