31.7.21

Até ao fim

E com isto tudo deixei de fora a única notícia importante do dia: parece que vou ter mesmo de me vacinar, se quiser continuar a trabalhar. Os clientes querem skippers vacinados, ao que me diz a agência. O meu desalento ontem foi grande. Hoje comecei a procurar alternativas. Não quero apanhar aquela merda, não por ter medo da vacina - não tenho - mas por não querer fazer parte da palhaçada. Não tenho jeito para circos. Se alguém conhecer alguém que conhece alguém, é só dizer. (Se bem isso seja uma forma dissimulada de participar no circo, no fundo.) Acho indecente obrigarem-me a trocar princípios por lentilhas, mas faço minha as palavras aqui da epígrafe: «never give in, except to convictions of honour and good sense.» O bom senso vai acabar por ganhar, mas porra, hei-de resistir até ao fim.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2021

Hoje comprei rúcula para o jantar. Não é de todo a primeira vez que compro vegetais, longe disso. Quando morava no Príncipe Real, por exemplo, comprava frequentemente verduras «bio». Inicialmente porque o mercado era mais perto do que o supermercado, depois porque descobri com prazer que as coisas «bio» (aspas porque cito) duram mais tempo no frigorífico. Hoje comprei rúcula e o que tornou essa compra interessante é que tive de escolher entre isso e batatas - nos períodos de maré baixa a conjunção «e» é substituída pela «ou», quando vou às compras. Acho que tenho rúcula para um ano (enfim, o P. tem, eu vou-me embora na segunda), a julgar pela quantidade que hoje comi. A minha dependência do parmentiano tubérculo está a diminuir, parece. 

Enfim, uma andorinha não faz a primavera. Vejamos, antes de tirarmos conclusões apressadas, digo a mim mesmo e mim mesmo concorda.

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Decidi guardar o quarto durante o mês de Agosto, apesar de só precisar dele uma noite por semana. Não me apetece andar a saltar de camarote em camarote, por um lado; e por outro, ajudo o P., que a cada dia aprecio mais e bem precisa. 

P. é professor de inglês «de nível elevado», especifica. »Os níveis mais baixos são muito aborrecidos». Antes da Covid dava vinte horas de aulas por semana (em casa). Hoje dá duas ou três. É um mestiço jamaicano dos seus cinquenta e muitos. Regista quase tudo o que se lhe diz, basta repetir cerca de vinte vezes cada coisa. «Quando é que te vais embora?», pergunta, dez minutos depois de eu lhe dizer que me vou embora segunda-feira. Ao longo do dia a pergunta repete-se, amanhã idem e na segunda, quando eu lhe disser «Ciao, P., vou-me embora» fará uma cara espantada e dir-me-á «Oh, vais-te embora? Quando regressas? (Outra pergunta à qual já respondi umas boas dezenas de vezes)» «Na sexta ou no sábado, P.» 

Ao princípio exasperava-me um bocadinho, mas depois percebi que não era exasperação, era inveja e a coisa passou. Se há coisa que não sou é invejoso e no P. eu invejava duas delas: a capacidade de não ouvir e a naturalidade com que o assume. Imagino que seja um óptimo professor. 

Nunca percebi bem de que vive - alimentarmente, quero dizer. Passa os dias sentado na mesa  na qual dá aulas, interessa-se pelos resultados dos jogos olímpicos (isto é, pelo número de medalhas que o Reino Unido obteve), lê bastantes jornais digitais, pergunta-me (todos os dias) se eu leio o Guardian (ou a BBC ou o Telegraph), todos os dias lhe digo que não, adormece frequentemente sentado à mesa. Nunca o vi nem comer nem sinais de que vá comer ou tenha comido. O frigorífico está sempre cheio, mas parece-me que das mesmas coisas. Hoje encontrei ovos cuja data de prescripção era Agosto de 2020. Às vezes conversamos - sobre a Covid, sobre política «não sou de esquerda nem de direita», disse-me há dias - concordamos em que as independências das colónias foram uma tragédia. Traz-me à memória aquela definição das amizades inglesas, que «começam sem confidências e continuam sem diálogos». Vem de uma família da alta burguesia jamaicana, foi educado em colégios católicos, fala um inglês maravilhoso - não surpreendentemente, claro - e simpatizamos bastante um com o outro. Baixei um bocadinho o preço do quarto para estas semanas que aí vêem e hey, presto!, tenho um quarto para as sextas-feiras e ele um hóspede ausente.

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O concurso internacional de regras idiotas continua. Hoje teve mais uma inscrição, portuguesa: as discotecas podem abrir, mas não se pode dançar. Faz-me lembrar a história do bordel de Porto Amélia, hoje Pemba, onde um capitão me quis levar. O imediato opôs-se terminantemente (eu era filho do sub-director da companhia, argumentava ele). Seguiu-se uma negociação cerrada entre os dois e acabaram num compromisso: eu ia, mas não beneficiaria dos serviços das senhoras (eram só duas, uma morena e a outra loira). Passei duas ou três ou quatro ou uma quantidade infinita de horas sentado na sala de estar do lugar, com elas a passar por mim a cada troca de quarto (previamente combinadas entre capitão e imediato), a apalpar-me o membro que estava, do alto dos meus quinze ou dezasseis anos, mais duro do que o obelisco da Place de la Concorde e a dizerem «coitado do rapaz».

Irei ao Roterdão, D., e lembrar-me-ei desta história quando estiver a comer uma sandes de arenque fumado.

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Parece que segunda-feira o P. vai para a água. Não sei. Agora a complicação é com a cor da tinta encarnada. Ficou de lá ir um colorista (os indivíduos que fazem as misturas de tintas de forma a obterem o tom exacto. Não fazia ideia de que tal profissão existe, sequer). Não tive telefonema nenhum hoje, o que não é de admirar porque pôr esta malta a trabalhar aos sábados é mais difícil do que levar o Papa ao bordel de Porto Amélia, hoje Pemba.

O P. faz-me pensar naqueles paus ensebados dos concursos das aldeias: cada dez centímetros que se sobe baixa-se um metro, mas por um milagre qualquer, não-matemático, há quem chegue ao topo. Eu sei que o vou subir até ao último milímetro. Só me pergunto é como, com tantas descidas a cada etapa.

30.7.21

Desilusões

Uma das muitas coisas que esta «pandemia» mostrou é que a crise de liderança é transversal. A esmagadora maioria dos governos comportou-se como vermes à vista da bota. Com a louvável excepção da governadora do Dakota do Sul, não houve um governo, um, no mundo ocidental que se tivesse mostrado à altura. Incluindo o sueco, que só não impôs «medidas» e restrições porque não podia e lá a expressão «diga a constituição o que disser» não tem curso. Até Angela Merkel se perdeu pelos caminhos ínvios do covidismo, do facilitismo e do medo. (O idiota do Bolsonaro não entra e Trump, que estava longe de ser um idiota, tão pouco - não tinha poder.) Raio de tempos estes.

29.7.21

Coisas

É muito difícil falar das coisas, porque a) coisas é vago e b) falar inútil. Ninguém me ouve (felizmente, se não teria de ficar calado) e coisas tem vários significados, varia com o auditório. Reduzo-me portanto a falar da vida (a minha, a única que conheço) e das coisas que me tocam. São poucas, inútil é dizê-lo: um par de mãos, um par de olhos, um par de mamas, meia dúzia de músicas, um dia no mar. Do resto, pouco sei: a poesia, a prosa, o vinho, o rum, a luz; meu Deus, a luz. O vento. A amizade. Sou tocado por uma determinada quantidade de coisas - por feliz acaso, as que toco. Retribuo o que recebo (com as possíveis excepções da música e das letras, que recebo muito mais do que dou, mas isso fica para depois).

Pouco importa. Gosto da palavra coisas, das coisas que ela - para mim - designa, das coisas que me tocam. Com as outras tento não me preocupar.

Infelizmente, consigo.

Abençoado seja (eu)

Já não ouvia as Vésperas de Rachmaninov há um bom bocado de tempo. Uma larga fatia de pizza, se quiserem. Agora oiço e por isso não me deito, que é o que devia fazer. Mas alguém se pode deitar e deixar isto a meio? Só um bruto insensível, um bloco de granito, um meteorito estéril. Eu não. 

Não sou nada disso. Sou um bruto sensível, um bloco de algodão-doce, uma planície fértil, abençoado seja eu.

Duas declarações de amor

Há nesta cidade recantos impossíveis, inimagináveis. Ao lado da sua mais bonita praça - a Plaça Mayor, que é também uma das mais bonitas que conheço no mundo todo que conheço - está a Plaça del Banc de l'Oli, pequeno agregado das diferentes formas de beleza urbana: laranjeiras, prédios tradicionais, prédios modernos, proporções perfeitas, restaurante Gustar, mulheres bonitas (e homens também, verdade seja dita, apesar de eu estar aqui).

