31.5.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-05-2020

O blogger mudou de interface e eu continuo sem perceber o porquê destas mudanças, mas enfim. Sei que daqui a uma semana já não darei pela diferença e consigo conter a irritação. Estas "evoluções" justificar-se-iam se as melhorias fossem imediatamente visíveis. Não são e não serão nunca. É como trocar um copo de mau vinho tinto por outro igualmente mau, mas de outra região.

Que se lixe. O fim-de-semana foi simultaneamente muito pior e muito melhor do que isso, de maneira mais vale pegar-me à segunda metade da equação, esquecer a primeira e pensar na sorte que é ter sorte. 

Não que não tenha tido azares. Tive-os e muitos. Por isso agora aprecio a sorte e todos os dias lhe teço loas e graças. 

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À porcaria do vírus e respectivos constrangimentos junta-se agora o bote estar quase pronto. Como se não bastasse ter uma perna amarrada, tenho duas. Uma presa com fel, a outra com mel, passe o foleirismo. É irresistível e vero.

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Tanto como dormir, como Sonny Rollins, que substituiu o outro, como ter a certeza de que nada mudará, se não for para incomensuravelmente melhor. 

Irresistível e tão verdade, não é? 

Não, mas isso fica para outro dia.

Círculo, espiral

Se a vida fosse um círculo, seria isto: ouvir Dave Brubeck na hora de ir para a cama, ceia tardia (agora, com o melhor azeite do mundo, vinho tinto "ecológico" de Mallorca e fuet, mas isso são pormenores), pensar que amanhã há trabalho, que bom ver aquilo a progredir.

Mas a vida não é um círculo. É uma espiral. Resta saber se ascendente se descendente, mas isso pode ficar para depois. Seria uma pena estragar um momento tão bom.

Ainda hoje, Palma

Perco-me ainda hoje nas ruas de Palma como me perdi - tantas vezes! - no coração de tantas mulheres que julgava conhecer. Montado na minha Peugot mágica percorro-lhe as ruas e nelas me perco, ainda, como dantes montado em ilusões lhes percorria a pele. Palma tem o coração do Mediterrâneo e a superfície de uma nórdica: nunca se sabe o que aquela cabeleira loira esconde, se os olhos azuis prometem ou gozam.

Amo-te, Palma, porque em ti me perco, apesar de em ti me perder, ainda hoje.

29.5.20

Pôr

O verbo «pôr» deixou pura e simplesmente de ser usado. Era um verbo tão bonito... Curto, com um chapelinho a protegê-lo da chuva e outras fechaduras, fácil de arrumar, rima com amor (que dispensa chapéus porque não se fecha, só se abre...)

Um dos meus livros favoritos da adolescência tardia e jovem idade adulta chamava-se (em português) A arte de viver para as novas gerações, ou coisa que o valha. Desafio meia dúzia de nós a escrever um mais adequado aos tempos que correm: A arte de falar para as novas gerações. Na volta, daqui a cinquenta anos acabam por nos agradecer, as gerações aqui postas sabe Deus como e que não tiveram a sorte de conhecer Raoul Vaneigem.

28.5.20

Orlas

Vagueio pelas orlas do tempo. Nunca me aventurei mais longe, com medo de ficar preso no futuro.

Margens

As margens dão força aos rios. Sem elas, que seria de mim, que não conheço outro lugar para viver?

Imperfeito e vasto

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, sim, mas agora há que organizar-lhes a vastidão e a imperfeição, as vastidões, os desertos nos quais os nómadas se perdem, as dunas que descemos e subimos, as bifurcações, dúvidas, o cantinho das certezas. São tão poucas, melhor tratá-las bem. Tão incertas, as certezas... Tão hesitantes, como as adolescentes bonitas que não sabem se são bonitas se mulheres. Estendes-te no campo das vastas emoções, deitada de costas na areia quente, desejo instável, desejo oferecido, os teus cabelos como areia, olhos de mar e amar, pernas afastadas à espera de um anjo que tive a sorte de ser eu, a bênção e hoje de toda essa vastidão não sobra senão a memória, tão imperfeita.

