29.4.21

Falta de pontaria

"Não tens pontaria nenhuma", diz o Hobbes ao Calvin nos quadradinhos que acabei de ler. Ou "A tua pontaria é miserável" (tradução mais correcta, creio). Bem mo podia dizer a mim: falho os alvos todos, coitado. Desde o de ser feliz até ao de beber pelo menos dois copos de água por dia não há um em que acerte.  Como é que apesar dessa falta de pontaria ainda consigo andar  contente?

É fácil: também falho a infelicidade.

Se não for...

A vida é uma sequência mais ou menos ininterrupta de mortes. Se não for, não é.

«Entrar gentilmente nessa noite escura»

Copo a copo, gole a gole, nota a nota vou bebendo e ouvindo a noite. Deixo-a entrar em mim ao ritmo a que entro nela: mais devagar do que um relógio. A Lua impacienta-se? Do outro lado da Terra o Sol bate o pé? 

E eu com isso? Eleni Karaindrou marca o tempo, o das vagas do Mediterrâneo, mar de eleição, mar de sempre, mar de berço. Tudo avança muito lentamente, ao ritmo da valsa lenta perto do mar, ao ritmo da ansiedade estrutural que a água arrastou até à praia. Nasces até morreres e de repente morres, se a morte - ou a vida - forem misericordiosas, claro. Se não forem, levas mais tempo a morrer do que a nascer, o que é longo demais para merecer o nome de vida. Viver é nascer sem parar, até morrer.

Não sei. Não percebo nada disto, desta confusão entaramelhada de vida, morte, ansiedade e vagas que trazem à praia o que nelas deixaste toda uma vida. Não percebo nada do que deixei no mar, do que bebo gole a gole: a noite, esta ideia de que o tempo ziguezagueia como um marinheiro bêbedo, de que entrar gentilmente nessa noite escura talvez não seja tão mau como o outro a pintou.

Entra a Evanthia Reboutsika. Isto complica-se. A eternidade é o que fazemos dela, não o que ela faz de nós. Há quem entre na eternidade aos tropeções, quem entre devagar, passo a passo, quem nunca entre, quem nunca dela saia. Homero era cego, Beethoven surdo e esta mistura de tempo e de mar tem um nome, mas eu não me lembro dele. Nota a nota, nessa noite escura.

Beckett, palavras

«Palavras é tudo o que temos», dizia Beckett, mentindo com quantos dentes tinha na boca - ele tinha muito mais do que palavras. Tinha o que lhes está por baixo, por trás. Palavras, placenta... «Cada palavra é uma nódoa desnecessária no silêncio e no nada.»

«Há dois momentos que valem a pena quando se escreve: quando se começa e quando se deita tudo para o cesto dos papéis.»

«As palavras são as roupas que os pensamentos usam.»

«Queremos dizer amor, quando dizemos amor?»

«Restabelecer o silêncio é o papel dos objectos.»

Terramotos, vírgulas, ruínas

Se os terramotos tivessem nomes o de hoje chamar-se-ia Érick Heidsieck, vírgula, Nocturnes, vírgula, Fauré, vírgula, ide às ruínas, ponto final. É delas que o novo nasce.

Ansiedade, cerveja, velhice

Aprender a viver com a ansiedade estrutural. A que não depende da espuma: está entranhada na cerveja, na carne.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-04-2021

O dia acaba, a calidez dá lugar à frescura. Prefiro o termo inglês: chilly, chilliness. Pica. Estimula.
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O Gustar continua um dos melhores restaurantes de Palma - não me refiro à relação qualidade / preço, na qual não haveria lugar a dúvidas. Alta cozinha, amor, brio profissional, simpatia, competência, tudo a um preço que até um pobre marinheiro longe de casa acha aceitável. Refiro-me a  tudo: à praça, às laranjeiras agora carregadas de fruta, à ausência de  automóveis, à paz que deste local se liberta, fantasma mais do que visível, palpável.

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Dou o primeiro espirro, olho em volta e vejo que sou o único cliente de mangas curtas e sem um casaco. Como Lisboa, Palma tem a estranha capacidade de me encher de calor, calor esse que não se desvanece com a passagem das horas, com a lenta substituição da luz do Sol pela das lâmpadas.

Ou de pertença, não sei. Hoje disse à P.: «Estou em Palma e não estou de passagem, ainda que me vá embora daqui a um mês.»

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Depois de jantar, tentativa de copo no Antiquari: «Cheio, impossível.» No Rita: «Cheio, possível.» As mudanças de lealdade nunca são fáceis e só ocorrem quando se tornam inevitáveis.

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«Descubro» Fauré. Aspas porque não é a primeira vez que o oiço. É a primeira vez que o oiço. Quem, como eu, tem uma relação totalmente hebdonística com a música - sou incapaz de distinguir um dó de um lá, excepto quando os dós não estão lá e estão cá - não descobre música: deixa-se descobrir. A música é uma peça do puzzle que só encaixa quando se descobre o seu lugar. Hoje calhou a vez aos Nocturnos, de Fauré, tocados por um (aparentemente) então jovem pianista chamado Erick Heidsieck, uma versão masculina de Maria João Pires. Música que magoa. Pensar que passei anos sem gostar de música moderna - isto é, sem a ouvir. Como é que se pode gostar de uma coisa que não se ouve, de um autor que não se lê, de uma mulher que não se conhece? Estar errado é não conhecer? Conhecer e não ouvir? Não sei, não quero saber e estou-me nas tintas para quem sabe.

28.4.21

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 28-04-2021

Dizer que os «negacionistas» são todos lunáticos esotéricos, anti-bill-gatistas, terraplanistas, complotistas, contorcionistas, conspiracionistas e adeptos da teoria dos metais pesados é como dizer que Nietzsche é nazi porque foi adoptado pelas elites do nacional-socialismo.

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Muito mais do que respeito pelos hipocondríacos, eu tenho inveja deles. É uma sorte ser capaz de prestar ao corpo uma atenção tão desmesurada (e desmerecida, na minha opinião). Este carinho pelo corpo é decerto exagerado, mas é carinho. 

Mas uma coisa é gostar-se dos hipocondríacos, respeitá-los de uma forma digamos literária e outra é aceitar ser governado por eles. Só numa ficção é aceitável que um idiota hipocondríaco decida que para viver é preciso deixar de viver. Na vida real, política, não é.

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Saí de casa e fui ao bar Rita, bar cujo nome evoca em mim amores passados, tristes e felizes, poderosos e impotentes. Foi - é - também a porta pela qual entrei no mundo maiorquino, um mundo notoriamente fechado mas que, como todos, se revela quando nos abre a porta. Em casa, deixara B., que é muito mais do que o bêbedo que toda a gente vê nele e S., um inglês desenhado como uma fita métrica, alto e magro, barbeiro de formação e faz-tudo de vida. Está há um ano sem receber um tostão: os apoios do governo ficam-se pelas intenções. R., o cozinheiro galego que encontrei no bar, tão pouco recebeu um tostão ainda.

Os governos latinos têm com os seus administrados uma relação criminosa, que o facto de ser consentida não alivia.

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Depois do bar - ajudei ao fecho: levantei mesas, limpei-as, empilhei cadeiras - fui dar um dos meus passeios de bicicleta por Palma. Esta formulação engana: «fui dar um passeio» pode levar a pensar que fui dar um passeio. Não é tal: monto na bicicleta e dividimos o trabalho: eu pedalo, ela guia. Mais correcto seria dizer, portanto: a elegante Peugeot levou-me a passear por Palma.

Ou por metade de Palma, outra correcção necessária: ver esta cidade deserta às dez e meia da noite é triste como comprar um livro e descobrir que um erro de impressão lhe deixou as páginas em branco.

27.4.21

Semelhança e oposição

Exocêntrico e egocêntrico são duas palavras que não devem ser esquecidas. Tão parecidas e diametralmente opostas...

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-04-2021

A grande notícia do dia é obviamente a chegada do logótipo do Colóquio, agora Debate. A segunda grande notícia do dia é a quantidade de asneiras e confusões que consegui fazer em menos de meia hora. Estou há demasiado tempo fora do mar, é o que é. Na navegação em solitário - e em tripulação também, de resto - saber quando se está demasiado cansado para fazer qualquer coisa ou tomar decisões é fundamental. Hoje, essa regra escapou-me (ou eu a ela). A noite vai ser má. Em terra a ansiedade toma o comando demasiado depressa. Pouco há a fazer - agora - se não tentar controlar os danos - amanhã. 

(Não é assim tão fácil. Esta noite, o metafórico chicote não vai ter descanso.)