Suponho que isto faz o encanto de Palma, mais do que o facto de ter sido fundada por um general romano chamado Menano ou ter sofrido dezenas - centenas? - de invasões de piratas. Estas ajudaram a fazer da cidade o que ela é hoje: desconfiada, fechada, reservada, resistente. Como aquelas mulheres bonitas que fazem tranças com as pernas, de tanto as entrelaçar quando estão sentadas: o parceiro só lhes vê o torso, mas as pernas estão trancadas a sete chaves. 

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E agora, Luís?

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De regresso ao velho Antiquari, onde já não vinha há muito tempo. Uma cidade é feita de velhos amores, como uma vida ou um andaime numa obra. 

Jazz, média luz, bom vinho. Só faltas tu, minha R. de mim. Que é um espinho sem uma flor?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-07-2021

Um Negroni na Rambla. Gosto da Rambla de Palma - é um dos meus lugares favoritos - e nela da Ca na Chinchilla (idem). Gosto das árvores que, inclinadas para dentro, fazem uma nave que filtra o calor e a luz; gosto do pavimento, ligeiramente abaulado e numa pedra que a reflecte pouco, fica quase baça; gosto de ver as pessoas desfrutar de tudo isto - estou longe de ser o único, claro. Hoje vim à Ca na Chinchilla beber um Negroni. Não é cocktail que beba frequentemente e hoje precisei de mudar qualquer coisa. Como não posso mudar as grandes coisas, mudei uma das pequenas. É preciso ser pragmático, adaptarmo-nos às circunstâncias e acompanhar as mudanças regalando-nos com o que nos cerca. E, sobretudo, não perder tempo com guerras inúteis.

(Definição de guerra inútil: a que não se pode ganhar hoje.)

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Algumas mulheres andam de máscara na rua e «vestidas» com roupa que não lhes cobre nem um quarto do corpo (o jogo de palavras é imperceptível, espero). Tapam o que não precisam de tapar e não cobrem o que deviam cobrir. Enfim, não sei se «deviam» é o termo adequado. Talvez não seja.

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O P. vai para a água na segunda-feira. Com sorte estarei cá para o levar para o seu lugar. Este bote não me sai dos dias.

Nem eu dos dele, verdade seja dita. Vamos envelhecer juntos, aos pontapés, beijos, abraços e murros um ao outro.

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Dizem que enquanto há vida há esperança; penso que enquanto houver mulheres bonitas há vida, mas isso não me leva à conclusão lógica de que enquanto houver mulheres bonitas há esperança. A esperança é uma droga dura e as mulheres uma doce.

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Hoje estava no Olivar e pensei que vou para ali como outros vão passear para centros comerciais. Não fiquei orgulhoso, apesar de achar o mercado muito mais bonito do que qualquer centro comercial. Mas enfim, comi um polvo à galega que me fez  ter vontade de voltar à Galiza (não por estar mau, mas de tão bom que estava) e bebi o orujo que eles encomendaram para mim e nunca mais lá voltei e ainda há dias a Patrícia me gozou por causa disso. «O orujo é bom, não é?», perguntou-me. Não percebi nada, claro. «Encomendámos uma garrafa paravti e nunca mais cá voltaste», explicou ao ver o meu désarroi. E eu sem massa para orujos, que horror. A situação compôs-se, sem dúvida graças à intervenção divina (o deus sendo Mamon) e hoje lá fui cumprir as minhas obrigações contratuais. Vai ser um sarilho, acabar aquilo até me ir embora, mas um homem é um homem e um gato um bicho e de qualquer forma não tenho de acabar a garrafa, basta-me dar-lhe um entalhe que se veja, não é? É. Amanhã lá irei passear para o Olivar outra vez, que maçada.

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Entretanto, a Rambla anima-se e entre miúdas meio-despidas e outras meio-vestidas lá se vai compondo. A temperatura e a luz caem ao mesmo tempo (andam sempre juntas), o ruído do trânsito intensifica-se (daqui a pouco parará completamente, mas gosta de fazer um pequeno crescendo antes de se despedir) e eu chego ao fim dos disparates do dia. Foi um dia tranquilo, iluminado agora mesmo pelo olhar amoroso de uma mulher ao seu homem. Um dia precisa de poucas coisas para ser feliz.

Uma vida também, na verdade.

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No restaurante Gustar não há cá menus em inglês ou alemão. Há o Tom e o Fidel, uma cozinha sublime e uma das praças mais bonitas de Palma. O resto é conversa de encher chouriços. 

(Plaça del Banc de l'Oli.)

Evolução?

O século XXI trocou o racionalismo do XIX pelos cultos irracionais, pelas crenças, pelo pensamento mágico e pelos milenarismos. Entre os dois, ficaram duas bombas atómicas e uns valentes milhões de mortos.

Ontem já era tarde

A quantidade de energia (QE) que foi necessária para transformar o Sars-CoV-2 na tragédia que está a ser é incomensurável. Reverter este psicodrama exigirá uma QE ainda maior, porque o medo introduziu muita energia no sistema.

Aparentemente, Marcelo deu ontem o primeiro passo. Tem um ano e meio de atraso e neste caso o "mais vale tarde" não funciona. O que isto custou (e custa) ao país não admite perdões nem condescendência.

Tem é que acelerar o processo, ponto. Despachar-se. Deixar-se de panos quentes. Um governo que mantém Cabrita em funções e acolhe Brandões Rodrigues, Pedros Nunos, Galambas, Van Dunens, Anas Marias Vitorinos, Santos Silvas e é chefiado por António Costa não merece confiança. 

27.7.21

Como será?

Num dos muitos dias em que não morreu, João Miguel foi ao mercado comprar sal, vinho tinto e coentros, beber vinho branco e vermute e ver os amigos. João Miguel é um rapaz sensato, pintor (de paredes), que tem «a sorte de estar desempregado» (aspas porque o cito) e gosta de passear a sua - para mim incompreensível - «sorte» pela nossa cidade. Está casado com uma rapariga conhecida - apresenta um programa de televisão, se não me engano (não vejo televisão e não posso asseverar a veracidade de tudo o que me dizem. Acresce que a vida dos outros me interessa dolorosamente pouco e a de João Miguel não é excepção).

João Miguel, a mulher, os quatro filhos deles e eu vivemos - com mais quinhentas mil pessoas, mais coisa menos coisa - nesta cidade. «Toda a gente» se pergunta como é que um pintor de paredes está há tanto tempo casado com uma «celebridade». Eu não. São assuntos que me interessam pouco: cada um casa-se com quem quer ou com quem pode. Se ele suporta a mulher e se esta o suporta a ele - isto é, se se suportam mutuamente; se educaram correctamente os filhos; se se entendem em todos os lugares onde um casal deve entender-se - a saber: na cama, na cozinha, na sala, na rua e em casa de terceiros - não há razão alguma para eu me intrometer na vida deles. Se nada disso acontece, então ainda menos razões há para que as suas vidas sejam objecto de interesse ou tema de conversa nas tabernas.

De momento, escapa-me o nome da mulher. Creio que é Ana, mas não tenho a certeza. Como disse, interesso-me pouco pela vida dos outros. Já a ida de João Miguel ao mercado me atrai e muito: o rapaz está desempregado, não gosta de viver a expensas da mulher e vai, voluntariamente, expor-se a uma Via Crucis - dizer olá a toda a gente que conhece sem poder parar para beber um copo? Ou beber só um quando quer beber dois? Ou comprar coentros quando o que quer é secretos de porco ibérico a vinte e oito euros o quilo?

A explicação é simples: nos dias em que não morre, João Miguel vai ao mercado saber como será quando morrer.

Duas ou três coisas que eu não sei dele

Os «especialistas» deviam ter-se alegrado com a «variante Delta»: não é preciso ser virologista para se saber que quanto mais contagioso é um vírus menos perigoso é. Faz parte da cultura geral. Em vez disso, aproveitaram a ocasião para deitar gasolina para cima do fogo, como se fosse preciso mais combustível. Agora vão morder-se os dedos: os casos no Reino Unido estão a diminuir a olhos vistos, a «variante Delta» é prevalecente e tudo o que podem dizer é que não sabem explicar essa descida de contágios. Um deles diz que a população deve ter mudado de comportamento, assim de um dia para o outro, fiat lux

Que raio de mundo fabricou a minha geração? Como é que se dá ouvidos a esta gente? Como é que os jornalistas ainda conseguem andar de pé, sem coluna vertebral?