Vagueio, cego atrás de um cão hesitante, pele que um dia me acolheu, pele que um dia percorri cego de desejo, futuro imperfeito e vasto.

Diálogos, revisto

O mesmo texto, revisto e corrigido pelo Manuel Monteiro.

DIÁLOGOS DO CONFINAMENTO

—  Combinamos uma coisa? Doravante, aos domingos, não vamos mais passear à beira-rio como os nossos amigos burgueses e ficamos em casa a foder tudo o que não fodemos durante a semana, tu porque estás farta dos teus pacientes, e eu porque sou um homem cansado, inquieto e ansioso. Queres? É altura de mudar de vida, anda para aí toda a gente a dizer.
— Nunca te vi sensível ao que «toda a gente» diz. Nem a mim me ouves, quanto mais a «toda a gente».
— Estás enganada. Sempre te ouvi. E mais: obedeci-te. Sempre te considerei a cabeça do casal.
— Nesse caso, sempre tiveste uma forma estranha de manifestar essa obediência. Não me faças rir, por favor.
— Depende do que se entende por «ouvir» e por «obedecer».
— ...
— Ouvir-te faz-me ser mais eu. Sou o que sou, e muito do que sou devo-o a ti.
— Ou seja, sou a tua síndroma de Peer Gynt? Be thyself.
— Estás a brincar, mas a resposta é sim. Sou o que sou — posso ser o que sou — porque tu és tu.
— ...
— ...
— Cala-te e vamos para a cama.
— Hoje não é domingo.
— A tua capacidade de fingires que és parvo sempre me fascinou.
— A tua de pretenderes que não o sou também.
— Estamos casados há quinze anos. Reconheço que a nossa vida sexual nos últimos cinco anos não moveu montanhas. Mas nos primeiros dez fizemos amor para três vidas, não achas? Importas-te de me explicar o que te aconteceu?
— Não, não me importo.
— ...
— ...
— O teu laconismo é apreciável e há quinze anos que tenho o privilégio de usufruir dele. Ainda assim: importas-te de elaborar?
— Não, não me importo.
— ...
— Estes dois meses fechado...
— Desculpa interromper. Não estiveste fechado. Saías duas vezes por dia.
— Sim, saía. Mas não para ir aonde queria e sim aonde podia...
— Continua.
— Pensei que me seria fácil. Estou habituado a estar fechado.
— Não estás, e além disso nunca gostaste de relações simbióticas, não é? Dois meses fechado comigo deram-te cabo da libido.
— Se tivessem «dado cabo», não te teria falado de sexo todos os domingos, como fiz há meia hora.
Touchée.
— Quando estou fechado, é porque quero. Agora, não. Esta clausura foi-me imposta. Sair duas vezes por dia para ir aos supermercados não é sair. É simplesmente um prolongamento, como o pátio é para os presos. Tu trabalhavas, davas as tuas consultas por computador, nunca gostaste muito de bares e cafés. Muitos dos meus amigos da noite não sabiam sequer que sou casado.
— Nunca falaste muito, é verdade.
— A ti, que te faltou nestes dois meses? O cabeleireiro, a universidade, as tuas «amigas».
— As aspas nesse «amigas» são audíveis e desagradáveis.
— Desculpa. Como sabes, não me importo nada.
— Nunca te importaste com nada que me dissesse respeito.
— Só me importo com o que em ti me diz respeito.
— É um tema que prefiro evitar, se não te importas.
— Não me importo nada.
— Sabes porque te amo tanto passados estes anos todos?
— Não.
— Porque tu dizes coisas como «Só me importo com o que em ti me diz respeito», e eu sei que não é por te julgares o centro do mundo. É exactamente ao contrário: tu dás a toda a gente o espaço que reclamas para ti.
— Sabes porque te amo tanto?
— Porque sou «a única pessoa que te conhece como se te tivesse feito».
— ...
— Não digas disparates. Continua com o confinamento, por favor. É um tema que me interessa mais.
— O que mais me põe fora de mim é ter-me enganado. Pensei que seria fácil, que isto passaria levemente como uns dias sem cervejas no bar. Não foi assim. Quem se revoltou nem fui eu sequer, foi o meu corpo. Somatizei como um adolescente: dores aqui, dores ali...
— Eu vi.
— A minha raiva deixou de ter um objectivo único. Bifurcou-se: eu de um lado, quem me impôs isto do outro. Odiava-me por não ter «aguentado» e odiava as «autoridades» por me terem confrontado com a minha incapacidade. Raivas múltiplas não são saudáveis.
— Eu que o diga.
— Tu estavas de fora, sempre estiveste.
— Como se estivesse fora da tua vida, não é?
— O único que pode dizer disparates aqui sou eu, lembras-te? Comprei o monopólio quando nos casámos.
— Quando nos casámos, disseste-me que estava a fazer o maior disparate da minha vida.
— Enganei-te?
— Não. Enganaste-te.
— Suporto mal a estupidez e ela suporta-me menos ainda. Não consigo disfarçar. Mal dei conta de que tudo isto não passava de um gigantesco embuste...
— ... Mal deste conta de que tudo isto podia não passar de um gigantesco embuste...
— ... Sim. Isso. Podia não passar de uma gigantesca mistificação. Aí, tudo mudou. Deixou de ser fácil.
— E as dores começaram.
— Sim. As dores começaram. Só viste a parte exterior delas. A parte visível, por assim dizer. As dores são como um barco na água. Têm um lado visível e outro que não se vê.
— A menos que alguém mergulhe.
— A menos que alguém mergulhe.
—...
— Não sei como teria sido sem ti.
— Teria sido como foi, mas sem mim.
— És modesta e injusta. Teria sido ainda pior.
— Duvido. Estamos casados há quinze anos e nunca te vi sofrer tanto.
— Curioso. Penso muitas vezes que nunca te vi tão próxima de mim como nestes dias.
— O distanciamento era social, não era afectivo. Há bocadinho, disse que te amo. Não sei há quanto tempo não to dizia. Não foi o pior erro da minha vida. Foi o melhor. O mais inesperado. Há muito tempo que não tenho «amigas». Sem ti, o sexo não vale a pena. Prefiro ter-te e não ter sexo. Prefiro ouvir-te e ver-te e falar-te a foder seja com quem for.