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Comprei um livro na Babel e fui namorá-lo para as escadas do Antiquari. Prática antiga, da qual há tanto tempo estava arredado. Comprei a obra sem sequer a folhear. O título chegou para me convencer - versão livresca de levar a senhora ao altar sem antes passar pelo hotel: Etimologías para sobrevivir al caos. Viaje al origen de 99 palabras (Andrea Marcolongo, ed. Taurus).

Já nas escadas, com um copo de vinho tinto ao lado, dou com eta passagem:

«Homero fue el primero en autodefinirse (según la leyenda, en el «Himno a Apolo», aunque el caracter espurio de este es ya seguro) como el «ciego de Quíos».
      He aqui las palabras atribuidas (dudosamente) al autor a quien, a su vez, se atribuen la Ilíada y la Odisea:

- ¡Muchachas! ¿Quien es el más dulce váron de los aedos que aqui os frecuentan y con el que más os deleitáis?
- Un ciego. Habita en la abrupta Quíos.

De estos versos saliéron las paraetimologías (...) del nombre de Homero.
      Hace casi tres mil años que se hace provenir de ... (/ho mè orón/), «el que no ve», pero cuya falta de visión se ve colmatada por el talento excepcional que le concedieran las Musas. (...)
     En la Antiguedad, «negro» era pues no el color de la ceguera, sino el de aquel que veía demasiado bien; y que sbia expressalo en palabras. O en versos.»

A combinação da Babel, do Antiquari e de um bom livro é um importante degrau na escada que nos leva ao paraíso. 

26.4.21

Muito depressa parado

Fazer carreirinha nas horas, como em miúdo as fazias nas vagas: nadar crawl muito depressa e depois parar. 

Muito depressa e depois           . 

O que ficou por revelar

Ainda tenho vidas por revelar, como se fossem fotografias enroladas num filme esquecido. Horas de sono mal dormidas. Vagas por rebentar na praia. Nuvens por desfazer-se em chuva. Prateleiras por encher-se de livros. Seios à espera de ser acariciados. Palavras por serem ditas. Mares. Palavras.

Demasiadas horas por dormir: foram passadas a viver.

Morrer afogados

Se estivéssemos a morrer afogados... Ah, se estivéssemos a morrer afogados... Poderíamos ao menos abraçar-nos e dizer-nos, naqueles últimos instantes, tudo o que não nos dissemos nos primeiros. 

25.4.21

Portugal, a gravidade e a improvisação

Alguém gosta da gravidade? Ou a detesta? Talvez, não sei, mas a verdade é que não faz muito sentido. Não é como não gostar do vento, da chuva ou do Sol, para os quais há defesa. Para nos defendermos da gravidade teríamos de ir para o espaço ou alugar um daqueles aviões de treino dos astronautas. Não é muito "prático".

O que acontece entre todo o mundo e a gravidade é uma relação semelhante à que Portugal tem com a improvisação. Não se trata de gostarmos ou não. Trata-se simplesmente de não haver escolha. É assim e é tudo. Quem não gosta, emigra - para leste do Reno e do Ródano ou para oeste dos Açores. (Admitidamente, para leste dos Pirinéus já começa a haver algumas possibilidades de planificação. Não muitas, mas algumas.)

Portugal é feito de improvisação como o Universo é feito de gravidade. Não há nada a fazer. É como ser-se pontual: chegar a horas ou respeitar um programa em Portugal é como querer ler Hegel a uma classe de deficientes mentais surdos: é possível fazê-lo, mas a utilidade é escassa. 

Mussolini vangloriava-se de ter posto os comboios italianos a chegar a horas; em Espanha, os comboios partiam a tal hora e chegavam quando chegavam; em Franca, a SNCF indemniza (ou pelo menos indemnizava) os passageiros quando havia atrasos superiores a quinze minutos. Em Portugal, a única linha de comboio que anda - ou andava - sempre à tabela é a linha do Estoril. As outras, nem Estaline seria suficiente para as pôr a respeitar horários (e não haveria dinheiro em toda a OCDE ou armamento na Europa para pagar indemnizações por atrasos.)

(Sempre me intrigou esta anomalia. Por que raio de diacho de mula a linha do Estoril anda a horas e as outras não? Suponho - mas é mera suposição - que seja uma forma de defesa da CP. "Os comboios da Linha andam a horas para vos demonstrar, a vós pobres e indefesos passageiros, que nós somos perfeitamente capazes de respeitar horários. Se isso não acontece nas outras linhas, não é por incapacidade nossa. É porque sim, como a gravidade.)

A razão pela qual nós fizemos os Descobrimentos é simples: para descobrir, é melhor ser capaz de improvisar do que de planear. E perdemos a supremacia quando começou a ser mais importante planear do que improvisar. Portgal nunca será um país rico pela razão simples e inexpugnável  de que no mundo actual, o êxito de qualquer empreendimento depende mais da planificação do que da improvisação. 

Como todas, esta regra tem excepções e a nossa capacidade de improvisação é por vezes bastante útil. Infelizmente, são poucas, essas vezes.

PS - talvez se pudesse fazer uma analogia com a esquerda e a direita (políticas): ambas são necessárias, mas não em doses iguais.

A natureza é maravilhosa

Vacinas, testes, restrições, "medidas" têm, cada vez há mais sinais nesse sentido, a mesma capacidade de lutar contra o vírus do que os amuletos. Não se deve reclamar contra eles, contudo: os amuletos têm uma importante função social, ajudam a manter a coesão dos grupos humanos (e provavelmente dos orangotangos e dos macacos de Rhesus também,  vá lá saber-se).

Claro que estes que as nossas sociedades escolheram têm efeitos colaterais graves, mas não nos devemos esquecer de que o cimento social das nossas sociedades é feito de cima para baixo: senhores com jornais, televisões, dinheiro e poder (ou com acesso a eles) definem o que é bom para o seu grupo social e impingem-no depois a toda a sociedade, a qual até dispensa, ao contrário  dos primatas não sapiens, o uso excessivo da força para ter medo. Um título de jornal bem esgalhado substitui vantajosamente o urro ou um murro de um macho-alfa. A beleza disto é que o povo sofre os efeitos das restrições e ainda agradece a quem lhas impõe.

Como os orangotangos, de resto: estão gratos ao chefe do seu bando pela segurança que ele lhes traz.

24.4.21

Ar, liberdade

Sinto-me à vontade para falar da liberdade: é como falar do ar que respiro ou da água que bebo (sim, acontece). Também me sinto à vontade para dizer que não sou muito de colectividades, grupos, bandos, clubes. Gosto de associações porque me parece que é uma das melhores formas de organização de uma sociedade, não tenho nada contra os sindicatos, muito antes pelo contrário, se não forem organizações políticas, penso que os partidos são úteis - só não quero (ou não posso) fazer parte deles. 

Isto tudo para prefaciar a tristeza que sinto com esta história do 25 de Abril sempre, a cada um que vivo e já lá vão quarenta e sete: é tão pouco, não é? As pessoas contentam-se com a mediocridade em que vivemos? Chega-lhes? Não é o 25 de Abril que se deve celebrar, é a possibilidade de melhorarmos como país que ele nos trouxe. Somos um país livre, sim - mas corrupto, nepótico, oligárquico, pobre (passe o pleonasmo). Não podemos olhar só para a liberdade: seria como pensar que o ar é suficiente para nos manter em vida. Não é. É necessário, mas não é suficiente.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-04-2021

Cheguei a Palma no domingo, fará amanhã uma semana. Terça depois de almoço apanhei o que suponho tenha sido uma intoxicação alimentar que me deixou de rastos e de cama até quinta. Sexta e hoje convalesci. A este ritmo, amanhã estarei bom. Espero que sim: fiz um chilli con carne e não me apetece nada não lhe poder tocar.

........
A coisa foi violenta. Como esta, não tive muitas até hoje. De cama, incapaz de ler - nem recitar o alfabeto conseguiria, se tentasse - deu-me para revisitar os meus episódios de conflitos graves com a carcaça. Foi sol - ou chuva? - de pouca dura. Quero que ela se lixe, a carcaça. A única novidade desta é que fui duas vezes ao centro de saúde, que fica a duzentos metros da «casa» onde agora estou (aspas porque chamar casa a isto é um excesso de generosidade ou de falta de vocabulário) - e onde estarei mais três semanas, portanto mais vale habituar-me já. O trabalho no P., que tinha laboriosamente recomeçado, parou. Eu também. Parou tudo, claro, menos o meu estômago, que lutava denodadamente contra um bicho qualquer que não reconheceu.