Bradar

Um contrato que devia ter sido assinado há duas glaciações voltou a ser adiado. Pela primeira vez em muito tempo soltei meia dúzia de vitupérios e voltei a confirmar a opinião que tenho sobre a «culpa»: é muito mais fácil lidar com as contrariedades se lhes atribuirmos a «culpa» a alguém - que habitualmente não tem culpa nenhuma, claro. A fatalidade, o azar, o acaso - a nossa ansiedade, quando precisamos desesperadamente de qualquer coisa - são responsáveis pela maioria daquilo de que nós próprios não somos. É uma luta entre nós e o acaso na qual os «outros» têm um papel residual. A fúria esvai-se com o barulho de uma bóia a esvaziar-se. Quando acabar, volto para a cama e tento readquirir uma forma humana. Por enquanto, só me apetece bradar. Não sei é a quem.

26.7.21

Cem metros barreiras

Ha dias em que a vida me parece igual a fazer um cego a correr os cem metros barreiras.

Modernidade, cueiros

Nunca pensei um dia contradizer-te, Arthur. Il ne faut pas être moderne. A modernidade que estamos a fabricar ainda está no ventre do presente e já cheira a cueiros.

Diário de Bordos - Palma, Malloca, Baleares, Espanha, 26-07-2021

Hoje lá tive a minha tourada no P.: um squall desenrolou parte da genoa e foi preciso arreá-la. O vento acabou quando a genoa estava em baixo, claro. Telefonaram-me do STP, o sítio onde eu gosto de ir para lhes ver as pernas, às belezas todas que andam com elas tapadas pelo mar. Fiquei cansado. Começo a ficar preocupado com a facilidade com que me canso. Em breve terei três semanas de back to back. Vamos ver como é que a carcaça reage. A carcaça e o que lhe está por cima, verdade seja dita, que este cansaço é como uma vaga de fundo, não se vê de onde vem nem para onde vai.

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«L. talks very highly of you», diz-me P. E isto sem me ter visto agarrado à genoa como se cada golpe do pano me viesse directo à carne viva. O pessoal do STP veio pear o bote, uma cinta de cada lado, como se a senhora precisasse de ligas para se manter de pé. Precisa. Disse-lhes que sim e que quanto mais depressa melhor. Agora está em árvore seca, mas deixá-lo. Peado sempre fica melhor ele e eu mais descansado. Um dia lembrar-me-ei destes três anos e quase meio (agora) e perguntar-me-ei «Mas que raio fizeste tu?» «Tratei duma rapariga caprichosa, insolente, obstinada, pérfida...» «Porquê?» «Porque ela é linda e eu sensível à beleza» (a segunda oração desta frase vai de certeza levar muitas modificações, consoante os dias).

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Pensava que ja tinha aprendido a viver comigo, mas não. Ainda consigo irritar-me como mais nada nem ninguém consegue. De certa forma é uma sorte, mais uma: o inimigo interno é preferível aos outros todos, não é? É uma luta mais igual. Conhecemos-lhe a panóplia toda: a melancolia, a tristeza, a saudade, o desejo, a vontade de estarmos onde não estamos...

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Talvez este cansaço venha de fealdade. Isto é, de estar cansado da fealdade. Não sei. Acho que sou novo de mais para isso - ou insuficientemente velho, se preferirem. 

(Adenda: a humanidade que este vírus descobriu é feia, maldosa e cobarde.)

Transparência

Vivo num canto da casa, o canto menos visitado. Como num canto da mesa, durmo num canto da cama. Ninguém me vê, não vejo ninguém. O mundo exterior chega-me filtrado pelas paredes, pelos espessos cortinados, pela vontade - ou falta dela - de o ouvir. Oiço a música de há cinquenta anos, ou mil anos, às vezes mais, raramente menos. Como a comida do dia, a que compro no mercado ou me chega por mão amiga, se bem desconhecida. O meu mundo é este: paredes, cortinados pesados, vendedores do mercado, as páginas dos livros para os quais olho sem ler. Já mal sei ler, de resto. Mal vejo, quanto mais ler! A luz chega-me esbatida, como se o mundo fosse feito de nevoeiro. Às vezes ocorrem-me crises de optimismo incontrolável, de que este «como se» é exemplo. Como se o mundo fosse nevoeiro... Que queres tu que ele seja, paspalhão?

Troquei a solidez pela solidão. Isto tem de ser mais bem explicado: troquei a solidez do mundo exterior pela solidão do interior? Não me parece. Estar sozinho não é o mesmo que estar só. De toute façon, on s'en fiche. Qu'est-ce que j'en ai marre de toutes ces explications! Qu'elles aillent se faire foûtre, les explications. Em breve não terei palavras, ficarei reduzido aos sons e à luz. Agrada-me a ideia de perder palavras como a outra espalhava pedras no caminho de ida para saber o de volta. Talvez sejam as palavras que me salvam a solidão, que ma tornam suportável? Como o sumo de limão salva a mayonnese? Como um laivo de humor salva o amor, um seio um corpo? Não sei. Pouco me interessa, na verdade. Estou sozinho nos meus cantos - casa, cama, mesa, música, palavras. Encaixam-se uns nos outros como algumas vidas.

Da janela vejo flores e outra parede. (Afinal tenho uma janela sem cortinados.) De mim, não vejo nada: sou transparente. O mundo passa por mim e não o vejo. Fica uma consolação: ele tão pouco me vê.

25.7.21

I'm lucky, I can walk under ladders

O cansaço é um veneno e dormir o seu antídoto. Durmo o veneno todo destes útimos dias, a frustração de ver expectativas furadas, a expectativa dos dias felizes que me esperam e que tão ansiosamente espero. Durmo isso tudo, as palavras acumulam-se, zangam-se comigo, viram-me as costas. Bebo um copo do vinho comprado no monhé da esquina, uma Shiraz com cinquenta metros de aspas de cada lado. «Quero um vinho que custe no máximo cinco euros», disse ao senhor da loja. Apresentou-me dois. Do outro tinha a certeza de ser vinagre adocicado; escolhi este: a Shiraz sempre faz melhor vinagre do que a tempranillo ou coisa que o valha. Penso na sorte que tenho: «posso passar por baixo das escadas, não preciso de pulseiras, não tenho coelhos» (Joan Armatrading, I'm lucky, para quem quiser ouvir). Verdade seja dita: por vezes cai-me a escada, o pintor e o balde de tinta em cima. Mas isso é só às vezes. Nas outras, vou ao monhé comprar vinho a cinco euros a garrafa (ele deve comprá-lo a cinquenta cêntimos a caixa), venho para casa ouvir música, deixo de me chatear com as palavras - dissolvem-se bem em vinho, seja ele barato ou caro - confirmo que a maioria da música moderna me maça, por boa que seja, troco o Knopfler pelo Clapton - You're wonderful tonight nunca me maçará -  penso que que já me embebedei várias vezes no Basil's onde o Clapton tocou... Isto não é pensar, é divagar. Perco-me na política nacional, peço uma vez mais que me tirem o chip  português da mente, penso na sorte que é andar no mar e não ter de ouvir estas coisas, acabo por me refugiar na Hidegarde. O eterno é o melhor antídoto para tudo. E o mar, claro, que é a sua forma líquida. 

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Amanhã o P. espera-me cedo. Tenho quem me espere e tenho a quem esperar: I'm lucky, I can walk under ladders

(In memoriam L. M., que nem na morte teve sorte.

24.7.21

Medo e gorjeta

Hoje, pela primeira vez, dei gorjeta a um taxista que me impôs a máscara «e tapar o nariz». Estava demasiado cansado para discutir (e farto, também) e em vez de descer do táxi resolvi perguntar-lhe se me impunha a máscara por medo da multa se por medo do bicho. Deste último, claro. Daqui iniciou-se uma conversa amena, cordial, pacata. O senhor tem um irmão que esteve nos cuidados intensivos e tem medo, ponto. Perguntei-lhe se o irmão usava máscara, disse-me que sim, mas visivelmente o tom era de quem nunca tinha pensado nisso. Sim, o irmão usava máscara, mesmo assim apanhou o vírus e foi parar a uma UCI. Expliquei-lhe que o vírus é demasiado contagioso para ser parado por uma máscara, etc. mas o homem não se demovia. Já quase no fim da corrida disse-me «Sabe? Se o governo amanhã me disser para eu andar a pé-coxinho na rua, eu ando. E V. vai dizer "Olha aquele tonto na rua a pé-coxinho" e eu vou continuar a andar assim, porque tenho medo.»

Se isto não vale uma gorja não sei o que a vale.