Mas se pudesse foder-te, seria ainda melhor. Tem de ser só aos domingos?



Palma, 23-05-2020

27.5.20

Dias

Como se de repente os dias saíssem a esvoaçar à tua frente. É isso: tu estás parado numa praça de uma cidade que não identificas. Rossio, Terreiro do Paço em Lisboa? Bastions, em Genebra? Concorde, em Paris (uma incongruência, mas enfim)? Talvez até mais: estás no Parthenon, Atenas num daqueles dias raros e santos sem poluição estende-se até ao Pireus e de repente, sem pré-aviso, à tua frente passam os dias a voar. Não sabes para onde vão mas sabes de onde vêm: de ti. São os teus dias. Não corras atrás deles, de nada vale. Já se foram, já foram. Melhor tratares bem os que aí vêm, que tenham vontade de ficar contigo.

Red & sad

A história conta-se em poucos minutos, coisa que me leva a perguntar-me se todas as histórias tristes são tão rápidas e se não são, porquê.

Encontro um israelita no Abrakadabra. Temos amigos comuns em St. Maarten, super simpático, tudo. A certa altura falamos da Jamaica, quem diz Jamaica diz Red Stripe, o rapaz diz-me que há um bar em Palma que tem Red Stripe, eu monto na minha bicicleta Peugeot de repente feita voadora e...

...adivinharam. O bar não tem nem nunca teve Red Stripe. 

Pronto. Será isto a história da minha vida, contada através de uma cerveja jamaicana?

26.5.20

Voodoo virus

As lojas estão cheias de rituais que para combater o vírus têm a eficácia de um ritual voodoo, mas enchem os seguranças encarregados de as aplicar de uma importância nova e eles visivelmente apreciam-na.