........
Palma está ferida, magoada, mascarada, semi-fechada, mas lá vai resistindo, à boa maneira do Mediterrâneo. Ontem fui, pela segunda vez, jantar clandestinamente a um restaurante. Desta foi um pouco mais caricato, porque o homem - um francês - tinha a janela fechada por causa  da polícia mas manteve uma das portas completamente aberta. Qualquer agente que passasse e ohasse lá para dentro ver-me-ia - e ao outro cliente - de seguida. Suponho que a polícia deve estar a aplicar as  regras com alguma flexibilidade. Recentemente, a associação dos restauradores fez um «ultimatum» ao governo. Assim mesmo: «ultimatum». 

O governo cedeu - não sei se cedeu ou se já a tinha preparada - com uma «medida» que me faria rir, se estivesse em condições disso: alargou a hora de fecho para as dez e meia da noite, mas manteve a obrigação de fecharem entre as cinco e as sete da tarde. Cada vez mais isto tudo me parece um daqueles teatros de marionetas em que é tudo a fingir, toda a gente sabe que é a fingir e toda a gente finge acreditar (tenho uma certa pena de quem acredita mesmo, mas isso é outra história. Prefiro ser governados por desonestos a sê-lo por burros). Continuo a não acreditar em desígnios escondidos - penso que os governos estão numa situação em que não podem simplesmente voltar a trás e dizer «Desculpem, meus senhores, mas isto tudo não passou de um gigantesco lapso. Esperamos que continuem a votar em nós nas próximas eleições» - mas a verdade é que compreendo muito bem quem não partilha esta crença na vastidão da incompetência, dos interesses imediatos - os laboratórios e toda a cadeia de produção de testes está a fazer-se des couilles en or, como dizem os gauleses; para não falar na comunicação social, que essa não são só os tomates, mas também os egos - dos acasos, das coincidências de anomalias meteorológicas com a porcaria do vírus. Cioran dizia «Só os abúlicos devem ter acesso às ideias. Mal os atarefados se apoderam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se em tragédia». (A citação é de memória, mas não anda muito longe do original.) Mais uma vez estava podre de razão, o velho Emílio. Como quando dizia: «Somos todos uns farsantes. Sobrevivemos aos nossos problemas.»

.........
Por falar em Cioran: hoje vi um artigo no Monde a fazer um frete ao governo. «Que sim, que as máscaras funcionam, que sim, as vacinas  também». Não sei se isto não será o sinal de que batemos no fundo e que um alarme para a comunicação social vai em breve começar a apitar estridentemente. Le Monde  fazer fretes a um governo de direita? É como ver o Avante defender uma política da IL, não é?

19.4.21

Assintomático

Não sou nada o bruto frio e arrogante que vês em mim. Sou simplesmente sensível, apaixonado e assintomático.

Ingratidão?

"Que tombent ces vagues de briques

Je suis le souverain d'Égypte
S
i tu ne fus pas bien aimée"

(Apollinaire, La chanson du mal-aimé)

Não iria tão longe. Por muito ingratas que elas nos pareçam, quem acredita nas virtudes mágicas do orgasmo somos nós. 

Impossibilidade do riso

Sempre trocei bastante daquela expressão "estamos em... (segue-se um ano) e... (qualquer coisa considerada indigna pelo orador)." 

Hoje penso "estamos em 2021 e a Idade Média não acabou" e, não sei porquê, é-me completamente impossível rir.

Idade média transversal

Horrível, insuportavelmente horrível é esta sensação de viver em plena Idade Média. Idade Média com internet, automóveis e mini-saias, é certo, mas idade média. Por muito tentador que seja dizer que só a esquerda apoia isto - dark ages, lucros desmesurados, populações aterrorizadas - a verdade é que a direita - pelo menos parte dela - também. 

Como se o tempo não passasse de um carrossel e o homem de um macaco de fato e gravata ou de uma macaca de pílula. 

Louvor e simplificação dos migrantes

Em Paris e em Genebra foram os arabes du coin que nos permitiram fazer compras fora dos horários dementes; em Lisboa, eram os banglas da esquina que me vendiam vinho depois das oito da noite, regra imposta por um palhaço qualquer numa má viagem de LSD; em Palma, janto clandestinamente no restaurante de um colombiano. Nós (e/i)migrantes somos o lubrificante destas sociedades perras de tanta norma idiota, refasteladas na opulência, na «segurança» e no bem-estar (material, que o outro só a psiquiatria e a psicologia o curam) como um paxá árabe nas suas escravas do harém.

(«Janto clandestinamente num restaurante». Sou eu o único a alucinar com isto?)

As cunhas e o bem

Quando se quer abrir uma porta perra, ou afastar dois objectos muito próximos, usa-se um objecto pontiagudo, uma cunha. Quando se quer manter essa porta aberta, usa-se igualmente uma cunha. O mesmo objecto serva para duas funções não só diferentes, mas opostas, diametralmente opostas.

Como a luta pelo bem, por exemplo: tanto pode dar bons resultados como instituir a pior das ditaduras.

18.4.21

Caos, sono

Da série perguntas fundamentais que te impedem de dormir: um turbilhão é um processo caótico ou é simplesmente um processo regular com demasiadas variáveis?

Se um sistema caótico é aquele em que não se pode deduzir as etapas que o levaram ao estado actual; se um sistema caótico é aquele em que uma pequena variação na condição inicial leva a resultados imprevisíveis e desproporcionados; se qualquer sistema caótico gera a sua própria entropia e precisa da neguentropia para subsistir; se o caos é muito mais frequentes do que se pensa - por que raio de carga de água não durmo? 

Não perturbar. Ass. Entropia

Não me apetece ler porque não quero misturar ideias. As de dentro dão-me trabalho que chegue. Se é que se pode chamar ideias a remoinhos, a caos, a desordem. 

Talvez no fundo seja essa a razão: não introduzir neguentropia num sistema caótico. 

Retrato improvável

M. tem uma capacidade de empatia nula. Para ela, pôr-se no lugar de outrem é como para mim correr os cem metros barreiras em menos de duas horas.

A diferença é que a mim nunca ninguém se lembrou de pedir para correr os cem metros barreiras, fosse em que tempo fosse.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-04-2021

Chegada a Palma. Ao fim de menos de cinco minutos: "Caballero, la masquerilla". Digo que sim com a cabeça e deixo-a exactamente na mesma. Chega de discussão com quem é mais forte. Faz como a água, que contorna os obstáculos. E manda-os para a puta que os pariu silenciosamente. Eles não sabem, mas ela sim.

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O quarto a preço acessível é uma espelunca. Um gajo acorda num quarteirão chic de Genebra e vai adormecer numa merda indescritível. Salva-se o terraço, enorme, com vista para o mar, a Catedral e mais seis igrejas (não as contei. Foi o B. (B de bêbedo e de inicial) que me disse. Pelo menos parece que a única pessoa que usa a cozinha é uma alemã chata, garantia de cozinha limpa. (A cozinha é uma merda. S., outro dos inquilinos, diz-me "Se gostas de cozinhar, aqui vais perder o gosto.")

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Saio para ir comprar leite e cereais para amanhã e de caminho passo por uma das minhas tascas favoritas. M., o proprietário colombiano, convida-me a comer a quesadilla no interior.

As quesadillas do homem são sempre uma maravilha, mas esta soube-me melhor do que todas as quesadillas que comi em todas as vidas.

Quesadilla de pertença...

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Há pelo menos uma vantagem: Espanha é o único país do (meu) mundo onde emagreço comendo fora. 

Outra: por muito bêbedo que B. seja, é um gajo porreiro. Prefiro bêbedos a cocainómanos.

Diário de Bordos - Genebra, Suiça, 18-04-2021

É um egoísmo monstruoso, eu sei, mas. Há uma coisa boa nesta farsa: os aeroportos estão vazios. Tão vazios que até dói ter de esperar uma hora numa cadeira das de espera, porque como se sabe as dos cafés estão cheias de vírus. Acresce a está vaziez que desta feita o algoritmo das buscas aleatórias se enganou e não percebeu que era eu: a passagem pelo filtro, camisa fora das calças para não ter de tirar o cinto, foi fluida como água da torneira.

Amanhã abrem os cafés - mas só as esplanadas, claro, que aquilo lá dentro são antros de virulentos pecados, as pessoas bebem cervejas - com as mãos, imagine-se - beijam-se e abraçam-se (coisa que não fazem em mais lado nenhum) e por isso é preciso protegê-las.

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Trago comigo alguns traços  do jantar de ontem. Mais especificamente, da enorme quantidade de kirsch que ingeri. Felizmente, são traços ligeiros, apontamentos,  por assim dizer.

Dois jantares de despedida: sexta com o clã, ontem com os P.M e a G.

Tenho raízes andantes, como as daquelas árvores da Amazônia que se deslocam. 