23.7.21

Espera

Espera. Deixa-me dizer-te a verdade. Preciso de falar contigo. Preciso se ouvir-te, de me ouvir quando te falo. Não tenho nada de importante a dizer-te, nota. Só: amo-te, quero-te ao meu lado, amo-te (outra vez). Sou um homem simples. Amar e ser amado chegam-me. Espera.

18.7.21

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 18-07-2021

Fiquei hoje a saber que integro o clube restrito dos que têm um familiar próximo doente com Covid. Insisto no doente, apesar de ter duas versões diferentes: a do jovem enfermo e a da sua mãe. Divergem nos pormenores, claro: na intensidade, nas expectativas. Estou aborrecido mas não preocupado. Não gosto de ver ninguém sofrer e menos ainda se esse alguém for o meu filho. Não estou, contudo, preocupado: o rapaz é forte, sensato, não se deixa arrastar por alarmices. Vai sofrer, como eu sofri em Fevereiro do ano passado e como milhões de pessoas por esse mundo fora sofreram. Umas mais, outras menos. Espero que ele faça parte deste segundo grupo e aqui declaro, já e sem qualquer espécie de contenção, o meu amor por ele.

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Pouco a pouco, o M. toma forma de barco. Se não é a primeira é uma das primeiras vezes que trabalho num barco novo. Estou encantado com o armador (e proprietário). Pode ser que esteja enganado, mas parece-me que vou passar um Verão magnífico. Obrigado ao J. V., que me passou o contacto.

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Estou em Barcelona e desta vez sim, estou de passagem. Apercebo-me de que a diferença é que desta vez estou embarcado e com muito trabalho a bordo: saio para comer e para fazer compras para o bote. O barco é novo e o armador tem confiança em mim: vou imprimir-lhe a minha marca. Há qualquer coisa de biológico nisto, não há? Há, mas provavelmente seria mais correcto dizer «qualquer coisa de animal.»

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Para quem vem de Palma, os catalães parecem adoráveis. Há muito que tinha perdido o hábito de ser recebido com verdadeira simpatia em todo o lado, apesar da resistência à máscara. Só muito raramente me chamam a atenção, à qual chamada respondo cortesmente e na maioria dos casos continuando de cara descoberta, para que todos vejam a maravilha do meu sorriso. Além disso, temos comido optimamente nesta Barceloneta da qual praticamente não saio e que tão mal conhecia.

Devia fazer uma lista de restaurantes, mas de momento os únicos que tenho em mente são o El Xiringo e a Bodega de San Fermin. Há mais: duas refeições por dia sem repetir - no caso do El Xiringo, involuntariamente: é preciso reservar - facilitam a descoberta de waterholes

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Nós cépticos temos um enorme esforço de comunicação pela proa: explicar às pessoas que esta desgraça não é consequência do vírus mas sim da resposta ao vírus.

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O armador é uma simpatia, mas a distância entre mim e os não-marinheiros que andam de barco aumenta em vez de diminuir. Hoje pensei - para atenuar a coisa - que no fundo eles estão no mar como eu em Barcelona: de passagem. A questão é saber se devo dizer «Barcelona» ou «terra». Penso que é «Barcelona», se bem seja impossível distinguir entre «penso» e «espero». É sempre, por mais que se diga.

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É preciso partilhar o saber. Que ninguém é uma ilha todos sabemos; que essa ausência de insularidade se estende ao saber é menos assumido. 

(Este deve ser o único post em que alguém me vê defender especialistas. Refiro-me aos especialistas que sabem e não aos que vendem. E refiro-me ao saber útil, não ao que só causa desgraça e miséria.

Eu explico: um monte de sistemas a bordo não funciona. E., o arrais e por vezes G., o proprietário, agitam-se como espermatozóides na Claudia Schiffer para pôr aquilo tudo a funcionar. Explico-lhes que amanhã teremos o técnico a bordo e que a agitação deles é tão inútil como a do dito coiso: a Claudia de certeza tomou a pílula. Lembro constantemente a E. a história do «chinês» (entre aspas porque o homem é tudo menos chinês): E. comprou uma carta SIM para o telefone e tentou pô-la no aparelho. Perdeu meia hora a tentar e não conseguiu. Tentei cinco minutos e falhei. Levámos aquilo ao «chinês»: levou cerca de trinta segundos.)

É preciso partilhar o saber: deve ser daí que vem a minha irreprimível propensão pedagógica.

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A moda feminina - pelo menos nas camadas mais jovens da população - encoraja as jovens a andar vestidas na cidade como se estivessem na praia. Oponho-me frontalmente a tal prática (embora não tão frontalmente quanto desejaria): a cidade é cidade e a praia praia, por muito perto que estejam uma da outra.

Bem sei que ando a reclamar contra as modas há cerca de quarenta anos, mas isso não invalida nada. Talvez mesmo antes pelo contrário: como diz o C., tudo vai de mal a pior e nada confirma tanto essa opinião como a moda. (Verdade seja dita: nem eu ligo às minhas reclamações).

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Na Flórida percebi pela primeira vez (e última: ficou marcado) que o meu país é o Mediterrâneo; agora em Barcelona confirmo que o Mediterrâneo dos EUA é San Francisco, como me ocorreu logo da primeira vez que lá fui. Não é a Flórida. E se alguém me perguntar onde eu vejo verdadeiramente fusão entre o sul e o norte da América: em Porto Rico, onde agora gostaria de beber uma piña colada no bar Barranchino. Tão pouco me importaria de estar no Soggy Dollar Bar, em Jost van Dyke, a beber painkillers. Ou no bar em St. Johns onde conheci o dark and stormy, o nome escapa-me mas não o sítio. Escrever dá sede, não dá? Sede planetária, quero dizer. Sede global. Amo-te, mundo.

(Ou será antes: bebo-te, mundo? Vivo-te, mundo. Como-te e bebo-te e vivo-te até ao fundo, mundo?)

14.7.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2021

A seis euros não há más pizzas (se fosse pedante diria pizze. Felizmente não sou. Ou sou e sei disfarçar muito bem.) Esta não foge à regra: é uma merda. Felizmente o vinho tão pouco é grande coisa. Assim não há desequilíbrios. O dia escorrega lentamente para o fim. Amanhã de madrugada vou para Barcelona. Acho injusta e discriminatória esta prática de as companhias aéreas porem os voos mais baratos para horas impossíveis. Quem me garante que amanhã às cinco da manhã estou acordado? E às cinco e meia na paragem do autocarro? Porque é que os táxis não são mais baratos? Porque gosto tanto deste fim de dia, fim de ciclo? Porquê me custa tanto deixar Palma-a-sedutora, Palma-a-calma, Palma-a-suave? O P., claro. Mas não só. Ainda por cima, nem sequer os deixo: não tarda estou aqui outra vez. Estou a ficar piegas, ou a abrir mais facilmente a porta à melancolia. Verdade seja dita, sempre a teve aberta. É visita da casa há muito tempo. Por isso deixo o dia fazer de mim um escorrega; sinto-o deslizar como se fosse a sua última descida numa pista de ski: já só a gravidade trabalha. Hoje a gravidade é universal, é uma gravidade galáctica, planetária, astral, astronómica, metafísica, sentimental, meio amaricada. 

Provavelmente por isso saio do sítio onde comi a pizza de merda e venho ao Divino: "Núria, preciso de vinho e de crédito. Tens os dois ou só um?" Sabia a resposta, claro e agora regalo-me com um Chianti magnífico e com melenzane sott'oglio. Toda a gente devia conhecer o Roberto e prometo a toda a gente que vier a Palma: peçam-me a morada. Eu dou-a, não a vendo. O Roberto é siciliano, a Nuria de Barcelona e os dois fazem a metade ocidental do Mediterrâneo. Isto é, explicam porque é que este mar é a minha casa. Uma das minhas casas. 

.........

Amanhã vou para Barcelona. Um novo ciclo começa e penso que se é fácil sair do P., é impossível tirar o P. de mim. Mas não é fácil. Foi precisa uma garrafa inteira de Chianti, que acabo agora com um sentimento de dever cumprido (o do Chianti, não o do P., que tem dois furos na barriga e mais meia dúzia de mazelas velhas, que estão a ser reparadas ao ritmo da chuva no Sahara). Para quem, como eu, não acredita em maus olhados, sortes ou "casos", aquele bote é uma bela prova. No sentido de provação.

13.7.21

O mundo que construí (ou: ataque de pânico)

Horrível, horrível é pensar que não poderia viver noutro.

Viver é construir prisões?

