30.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-06-2023

- Xisco, o homem que cozinhou esta carne (plumas de cerdo) vai para o céu.
- Luís, não é um homem, é uma mulher. E tem um cu que quem vai para o céu és tu, quando o vires.

O diálogo não é verbatim, mas é fiel. O que eu não percebo é como ainda há quem queira transformar isto numa Suécia. Eu não quero.

Verdade seja dita: nesta cidade não há canto em que um gajo não ponha os olhos num cu que o leva ao céu (cu sendo aqui uma metonímia. Não quero que os meus leitores pensem que sou obcecado por uma parte especial da anatomia feminina. Não sou. Não há nada na anatomia de uma senhora que não me leve ao céu, elevador expresso como os dos arranha-céus).

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Jantar no Lo Divino. Não é só a anatomia feminina que me leva ao céu. Na verdade, todas as estradas levam a ele: um corpo, um jantar, um livro, um poema. Basta respirar, no fundo.

E ter olhos para ver.

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A funcionária da gestoria que contratei para tratar dos P. (pai e filho) esteve uma semana de baixa. Quando tentamos explicar a quem não é deste meio que os factores que nós controlamos são uma parte ínfima de todos aqueles com que lidamos as pessoas pensam que exageramos. Não exageramos. Antes pelo contrário: somos púdicos e escamoteamos uma grande parte da realidade. Questão de não expormos a toda a gente a nossa pequenez. A nossa impotência fundamental, basilar.

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Falo da beleza das estradas hiper-secundárias de Maiorca, das surpresas que nos reservam, mansões escondidas no meio de nada. R. acrescenta que aqui as estradas estão limpas, ordenadas, arranjadas. Na Sicília (de onde é originário) «parece uma guerra». 

A ordem é atraente. É magnética. E nós somos como limalha atraída pelas suas linhas de força. Entropia e neguentropia: oscilamos entre uma e outra como uma criança num baloiço. Que não dirigimos, como ela não o controla.

29.6.23

Empíricas, meu caro Watson

A Neurociencia del Cuerpo é um livro fabuloso, de leitura imprescindível.  Entre muitas outras qualidades (mais, mais tarde) tem uma essencial: faz-me ver, com provas, quão errado eu estava (ou estou ainda, estas coisas não são de um dia para o outro) em tantas áreas. A palavra-chave, para quem não tenha percebido, é provas. Provas empíricas. 

Foi com elas que construí as minhas opiniões e é com elas que gosto de vê-las demolidas.

AVURNAV - Terminal 2 do aeroporto de Lisboa

Aviso urgente à navegação: se alguém tiver a desventura de ter de utilizar o terminal 2 do aeroporto de Lisboa deve a todo o preço evitar chegar mais do que dez minutos antes do voo. Fiz dois erros: a) cheguei duas horas e um quarto antes; b) passei directamente para a zona de embarque, aterrorizado com o que vi no hall dos check in.

Agora estou na zona das portas de embarque. Eu e metade da população europeia. Esta zona foi feita para acolher metade de uma aldeia abandonada do interior de Portugal. Podem facilmente visualizar a amplidão da discrepância. 

O terminal 2 do aeroporto de Lisboa existe para me fazer esquecer os aeroportos de Madrid e de Marselha. É sem dúvida louvável como objectivo, não discuto. Mas podiam tentá-lo quando eu - nem ninguém que eu preze - já não precise de passar por aqui.

28.6.23

"Oiça um bom conselho / eu lhe dou de graça"

Há umas dúzias de anos deu-me na vontade operar o nariz. Não por razões estéticas, note-se. Desse ponto de vista nada a fazer. Por razões operacionais. Pedi sugestões (o que era fácil, nessa altura vivia com uma senhora que trabalhava num meio medicalizado, também conhecido por Hospital Universitário) mas todos os nomes que me foram sugeridos tinham listas de espera de três ou quatro meses. Não queria esperar tanto tempo. Na minha vida três meses é uma vida, de maneira tive uma ideia faiscante. Cintilante. Deslumbrante: fui à lista telefónica e comecei a telefonar a todos os cirurgiões otorrino que lá constavam, por ordem alfabética (claro. É assim que as listas telefónicas funcionavam). As esperas andavam todas pelo mesmo: três, quatro meses. Até que na letra H (ou I) cheguei a uma senhora que me podia operar "para a semana". Claro que a escolhi.
 
A mulher ia-me matando. Pouco tempo depois foi expulsa da ordem dos médicos (não há relação entre as duas coisas). 

O critério que segui para encontrar o oftalmologista que me operou às cataratas no Porto foi completamente diferente e bastante semelhante. Hoje fui - finalmente - pedir uma segunda opinião a um oftalmologista de Lisboa. 

Pré-diagnóstico (tenho de lá voltar): " Isto não está fácil." Se precisarem de conselhos para a escolha de um médico digam-me.

Sabedoria do século de ouro

"Todos los que parecen estúpidos lo son y, además, también lo son la mitad de los que no lo parecen."

Quevedo, citado por Nazareth Castellanos in Neurociencia del cuerpo.

27.6.23

Diário de Bordos - Lisboa, 27-06-2023

Chego ao Marquês e hesito: Avenida da Liberdade e Restauradores, Rossio ou Braancamp e Rato? Aqui haveria outro dilema: Príncipe Real ou Estrela? Opto pela via do menor dilema e desço lentamente a Liberdade, pelo passeio para dar lugar aos automobilistas, que como de costume vão numa corrida furiosa contra o próximo semáforo. Acabo no Nicola a beber cafés e a comer pastéis de nata, assim mesmo no plural.

O R. é um filho da puta de um argentino, passe o pleonasmo (e a injustiça da generalização, que a mais das vezes é falsa mas que se lixe. Isto não é uma aula de antropologia e menos ainda de boas maneiras). A verdade é que o E. pegou no material e foi-se embora, podre de razão. Espero que recomece sexta, como combinado, que o outro sacana já deve ter terminado.

Neste refit apliquei tudo o que sabia e apercebi-me de tudo o que não. Gostaria muito que houvesse outro igual um dia destes, para ver se o que aprendi se nota na vastidão do que não sabia. Se o pequeno montinho que acrescentei ao que já sabia é visível. 

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O hospital de Cascais informa-me gentilmente que a próxima infiltração não poderá ser antes do dia vinte e três de Agosto. Até agora tenho resistido ao apelo do seguro privado, mas tudo me leva a pensar que António Costa vai ganhar a aposta e eu perdê-la. Menos um gajo a chatear no SNS. Costa quer privatizar a saúde usando o conhecida método do fode-fininho. Um dia o SNS não terá ninguém senão o lúmpen.

Nesse dia a saúde privada será ainda mais forte e ainda mais pujante do que está hoje. Infelizmente o SNS continuará uma merda porque a quantidade de proletas não pára de aumentar e os médicos terão fugido todos para "a privada".

25.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-06-2023

Fim de tarde de sábado. Jantar no Gustar com o V., que celebra o seu septuagésimo primeiro aniversário. A burra descansa, encostada ao canteiro central. Pus-lhe um selim novo, castanho e punhos a condizer. "Não te podes queixar", diz-me V., a empregada búlgara.  É bonita, tem um aspecto campestre, parece que chegou ontem da quinta da família. Em Lisboa, no Bairro Alto do antigamente havia um restaurante que tinha uma empregada assim. Só tinha as bochechas mais coradas. Tento lembrar-me do nome. Sei que era na rua do Diário de Notícias. Penso no dia que tive, nos que me esperam e o primeiro impulso é discordar dela. Depois penso no que acabo de pensar, na injustiça profunda que queixar-me é fazer à vida e encho-a de razão. Não me posso queixar. Ou melhor: não devo queixar-me. Poder, posso. Só que não devo.