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A despedida de S. foi rápida. Já nos despedimos vezes suficientes para sabermos que as palavras estão a mais, hóspedes não convidados, acrescentos dispensáveis 

Inauguração - Eu cresci a ver navios

Hoje apareceu o meu primeiro texto no Luso Magyar News. Um grande obrigado a toda a equipa.

17.4.21

Certo, incerto

Só se deve acreditar no que é incerto. Acreditar no que é certo é uma redundância e, para mais, inútil. O que é certo acontece mais raramente do que o incerto. 

M

A única coisa que precisa de ser grande numa mulher é o m inicial.

E não foi

É assim que pela noite tacteio à procura do sentido que perdeu o s final: o sentido de uma noite numa noite sem sentidos, numa noite em que tudo parece flutuar no magma indistinto das origens. Não faz sentido com esta idade pensar nas origens, pois não? Com que idade se deve parar de pensar nas origens? Com que idade se deve parar de pensar? Apagar a luz da memória como quando eras criança e a tua mãe apagava a luz do quarto, depois da oração da noite em favor dos homens que andavam no mar. Com que idade o mar sai da tua noite? Com que idade o tempo sai da tua memória?  Com que idade o mundo deixa de voltar atrás, como se a rotação terrestre se tivesse invertido? «Viver com a memória é viver ao contrário», dizias-me nas poucas noites que passámos juntos. «Viver com a memória»: uma noite; «é viver ao contrário»: outra noite. Foram só duas? Onde estão as outras todas, as que ainda virão, as que perdemos, as que fugiram de nós como andorinhas assustadas?

Que fizemos, dos silêncios, dos sentidos, destas mãos que se procuram e só por vezes se encontram? Que fizemos de nós, do tempo, da noite? Que fizemos do que poderia ter sido?

Três poemas de Pedro Tamen e um de Nuno Júdice

 Devagar te Amo

Devagar te amo, e devagar assomo
os dedos à altura dos olhos, do cabelo
dos anéis de outro turno, que é só meu
por querê-lo, meu amor, como a ti mesma quero
nos tempos de passado e sem futuro.
Devagar avanço um dealbar de dias
que vida seriam - mesmo que morto, à noite,
eu voltasse amargurado mas presente,
calado e quedo, e devagar amando.

Pedro Tamen, in “Rua de Nenhures”

O Mar é Longe, mas Somos Nós o Vento

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Pedro Tamen, in "Daniel na Cova dos Leões"

Amar-te é Vir de Longe

Amar-te é vir de longe,
descer o rio verde atrás de ti,
abrir os braços longos desde os sete
anos sob a latada ao pé do largo,
guardar o cheiro a figos vistos lá,
a olho nu, ao pé, ao pé de ti,
parar a beber água numa fonte,
um acaso perdido no caminho
onde os vimes me roçam a memória
e te anunciam mãos e te perfazem;
como se o sino à hora de tocar
já fosse o tempo todo badalado,
e a tua boca se abrisse atrás do tojo,
e abaixo dos calções as pernas nuas
se rasgassem só para o pequeno sangue,
tal o pequeno preço que me pedes.
Atrás da curva estavas, és, serias,
nos muros de granito, nas amoras.
Amar-te era lembrança e profecias,
uma porta já feita para abrir,
e encontrar o lar ou música lavada
onde, se nasces, vives, duras, moras
— meu nome exacto e pão
no chão das alegrias.

Pedro Tamen, in 'Escrito de Memória'

GOSTO DAS MULHERES QUE ENVELHECEM
Gosto das
mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.

Nuno Júdice

Cruz? Não: aliterações

Há dias assim: só me apetece espraiar-me por tudo fora. Tudo: o tempo, os dias, a vida, o futuro, o passado, a música que agora oiço, o vinho branco que bebo, a memória do que aí vem, do que foi.

Não sei se espraiar-me é o verbo correcto. Escarrapachar-me? Diluir-me? Crucificar-me?

É preciso imaginar a vida como uma cruz que nós próprios fabricámos e transportamos: temos a sorte de termos sido nós a fazê-la, o que nem a todo o mundo é dado.

Fé, metadona, inveja

A fé é uma droga, como a esperança ou a heroína. Infelizmente, não há metadona que a substitua. Quem a tem está condenado a afundar-se nela sem uma bóia de salvação. Felizmente, a fé fornece o seu próprio schnorkel: os crentes respiram o ar que exalam. É um circuito fechado: aquilo em que acredito existe porque eu quero que exista, eu existo porque aquilo em que acredito existe.

Que inveja.

Asfixia, espelhos

Tudo o que me é exterior é-me estranho. Sou a medida do mundo. Esta fronteira que me separa dos outros é demasiado líquida, demasiado fluida, permeável. Defendo-me da invasão no cofre-forte do castelo. Preciso de um sistema imunitário que me proteja. Sem mim, o mundo não existe. Sem o mundo, não existo. Olhar-te é olhar-me: em ti vejo o que sou, em mim vês o que és. Viver é aprender a respirar num jogo de espelhos asfixiante.

Fractal, tempo

Flutuo no tempo. Passado, presente e futuro num caleidoscópio: a vida é um fractal. Num jantar vês o que foste, o que és, o que serás. O tempo serve para polir os ângulos, não para fazer novas arestas.

A manteiga, o sal e o resto

Onde passam as fronteiras da aculturação? Por vezes penso que é quando se começa a gostar de manteiga sem sal. Não é: há tantas mais fronteiras... A verdade é que a aculturação me é indiferente. Sou de onde estou e faço minha essa cultura. Umas vezes mais depressa, outras mais lentamente. 

Continuo, porém, a pensar que tolerância e relativismo são coisas diferentes: a manteiga salgada é melhor e isso não admite dúvidas.

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Os melhores amores e as melhores amizades são aqueles que dispensam palavras, que só as utilizam quando é necessário - indispensável. Quem acredita no poder da palavra devia meditar no do silêncio: é de longe superior.

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Jantar com P. M., armador que se tornou amigo. Bastou uma semana - há dois anos - e nem sequer navegámos. Compreendo que tenho as amizades selectivas. Como os amores, de resto. O acaso não é para aqui chamado. Não tem nada a ver com elitismo: tem a ver com vida e isso é coisa que não se improvisa.

16.4.21

Na linha

Se andares às voltas num quadrado perdes os ângulos, se andares em quadrados numa circunferência perdes arcos de círculo. Perdes sempre qualquer coisa, se não seguires as linhas que te rodeiam. 

Porém, antes isso do que andares na linha. Seguir os riscos é arriscado. Andar na linha não é andar, é estar parado.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 16-04-2021

Quarto teste PCR, quarto «negativo». Odeio quando me enfiam aquela merda no nariz - apesar de reconhecer que os dois últimos foram melhores - e (sobretudo), o pânico em que fico que aquilo dê positivo. Fazer outro teste, outra pipa de massa para provar que não, não estou doente. Sou assimptomático, mas de outras coisas, não desta farsa. Vá lá, deu negativo e vou poder embarcar domingo num avião para Palma, com paragem em Zurique.

Telefonei à Unilabs, um dos fornecedores de testes perto de casa. Preço: cento e sessenta e oito francos. Telefono à farmácia de Champel: cento e trinta francos. Recebo o resultado do teste e de onde vem? Adivinharam: da Unilabs. 

Não sou daqueles que vêem intenções diabólicas, financeiras, complotistas, conspiracionistas, bill-gatistas por detrás de tudo em geral e desta farsa em particular, mas creio que seria ingénuo não perceber os gigantescos interesses financeiros (aos quais, de resto, grande parte da esquerda diz alegremente «sim!») por trás desta palhaçada. Não acredito que Buescus, Antunes, Gomes, Fróes ganhem directamente com a venda de medo - no fundo, são altruístas e alimentam o caos para bem dos outros - mas não são de certeza os únicos que influenciam a narrativa. Se o senhor dos testes fosse do Chega em vez de ser do PS teríamos tanta testagem? Não sei. Contudo...

Hoje tivemos a tradicional fondue familiar. Éramos seis à mesa, como nas famílias normais. A H. estava sumptuosa de bela - está sempre, mas hoje estava mais do que sempre. O T. continua com o humor decapante que herdou de mim. Não me apetece ir-me embora e tenho de me ir embora. Écartèlement. Ter filhos não é a maior felicidade. É ter filhos assim, porque prova que não se pode fazer tudo mal, por mais que se tente.

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O P. espera por mim, chama-me, eu quero-o... Parece uma novela mexicana, coisa para a qual nunca pensei ter jeito ou vontade. 