Vou dormir

Escrever no telefone é bom para os leitores (escreve-se menos) e para o escritor (pensa-se mais). A ideia, hoje - por exemplo - era escrever sobre o maelstrom que o dia foi. Acabo a pensar no rum que não bebi no Antiquari porque amanhã quero acordar cedo, no rum com sumo de laranja que não bebi no Big Foot pela mesma razão. E agora escrevo no telefone, sem saber como continuar. Escrever é um perpétuo diálogo com um interlocutor que nem sempre está e nos deixa o telefone pendurado. De resto, nada a dizer. Nada a pensar, sequer. O interlocutor que vá passear. Eu vou dormir.

Do pessimismo e outras obsessões

Já aqui o perguntei uma vez: como fazem os pessimistas para ter sempre razão? (Não têm. Isto é retórica.)

O dano no meu casco (há aqui um bocadinho de marinheirês misturado) é mais fundo do que eu pensava. E hoje fiquei a saber que não há na ilha materiais para a reparação. Não me perguntem como é que uma ilha destas não tem kevlar, epoxi e espuma de alta densidade. Também não sei. Sei, isso sim, que ao longo dos três anos deste refit tive de mandar vir uma enorme quantidade de material da Península. 

Não sei, e por isso agora trato de dissolver a minha ignorância em vinho branco. Depois logo se vê, como diz o ceguinho.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-07-2021

O meu P. está de novo no hospital. Desta vez, no STP, o varadouro dos ricos e poderosos, o sítio onde me sinto como um pornógrafo na mansão do Hefner, como um miúdo numa loja de bombons deserta. A meia dúzia de metros (por assim dizer) tenho o maior travelift da Europa, com uma capacidade para embarcações até mil toneladas de deslocamento, sessenta e sete metros de comprimento e doze de boca. A engenharia é uma coisa linda.

Deixemo-nos de deslumbramentos: a porrada foi muito maior do que eu pensava. Doeu-me, quando lhe vi os estragos.  O meu optimismo incurável pregou-me de novo uma partida. A vantagem dos pessimistas é que quando se enganam só têm boas notícias. Enganam-se sempre para o mesmo lado. Nós optimistas não: damos para os dois lados (salvo seja, claro).

De modo, olha, é assim. Quinta-feira vou para Barcelona e depois se verá. O bote não estará pronto nem nada que se pareça mas terá quem o leve para o seu lugar. Preciso de "férias", passe a ironia. 

12.7.21

Pedra filosofal

Acabo no Toni, com chouriço em vinho e um copo de tinto. Os chouriços não estão bons: secos e muitos. Esqueci-me de dizer à S. que só queria um ou dois e ela, à boa maneira maiorquina, arrefinfou-me uma dose. É tarde, segunda-feira, ontem não havia ninguém na Sant Magi (ou seja, ainda houve menos na praça de Santa Eulália) e decido marimbar nisto tudo. Como três dos cinco chouriços, penso no almoço - um prego de entraña absolutamente delicioso no Myniones - penso nesta transmutação de um dia em felicidade. Como se faz? Que mescla, que caos, que mistura levou a este resultado?

Palma tem a capacidade de transformar luz em paz, horas em harmonia, vida em sintonia. Essa transmutação ocorre nas praças, pequenas e tranquilas, cada uma mais linda do que as outras. Palma é uma alquimia e hoje eu sou a pedra filosofal.

Dia, frutos

Tudo devia acabar como alguns dias acabam. Como o de hoje acaba, por exemplo. Suavemente, com a consciência do trabalho feito, com a temperatura a decrescer pouco a pouco, com a certeza de que tudo isto faz - ou fará, um dia - sentido.

Amar a pessoa certa e por ela ser amado; fazer o que se pode, tudo o que se pode; fazer o que se sabe, tudo o que se sabe. Ver a felicidade a cada canto, pensar na sorte, nessa mistura: quanto de sorte há na minha alegria, quanta felicidade tenho na sorte? Quanta dessa sorte nasceu dos azares?

Que importa, perguntas-te? Que importa saber de onde vem este fim de um dia perfeito? (Enfim, quase perfeito, tu sendo incapaz de não interferir no correr do dia?)

Que importa saber para onde vão ou de onde vêm as raízes da árvore, desde que ela dê frutos?

11.7.21

Fototropia positiva, vida

Acredito que daqui a poucos anos tudo isto não passará de uma má memória  porque a vida é mais forte do que a morte e aquilo que nos estão a tentar impor é morte. A vida vencerá. Há que ter confiança na natureza, na biologia. A vida é fototrópica positiva: orienta-se para a luz.

Prova?

Se fosse preciso provar que não sou um escritor: prefiro ser lembrado por ser um gajo decente do que pelo que escrevo.

Bolina: uma vida

Os ingleses têm milhares de frases sobre a navegação. Todas incisivas, mas nenhuma tanto quanto a que diz "A gentleman doesn't sail windward". Traduzido à letra,  dá "Um cavalheiro não navega para barlavento". Por miúdos, fica "Um cavalheiro não navega à bolina". Sobre a bolina - a arte de navegar contra o vento, isto é: contra a energia que nos faz mover - os franceses têm um dito muito menos subtil: "Au près, deux fois le temps, trois fois la distance, quatre fois la rogne": "à bolina, duas vezes o tempo, três vezes a distância, quatro vezes a zanga".

A minha vida tem sido uma longa bolina, entremeada de gloriosos largos e relaxantes alhetas. Nada de muito diferente de todas as outras vidas, suponho, excepto que as minhas bolinas vão um bocadinho mais longe do que a média, tal como os largos são mais rápidos e as alhetas mais deslizantes, mais relaxantes. Tenho vivido com vento forte, é o que isto quer dizer, com algumas calmarias podres de permeio.

Os últimos anos foram a um largo, mas estou a arribar e não tarda ver-me-ei numa popa (alheta. Popas arrasadas não,  obrigado), em direcção a um porto. (Esse porto tem nome, já lá arribei algumas vezes, sei que será o meu último porto.)

Mas não era aqui que eu queria chegar. Era: um cavalheiro não bolina, mas a quantidade certa de bolina transforma o pior dos trogloditas num cavalheiro. (Tal como uma grande quantidade de popas transforma um cavalheiro num bárbaro, mas isso são rochas de outros mares).

PS - Glossário

  • Arribar - tem dois sentidos: 1 - afastar a proa da linha de vento; 2 - fazer escala (geralmente involuntária ou imprevista) num porto.
  • Alheta - a parte da embarcação que fica entre a popa e o través. 
  • A um largo - navegar com vento pelo través (de lado).
  • Popa arrasada: quando o vento vem exactamente da popa, isto é: faz um ângulo de 0º (ou 180º, para os puristas) com a linha-de-fé.

Luso Magyar News 12 - Charter

 CHARTER

A actividade de um skipper tem vários ramos, como as árvores. Mas antes, começo por pedir desculpa aos meus leitores: a língua do yachting é o inglês e há termos que não têm, simplesmente, tradução. «Actividades marítimo-turísticas» em vez de charter explica límpida, cristalina, definitivamente o que quero dizer. Por isso haverá muito inglês neste texto.

Continuemos. Um skipper pode ser charter skipper, delivery skipper (skipper de transportes), owner’s skipper (skipper de proprietário), racing (ou regatta) skipper. A maioria das vezes somos tudo isto menos racing skipper, que tende a ser uma categoria pouco miscível com as outras. A minha maior experiência é no transporte e no charter. A menor, nas regatas, apesar de ter sido por aí que entrei na vela «cabinada» (em português chamamos «cabinadas» às embarcações maiores, que não têm de voltar ao porto à noite. Em francês chamam-se quillard e em inglês keelboat, porque têm uma quilha – às vezes duas - e não um patilhão).

(Pequeno parênteses: uma das razões pelas quais a vela tem tanta dificuldade em «penetrar» nos media grande público é que não há tal coisa como «vela». Enquanto que no futebol há o futebol de onze e o de salão (corrijam-me se estiver errado) a vela está dividida em centenas de classes. O meu irmão, por exemplo, que é campeão nacional de SB20 e já o foi de Laser não é um campeão de vela (é, mas isso é outra história) ao contrário daqueles clubes que rotativamente são campeões nacionais de futebol.) É campeão da classe (e com classe, mas também isso é outra história).

A minha intenção hoje é falar-vos do charter. Explicar em que se divide e em que consiste, quais são os seus pontos fortes e fracos (ou bons e maus). A ver se consigo.