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Isto foi ontem. Hoje o dia começa com uma crise: o charter do V. arrancou mal e é preciso substituí-lo. Arrumei os papéis a noventa e nove por cento. Para o que falta preciso de mais uns dias. (O que falta são pentelhices, mas pronto. Sou como sou e é tudo o que sou.)

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Encontrei um substituto para o V. Imagino como se sente, mas isto são coisas que acontece a todos. Há dias que arrancam com vento contra e nada há a fazer senão apearmo-nos deles, lamber o ego e prepararmo-nos para a próxima. 

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O dia acaba como um leque que se fecha. Todas as peças estão lá. Voltaram ao seu lugar.

24.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-06-2023

Manhã boa: consegui fechar com o Enver a um preço porreiro. Agora sim, a porcaria do traveller vai ficar resolvida. Depois pinta o convés todo, mas isso só mais perto do fim.

Manhã má: compras. A minha metade feminina não é suficientemente vasta para entender o conceito de «terapia de compras». Que prazer se pode extrair de ir gastar dinheiro em lojas de roupa? Numa loja de aprestos marítimos aceita-se facilmente, mas em roupa? Enfim, o meu stock de pólos brancos foi reposto e o Domingo tinha finalmente os dois pares de alpergatas que lhe encomendei quando cheguei - um deles ficou logo lá, estava um bocadinho grande. O Domingo é um gajo adorável mas está longe de ser o ás da alpergata. Tem a vantagem de ficar ao lado do mercado de Santa Catalina, o que não é despiciendo. Esta segunda vou para Lisboa um bocadinho mais leve, sabendo que deixo o Enver a bordo. É um srilankês pequenino, com uma pele que assenta directamente nos ossos, não há nada entre estes e aquela. Combináramos às nove e às nove em ponto lá estava. Quando cheguei liguei-lhe, mas ele ainda não estava em condições. A operação foi semelhante à minha e também não lhe correu muito bem. Ou correu pior, ainda. Eu pelo menos nunca deixei de poder trabalhar.

Manhã péssima: voltaram as dores no ombro, depois de umas semanas de paz.

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Começaram as queixas do calor. Respondo imediatamente: «ainda bem. Já era tempo», ver se as calo. No Inverno queixam-se do frio e na Primavera e no Outono das «alterações climáticas» (aspas porque é sarcástico). 

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Esparramo-me pelo cansaço, que nem sequer é bem cansaço. É antes o desfazer da tensão. A distensão,  se quiserem. Sinto as cobras todas a abandonar-me a carcaça,  uma por poro. Cada músculo é um ninho delas. Pergunto-me o que se passará pelos neurónios,  pelas sinapses, por essas zonas que sabem dizer como me sinto mas não se deixam observar.

23.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-06-2023

"Está un verano loco", diz-me Martin no seu espanhol quase perfeito. Martin é um dos poucos expatriados que conheço que aprenderam espanhol. Trabalha na Mercanautic, aonde é um funcionário competente e afável. Está podre de razão, como esta breve troca demonstra:

- Tania, o adiantamento que te dei não é suficiente, vou dar-te mais dinheiro - digo-lhe quando veio tirar as medidas para o lazy bag (sim, consegui). Claro que não estou nada preocupado com o montante do sinal. Estou preocupado com outra coisa.

- Luís, o meu problema não é dinheiro, é tempo. Deixa o sinal, não te preocupes com isso - responde-me a senhora, outra das que aprendeu espanhol. 

Ou seja, traduzindo: Luís, não sonhes com ladrões, qualquer que seja a língua dos teus sonhos.

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I. continua a não dar sinais de vida. Procuro alguém para o substituir. "Luís, não sonhes com ladrões". [Mentira. Talvez. Amanhã de manhã o Enver vem a bordo.  Este é fiável. Não falha. A ver quanto me vai pedir. Tem estado doente, de baixa, de alta, de operações e pós-operatórios. Aparentemente já se mexe.]

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Fim de tarde no Toni. Esta praça é fascinante: apesar do bulício consegue ser repousante. Consequência da luz, creio; da mistura de árvores (não sei identificar metade), da ausência quase total de automóveis. Na esplanada do Toni ninguém grita; nas duas que a rodeiam tão pouco. As três - Café Moderno, Café Plaça, Bar Santa Eulália, no sentido dos ponteiros de relógio de onde estou - são ocupadas maioritariamente por maiorquinos. De vez em quando lá se senta um turista ou dois, na sua maioria casais e com a adolescência há muito para trás.

A luz reflecte-se nas folhas e dá-lhes cores que vão do amarelo vivo ao verde escuro (aonde ela não chega). Essas mesmas folhas absorvem o pouco barulho e devolvem-no-lo sob a forma de paz. No caminho para aqui vinha a pensar que se descrevesse os meus dias pormenorizadamente os leitores pensariam que estava a estagiar para uma escola de filmes de terror. Bom: dois tinto de verano e uma tapa de chouriço e o filme de terror transforma-se na ilustração visual do álbum From gardens where we feel secure. Cuja audição de resto sugiro fortemente.

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Jantar na Cuadra del Maño, no meu lugar habitual (já aqui não venho há mais de um ano). O gajo do casal ao meu lado mantém o chapéu - um panamá de feira - na cabeça o tempo todo. Tira-o apenas para a selfie, quando a carne chega. 

E ai da há quem diga mal das selfies. 

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O meu lugar habitual é ao balcão, à frente das torneiras de cerveja. O que eu gosto de ver esta azáfama nobre que é dar de comer e beber aos outros, completamente alheados da dimensão nobre da coisa. Trata-se de servir, depressa e bem e encaixar o resultado desse trabalho. A nobreza fica para os observadores solitários (que por sinal já fizeram isto, mais ou menos).

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Termino a noite no Jaume. O Santisima Trindad é como a praça de Santa Eulália: amolece qualquer filme de terror.

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«Por favor recicla», diz um cartaz à porta do Jaume. «Per tu, per mi, pel nostre futur», assim mesmo em maiorquino. Confesso que não percebo. Há sessenta e cinco anos que reciclo tudo o que como e bebo em merda e mijo; desde os doze ou treze que converto o que sinto em palavras. Não vejo o que isso tenha feito pelo futuro de quem quer que seja. Nem o meu, quanto mais o dos outros.

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Vá lá, reciclo filmes de horror em pastorais rupestres, reciclo dinheiro em coisas variadas, bebidas e disparates (hoje comprei um modelo de paquete lindo), reciclo tudo em nada e nada em tudo. Espero que um dia a humanidade me devolva tudo o que fiz por ela.

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Ao longo destes cinco anos construí em Palma um ecossistema encantador. Tenho de falar nisto.

22.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-06-2023

Vamos pôr as coisas nestes termos: se eu amanhã conseguir ter a T. a tirar medidas para o lazybag fico a perceber porque nunca ganhei o totó-milhões: a sorte estava toda reservada para este momento. A alternativa - sou um génio - não me parece credível. 

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O I. continua a não aparecer e a não responder ao telefone. Aquele traveller da grande é uma das peças malditas do P.

Que tantas tem, coitado.

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No café Goa à espera do D. A reunião era às onze, cheguei às onze menos dez, são onze e quase meia e até agora nada. Aproveito o tempo para telefonar, enviar e-mails e, isto tudo feito, escrever disparates. Podia ser pior. O Goa tem um cafe quase bebível.

(Cont.)