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A Suíça é um país admirável e complexo. Tem preços aberrantes, um clima frio como tudo, a um olhar superficial parece um cemitério habitado por bonecos animados, como aquelas figuras indonésias - e depois vai a ver-se e é tudo isso e muito mais. Tem uma qualidade insuperável: os políticos não têm poder. Quanto mais o tempo passa mais me apercebo de que isso por si só redime todos os defeitos, todos os frios, todas as sombras. 

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Arranjei um quarto em Palma a um preço mais do que aceitável. Estou farto de quartos. preciso de mar e de uma casa. Chama-se a isso écartèlement. Estou farto de «preços mais do que aceitáveis». Está na altura de mudar de vida, mudar de pele, mudar. Esta vida dura-me há dez anos. Preciso de reinventar outra. Não tarda começo a gostar de futebol e a distinguir uma equipa da outra sem ser pelas cores.

15.4.21

"Sei que vou ter uma velhice assombrada"

De vez em quando pego no "Desvio-me da bala..." e leio - mais frequentemente releio - um poema ou dois. É assim que gosto da poesia: deixar o acaso acordar o tempo e eu, o poema e a vida.

Hoje calhou um que começa assim:

"sei que vou ter uma velhice assombrada 
provavelmente como a velhice das gentes   
que percorreram muitos caminhos             
ou como aqueles que não saindo de si             
voaram séculos à volta de um quarto fechado"

(Rosa Oliveira, in Desvio-me da bala que chega todos os dias, ed. Não edições)

Se isto é um acaso eu sou a mulher do Papa. Ou melhor: se isto é um acaso, alguém pode dizer ao senhor que o comanda que ao mais pequeno sinal eu recomeçarei a jogar no totómilhões todos os trimestres?.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 15-04-2021

Mais uma estadia que se esvai pelo ralo do tempo. «Até quando?», pergunto-lhe (ao tempo). Diz que não sabe. Estou condenado à vida  que escolhi, o que só superficialmente é uma contradição. Acreditar no contrário é acreditar numa série de coisas que todas, bem espremidas, vão dar ao totemismo, à ideia mágica de que sabemos tudo, à percepção errada de que uma condenação é uma fatalidade, um castigo. Conheço imensa gente condenada à felicidade, por exemplo. Gente que faça o que fizer, lhe aconteça o que lhe aconteça é feliz, cai de pé, como os gatos e no fim enriquece (de dinheiro) ou fica mais sábia (de conhecimento). Conheço imensa gente que, essa é que é essa; e conheço um que não. Convivo com ele vai para sessenta e alguns anos e não há maneira de não ser não. 

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«Há que distribuir o mal pelas aldeias», diz-me T., miúda mais gira do que a média, se por gira entendermos bonita, esperta e inteligente, tudo amalgamado numa só pessoa. «Pois. Já o bem ninguém o distribui», respondo. É verdade: distribuir o mal é sinal de bom senso, inteligência ou cuidado pelos outros. Já na distribuição do bem ninguém vê nada de bom. Só tolice, patetice, santidade ou parvoíce, à escolha do freguês.

Não percebo nada disso. Entre o mal distribuído urbi et orbi e o bem guardado venha o diabo e escolha: demasiado bem faz mal, que o diga qualquer heroinómano ou outro crente na vida eterna.

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Hoje escrevi um texto ao qual dei o título de «Eu cresci a ver navios». Infelizmente fiz muito mais do que crescer. Vivo a ver navios. Isto é: literalmente. É como se a minha vida fosse um navio, daqueles antigos, de carga geral, com paus de carga, portalós, «arreia», «iça», lingadas e conferentes com um pauzinho na mão para indicar ao homem do guindaste a direcção. Passo a vida a estivar cargas antigas e a arranjar lugar para as novas, como se não tivesse que cheguem.

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Écartèlement é o título de um livro do Cioran. Se não estou em erro, é o único que não li. Não preciso: é o que vivo todos os dias.

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Digo a S. que me vou embora e ela responde bebendo uma garrafa de Bailey's praticamente toda em duas horas, ao gargalo, enquanto fazia um telefonema de trabalho. E ainda há quem se pergunte porque gosto tanto de mulheres. Daquelas com M, que preferem beber a falar, calar a falar e nos deixam o lazer de compreender o que há a compreender. Dois silêncios que se compreendem melhor do que muitas palavras. Chamem-lhe o que quiserem, eu não tenho palavras. Fugiram todas para o refúgio das palavras.

"Os velhos estão bem"

"Os velhos estão bem, obrigada", começa um poema de Rosa Oliveira. 

Os historiadores do futuro verão que o poema foi escrito antes da palhaçada. 

13.4.21

Cozinha, casa

Uma casa é uma estrutura que se começa a desenhar pela cozinha. É o desenvolvimento orgânico desta, uma cozinha que cresceu, se tornou adolescente, depois adulta e por fim envelheceu. Ressuscita sem morrer.  A ordem do crescimento da casa é importante: começa-se pela cozinha, depois vem a biblioteca, a estas juntam-se um ou mais quartos. A seguir vem a sala de estar e por fim um escritório. Tudo isto deve fazer lembrar a casca de um caracol, o casco de uma embarcação ou um barril de vinho (ou de rum, ou de cerveja, dependendo da localização).  Uma casa deve ser feita para ser olhada para dentro, permitindo que de vez em quando se olhe para fora. A cozinha é o centro da casa, a sua alma, um sauna para o espírito - que se exercitou na divisão contígua, a biblioteca. É uma espécie de piscina interior, a divisão na qual toda a casa se refresca, fala, bebe um gin tónico (ou dois), come, recebe os amigos e a família. As únicas coisas que não se devem fazer numa cozinha são ler e escrever, para não engordurar as palavras. Já ouvir música deve ser não só aprovado mas também encorajado: quem não sonhou com um frango Frank Zappa, um peixe Sonny Rollins, um coelho Madredeus? (Cito apenas exemplos recentes e aproveito para relembrar que Leonard Cohen não é música. É literatura e portanto não tem lugar na cozinha.) Uma casa é tudo aquilo que fica à volta da cozinha e a protege dos assaltos dos dias.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 13-04-2021

«De repente pôs-se um dia maravilhoso»

Aprendo que em breve estarei de regresso a Palma e ao P. e no mesmo dia descubro que S. tem em casa uma caixa com setenta CD de Maria Callas. Chama-se The complete studio recordings, é da EMI e são setenta CD. Setenta. Deve ser isto que serendipity designa. Estou a gravá-los todos, claro. Não é frequente ouvir música no mar; esta será uma das excepções a tal regra.

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Tardei demais a publicar o artigo no Público.  Já o devia ter feito há mais tempo. Que me sirva de lição.

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Custa-me deixar Genebra. Nunca se pode ter tudo ao mesmo tempo, pois não?  Sexta vamos fazer a tradicional fondue de família e depois será a qualquer momento. O teste anti-Covid e a companhia aérea determinarão a data exacta da viagem. A alegria é tal que consegue abafar a raiva da Covid e tudo o que se lhe refere.

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Voltou a bise e com ela temperaturas invernais. Sol e frio fazem uma mistura dissonante. Só falta a neve para unificar isto tudo.  

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Vou-me embora de Genebra sem que cafés e restaurantes tenham reaberto. Ontem passei à frente da Gazelle d'Or, o meu primeiro contacto com a gastronomia etíope e disse a S. que tínhamos de lá voltar um dia. Não vai ser desta.

Uma das maiores vantagens de Genebra - que no fundo é uma cidade pequena, apesar de parecer grande - é ter-se os pratos do mundo a cinco minutos de  carro (ou meia-hora, dependendo do trânsito...)

Tão pouco irei à L'Ivresse, à la Ferblanterie... Que resta de uma cidade, quando se lhe tiram os sítios que a fazem viver, vibrar, respirar?

12.4.21

Felicidades

Não havia nada que ele não sacrificasse a uma boa frase. Às vezes, a frase e a verdade coincidiam.

11.4.21

Amores antigos

Nunca sabemos bem se ainda são um ou se já são o outro.

Eh ben, raté, mon vieux

Tu découvres que les couches géologiques de l'anxiété t'enveloppent comme les couches d'un oignon et c'est alors que tu te mets à chercher ton noyau dur.

(Descobres que as camadas de ansiedade te envolvem como as camadas de uma cebola e é então que começas a procurar o teu núcleo duro.)

O tempo, esse grande acupunctor

Questão de meridianos, sem dúvida. 

Definição - Escrever

Escrever é a arte de transformar em palavras aquilo que andas há uma vida a tentar dizer com as mãos. 

Bom dia

 Bom dia, minha noite.

Como?