Basicamente – isto é, na base, no princípio – o charter consiste no aluguer de uma embarcação (à vela ou a motor) por um curto período de tempo – horas, dias, semanas. (Se o período for longo deixa de ser charter e passa a afretamento, coisa diferente). O nosso primeiro V tem dois ramos: day charter e overnight charter. Uma embarcação que faz day charter sai algumas horas com passageiros, dá um passeio, faz um almoço, vê o pôr-do-sol, às vezes organiza umas festas (se só fizer isso chama-se um party boat) e volta para o porto. O overnight charter é diferente: os passageiros passam a noite a bordo. Tradicional e maioritariamente os charters começam ao sábado e acabam ao sábado, dando origem àquilo que se chama um back to back: o skipper tem três ou quatro horas para desembarcar, tratar da lavagem de roupa, ir a um restaurante, enquanto a equipa de terra arruma, limpa e repara o bote. (Já vi equipas de terra fazer milagres – sobretudo a malta da mecânica. Nas limpezas é mais fácil. Na Martinica vi o motor de um cata ser mudado em meia dúzia de horas, por exemplo. Se isto não é um milagre equivalente à transformação de água em vinho não sei o que é um milagre. Também já as vi fazer coisas abomináveis – uma vez em St. Martin o técnico que acabara de «reparar» um sistema de leme e entregue o barco ao cliente disse-me «Luís, não vou conseguir dormir até aquele barco voltar. Eu não navegaria naquilo». Mas St. Martin tem o problema das pontes, um atraso de meia hora transforma-se num atraso de meio dia e... Pronto, não interessa. Fiquemo-nos pelos milagres: uma bóia insuflável enorme por baixo da plataforma do cata, um dos cascos no ar, uma equipa de três pessoas a trabalhar num sítio onde só cabe metade de uma, um motor novo no cais, os clientes a Ti’punch e hey, presto, senhores, estão prontos a largar. Há coisas lindas de se ver e esta faz parte indelével da minha colecção delas.)

O back to back é das coisas mais esgotantes que fiz até hoje. O meu record é de quatro (talvez cinco) semanas, ao fim das quais sabia vagamente o meu nome, mas normalmente o ritmo é três de trabalho e uma de folga. Bastante aceitável, sobretudo quando se tem o apartamento que eu tinha na Martinica ou em Antigua.

Quanto à tripulação, o charter pode ser bareboat (sem tripulação), crewed (tripulação completa. Ou seja, nas embarcações nas quais trabalho, skipper e stewardess, vulgo stew) ou skippered (só o skipper). No crewed charter a divisão do trabalho é simples: a stew trata do interior e o skipper do exterior, se bem não seja proibido ajudarem-se mutuamente. Há que coordenar horas de saída e chegada para minimizar tanto quanto possível o tempo que a stew passa a cozinhar no mar – os passageiros não querem «comida de marinheiro» - para dar tempo à senhora (invariavelmente) de ir a terra fazer compras, etc. Devo dizer que se um skipper ganha mais do que uma stew esta trabalha muito mais. É por isso que sou adepto da pratica de dividir as gorjetas metade metade. Essa percentagem não é universal, alguns skippers ficando com uma fatia maior. Outra maneira de contornar o problema é dizer aos clientes para darem a gorjeta separadamente, mas poucos o fazem. No skippered charter o trabalho no interior é feito pelos clientes. Ou seja, não é feito. O barco é normalmente entregue numa sujidade para mim repelente, mas que para os clientes corresponde a) à ideia de que estão em férias e b) ao facto de que o preço do aluguer inclui sempre  a «limpeza» (reminiscência dos tempos em que esta era opcional e depois de os clientes saírem com o barco «limpo» ser necessário enviar uma equipa para refazer o trabalho. Hoje deixou de ser uma opção e nos últimos dias os clientes navegam em barcos num estado que não aceitariam em sua casa - porque não o é, mas isso fica para depois. Às vezes a tripulação inclui um marinheiro, para além da stew, mas no tipo de embarcações que me acolhe isso é raro (se bem eu lamente, porque um deckhand ou deckie me tira setenta e cinco por cento do trabalho).

O charter pode ser ainda ao camarote – os passageiros alugam um camarote, o percurso está fixado previamente – ou full vessel: a embarcação é alugada apenas por um grupo (habitualmente uma ou duas famílias, um grupo de amigos) e estes decidem o trajecto que querem fazer.

Sou skipper de armador há três anos, mas é do charter que quero falar. A esmagadora maior parte dos trabalhos que faço são em regime de skippered charter. O meu trabalho consiste em pilotar a embarcação, sugerir restaurantes e cafés e bares e vistas aos clientes, levá-los e ir buscá-los a terra no bote quando estamos fundeados – aqui nas Baleares e nas Caraíbas praticamente todos os dias - sugerir escalas em função do tempo. Isto parece pouco cansativo, mas não é. Cada uma destas coisas – com a óbvia excepção da recomendação de restaurantes – exige uma concentração enorme, é preciso estar sempre de olho atento para não haver acidentes, é preciso impor-se, impor e fazer respeitar regras de segurança às quais as pessoas estão pouco atentas (o que é compreensível, estão de férias). Quando comecei a minha primeira empresa de charter (empresa sendo um exagero indescritível) nos Açores, na ilha de S. Miguel, pus um anúncio a pedir uma stew que dizia «se não gosta de servir, não trabalhe numa empresa de serviços. Se gosta, trabalhe em charter – nenhuma outra actividade lhe pedirá tanto.»

II

Como é que isto se traduz na prática? Vamos imaginar um dia de charter nas Baleares. Sou contratado por uma agência e não pela empresa de charter. Ou seja: não conheço as barcas e a empresa não me conhece (isto porque ainda não fiz semanas suficientes. E não será este ano que me vão conhecer, porque só tenho três semanas confirmadas. As outras serão com um armador peruano, com saída de Barcelona).

A agência informa-me da hora a que devo estar a bordo. Por princípio, chego quinze minutos mais cedo, apresento-me à empresa armadora e em seguida ao cliente – normal mas não necessariamente já está a bordo. A primeira coisa a fazer é receber a massa da semana, em dinheiro líquido (isto é, cash. Notas. Papel). Gosto de ser pago adiantadamente e em dinheiro. (Se não gostasse teria pouca escolha, esta é a norma.) Segue-se o briefing da empresa sobre o barco, que dura cerca de meia hora e nunca cobre tudo o que se precisa de saber. Em seguida, pequena apresentação aos clientes: quem sou, como sou e – sobretudo – o que devem ou não devem fazer durante a semana, como se usam as casas de banho, a água (peine perdue, continuam a usar água como se vivessem ao lado de uma barragem), a electricidade (ditto). Não falo da limpeza, porque a casa é deles (e porque não se integra no discurso que já tenho mais ou menos preparado). Depois, vem a parte de os ouvir: de que gostam, do que não gostam, o que esperam das férias? Em função desta informação e da meteorologia decide-se um itinerário, que nesta ilha é relativamente fácil: ou se vai para Oeste, para os lados da Tramuntana, ou se vai para Leste. Vamos sempre para sotavento, para o lado oposto àquele de onde sopra o vento porque as calas são abertas e os senhores não costumam gostar de dormir num barco que se mexe como um bailarino de hip hop (no que têm inteira razão, de passagem se diga).

Isto feito, largamos. O problema aqui é que é muito difícil explicar aos clientes que a melhor ajuda que me podem dar é ficar quietos, com excepção do que vai à proa largar os muertos. Da popa trato eu. Às vezes, contudo, querem ajudar e temos de encontrar uma forma de os deixar ajudar-nos que não provoque muitas avarias. O mesmo se passa mal estamos fora do porto, caso haja vento: é preciso içar pano, toda a gente quer ajudar, a coisa demora o dobro do tempo que levaria se eu o fizesse sozinho. Mas bolas, as férias são deles, o dinheiro idem, não estamos em regata. «Quem quer ajuda, quem não quer não ajuda» (aspas porque é uma frase que faz parte do meu briefing aos clientes. Como vamos para sotavento, a primeira perna do percurso é sempre feita à popa ou a um largo. A excitação da largada desapareceu, as pessoas arrumam-se a bordo  e eu tento perceber quem é quem no grupo (entre seis e oito pessoas, habitualmente). Isto é importante e nem sempre tão fácil como parece. Três horas depois chegamos ao primeiro fundeadouro (excepto se formos para Leste e os clientes quiserem parar em cala Pi, coisa que tento desencorajar para a deixar de reserva para o fim. É bom deixar para a última noite uma paragem perto de Palma (ou do porto final), porque chegar atrasado ao check out é razão de pena de morte ou maldição ad aeternum por parte do chefe de base. Para fundear preciso de alguém à proa e aí não há escolha: fundear sozinho é uma seca e uma correria. Uma vez o gancho no fundo, bem unhado, põe-se o dinghy na água, o motor no dinghy e começam-se as viagens para terra. A maioria das empresas de charter tem botes demasiado pequenos para a lotação das embarcações, porque não gostam de passar a vida a comprá-los: mesmo com skippers profissionais (se bem mais raramente) os botes perdem-se com uma facilidade desconcertante e preferem tê-los pequenos e baratos a grandes e caros. Ou seja: há que fazer várias viagens. Se os clientes optaram por nadar antes de ir para terra – acontece muitas vezes – há que a) explicar-lhes que não se devem afastar do barco, b) largar uma bóia pela popa para que eles tenham um cabo a que se agarrar se precisarem (mesmo uma corrente fraca diminui bastante a velocidade de um nadador médio) e c) vigiar constantemente o movimento dos dinghies nos arredores, porque há imensa gente que não olha para a frente quando tem o pau de um motor nas mãos.