21.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-06-2023

Caras: o I. não veio trabalhar e não atende o telefone; o D. diz que está «agoniado de trabalho» e não pode vir a bordo (para fazer um orçamento, note-se, uma coisa que ele faria em quinze minutos mais, admitidamente, as deslocações); a gestoria de Blanes não responde ao telefone; tentei outras, mas tão pouco respondem; ando às voltas com a minha folha de Excel. Grosso modo, é como dar passos de um milímetro numa viagem de quilómetros; o B. arranjou um embarque e não deve estar disponível nem amanhã nem depois, que é exactamente quando eu preciso dele. O X. não tem tempo nem para me dizer que está agoniado de trabalho. Fui à loja deixar um recado ao irmão - que estava ao telefone e não pode atender-me. Deixei-o ao empregado; o correio ainda não deixou o papel no Registo Civil de Loures. Talvez amanhã, diz a boa metade de mim. Talvez na sexta, diz a outra, sabendo que na segunda vou lá chegar e com sorte o maldito papel acabou de chegar também, no mesmo correio do que eu.

Moeda ao ar. Coroa: acabei finalmente de digitalizar a massa informe de papéis que tinha amontoados do P.; amanhã tenho finalmente a reunião com o D. para falarmos do boomvang (não vou comprar um rígido e quero saber o que é que ele sugere para uma retranca e um mastro destes); o Th. enviou-me uma mensagem a dizer que me vai dar as datas dos charters (metade vai para o V., espero, mas pelo menos assim sei com que linhas me coserei - além de que é um prazer fazer um charter em barcos novos, bem equipados e em alguns casos com stew - se for bonita, disse ao Th., que me respondeu que sim, é). Fui jantar ao 7 Machos, aonde já não ia há séculos. Recebido como sempre. Melhores tacos a leste do Pecos (não sei onde fica o Pecos, mas isso é irrelevante). Margaritas al dente e mezcal oferecido; gelado de caramelo salgado no Claudio. Encharcado em rum das Maurícias até às bordas; enviei a carta ao R. M. da Roses Nautica. Não serve de nada senão para descarregar, mas pelo menos descarreguei; a inspecção ao gás está feita. Não tarda chega-me o certificado. Em prémio «ganhei» uma garrafa de gás (aspas porque é a pagantes, claro); o portaló mais barato do chandler dá para o P.

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Entre estas duas faces da moeda há as minhas coisas: arranjar um lugar para a exposição (o P. V. mudou a data e quero tentar manter a exposição e o lançamento juntos); o texto para os Guide V.O. que não há maneira de sair; a leitura do A. G. que avança a passo de caracol.

A esta moeda chama-se «uma vida». Cada um dos meus dias é assim: uma vida.

20.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19 e 20-06-2023

De um ponto de vista burocrático, sair de Portugal e vir para Espanha é como saltar da frigideira e cair no fogo.

Enfim, na verdade de todos os pontos de vista. Espanha é Portugal em dez vezes pior (cinco porque tem cinco vezes a população e outras cinco porque cada um deles pensa que vale por dois).

Adoro esta cidade, as Baleares (com a excepção de Ibiza, de que gosto, só), adoro a Andaluzia e a Galiza. Tenho aqui bons amigos, sei de boa gente. Isto é exactamente como os franceses: quando a unidade é a unidade são gajos porreiros, afáveis. Quando a unidade passa ao milhão transmutam-se e o país fica insuportável. 

Até agora tenho vivido à revessa, bem abrigado, a beijar as rochas e a coisa tem ido. Com a compra do BP embati de frente na outra face da Lua e pronto.

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Metade da clientela feminina do restaurante parece que saiu de um casting da Vogue. A outra metade saiu, sem parecer - isto é, de certeza - dos quarteirões chiques de Palma. Há dois ou três machos alfa espalhados pela sala. Um deles sentou-se na mesa ao lado da minha. Infelizmente o correspondente troféu ficou do meu lado. O restaurante chama-se Giromatto, é giro mas não mata. Os saltimbocca estavam correctos, o Chianti era aceitável e o limoncello bastante bom. Não se pode dizer que encontrá-lo tenha sido obra do acaso; eu pedalava de facto ao acaso nas ruas de Santa Catalina à procura de um italiano e vi aquele, àquela hora ainda vazio (ando com horários de alemão). Acaso anula acaso: têm sinais alternadamente opostos. Mais acaso menos acaso igual a zero acaso. Depois vim para casa dormir, dormir e conferenciar com a almofada sobre esta história do BP.

Como nestas coisas um azar nunca vem só (e os azares não se anulam, são todos do mesmo sinal, adicionam-se) o registo civil de Loures recusou-se a dar o passaporte ao P. C.  Pedi-lhes que e dêem pelo menos o número. Vamos ver que desculpa arranjam para me dizer que não.

Adenda: a responsabilidade. Não lhes passa pela cabeça que quem não gosta de responsabilidades não devia ir para lugares que a requerem.

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Comi as primeiras brevas. Estamos a meados de Junho, bolas. Malditas altera... Benditos frutos. Eu sei que há uma palavra portuguesa para designar esses figos tardios (ou precoces, dependendo do ponto de vista), menos doces do que os outros mas com tanto ou mais sabor. Brevas, meus amigos, brevas. Tereis o Mediterrâneo na palma da mão e a felicidade num dos seus lugares favoritos: a boca.

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Concerto em favor da luta contra o cancro e em homenagem a uma senhora chamada Mayka que dele morreu e era amiga de muitos músicos (ou era música, não consegui destrinçar). Magnífico. Doze músicos e dois poetas (à vez) interpretaram músicas de que a senhora gostava e evocaram lembranças pessoais. Foi comovente. No ultimo tema o Vicençs ganhou asas. O homem toca como um deus, quando o toca a mão de um. Faz-me pensar num saxofonista genebrino chamado qualquer coisa Ferro. Ouvi-a por vezes no jardim à frente de casa e um dia, muito antes dessa casa, consegui pô-lo a tocar no Marchand. O Vicençs aqui em Palma é conhecido, é certo. O Ferro em Genebra só era ouvido por meia dúzia de melómanos. Contudo, são parecidos.

18.6.23

Definição - especialista

Um especialista é simplesmente uma pessoa cujo ignorância abrange muito mais áreas do conhecimento do que a de um generalista.

Retratos possíveis

A rapariga é bonita. Isto é, normalmente bonita. O que lhe confere uma beleza excepcional, única, é a conjugação do olhar com o sorriso. Os olhos e a boca iluminam-se e o que não passava de uma grande divisão bem decorada transforma-se num sumptuoso salão de baile. 

A vontade que tenho de lhe dar música só é vencida pelos quase trinta anos que nos separam. 

17.6.23

Carpinteiro louco

À medida que ia envelhecendo, o fosso entre ele e o mundo alargava-se. "Como se a vida fosse uma cunha entre mim e os outros que um carpinteiro louco vai martelando, todos os dias."

(Às vezes, o carpinteiro falhava a cunha e acertava nele mas também acontecia acertar nos outros. Ela por ela, equilibravam-se.)

Vida, solidão e outras complicações

Acontecia-lhe frequentemente estar em "modo Kalimero" e não ter a quem queixar-se.

"Deve ser isto aquilo que tantas vezes leio, solidão" - dizia-se, porque não sabia bem o que é não estar sozinho. 

A vida só é complicada enquanto não se cresce. Depois é simples.

16.6.23

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 16-06-2023

Não se pode dizer que setenta e tal euros por uma noite de hotel seja barato, tanto mais que a pensão Alamar não é sequer uma pensão, quanto mais um hotel. É um sítio com quartos. A seu favor tem a limpeza, que é irrepreensível. E, claro, o preço: foi o lugar mais barato que encontrei perto de onde estava e que me respondeu imediatamente. Ainda estamos em Junho e Barcelona já está cheia, de modo que encontrar qualquer coisa a preços módicos obriga o viajante a ir ou para casa do diabo mais velho ou para as pensões Alamar deste mundo (no outro são piores, de certeza).
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Para ir de Barcelona a Roses - cento e sessenta quilómetros - começa por se apanhar um comboio de alta velocidade; depois passa-se para uma camionete e depois ainda para outra. Ao todo, duas horas e meia de viagem. Ou seja, uma média de sessenta e quatro quilómetros por hora. Se se considerar que a primeira hora desse trajecto é feita num AVE, comboio de alta velocidade, a quase duzentos à hora... se se considerar isso, dizia, compreende-se que o velho mito do cem à hora está vivo e bem vivo.