Isto tudo dito, não sei de que resta calar-me. Dos corpos que amei e dos que se me recusaram? Dos dias que podiam ter sido felizes e dos que o foram? Da música que podia ter feita e da que ouvi? Do mar, que me fez e eu fiz como quem entretece um tapete esperando pelo amante sem se aperceber de que o amante é o tapete? Do vinho que bebi, rum que me bebeu, Sol que me encheu os dias e Lua a vida? Selenita calado, pós-calado, ante-moderno, marciano perdido, venusiano reencontrado, homem falado que ninguém ouviu porque não havia ninguém nas redondezas, homem simples, braços caídos ao longo do corpo fino, quase transparente?

Isto tudo dito, que falta calar?

Nada. Tudo. 

Tudo calado, tudo dito, tudo embalado e pronto a seguir, tudo espantado: haverá palavra que não tocaste? Sentimento que não viveste? Morte de que fugiste ou de ti fugiu, cada qual mais branco do que o outro? Que sabes do que ficou por dizer? Que sabes do que ficou por viver? Do que ficou por nascer, por morrer? Que sabes, dos interstícios entre silêncios e palavras? 

Imagina um soalho juncado de restos, ruínas,  objectos desfeitos, quebrados, avariados, rasgados: como dele distinguirias os silêncios e os outros? Os visíveis dos invisíveis?

Como de uma pele distinguirias outra, se não soubesses o que lhes está por trás?

Como fazes, para do caos fazeres ordem e esta retornares ao caos? Como fazes, para disto tudo tirares sonho, vida, amor, mar, Sol, Lua, música, livros, comida, um ventre ou outro?

Für H. & T.

Isto tudo dito, só apetece dizer que nada foi dito ainda, porque só está tudo dito quando nada mais se pode dizer e a vontade de nada mais dizer não chega, não substitui o facto de que tudo não foi ainda dito, por muita vontade que se tenha de nada dizer mais, nunca mais. A vontade não chega. Não é hoje que nada direi nunca mais.

Hoje, direi apenas que se hoje tudo estivesse dito, tudo teria valido a pena. Hojes, penas: não há singulares, só plurais. Tudo teria valido as penas. Cada vida com suas dores, suas vitórias e no fim o saldo é positivo (desde que não se metam cifrões em campo, claro). Como é que ele dizia? "Jogam onze contra onze e no fim os alemães ganham." Jogas sozinho contra todos, com todos, e no fim a vida ganha. Não somos máquinas de reproduzir genes e se fôssemos tudo estaria bem. Felizmente, há mais num gene do que uma dupla hélice. Há um olhar, um corpo, um futuro ao qual o gene não é impermeável. Somos o que somos, o que seremos, o que fomos, o que fizeram de nós e nós deixámos fazer, o que fazemos, fizemos e faremos. O que sou e fui continua, felizmente alterado, adaptado, modificado, adaptado.

Sou o que em vós poderei ser, o que de mim guardareis, o que de mim respirareis quando já não for. Tornais-me mais fácil o já não ser, porque já fui e sou. Não será hoje que não serei: enquanto houver oxigénio há vida e vós sois oxigénio. 

Duas duplas hélices que se fundiram numa só, escolhendo o melhor de cada uma delas: "il faut le faire".

Il faut le faire, mon H., mon T. de ma vie, mes amours de toujours et pour toujours. Il faut te faire. 

Mitos, verdade e mentiras

Em "Les grecs ont-ils cru à leurs mythes" Paul Veyne lembra um facto que devíamos  ter em conta hoje, no meio desta crise societal: nos mitos não há verdade ou mentira. Coexistem as duas, ambas são "verdade", ambas são "mentira". Os mitos não são uma mistura alternada de verdade e mentira, conceitos que levariam o seu tempo a aparecer. São um magma das duas. 

Exactamente como a Covid hoje: na cabeça da maioria das pessoas: não há verdades ou mentiras. Há um chorrilho de "informação" vindo da comunicação social, outro de ordens das "autoridades" e agora trata-se de seguir as duas, sem pensar, destrinçar ou sequer perguntar.

9.4.21

Semi-afundado

Uma vez estava dentro de um barco que se tinha afundado - mas não ido ao fundo, porque era um catamarã. Estava a flutuar à tona de água. Estávamos a rebocá-lo para um porto onde o pudéssemos encalhar. O cabo de reboque rompera-se por causa de um squall, que em português tem o nome enganador de aguaceiro. Estava no rebocador e lancei-me à água para passar outro cabo de reboque. Não voltei a subir porque seria demasiado perigoso e fiquei dentro da embarcação semi-afundada. Era noite e o salão (o que estava destinado a ser o salão, a embarcação estava em construção) estava cheio de madeiras soltas, de todas as dimensões. Com as vagas - completamente desencontradas porque estávamos muito perto da costa e da barra do porto - as madeiras andavam em todas as direcções, violentamente. Pus-me num canto, para pelo menos ter as costas protegidas. Tinha de me defender de paus, pedaços de troncos, chapas de todos os tamanhos que vinham contra mim a toda a velocidade e só via quando estavam a decímetros.

Sinto-me como me sentia nessa noite, com a diferença de que nada é visível: nem o temporal, nem as madeiras, nem as vagas, nem o casco semi-afundado.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 09-04-2021

Lá fora a temperatura está a dezassete graus, mas a temperatura dentro de casa é insuportável de quente. É preciso abrir as janelas. Acontecia o mesmo de manhã, quando a temperatura exterior era de dez graus ou menos. O hábito das casas aquecidas é como o dos carros automáticos: adquire-se depressa e esquece-se devagar.

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Na televisão, um dos directores da RTS (Rádio Televisão Suíça) explica que o ano de 2020 foi um ano recorde em espectadores, publicidade e tudo, tanto no digital como nos meios tradicionais. S. não faz a ligação com a Covid e eu pergunto-me: «qual a percentagem de pessoas que a faz»?

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Num museu do Locle (cantão de Neuchâtel) a exposição chama-se «Vide» (Vazio) e consiste em paredes brancas. Serve para «chamar a atenção para a frustração dos artistas com os confinamentos, etc.» (cito de memória). A ideia é excelente, eloquente. Imagino todos os músicos de rua em Portugal numa acção semelhante: parados, quedos, mudos, com os instrumentos. Ver se assim as pessoas conseguem medir o que estão a perder.

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É inútil, eu sei: o medo é uma avalanche que leva tudo pela frente. A começar pela racionalidade. Quem viu imagens de uma avalanche a destruir casas percebe o que quero dizer. Não há alicerces - sejam físicos sejam teóricos - que resistam.

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Mais um colóquio na calha. Preferiria o nome de  Chautauquas, roubado do Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, um livro no qual penso cada vez mais (como se fosse possível). 

«With this, the book details two types of personalities: those who are interested mostly in gestalts (romantic viewpoints focused on being "in the moment", and not on rational analysis), and those who seek to know details, understand inner workings, and master mechanics (classic viewpoints with application of rational analysis, vis-a-vis motorcycle maintenance)

«The narrator examines the modern pursuit of "Pure Truths", claiming it derives from the work of early Greek philosophers who were establishing the concept of truth in opposition to the force of "The Good". He argues that although rational thought may find a truth (or The Truth) it may never be fully and universally applicable to every individual's experience. Therefore, what is needed is an approach to life that is more inclusive and has a wider range of application. He makes a case that originally the Greeks did not distinguish between "Quality" and "Truth"—they were one and the same, arete—and that the divorce was, in fact, artificial (though needed at the time) and is now a source of much frustration and unhappiness in the world, particularly overall dissatisfaction with modern life

O livro é de 74 e é provavelmente o que melhor descreve os tempos. Ou os pensa.

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Um conto publicado na Caliban. Reagi como uma criança, prova de que nem tudo está morto em mim. Só adormecido.

8.4.21

Alcunha

Bebia tanto que deixaram de lhe chamar Seca-adegas. Passou a Mata-adegas. A taxa de mortalidade das garrafas multiplicava-se por dez, onde quer que ele estivesse. Um dia ofereceu-se para ajudar à missa, tarefa essa que manteve até o padre descobrir que o vinho que dava aos fiéis era uma mistura de água,  álcool, açúcar e sumo de frutas.

7.4.21

Uma relação saudável com a verdade

É urgente restabelecer uma relação saudável com a verdade. As verdades, é uma relação múltipla. Uma relação que não exija da minha verdade que mate a tua, mas lhes aceite uma convivência feroz nas palavras, pacífica nos actos. Não podemos continuar nesta senda assassina, sob pena de em breve termos de lutar simultanemente contra a extrema-direita e contra a esquerda (sem extrema. É cada vez mais mainstream).