Se o barco ficou bem fundeado, o tempo o permite e os arredores não são perigosos (na cala Pi isto é impensável, por exemplo) também vou jantar à terra. Depois, trata-se de esperar que me telefonem para iniciar os transportes de regresso a bordo. Com o grupo que ontem deixei, por exemplo, eram precisas três viagens. Às vezes são mais, raramente menos.

As acomodações da tripulação não são exactamente luxuosas. Quando temos sorte conseguimos um beliche no interior, quando não temos sorte calha-nos um «camarote» de tripulação cujo volume é aproximadamente o dobro do meu. Nos dias bons, o triplo. Fica sempre no bico da proa e alguns catas, por exemplo, têm o beliche num dos cascos e a casa de banho no outro, o que nos transforma em duplos ginastas cada vez que precisamos de os utilizar (admitidamente poucas por dia, já que à noite todos os gatos são pardos).

Quando durmo no interior fico perto do poço e deixo o alarme de fundeadouro em distâncias pequenas. É a única coisa que me acorda e gosto de ir percebendo os movimentos do barco. (Em cala Pi e às vezes em Sa Calobra passo um cabo às rochas, mas uso o alarme na mesma, apesar de não servir de muito: aquilo é apertadinho e as pedras estão mesmo ao lado.)

Releio o que escrevi e apercebo-me de que no fundo o trabalho parece chato: isto repete-se todos os dias. Escolher o próximo fundeadouro (ou marina, se tivermos ido para o lado leste da ilha e os passageiros quiserem dormir num porto), levantar ferro, navegar, fundear, preparar o dinghy, falar com as pessoas, tê-las debaixo de olho quando nadam perto da embarcação, ter a certeza de que o ferro unhou e que o cliente que nos ajudou a fundear tem uma noção dos metros de corrente que saíram, verificar tudo três vezes, acudir às pequenas avarias que nunca deixam de acontecer (e quase sempre se resolvem com três abanões e uma conversa com o objecto em falta), resistir à tentação da sesta, ir jantar, dormir, levantar ferro, reservar restaurantes, lugares de marina, táxis, resistir à tentação de explicar aos senhores que uma embarcação não é uma casa e que a corrente não vem da barragem ao lado mas sim de baterias (não vale a pena), ditto para a água, responder educadamente a todas as perguntas, mesmo as mais idiotas (uma vez perguntaram-me para que servia o mastro). Repetir sete dias, mais coisa menos coisa e recomeçar. Inacreditável como isto cansa mas não farta, não é? É. Nunca farta, excepto a partir da terceira semana e até se ter uma folga. Depois, ficamos felizes por recomeçar.

 Luís Serpa, Palma, 11-07-2021

 

Glossário

·       A um largo - com vento pelo través, isto é: de lado;

      Cabo – corda; 

·        Ferro – âncora;

·        Fundear – prender o barco ao fundo por intermédio do ferro;

·        Fundeadouro – local onde se fundeia. Alarme de fundeadouro: um alarme que nos avisa se o barco se moveu mais do que x metros;

·        Muertos – cabos que amarram o barco à proa, nas marinas do Mediterrâneo.

·     Patilhão – peça móvel que serve para impedir o barco de derivar lateralmente (ou minimizar essa deriva);

·        Popa – parte de trás da embarcação;

·        Proa – parte dianteira;

·        Quilha – apêndice fixo (às vezes tem uma parte fixa e outra móvel) cujas funções são impedir o barco de derivar lateralmente e equilibrá-lo. (Nas embarcações de madeira designa também a peça mestra à qual se vêm fixar as cavernas);

·        Transporte – ir buscar uma embarcação a um porto para o deixar noutro;

·        Unhar – um ferro que está bem preso ao fundo. O contrário é garrar.

 

10.7.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-07-2021

08-07-2021

Dia em Cabrera e agora de regresso a Colonia San Jordi. Continuo com muitas bolas no ar - é daquelas coisas que nunca mudará - mas tenho pelo menos esta sorte: faço o que quero e gosto (é uma sorte só, não são duas).

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10-07-2021 (Palma)

O pedinte preto do Mercat de l'Olivar não está. Melhor: poupei um euro. É o único mendigo a quem dou dinheiro. Claramente: racismo, passe o jogo de palavras mais do que discutível.  

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A gorja foi boa, em relação aos dias de trabalho: só trabalhei três. É a minha forma favorita de aferir a satisfação dos clientes. A maior que recebi, em termos absolutos, foi de três mil e quinhentos dólares (correspondia aos habituais dez por cento do preço do charter). Partilhei-a metade metade com a stew, erro do qual ainda hoje me arrependo. Foi uma das piores stews com que tive de navegar. Só não me arruinou o charter por milagre (e possivelmente alguns dons de prestidigitação da minha parte). Em termos relativos, uma vez deram-me ou cem ou duzentos euros por meio dia de trabalho. (Hesito entre cem e duzentos: a minha memória exagera tudo, sempre.) Foi em Antigua e vivia demasiado perto da marina para conseguir beber tudo antes de chegar a casa. Gorjeta em francês diz-se pourboire e eu tento honrar esse termo, tão nobre.

Já foi há muito tempo, há uma vida. Agora, só idealmente bebo os pourboire. O de ontem, por exemplo, foi estreado num táxi: tinha peso a mais para andar os dez minutos que me separavam de casa. (Para além da massa recebi um montão de garrafas e alguma da comida que sobrou.)

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Dormi até ao meio-dia. Não há melhor forma de resumir o cansaço.

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Hoje vou escrever sobre o charter para o LMN. Ver se consigo traduzir bem em que consiste exactamente este trabalho, do qual os skippers sensatos só exportam as fotografias bonitas e não falam do trabalho que tiveram antes e depois delas.

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Reencontro a minha herança paisana: escrevo no Fidel, ontem fui jantar à Núria e ao Roberto, em Cascais comi magnificamente no Fernando, passe a redundância. Isto é atavismo próprio de homem do campo, daquele que anda de botas enlameadas e mãos pretas de terra. (As minhas estavam pretas quando escrevi isto, mas era de óleo da corrente da bicicleta Órbita, essa poltrona de rodas, que estava sempre a sair. Felizmente o Ivo já tomou conta do assunto e as mãos voltaram à cor inicial). No passado, em muitos países, agricultores e marinheiros eram os mesmos: na Bretanha, num passado recente; na Escandinávia, noutro mais antigo. Creio que são poucas as comunidades que vivam ou tenham vivido exclusivamente do mar. Tema a explorar. 

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Ontem ocorreu-me que no fundo António Costa e Pedro Sánchez são piores do que Trump e Bolsonaro. Estes, pelo menos, não enganam ninguém que não queira ser enganado. Aqueles, debaixo do manto diáfano da democracia, enganam muito mais gente e são muito mais perniciosos (do que Trump. Bolsonaro é outro campeonato). 

7.7.21

Diário de Bordos - Colonia San Jordi, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-07-2021

Fui ver a exposição da Clara Ramalhão ao Porto. O título é Só Neste Porto Só. Título bonito e evocador. Gosto muito de algumas fotografias, pouco de outras, acho algumas coisas dispensáveis – as legendas das fotografias, por exemplo – mas penso que a exposição deve ser vista. Isto é: sai-se de lá mais rico do que se entrou. Para começar, os retratos: são óptimos. Retratam; tem-se a impressão de se conhecer os retratados ou se não de os querer conhecer. Depois, o tema. Não é original – fotografias das cidades vazias por esse mundo fora durante os confinamentos contam-se aos milhares de milhões, suponho – mas demonstra à excelência uma ideia que me ocorreu durante o primeiro período de clausura: as cidades são feitas de pessoas, não são feitas de pedras, ruas ou monumentos. São as pessoas que fazem as cidades, lhes dão vida e história. Um pai e um filho a pedalar de costas para a objectiva numa rua da Ribeira, à noite, parecem levitar. Efeito feliz da luz, mas sobretudo efeito feliz do movimento: são as únicas personagens, para além das pedras da calçada e das paredes das casas. Sem eles, sem aquela luz que os sustenta, a fotografia não seria muito diferente da de qualquer turista mai-lo seu telefone portátil. O mesmo se passa com o retrato da senhora a fazer o sinal da cruz, com o do vagabundo que se esconde: o Porto é eles, são essas pessoas e as respectivas histórias, que a Clara soube captar.