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Já fiz muitas viagens estúpidas e inúteis na minha vida. Esta foi só mais uma. O pior é a desilusão. Fui para Roses a pensar que sairia dali de semi-rígido. Volto como fui: autocarro, autocarro e AVE. E a desilusão: quero pôr o BP a trabalhar ontem, se faz favor.

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E agora é isto: seis horas até o avião descolar, quatro até ir para o aeroporto, muito sono a pôr em dia.

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Adenda:

E agora é isto: vim até à Rambla, deixei-me enganar mais ou menos voluntariamente na Boqueria, tento lembrar-me de uma praça que não fica muito longe daqui, de repente vejo-me em Coventry Garden e penso que ando com as geografias todas misturadas. Já não sei onde é o raio da praça nem sequer se é em Barcelona (é), encontro refúgio num bar - restaurante calmo e bonito e passo um bom par de horas até chegar uma horda de ingleses o que basicamente implica que tenho de me ir embora, não quero alimentar a minha alergia. Vou para o barzito que descobri ontem perto da «pensão» Alamar, ali não há o risco de entrarem hordas pela razão simples de que não há espaço para elas (além de que aquilo é tudo menos apelativo), contrariamente ao Portalón aonde agora me encontro, que é bonito, tem vermute de Reus e uns óptimos boquerones. E ingleses (que afinal não gritam tanto como fizeram supor quando entraram).

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O dia foi uma merda mas acabou maravilhosamente por causa do P. C., que me vai buscar o passaporte. É aquela história das nuvens e dos contornos de que aqui falei há coisa de um mês (foi há dois meses, em Abril). A próxima vez que me apetecer dizer mal da burocracia portuguesa penso na espamhola e dentros da espanhola na catalã e acabo aos beijinhos a todos os funcionários públicos portugueses (as senhoras da Conservatória do Registo Civil de Loures que em Maio me atenderam já os merecem).

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Começo por me perguntar por que raio de carga de água as pessoas hoje me pareceram tão antipáticas, daí apercebo-me de que hoje não tive quase dores no ombro direito, confirmo no Portalón que o serviço é simpático, competente e profissional e vejo que quem foi execrável hoje comigo foram os funcionários dos caminhos de ferro e isto sobretudo porque lhes pedia informações e a resposta era a outra companhia de comboios. Há duas, uma da Catalunha outra do governo central e quem trabalha para uma acha-se na obrigação de não tratar bem os passageiros da outra, sendo a uma e a outra intercambiáveis. Daqui pergunto-me o que aconteceu à dor no ombro e tento chatear-me porque o avião está com uma hora e meia de atraso. Falho redondamente, seja porque estou demasiado cansado para me chatear seja por causa do passaporte. Além disso fico contente por er resolvido o enigma matinal, apesar de continuar a achar estes gajos provincianos, chauvinistas e - no caso específico do director comercial da Rosesnautic, o gajo que me vendeu o barco - de uma incompetência fenomenal. Monumental. Se alguém um dia quiser fazer uma estátua à incompetência pode usar o R. M. como modelo.

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Quaisquer que sejam as piadas a fazer sobre as miúdas à minha volta - cada vez mais e mais jovens - uma coisa é forçoso reconhecer: há uns anos não eram tantas e eram mais velhas. Isto é um facto cientificamente comprovado. Tal como, de resto, o facto de nunca o mau gosto ter atingido os píncaros por onde hoje anda. Ou seja, há dois factos a reconhecer e não só um, ambos com igual solidez empírico-teórica.

15.6.23

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 15-06--2023

Quanto mais tempo passo em Barcelona menos percebo a atracção que esta cidade exerce sobre tanta gente. Estes gajos são execráveis, pequenos, mesquinhos. Parecem portugueses com mais dinheiro, mas nós ao menos falamos uma língua que se percebe. A destes faz pensar num grupo de paralíticos a tentar falar linguagem gestual. As informações nos transportes públicos são péssimas e incompletas, ao contrário da minha má-vontade, pujante, viçosa e florescente. (A minha. A dos outros é abissal.) Quando penso que o serviço aqui é melhor do que em Palma belisco-me. É e sim, estou acordado. Já adorei esta cidade, já aqui passei momentos deliciosos, mas as últimas vinte vezes foi só chatices.

Bom. Isto é um exagero, claro. Um exagero e uma generalização e um preconceito sem pés nem cabeça. 

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Mas hoje foi um dia sem pés nem cabeça e posso finalmente dizer o que me vai por esta,  isto é: pelos olhos. E que me vai pelos olhos é mamas, mamas e mais mamas. Os mais preciosistas dos meus leitores dirão que por detrás dessas mamas há mulheres. Sem dúvida. Aliás, acrescento: por detrás, por cima e por baixo. Mas por questões relacionadas, sem dúvida, com a velocidade da luz, a moda (de que não percebo mais do que o que vejo) ou a idade das ditas senhoras - são cada vez mais e mais novas e não me venham cá com números que não são para aqui chamados - a primeira coisa que me chega aos olhos e quem diz olhos diz cabeça são precisamente as sobreditas glândulas. 

Pode talvez dizer-se que o dia não teve pés nem cabeça (de resto é um daqueles dias que vai prolongar-se por amanhã) mas lá que teve outras coisas teve. Entre as quais emoções, adrenalina e regalo para os olhos. 

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Barcelona pode continuar a ser a cidade chata, provinciana e chauvinista que sempre foi mas hoje consegui uma mesa no El Xiringo sem ter reservado e não posso senão orgulhar-me da sorte, da dupla sorte. Uma, de ser dotado para a manipulação, arte que herdei da minha Mãezinha, coitada, que Deus tem; e outra por... bem, não digo, ainda vão pensar que sou obcecado, coisa que não sou. Sou um esteta, o que é diferente. 

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O suquet de tamboril com que me delicio (agora que a senhora da mesa à frente se foi embora) é curioso. Começa por parecer chato e ensonso e à medida que se vai nele avançando vai ficando melhor e melhor até atingir a perfeição absoluta. Será efeito da música, uma mistura de Sinatra, Cohen, Tina Turner, Dire Straits e outros do tempo? Do vinho branco? Aposto na qualidade intrínseca do prato, na sua subtileza, no equilíbrio perfeito... Parece um quadro do Klee, vai-se descobrindo andar a andar, passo a passo até que  de repente o compreendemos

No sentido em que compreender é sinónimo de apreender.

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Querido diário, 

Passo os pormenores do dia. Não fui feito para coisas complexas, como sabes. Basta dizer-te que vou outra vez dormir numa espelunca, mas esta pelo menos está limpa. E que amanhã tenho de me levantar às cinco, outra vez.

E que a vida é uma espécie de maionese feita de melancolia e felicidade e sem a correcta mistura das duas ela fica desequilibrada. 

Ou seja: maçadora.

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O jantar acaba numa apoteose de mousse de chocolate negro regada com azeite, um milimétrico fio, vinho moscatel e Leonard Cohen.

E ainda há quem pense que estamos à beira do abismo a dar passos em frente. Estamos, mas o abismo foge mais depressa do que os nossos passos.

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O serviço está quase a acabar e o pessoal do restaurante ri-se, brinca, exala bom humor e alegria. Estou aberto a sugestões, mas para mim não há melhor sinal.

13.6.23

Calasso, dúvida

"Quem escreve duvida de cada palavra que escreve. Sabe que ninguém poderá confirmá-la."

Roberto Calasso, in Memè Scianca, ed. Anagrama, Barcelona, 2023 (traduzido do espanhol por mim).