6.4.21

Imaginação, verdade

"As verdades, a da Ilíada e a de Einstein, são filhas da imaginação, não da luz natural."

Paul Veyne, in Les grecs ont-ils cru à leurs mythes ?

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 06-04-2021

Conversa com o C. M. F. sobre longitude. A ajudá-lo no seu próximo livro, sobre mar e fotografia - se é que se pode chamar «ajudar» a duas dicas e três ligações. Deu-me vontade de retornar ao meu livro sobre o mar, completá-lo, encher-lhe de carne o esqueleto.

Mais um passo de gigante para o colóquio. Ou melhor: promessa de passo. Se a resposta for sim, posso ficar feliz; se for não, também: mais vale perder do que não tentar. Prefiro levar um murro de um gigante a levá-lo de um anão. Dói menos.

Escutei pela primeira vez em muito tempo uma das minhas entrevistas favoritas. Fiquei comovido: é bom ser apreciado por quem sabe ler. Quando o saco de calhaus que trago às costas se esvaziar - ou pelo menos aligeirar - retorno à escrita, essa casa na qual detesto estar e tanto gosto de ter estado, passe a paráfrase.

Em Genebra os cafés continuam fechados. A loucura é generalizada. Só varia em grau. Se fosse religioso acenderia uma vela à governadora do Dakota do Sul todos os dias. Há muitos anos que não vejo um político merecedor de respeito.

Três dias de conversas com J. v. H. Em noventa e nove por cento delas, o tema foi a merda da Covid. Esta porcaria invade-nos tudo: a vida, os dias, as amizades, a paciência, os passeios no campo, a humanidade, tudo. Nada lhe escapa. Na filosofia do meu sétimo ano chamava-se a isto um englobante. Hoje chamar-lhe-ia englobante emético: vomito Covid por todos os poros.  

Quase há um mês em Genebra e ainda não comi uma fondue. Estou a ficar suíço...

...e a precisar do meu P., doentiamente.

5.4.21

Reconhecimento

É contigo que falo. Encontraste uma casa em mim e nela habitas como se fosse tua. Olhas a rua com os meus olhos e nela te passeias com as minhas pernas. O mínimo que podias fazer era falar-me de vez em quando, não achas? Não te peço que partilhes a côdea de pão que todos os dias te dou. Bastar-me-ia uma palavra. Um cumprimento, um reconhecimento.

Esperança

A esperança é uma droga dura. Devemos evitá-la como se rejeita a heroína: tudo o que oblitera o real faz mais mal do que bem.

Elogio do pensamento complexo

Deve desconfiar-se de uma afirmação que não seja simultaneamente peremptória e seguida de um "mas".

Retratos

Lobo solitário e empático: detesta alcateias  e compreende indivíduos.

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É uma daquelas pessoas que a vida amaciou, tornou amáveis. Devem muito ao tempo: a humildade melhora a beleza. Humaniza-a.

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Não era um tipo explosivo. Era implosivo. Zangava-se para dentro.

4.4.21

Diário de Bordos - Lamboing, Berna, Suiça, 04-04-2021

Domingo de Páscoa no Jura, essa planície que se enganou e se toma por uma montanha. Não é. É uma planície sensual e gozona, torturada pelo tempo e tranquila, ordenada e selvagem. Aqui a ordem visível é uma aparência - pode dizer-se o mesmo da Suíça, é verdade. Mas em lado nenhum esta sensação é tão forte como no Jura. Nos Alpes a natureza é bruta, violenta, claramente masculina. No Jura tudo é feminino, sensual, dissimulado, redondo, ordenado. As casas são feias, cossues, sem elementos decorativos. Telhados até ao rés-do-chão, uma janela por divisão, mulheres recatadas  que só se revelam quando as conhecemos e nos conhecem, quando as tocamos nos sítios certos. 

Ao longe vêem-se os Alpes - masculinos, brancos de neve, abruptos. Na Suíça,  Alpes e Jura enfrentam-se, estão próximos. Neste país, a ideia de compromisso nasceu com a geografia.

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Quero morrer vivo e não já morto. Viver por viver, que seja até à última gota - de vinho, aguardente, rum ou amor.

2.4.21

Regras, réguas, quase, Montaigne. Um retrato

Não precisava de uma regra para saber o que devia fazer, como não precisava de uma régua para traçar direita uma linha, nem de um espaldar para lhe segurar as costas. Bastava-lhe o que via, ouvia e lia, o que sentia e o que pensava. Regras e réguas fazia-as ele, sempre fez. Quando falhavam, era ele quem falhava. Nunca marchou a toque de caixa tocada por outrém. Se enganou alguém foi porque se enganou  primeiro. Nunca ganhou com os seus erros, antes pelo contrário: pagou-os muito mais caro do que eles custaram. Vivia numa ilha quase deserta e só atribuía importância àquele quase. Todos os dias se escrevia, pensando em Montaigne: "não fiz mais o meu livro do que o meu livro me fez." O meu livro fez-me, mais do que eu o fiz, repetia. O homem é o resultado da obra e não o contrário.

Encruzilhada, ética

O drama desta crise, escrevi há pouco tempo - perdoem-me a auto-citação - é que cada um dos intervenientes fez o seu trabalho: os media rentabilizaram-na, os governos cavalgaram-na, as pessoas aterrorizaram-se, como lhes competia e se esperava delas, os cientistas ou se venderam ou se acobardaram ou foram silenciados, consoante o lado em que se situavam.

Porém, o facto de os media terem aproveitado o vírus para melhorar tesourarias que estavam, na sua maioria, vazias levanta alguns problemas de ética. A responsabilidade social de uma empresa é ter lucro? É, sem dúvida, mas com alguns bemóis. Um ladrão é uma empresa e ninguém pensa que lucrar muito com a sua actividade é um bem social. Seria muito mais barato construir carros sem travões, mas não me parece que o mercado aprovasse incondicionalmente a ideia. Há na comunicação social um problema de ética e outro de liberdade de expressão cuja resolução me parece relativamente fácil (relativamente sendo, claro, irónico): se os media fizessem o seu trabalho de acordo com as normas (ou antigas normas, não sei se ainda estão em vigor) de distanciamento e contraditório poderiam simultaneamente usar a sua liberdade de expressão e melhorar as suas depauperadas tesourarias. 

(Ao contrário do que parece, o parágrafo anterior termina com um ponto de interrogação. O ponto final é uma ilusão ótica e óptica.)

Os governos poderiam ter agido como o governo sueco? Prefiro o exemplo do governo do Dakota do Sul, cujo video correu a net há algumas semanas: sem quaisquer constrangimentos legais, a governadora - em quem não serei o único a ver um futuro presidente dos EUA - escolheu não impor «medidas». Os números dão-lhe razão, claro, mesmo comparando com os estados vizinhos, como os apoiantes destas políticas gostam de fazer com a Suécia. Sim, podiam e deviam. Mas de um político a um estadista vai um passo grande e nem todos são a senhora do Dakota do Sul, cujo nome não fixei. Há aqui um problema ético e outro prático: governar reduz-se a procurar a reeleição? Quem nos garante que a tal senhora não vai ser reeleita governadora? Quem nos garante que se Costa, Sánchez ou Macron se tivessem comportado em estadistas - admitidamente, algo tão difícil como levar o Ayatollah Khomeini à Oktoberfest - não sairiam reforçados?

Das pessoas e respectivo medo pouco há a dizer. O homem é um animal e não há discurso anti-biologia pós-moderno que apague esse facto singelo. O medo é um mecanismo evolutivo, darwiniano, naturalmente colectivo. Por muito que me irrite, me frustre, me dê vontade de gritar, não serei eu quem as vai julgar. (Acresce que a modernidade e as suas crenças na omnipotência da medicina, na irrealidade da morte, na ideia de que tudo acaba forçosamente bem, na correcção política foi criada por gente da minha geração, não pelos jovens que se limitaram a absorver o que lhes despejámos pelas goelas abaixo ou pelo menos não impedimos de beber quando era tempo para isso).

Idem quanto aos cientistas. Muitos falaram e não foram ouvidos - a culpa não é deles - outros acobardaram-se, outros decidiram que vender medo dá mais massa e projecção do que vender razão (aliás, acredito que muitos destes o tenham feito por convicção, motivação essa que para mim não é essencialmente diferente da ganância. É-o marginalmente).

Ou seja: temos aqui uma encruzilhada apaixonante, por muito mal que tenha espalhado por essa Terra fora. E é muito, incomensurável, inimaginável. No centro da encruzilhada está a ética. O resto são adereços.