Uma das coisas que acho interessantes na exposição é um tema que a priori me arrepia: a fotografia no feminino. No fim dos anos setenta, princípio dos oitenta conheci na Suíça uma fotógrafa chamada Simone Oppliger. Foi a primeira vez que senti uma diferença entre a fotografia feminina e a fotografia masculina: a Simone não usava máquina e filmes (na altura) para fotografar. Usava sentimentos. Dito assim isto parece piegas, palerma e banal, eu sei. Mas foi o que me ocorreu quando via as fotografias que ela fizera de La Chaux-de-Fonds, uma cidade que naqueles anos não estava deserta mas andava lá muito perto. Com as fotografias da Clara tive exactamente a mesma sensação. Aposto que se fizesse à Clara as perguntas que fiz à senhora suíça obteria exactamente a mesma resposta: «não sei».

Eu sei: ide ver a exposição, vede a tristeza que é uma cidade vazia ou – pior ainda – pessoas a quem roubaram a cidade. O que não tem relevância pode facilmente ser deixado de lado sem que se note muito a perda.

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Primeiro charter desde Agosto de 2019. Praticamente dois anos. O prazer é o mesmo de sempre, a exaustão mil vezes superior. Há dias o A. R. dizia-me que tinha inveja das pessoas que fazem o que eu faço. Tendo a concordar com ele – é sem dúvida invejável (excepto quando se vem jantar a um restaurante que cobra quase vinte euros por uma pata de polvo; a qual pata estava, ainda por cima, sublime. Antes estivesse má). Suspeito contudo que ele não sabe da missa a metade. Tenho trabalho praticamente ininterruptamente até meados de Setembro. Vamos ver como estará a carcaça após dois meses e meio deste ritmo. Quando era mais novo e trabalhava assim saía liquefeito. Agora vou chegar ao meu aniversário em estado gasoso, suponho.

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Tive sorte com os clientes: são adoráveis. Ao menos isso. Um gajo esfalfar-se para tipos que não merecem nem uma gota de suor é chato. Estes merecem-nas todas. O bote é um Hanse 575. Não é a primeira vez que navego em Hanse, uma barca que tem tudo o que as outras têm, mas pela metade, passe a auto-citação. Pergunto-me se sendo maiores a proporção diminui. Não faço ideia. De qualquer forma uma coisa que detesto é encorajar as críticas dos clientes. Tento sempre defender as empresas que me pagam patas de polvo exorbitantes, por isso passei o dia a dizer-lhes que as coisas não são assim tão más como eles dizem (são piores, mas isso tão pouco lhes digo).

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Pouco a pouco, o meu optimismo indomável começa a pensar que talvez tenha razão, desta vez. O Reino Unido vai levantar as «medidas», os EUA já o fizeram. Os vendedores de medo, «especialistas», políticos, jornalistas serão um dia desmascarados? Penso sinceramente que sim, mesmo sabendo que este «penso» tem uma dose muito grande de «espero». A comunicação social é por definição desprovida de vergonha e se um dia descobrir que denunciar esta fraude lhe traz audiências fá-lo-á sem hesitar um segundo.

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A escala de hoje é na Colonia de San Jordi. Vim calhar ao mesmo restaurante dos passageiros e respectivos amigos. Um deles veio dizer-me que é o melhor do sítio. A mim foi-me recomendado por ter produtos locais e não ser caro. Na primeira parte acredito; na segunda, estou para ver. Duvido, mas como sou optimista - espero.

Os mosquitos acorrem, o que é sempre bom sinal. É como ver camiões parados num restaurante de beira da estrada, não é? Não. Vou sentar-me no interior, pode ser que não me sigam.

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A propósito: serviço público. O restaurante chama-se Hostal la Playa, se por acaso.

6.7.21

Descobertas

Percorro estas ruas estreitas, tortuosas, feitas para nos defender do calor, do frio e dos piratas e a cada vez descubro cantos e recantos que não conhecia; pedalo-os na minha bicicleta como com os dedos te deslizo os cantos e recantos do corpo, mulher. Um dia acabarei por os conhecer todos e amá-los ainda mais do que as amo hoje, as ruas, as esquinas, as descobertas, tu.

2.7.21

TAP e outros amores

O voo de Barcelona para Lisboa é na TAP e desta vez a primeira metade da minha teoria sobre esta empresa - a pior do mundo até se embarcar, a melhor desde que se entra no avião - não se verificou. O pessoal dos balcões foi impecável e o avião vai sair a horas.

Já a simpatia e o humor do acolhimento a bordo foram os mesmos de sempre. 

Verdade seja dita, pode sempre argumentar-se que com a massa de contribuintes alemães, holandeses et al. outra coisa não seria de esperar. Seria injusto. A TAP sempre foi a melhor do mundo, mal se larga a manga e se entra no aparelho.

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Prémio "O Luís vai de viagem": a senhora do check in informa-me de que as regras mudaram ontem. Hoje, um teste antígeno é suficiente. Deitei sessenta e nove euros fora quando podia ter deitado só vinte e cinco. Quarenta e quatro foram duplamente para o lixo.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-07-2021

Há muito não via tanta gente neste aeroporto. Faço a observação à senhora do filtro, uma rapariga jovem e acrescento: " Agora só falta acabar com as máscaras." A respista veio célere: "Sim, quando estivermos todos vacinados." Se alguém um dia voltar a duvidar do poder dos media mordo-o.

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Breve paragem em Barcelona para uma reunião difícil. Manter presente: assuntos de dinheiro resolvem-se com dinheiro e assuntos de palavras com palavras. Não permitir que se misturem.

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Fiz muito recentemente mais dois furos no cinto e o segundo já está a uso. Não tarda tenho-o a dar-me duas voltas à cintura. 

(Não será amanhã a véspera desse dia, se voltar ao Bastian Contrari muitas vezes...)

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O qual Bastian é simplesmente um dos melhores restaurantes italianos de sempre. Digo restaurante e insisto: "de sempre". Pai, mãe e um filho a fazerem comida e a receberem os clientes como se fosse a casa deles. É. Fui com a A. e com a M. - habitués da casa, verdade seja dita. Foram elas que me falaram do sítio e ontem lembrei-me de as desafiar. É um casal bonito, completamente díspare em tudo. Vivem juntas há cinco anos. Nunca percebi de onde vêm as resistências de algumas pessoas à homossexualidade e com estas duas ainda se percebe menos.

A M. é cozinheira,  especializada em comida oriental e temos um Soto (sopa indonésia) combinado para quando eu voltar. Se alguém me ouvir dizer que estou farto de Palma pode apontar-me o dedo e rir a bandeiras despregadas.

Não estou. Nunca estarei. Pelo menos enquanto gostar de comer, andar de bicicleta e de mar. E de pessoas, da Tramuntana, de igrejas, ruas estreitas e torcidas como panos que se espremem para secar.

1.7.21

Lacan e a histeria

Lacan dizia que "a estupidez é uma histeria: basta um indivíduo saber-se estúpido para deixar de o ser." De tudo o que li dele - foi imenso, pelo menos quatro ou cinco páginas  - esta é a única coisa da qual discordo. Tendo, como tenho, assumidas deficiências cognitivas e sabendo que as tenho, das duas uma: ou a estupidez não é histérica ou é e convive bem com momentos de lucidez.

Prefiro esta hipótese. Imagino pequenas vigias de lucidez no navio da estupidez, como nos cargueiros do antigamente: eram estanques à água mas deixavam entrar luz. Em caso de temporal, fechavam-se as portas de tempo.

Quando vejo esta quantidade de pessoas inteligentes engolir a "narrativa oficial" sem sequer a mastigar (quanto mais saborear) não consigo deixar de pensar que estão a navegar no que imaginam ser um temporal, portas de tempo fechadas e apertadas até mais não.

Que isto não passe de um aguaceiro eles não podem ver: têm as portas de tempo fechadas e a luz não passa. O que não significa, obviamente, que sejam mentecaptos; e histéricos não são, com certeza. Estão simplesmente aterrorizados,  o que lhes toda o raciocínio.

Ou seja: a Inteligência pode ser histérica, a estupidez nunca deixa de o ser e a linha entre as duas flutua ao sabor do medo, entre muitas outra coisas.