12.6.23

Excesso de soberania, falta de educação

Não sou mais patriota do que me parece aconselhável e não lamento a falta de soberania que pertencer à União Europeia implica. Antes pelo contrário: lamento bastante o excesso de soberania que temos. Permitir Galambas et al. no governo é coisa talvez defensável nas tribos San do centro de África (para quem não sabe, San são as etnias normalmente designadas por pigmeus). Num país que se pretende europeu não é. 

Isto dito, há alguns hábitos estrangeiros que gostaria muito de ver implantados em Portugal:

1 - O hábito de, numa listagem de nomes, pôr o narrador em último lugar. O António,  o João e eu em vez de eu, o António e o João, como é habitual no nosso país. É feio e soa mal.

2 - A prática francesa de, numa relação, ser o mais velho a decidir (ou pelo menos a propor) o tratamento por tu. É ao mais velho que incumbe propor o tuteamento (que o mais novo pode recusar). Que idade teriam Mitterrand e o seu interlocutor  quando este lhe disse "Já nos podemos tutear, não achas?" Ao que o filho da puta-mor (o filho, não a mãe) respondeu: "Se você quiser".

3 - A pontualidade. (Não sei como é no resto de Espanha, mas aqui nas Baleares ela é tão escassa como em Portugal. Há excepções, claro: basta escolher fornecedores ingleses ou alemães - antes de se aculturarem).

Até esses três hábitos deixarem de ser correntes não nos poderemos queixar de falta de soberania. (Se nos queixássemos de falta de educação ninguém nos ouviria, de qualquer forma.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-06-2023

Havia uma vez em Genebra um tipo para quem trabalhei. Era dono de um estaleiro naval, «herói» do lago,  um magnífico filho da puta e dono de um 6M JI antigo. Numa entrevista a um jornal (ou a uma televisão, pouco importa), definiu assim a sua participação nas regatas: «o que é preciso é largar o melhor possível e ir perdendo lugares pouco a pouco e não todos de uma vez». A táctica resultava: estava frequentemente nos primeiros lugares das classificações dos clássicos. Os filhos da puta raramente o são por acaso ou injustamente.

Hoje o meu dia fez-me pensar no L. B. Começou optimamente e depois lá fui perdendo lugares, pouco a pouco. Por vezes recuperava um, perdia dois, ganhava-os outra vez e assim foi continuando até acabar bem colocado. O P. acabou por ir hoje para a água, depois de um filme de Charlot que começou por ir na quinta, mudou para segunda, depois para terça, depois para segunda de novo, depois para terça e finalmente foi hoje (segunda, para quem estiver perdido). O tanque de água doce está todo nos fundos, não sei porquê - se bem adivinhe - mas consegui um miúdo para fazer o trabalho de uma mulher a dias a preço de mulher a dias, o que compensa largamente. O desgraçado amanhã vai começar por limpar os fundos ao bote, que foi onde eu comecei, três dias a limpar uma mistura de anos de óleo, outros tantos de sujidade e água salgada. Este puto amanhã terá mais sorte: é só água doce e pouca sujidade. Depois trata-se de descobrir de onde vem a água. Felizmente a bomba de água doce estava desligada e de qualquer forma que os encanamentos não estão muito católicos é coisa de que suspeito faz agora algum tempo. Felizmente é coisa rápida de se tratar e reparar de vez. O frigorífico funciona bem, as baterias estão impecáveis - ao contrário do que temi à ida para o STP - e amanhã vão montar a retranca (eu diria que vão começar a montar a retranca, mas por agora chega de pessimismo).  A tradução da baixa do registo polaco para espanhol custa cem euros e demora dois dias úteis. 

Acho que isto tudo é de celebrar com um rum no Jaume, não vá o diabo fazer das suas e lixar-me o dia de amanhã. E Deus sabe que o meu P. tem um rebanho inteiro de bodes de corninhos, com cheiro a enxofre e línguas bífidas.

E assim acabou o dia. Um Santisima Trinidad no Jaume, um gelado no Claudio (mascarpone com pera caramelizada. Precisava de um bocadinho mais de pera para estar perfeito) e uma espreitadela ao meu dormitório de diabos, não fosse um deles acordar e dar-me cabo dos planos. Estava em ordem: à água doce do tanque não veio misturar-se água salgada da piscina. Eu tinha a certeza,  mas uma coisa é ter a certeza e outra, completamente diferente, ter a certeza e com diabos e pandemónios não jogo aos dados.

Agora durmo e sou feliz, boa mistura que dor nenhuma consegue deslaçar.

11.6.23

Não sei

Uma das poucas coisas que sei é que a modernidade chateia-me, como chateou todos os velhos das gerações anteriores à minha.

Claro que esta minha tem mais razão para estar chateada com a sua modernidade do que todas as anteriores.

Isso é coisa que nem se discute.

Diário de Bordos - Estellencs, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-06-2023

Venho a Estellencs e chego suficientemente cedo para ter lugar no estacionamento (por atacado terá dez lugares, se tanto), mesa no xiringuito e este vazio ou quase. Alemães só um casal e calado. O resto é um jovial grupo de locais que fala maiorquino, essa língua que começa a tornar-se-me simpática. Ainda não está calor suficiente para pôr o fato de banho. Aproveito para pôr a escrita em dia. Ou melhor, as escritas: a propriamente dita e a fotográfica, que também é escrita como de resto o nome indica.

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As mudanças permanentes, as curvas e contracurvas e - naturalmente - as alterações climáticas não são muito boas para o meu ombro direito. Felizmente a beleza da paisagem compensa largamente a dor. Ou deveria dizer «justifica»? No pain no gain (em inglês para se manter a rima), não é? Não sei. Ganharia o mesmo sem esta porcaria deste ombro, mas é verdade que assim ele age como o picante na comida: aguça os sentidos.

Adenda: «sem dor não há amor»...

.........
Neste xiringuito comia-se maravilhosamente. Como o senhor é o mesmo ainda se deve comer.  Também com esta vista não há comida má. Hoje nem falta um tipo fundeado, um belíssimo sessenta pés, mais coisa menos coisa. É raríssimo ver gente fundeada aqui e este, assim solitário e belo, acrescenta à beleza. 

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Feitas as contas, a minha xenofobia latente (e ou nascente) pode esperar. Não houve mais alemães, nem alemão aos gritos - aquilo é uma língua que não pode ser sussurrada - nem, é pena, alemoas aleboas. Na mesa ao lado instalou-se um grupo de três franceses e foi tudo. Nunca vi aquilo tão pouco cheio e dou graças a Deus pela avaria no aquecimento global, pelas alterações climáticas e pela malvadez do heteropatriarcado.

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O trampó não estva grande coisa, mas a culpa era do tomate. Com tomate correcto teria ficado excelente, mesmo não passando de uma salada com nome exótico.

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Saí de Estellencs logo a seguir ao almoço, não parei em Banyalbufar, nem mesmo em Valdemossa e vim directamente para casa. O carro explicou-me que eu tinha de dormir a sesta e ele de descansar um bocado, farto que estava de subidas, descidas, mudanças, curvas e contracurvas. Obedeci-lhe, claro: o material tem sempre razão. 

10.6.23

Diário de Bordos - Soller, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-06-2023

1 - Porreres

O carro trouxe-me a Porreres, aonde parei para um café e uma coca de albaricoque, especialidade local que se fosse traduzida daria provavelmente bolo de pêssego. Tanto o bolo como o fruto são bastante agradáveis. Logo à tarde vai haver uma festa em honra do dito pêssego, os restaurantes e cafés terão menus especiais à base dele e estou cheio de pena de não estar cá mas estarei do outro lado da ilha, se o carro quiser e eu deixar.

Porreres - pelo menos a pequenina parte dela que vi e vejo - é uma aldeola igual às outras com a sua praça, um café com o nome apropriado de S'Escrivania (bonito e bem arranjado, por sinal) e estas casas cor da terra, parece que dela saíram e não que foram construídas. A azáfama da preparação da festa é visível. Ou melhor: sente-se. Não salta propriamente aos olhos. 