Variações apologéticas em torno do absinto Angélique

Absinthe rima com absente (enfim: quase, mas a diferença é tão pequena que nem um teste PCR a detectaria), coisa que só por si demonstra uma série de coisas importantes, todas elas conducentes ao mesmo: as razões para não o beber estão ausentes.

Se o absinto fosse a rainha das bebidas alcoólicas, o absinto Angélique, feito artesanalmente no Val-de-Travers, Jura suíço, por um senhor chamado Claude-Alain Bugnon seria a rainha-mãe. É.

A beleza do absinto começa no cheiro quando se abre a garrafa, continua na cor quando se o põe no copo (para quem não sabe: põe é como coloca, mas em melhor), prolonga-se quando se lhe junta a água e se o vê mudar de cor e acaba na explosão de sabores campestres, históricos, poéticos e profundamente inspiradores. A arte moderna deve muito ao absinto e o senhor Claude-Alain Bugnon (que ainda não conheço - sublinho ainda) e todos os que o antecederam na nobre arte de distilar plantas como (cito) grande absinthe, angélique e outras dez (fim de citação) deviam ser erigidos patronos das artes e grandes encorajadores da vida no campo.

O pastis está para o absinto Angélique como uma prostituta de rua para Mata Hari. 

Ao primeiro gole de absinto a vida muda para (muito) melhor. Os goles seguintes não fazem mais do que prolongar essa mudança; afiná-la, por assim dizer. Refiná-la. Dar-lhe um sentido, uma direcção, uma razão de ser. Quem não acredita no progresso nunca bebeu absinto Angélique.

O simples facto de o senhor que faz este absinto pôr o seu nome no contra-rótulo diz tudo: as obras de arte assinam-se.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 02-04-2021

Vou passar o fim-de-semana a casa do J. no cantão de Berna. Jura Bernois, para ser mais preciso. As temperaturas caem para níveis relativamente baixos: a máxima dos três dias vai ser um grau positivo. O resto dos dias têm todos o tracinho antes do algarismo. A ver se isto me arrefece o entusiasmo pelo Jura (sei que não, mas na verdade estou a marimbar-me para a temperatura, desde que tenha roupa para ela). O que me impressionou foi o processo de compra dos bilhetes de comboio. Os CFF adoptaram métodos de estabelecimento de preços dignos de uma companhia aérea. Não vejo razão nenhuma para os privatizar - não há ideologia que valha uma coisa que funciona - mas estas variações nos preços (acoplada a uma panne de informática que me fez ir duas vezes à estação) deixou-me pensativo.

Os correios também estão a avaliar a privatização do banco postal. Sabiamente escolheram um socialista para gerir o projecto - às papas e bolos alguém devia acrescentar as palavras, às quais a modernidade atribui poderes mágicos. Suporíferos, na verdade.

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Na Migros da estação exigiram-me que pusesse gel nas mãos para entrar. Mandei-os passear e vim-me embora. Prefiro um colombo sem fenogrego a pactuar com idiotices. Disse ao homem que sou alérgico, mas ele insistiu na «obrigatoriedade». Não insisti: estava muita gente na fila para entrar e de qualquer foma de nada teria servido precisar-lhe que a minha alergia é à connerie, não ao gel. De qualquer forma o colombo vai ser um exercício de flexibilidade, tolerância e criatividade. Mais fenogrego menos fenogrego não mudaria grande coisa.

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We belong together, cantado pela Ricki Lee Jones, é uma canção que não me larga. É tão bonita. Era dedicada ao Tom Waits, diz-me o google. 

Apologia do cepticismo

Não sou arqueólogo, mas estou pronto a apostar que o cepticismo já vem dos primeiros tempos da hominização: sem dúvida não há progresso.

1.4.21

A tentação securitária

As latas de conserva já não têm bordos cortantes. Alguém se preocupou em torná-las inofensivas. Alguém nos tratou como crianças? Não. As crianças aprendem e aprendem depressa. Basta cortarem-se uma vez ou duas  numa lata e aprendem. Alguém se preocupou em tratar-nos como idiotas; alguém pensou que não se consegue suportar um corte num dedo nem aprender a evitá-lo.

Confesso que a história das latas me é relativamente indiferente. Cortei-me como toda a gente umas poucas de vezes e nunca atribuí a isso grande importância - como não atribuo às que agora têm bordos que não cortam. O que me inquieta verdadeiramente é que essa preocupação não acaba nas latas. Estende-se, por exemplo, à falta de fé na capacidade de o sistema imunitário da esmagadora maioria das pessoas responder por si a um vírus que se sabe ser-lhes inofensivo. E a muitas outras coisas: a desresponsabilização atingiu níveis inconcebíveis. Ele é atravessar uma rua: há sinais para peões, porque estes obviamente não têm olhos para ver e cabeça para julgar. Ele é o aviso sobre a temperatura elevada do café nos recipientes (pelo menos nos EUA); ele é um sem número de situações nas quais alguém pensa sistematicamente que somos incapazes. 

O que me inquieta é a aceitação bovina desse statu quo, como se fosse normal. Como se fôssemos todos incapazes e irreponsáveis. Como se? A continuar assim, em breve sê-lo-emos, todos.

Misantropia prática

Tal como uma das grandes dificuldades que os darwinistas tiveram foi fazer aceitar o acaso como motor da evolução - a girafa não tem o pescoço comprido para comer as folhas mais altas das árvores. Come-as porque tem o pescoço comprido - compreendo que esta vastíssima e profundíssima mistura de acaso, incompetência, histeria, estupidez, ignorância e zeitgeist seja mais bem absorvida se lhe for atribuída um objectivo, uma necessidade. Não sou historiador, mas penso não me enganar se disser que nunca na História se viveu tão inverosímil e abrangente mescla. 

Não, caros colegas cépticos: não há ninguém a coordenar isto, não há objectivos escondidos, não há um diabo a manipular o Costa, o Macron, o Johnson ou o Sanchez. A menos que por diabo designem, claro, a incapacidade deles, a pequenez, a miséria, a capacidade que as pessoas têm de trocar a liberdade por um ersatz de segurança, a inimaginável aceitação do absurdo (suponho que mesmo os mais ferrenhos apoiantes das «medidas» reconhecerão o absurdo delas) e - sobretudo - a incalculável reserva de maldade que se esconde na maioria dos seres humanos. A haver um diabo, talvez seja a crueldade com que se aceita o que se está a fazer a crianças impedidas de brincar e aprender, a velhos impedidos de abraçar quem amam e os ama, a adultos impedidos de trabalhar e reduzidos à categoria de pedintes. 

A misantropia ontológica é uma coisa; vê-la mais do que justificada na prática outra, bem pior.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 01-04-2021

Saio do Halle de Rive e esqueço-me de tirar a máscara. Só dei por ela já no Jardim Inglês. Isto assusta-me de várias formas:

1- Não gosto de dar maus exemplos na rua;

2- Não quero que a malta dos Governos pense que tem aqui um adepto;

3- Estarei a ficar tão habituado que...? (A mera hipótese assusta-me tanto que não a enuncio. Sei perfeitamente que é impossível.)

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Encontrei Red Stripe, na Drinks of the World. Já de Moynt Gay barato nem sombras. Só há XO a uma pipa de massa - e muitos outros runs, a muitas pipas de massa. «O rum está na moda», diz-me S. Pergunto-me porque nunca ninguém me reconheceu o papel de trendsetter que sou desde a mais tenra infância... Quando aqui cheguei havia três marcas, ou se calhar nem isso. Paciência, para fazer molho picante vai de Baccardi. Fica pelo menos a garantia de que vou poder fazer muito mais molho. Encontrei um tipo no Halle de Rive que mos quer comprar. Isto não se inventa: vender os meus piripiris é um futuro de sonho - e penso na A., que em Palma me disse «Tu podes fazer uma pipa da massa com isto» (a transcrição é de memória; ou de vontade, não sei). Imagino-me bem no campo a fazer molho picante - seria bastante semelhante a isto da escrita, que toda a gente diz ser muito boa mas pagá-la tá quieto. Ou da reciclagem, eu tão bom cidadão a separar o vidro escuro do transparente, o plástico do papel, o alumínio das  cascas de banana e ninguém quer reconhecer o enorme valor desse tempo.

Até ter vontade de fazer 'ti ponches, o Baccardi chegará para muito molho.

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S. fala-me de uma componente das relações amorosas, a «pertença». Diz-me que é - ou pode ser - independente das relações que subtende: uma relação amorosa não existe (ou não é sustentável) sem essa «pertença», mas esta pode sobreviver-lhe. Passo alguns pormenores, mas gosto da conclusão a que chegou. 

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A França reconfina, a Finlânia não. Este vírus é claramente cultural. E político: quanto mais democrático o país, menos poder o vírus tem.