2 - Sineu

Próxima paragem,  Sineu. Via Petra, não estamos aqui para andar em linhas rectas. Desta vez fui eu que impus o destino. O carro estava claramente a preparar-se para me levar a Colonia de San Jordi comprar hierbas e quem sabe comer no Hostal de la Playa. Não, meu caro. Não. Um dos objectivos deste passeio é ver terra. Outro é ir a sítios aonde não vou com frequência. Colonia de San Jordi não responde a nenhum destes critérios. Quanto às hierbas, ainda há a bordo.

Ou seja: bordo a terra. Guina a bombordo tudo. Carrega-me esse leme e vai para onde te digo.

Passo por Petra sem parar, só para vet a igreja. Nunca percebo como cabe coisa tão grande numa aldeia tão pequena. Em Sineu o restaurante dos holandeses (?) ou está fechado ou é um hotel, de maneira sento-me ao acaso - isto hoje é dia de S. Acaso, está visto - numa das tascas da praça. Tasca é uma inexactidão grosseira mas não faz mal. O tempo está chato e não faço - nem tenho vontade de fazer - fotografias. Pergunto-me se é só o tempo, se não o estarei eu também. Como não tenho resposta, pego na carta da ilha (está no telefone onde escrevo) e penso no futuro próximo. Reassumi o comando da embarcação, de maneira estas chatices são para mim.

Rota: Muro, Sa Pobla, Alcudia, Port de Pollença. Daí logo se verá, mas o mais provável é fazer escala em Soller. Logo se verá, que não estamos aqui para ver ao longe. Com a possível excepção de amanhã, se o tempo estiver bom: vou à praia.

3 - Soller (ou melhor: Port de Soller)

Chego ao Port de Soller (doravante Soller) à hora a que uma parte das hordas começa a sair. A outra já está sentada à mesa para jantar. Jantar às seis da tarde, 

"... antes do anoitecer suavíssimo dos deuses
antes do começar da sombra rente às árvores..." Ruy Belo dixit.

Sento-me na esplanada do Payesa, a única coisa ainda mais ou menos potável, penso na beleza deste dia, desta terra, espero que os deuses anoiteçam suavemente. Fiz o que tinha a fazer em Pollença,  tentei ir ao cabo Formentor mas o estacionamento estava cheio e não me apeteceu procurar um lugar, com tantos carros cá em baixo aquilo lá em cima estaria insuportável e depois vim para Soller pela Tramuntana, decidi que daqui vou para Palma pela autoestrada e que amanhã venho por Andratx e vou até Estellencs ou mesmo mais, talvez Banyalbufar ou Valdemossa mas não mais. Tudo isto resultado de uma tão violenta quanto silenciosa batalha entre o bom senso e o resto de mim, batalha essa que o resto de mim ganhou. Como de costume, seja Deus louvado.

Pelo menos até ver.

Soller continua esta bacia de beleza. A menos de se estar sentado mesmo em frente da boca da baía parece que se está num lago, um micro-lago cheio de barcos e de silêncio. Bebo uma vodka com sumo de laranja natural, olho pela milésima tricentésima quinquagésima sexta vez para as montanhas e penso que este é um dos raros sítios aonde o excesso de construção não estraga a paisagem. Talvez porque "excesso" é um exagero. Ou porque isto é demasiado bonito. Ou porque simplesmente não me apetece que nada estrague nada. A verdade é que as casas e os barcos fazem um continuum harmonioso, maneira pouco subtil de me lembrar que também eu - até eu - terei um dia uma casa outra vez. E terei então a sorte de ter uma casa e ter tido uma vida antes dela.

O Payesa é o único estabelecimento da marginal de Soller que ainda apresenta alguns locais, por vezes sozinhos por vezes em grupo. Nos outros já só se ouve falar alemão e por vezes um pouco de inglês e francês. Há muitos franceses aqui. À tarde não tem comida: fecha às oito, diz-me a senhora, pesarosa. Às oito? Se isto não é resistência não sei o que é resistir.

Um dia também o Payesa desaparecerá, transformar-se-á em manjedoura para turistas, jantares às seis da tarde e cocktails "de autor".  Contudo, as montanhas ficarão,  as casas continuarão a olhar para os barcos com inveja e estes em troca dar-se-ão ares de gente vivida, como se saíssem muitas vezes do porto.

(Cont., se calhar.)

9.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-06-2023

N. tem trinta e oito anos, o que comprova a minha teoria de que as mulheres - sobretudo as bonitas - deviam nascer com trinta e cinco. A partir daí é sempre a melhorar. 

Verdade seja dita: a biologia trata disso e só quando chegam a essa idade transforma em mulheres as pessoas do sexo feminino.

.........

"Charité bien ordonnée commence par soi-même", diz um sábio provérbio francês. Ponho-o em prática muitas vezes. Por exemplo, cada vez que venho ao Lo Divino com o objectivo claro e expresso de ajudar a N. e o R. e ainda bebo um bom vinho, como bem (quando como) et je me rince l'œil, continuaria se fosse francês ou, sendo português, não tivesse vergonha. Não sou e tenho, pelo que não continuo. Fico por aqui,  como dizia já não sei quem.

........

Não há melhor afrodisíaco do que uma mulher bonita que se sabe bonita. Perguntem à N.

Enfim, não perguntem. Venham ao Lo Divino.

(Ou então vão remar no lago Léman,  num barco de duas pessoas: a remadora à frente voltada para trás e eu atrás, ao leme, voltado para a frente. Mas isso foi anteontem, ainda a N. não tinha nascido, ou quase.)

.........

Apesar das inúmeras perguntas, hoje não falo do P. É sexta-feira à noite e há mais rabos bonitos neste mundo. O do P. está longe de ser o único. 

........

A minha imagem dos dias a galope e eu a correr atrás deles está ultrapassada. Agora os cavalos são dois. Ambo têm rabos bonitos, sim.

Santòka Taneda - Haikus

Et maintenant
de quel côté aller ?
Le vent souffle.

Une pierre pour oreiller
J'accompagne
Les nuages.

Toute la journée
Sans un mot
Le bruit des vagues.

C'était mon visage
Sur ce miroir froid.

Beau chemin
Qui mène à un beau bâtiment,
Un crématorium.

Descoberta do dia. Podia continuar para sempre.

(Vá, vamos lá a traduzir isto):

E agora
Para que lado ir?
O vento sopra.

Com uma pedra por almofada
Acompanho
As nuvens.

O dia todo
Sem uma palavra.
O braulho das vagas.

Era o meu rosto
Naquele espelho frio.

Um belo caminho
que leva a um belo edifício.
Um crematório.

8.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-06-2023

Os dias galopam e eu corro atrás deles. Ando sempre atrasado e sempre a correr, uma combinação particularmente desagradável. Se ao menos correr atrás dos dias me pusesse em sincronia com eles valeria a pena. Assim, só dá para não deixar o atraso aumentar muito.

A saga do registo continua. Em contrapartid, a do antifouling e pequenas reparações na fibra e no gelcoat está quase a acabar. O armazém já está arrumado. Falta a retranca e tudo o que vem atrás dela. Mais duas ou três coisinhas, dessas que voam com os dias.

Ou então são elas que os fazem voar. 

.........
Ontem tornei-me de novo armador. Desta vez, de um pequeno semi-rígido de pouco menos de seis metros que vou pôr a trabalhar na Costa Brava. Não posso dizer que não estou contente. Estou e muito. E grato, também, mas isso é outra história. 

........
Os remédios têm feito o seu trabalho e as dores no ombro, se não desapareceram completamente pelo menos atenuaram-se bastante. Só me resta esperar que haja uma bala de prata para isto e desminta o idiota do jovem médico que me disse, sorridente, que as dores me acompanharão até ao túmulo. 

Por muito que o rapazote estivesse podre de razão. Provavelmente está.

[Adenda: falai no mau, aparelhai o Paracetamol.]

.........
Hoje descobri que posso ir do centro de Palma até Son Castelló por ciclovias praticamente contínuas.

Ainda estou a digerir o conforto que aquilo foi. E a beleza da primeira metade do caminho.

6.6.23

Injustiças da biologia

Os casais de lésbicas de uma certa idade têm uma enorme - e injusta - vantagem sobre os casais de congéneres masculinos.

Pata que a safety first pôs

Há demasiadas coisas a estragar-me (com F) a modernidade. Uma delas é a preocupação dos outros com a minha segurança. Foda-se, eu sou capaz de zelar por mim. Não preciso que uma porra de um sinal me diga se posso atravessar a rua, ou de uma "coordenadora de segurança" (aspas para sublinhar o ridículo) quando faço um antifouling num quarenta e três pés. A porcaria do Safety First inverteu os pólos. Work first. Safety because I need you to work. Not the other way round. Understandes?

5.6.23

Certezas, loucura

As relações incestuosas entre as certezas e a loucura estão há muito estudadas. Basta ler as mitologias grega e latina: há nelas algum deus normal? E algum que duvide, há?

Deus, deuses

Os deuses - e Deus, claro - sofrem de dois problemas fundamentais: a omnipotência e a omnisciência. Nada de bom nunca saiu de que sabe tudo e menos ainda de quem tudo pode. 

Das certezas e outras dúvidas

Uma das coisas que me fascina - e, sejamos justos, invejo - é a capacidade que a maioria das pessoas tem de ter certezas. Eu daria um braço para me chamar Não sei e vejo-me rodeado de gente que não só sabe como sabe tudo, de ciência certa. Os semi-deuses do outro são os deuses da certeza de hoje.

De onde vem tanta certeza? A minha hipótese é: do relativismo da geração da qual estou nas últimas camadas. Não sei. Posso estar enganado. 

Objecção ao pessimismo

Oh homem de pouca fé! Então tu não acreditas nas capacidades regenerativas da humanidade? No seu sistema imunitário, capaz de regenerar os tecidos feridos? Tu não acreditas naquela lei de bases da física segundo a qual a cada acção corresponde uma reacção? Tu não acreditas que o tempo de grunhice que atravessamos é uma resposta ao relativismo da minha geração? E que a esta escuridão uma nova época de luzes surgirá? Acreditar que a civilização é uma rampa descendente é o mesmo que pensar que a rampa é ascendente, não achas? Não é nem uma coisa nem outra. É as duas, como o gato do outro.

4.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-06-2023

Nós marinheirios não somos muito dados a «fãzices». Por um lado, o mar é um grande equalizador; por outro, todos sabemos que todos temos em nós recursos insuspeitos até as circunstâncias nos obrigarem a usá-los. Claro que de vez em quando lá aparece um ou outro que desperta um pouco mais de admiração e ou de respeito. Um Tabarly, um Slocum, uma Helen MacArthur (também não distinguimos muito os sexos. Um Homem é um homem, seja homem seja mulher), um Peyron. Tão pouco somos muito de hierarquias. Já aqui o disse várias vezes: a única hierarquia que respeitamos é a do saber. Nomes, dinheiros, famílias, opiniões políticas, posições na pirâmide social, cor da pele ou tendências alimentares (no sentido lato) deixam-nos mais ou menos indiferentes. Se o camarada que está do outro lado da manobra ou na ponte de comando sabe o que está a fazer, é ouvido. Não sabe? Arranja-se sempre maneira de fazermos como queremos dando-lhe a impressão - se for caso disso - de que ele manda. Isto passa-se no mar como em tudo. Gabriel Garcia Marquez, para mim um dos maiores escritores de sempre, é um escritor. Sei que ele era comunista porque é impossível não o saber, mas a coisa fica-se por aí. O mesmo se passa com Yourcenar, com Beckett (deste li a biografia, por acaso), com Conrad ou com alguns outros: admiro-lhes o talento, ignoro o resto. Quero ler a biografia de Pessoa por curiosidade, não por reverência.

Lembro-me sempre do Zé da Viola, outra história que já aqui contei por inteiro e agora abrevio:
- Boa tarde Zé. Eu sou o senhor Fulano de Beltrano.
- Boa tarde. É engenheiro ou é doutor?
- Nem uma coisa nem outra, Zé. Basta chamar-me senhor Beltrano.
- Senhor Beltrano o caralho. Eles aqui são todos doutores e engenheiros, porque é que você não há-de ser também?

(Isto à frente do engenheiro dono do barco. Verdade seja dita que era no princípio da tarde e o Zé - um velho pescador do bacalhau que chegou a navegar com o meu Pai - arrefinfava-lhe uma «máquina de filmar» a cada almoço, não fosse a comida assentar-lhe mal.)

Bom, no que toca a admirações, reverências, ser fã deste ou daquela: estamos conversados.

.........
A política dos pequenos passos tem funcionado. Não ir para a cama de estômago vazio nem antes das dez e meia da noite, cilindrar a artrose (anti-inflamatório em comprimidos e em pomada e analgésico potente. Hoje até me esqueci da porra do ombro), não pensar no P. vinte e quatro horas por dia (os meus dias são muito grandes, têm muitas horas). Hoje pelo menos funcionou. A ver amanhã. Sobretudo, ver se o que funcionou foi a mistura ou se posso começar a tirar ingredientes. Já reduzi o analgésico e até agora não me posso queixar. Bato na madeira três vezes.

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Algo me diz que ainda não foi desta que o olho esquerdo foi ao sítio. Felizmente sou meio surdo e não ligo nenhuma a algo.

"Despedida nas margens do Sul"

É a feira do livro em Palma, uma coisinha muito pequenina no passeio do Born. Passo todos os dias pelo Born, com ou sem feira: juntamente com a Rambla é a avenida mais bonita desta cidade. O único stand onde paro é o da Babel, que este ano ostenta orgulhosamente e com razão uma série de dísticos: "uma das vinte melhores livrarias do mundo (Financial Times)". Depende daquilo a que se chama mundo. Do meu é com certeza. Comprei uma colectânea de um poeta chinês que não conhecia: Bai Juyi, na transcrição castelhana. Chama-se 111 Cuartetos de Bai Juyi, é editado pela Editorial Pre-Textos, Valência 2003.

Ele há descobertas cujo único defeito é serem tardias. Outras têm a vantagem de chegarem a tempo. Esta concilia as duas, que só na aparência são contraditórias.

"Triste despedida en la orilla del sur,
Ondeante otoño al viento del oeste.
Mirarnos nos desgarra las entrañas.
Cuídate y no vuelvas la vista atrás."

Este chama-se Despedida en la orilla del sur e se não é das coisas mais lindas que tenho lindo sobre a separação não sei o que é. 

3.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-06-2023

Cheguei àquilo que deve ser, para mim, o zénite do chauvinismo alheio: prefiro ouvir falar maiorquino a ouvir alemão. O maiorquino é uma língua em forma de dialecto a que falta aquilo que faz deste uma língua. A saber, um "exército e uma marinha" (a citação não é verbatim, é de memória).

.........
As senhoras não deviam deixar-se engordar assim, como esta senhora que agora saíu do Arabay, no Mercat de l'Olivar. Ainda por cima com uma marido elegante como o dela. Se ao menos fosse gordo poder-se-ia pensar numa vingança. Mas assim é uma desfeita, não há outra hipótese. 

(Fiquei a ganhar. Foi substituída por duas para as quais me sobram olhos e faltam palavras. Esta ilha não é para velhos atazanados. Os alemães estão mais do que perdoados. Venham às revoadas, desde que tragam alemoas.)

(A sacana levantou-se no preciso momento em que disparei. A posteridade fica sem um registo visual do que são "pernas até às orelhas", Helmut Newton dixit.)

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Vou voltar a ser armador. Não creio, porém, que seja daí que me vem esta dor de cabeça que até ao Tramadol resiste. Suponho que seja uma transferência, como vejo nos jornais a respeito dos futebolistas: a dor no ombro transferiu-se para a cabeça. E a vontade de ir beber copos transmutou-se em vontade de dormir. Amanhã mudo para o quarto, vá lá. Pelo menos estarei um pouco mais confortável.

.........
O livro para os Guides V. O. faz-se esperar. Se calhar também é daí, a dor de cabeça. Deve ser como aqueles rios que têm muitos afluentes, uma espécie de árvore de pernas para o ar, uma soma de dezenas de pequenas dores (mais duas ou três grandes). Não sei. Só sei que o meu index de palavras proíbidas juntou-se dor. Farto. Chega.

Mescla matinal

O dia começa com um sonho bonito, uma mentira e eu esgazeado de fome. O sonho passa-se em Genebra: duas senhoras metem conversa comigo, uma a seguir à outra. A primeira por causa de arquitectura e a outra das cerejas que levo num cesto. Não me lembro do decorrer dos diálogos mas chegado a casa da S. conto-lhe a história e remato com "detesto os portugueses", por achar que as duas conversas teriam sido impossíveis em Portugal. É mentira e ainda mais porque lá pelo meio do sonho havia uma menção ao Porto. Gosto dos portugueses. O que detesto neles é a cobardia e a mesquinhez, a pequenez de espírito. As cerejas deviam estar relacionadas com a fome: uma ensaladilla e um gelado de chocolate com rum é manifestamente pouco para jantar. Há dias, no Mercat de l'Olivar vi cerejas a um preço alucinante. Não comprei, claro. Em contrapartida ontem comprei um pêssego no supermercado. Não sei se foi o pior pêssego da minha vida se o mais caro. Tive de o deitar fora à segunda dentada. Ou seja: quase um euro cada trincadela naquela coisa verde, ácida e dura como carne de cabra para chanfana. Preparo-me para ir tomar o pequeno-almoço à Cantina, penso que em breve terei o P. habitável e não precisarei de sair a correr porque na véspera decidi não comer nada de jeito. Ou eu ou a carcaça, coitada: anda enjoada, sem dúvida devido à mescla de comprimidos com que a encharco quotidianamente. Eu também. Enjoado e farto, mas antes isso do que a porra das dores. A armazenagem em Santa Maria não está a funcionar. Não só não posso lá ir quando preciso como também apanhar o B. ao telefone é mais raro do que encontrar o amor da minha vida: já aconteceu, mas ou a vida foi curta ou o amor se pôs a andar antes dela terminar. O vento rondou a Norte, está quase nulo e eu levanto-me para o duche. Palma não é sítio para matinais esgazeados de fome.

ADENDA: Não escrevi o suficiente. A Cantina ainda estava fechada e tive de deambular por aí até encontrar uma tasca aberta. A Espai Natural (?), na Costa de Sa Pols, que não é confortável e tem uma música horrível mas sempre é melhor do que o Arenas, que também estava aberto mas aonde não me apetecia ir.

2.6.23

«D'où, chose remarquable, rien ne s'en suit» Ou: Santa puta de vida

A Lua está quase cheia, o Joan e a Paz dizem-me que vêm a Lisboa ver a exposição, o meu ombro direito diz-me que ou tomo os comprimidos a tempo e horas ou ele não se cala, a M. concorda em emprestar-me massa para comprar o semi-rígido, a meteorologia não há maneira de se convencer de que estamos em Junho e os idiotas do costume confundem-na com o clima, a BH Glasgow Vintage saíu da oficina com o guiador uns bons dez centímetros mais alto, o frigorífico está a bordo, instalado e a funcionar, a empregada da Cantina não me põe muito rum no gelado de chocolate «para tomar conta de mim», aspas porque cito, amanhã a A. vem trabalhar. A rapariga não sabe pôr uma carta no correio mas limpa bem para burro e aparentemente desenrasca-se com ferramentas. Lembram-se do incipit do Homem sem Qualidades? É mais ou menos isso: «um belo dia de Junho de 2023.» «D'où, chose remarquable, rien ne s'en suit

Não tenho a certeza de que um dia assim não tenha consequências, mas tão pouco quero atribuir-lhe demasiada importância. Pensar no If, do Kipling e nos seus dois impostores. Lembrar-me da quantidade de dias assim por que já passei, que isto é a vida, só, pura e impura, generosa e retorcida, puta e santa.

Uma santa puta, é o que é.

Liberdades, prisões. Ou: contra o relativismo

A minha geração - ou a geração ligeiramente anterior - descobriu a liberdade como Colombo descobriu a América: por engano. Pensava estar num sítio e estava noutro. Os boomers esqueceram-se de que não há a liberdade. Há liberdades. E que estas têm duas faces: cada liberdade é uma prisão, como a noite é parte do dia. "Liberdade é poder escolher as nossas prisões", disse não sei quem, que ou não era boomer ou percebeu algo que a maioria deles não percebeu. Isto vai mais longe e mais fundo do que "a tua liberdade acaba onde a minha começa". A minha liberdade é também a minha prisão. 

A maioria das asneiras do nosso tempo vêm de se ter escamoteado esta verdade simples. Pensa-se que se pode dizer o que se quiser. Pode, claro, de um ponto de vista jurídico.  Mas isso não significa que se possa pensar tudo o que se quiser. Há limites e obrigações. Um direito não é uma obrigação. O facto de eu poder dizer uma palermice não a valida. Uma palermice é uma palermice, por muito direito que se tenha de a dizer ou fazer. Não deixa de o ser.

Camas e ringues

Para um homem sozinho, qualquer cama é como um ringue de hóquei. 

No gelo.

Vila-Matas, Rothko e a imprescindibilidade

Dizer que Enrique Vila-Matas só escreveu um livro é como dizer que Rothko só pintou um quadro. É verdade, mas tanto o livro como o quadro são uma maravilha imprescindível.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-06-2023

Sem ser bonita, a senhora é atraente. Magra, rosto estreito, cabelos castanho escuro pelos ombros, quarenta anos, vestida muito simplesmente, mas com gosto. O azul da camisola, decote pequeno. O que me seduz nela? O sorriso, a expressão, o olhar - tudo nela tem gosto e é simples, menos o homem que a acompanha. É feio e tem ar de boçal. (Isto é uma opinião objectiva, claro.)

.........
Vim almoçar ao mercat de Santa Catalina, para variar. Ao Joan Frau, claro. É um dos dois sítios do mercado mais ou menos livre de turistas. Duas tapas, dois vermutes e duas hierbas: a única imparidade fou o vinho branco, que se ficou pela unidade. Os tempos não estão para números ímpares e amargos.

........
Não consigo impedir-me de rir quando oiço falar em equilibrar «o trabalho e a vida privada» (aspas apesar de não ter a certeza). No princípio do refit tive um fornecedor que não veio trabalhar quase uma semana porque a namorada tinha vindo do Uruguai vê-lo. Agora, tenho outro que pelo mesmo período de tempo achou que precisa de um descanso e foi fundear não sei para onde. Quem não sabe equilibrar o trabalho e o resto é como quem não sabe fazer amor: não vale a pena ensiná-los. (Desta vez temos pelo menos a chuva, que sempre aligeira a dor.)

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Hoje é um dia importante: vou ficar com o frigorífico a trabalhar. Isto é: o «meu» P. vai ter o frigorífico a trabalhar. por ironia, arranjei um quarto por duas semanas, mas quero que se lixe: este compressor vai durar anos. Que são duas semanas sem beneficiar dele? (Além de que delas estarei três dias em seco.)