Talvez pudessem pôr uma efígie grande do vírus à porta e cada cliente para entrar espeta um alfinete. Assim divertir-nos-íamos todos.

Indiferente

E se de repente de ti para mim um gemido chegasse, se de ti para mim de repente um «sim!», se de ti de repente um repente saísse, se de ti? De ti, só de ti e de mais ninguém além de ti? Como se fosses tu o princípio do fim do princípio e eu o princípio do abismo contigo? De quedas em ti eu sei, de futuros contigo, de tardes assim de hoje: vento fraco e sol, árvores a dar sombra como só tu dás, Dvorak e esta vida que em ti e em mim se espraia, indiferente.

Prisão, leve ou não

Dou por mim a regozijar-me porque a prisão está mais leve.

Isto é aterrador: uma prisão leve é uma prisão, estúpido.

25.5.20

O conhecimento e o Zeitgeist

O conhecimento tem uma óbvia componente ideológica, mas ela não está onde muitas vezes se pensa.

Podemos admitir que até à jovem idade adulta todo o conhecimento nos chega via zeitgeist - deve haver excepções em algumas  universidades ou professores universitário, mas a julgar pelo que vi e pelo que vejo são poucas. A ideologia consiste em escolher uma de duas opções: ou mantermo-nos agarrados ao que aprendemos ou investigar fora dele.

O zeitgeist é um professor amável e compreensivo, tão amável quanto pouco fiável. Por isso é tão difícil escapar-lhe.

Nem sempre dês aos outros o que eles te pedem

É óbvio que quem impôs o confinamento e a paragem da economia não foi quem vive num casebre "social" e não sofre de cortes nos salários. Vive em casas espaçosas e tem a massa assegurada ao fim do mês. O facto de terem sido as massas panicadas a exigir-lhes o que agora têm não é grande argumento. Poderia ser, não lhe fosse a desumanidade. Há uma assimetria na informação. As massas não tinham acesso às informações de Jorge Torgal ou de Pedro Simas (não falo de André Dias, embora na minha opinião devesse ser incluído no mix). As massas panicadas têm o que pediram e agora vão para as filas das misericórdias pedir comida e eu acho indecente que tenham tido o que pediram e que agora tenham de ir pedir comida.

Isto tudo vai obrigar-me a rever / aprofundar / afinar o meu apreço pela democracia directa, coisa que farei mal chegue à Suíça e tenha informações mais fiáveis. Até lá, continuarei a achar lamentável que um cobardolas que ao primeiro alarme se refugiou num casarão em Cascais venha agora pedir ajuda para as quatrocentas mil pessoas que segundo ele estão com fome. («Segundo ele» porque provavelmente serão mais.)

24.5.20

Vê se dormes

Enrodilho-me debaixo do edredom mas o calor não vem, tenho de pôr o cobertor, está frio, penso nas escadas tão íngremes que até para descer são desconfortáveis, a música da Renascença, a constipação, as escadas são frias como o coração de uma mulher que recusa um apaixonado, são duras, hoje para as subir depois do almoço vi-me grego, fui arrumar a bicicleta?, inquieto-me, sim, foste, com o cobertor fica melhor, amanhã tenho os dois I. a bordo, o M. ainda não me mandou o contrato, tenho de responder ao T. Z., apetece-me explicar tudo o que me aborreceu e aborrece estes dias, vem calor, diz a meteorologia, sim, tomaste o comprimido, vê mas é se dormes, não tarda vais ter calor de mais, com o cobertor, dorme, porra, dorme. 

Ilusão, ou Retrato de rua

A senhora falava ternamente com o cão. Explicava-lhe qualquer coisa que não percebi bem o que era. O cão também não deve ter percebido, pelo menos não dava sinal nenhum disso ou de achar relevante a voz doce, suave, quase um murmúrio da mulher, ainda jovem, talvez quarenta, quarenta e poucos,  que lhe segurava a trela e o deixava esgaravatar no canteiro.

"Se não falasse com o cão", pensei, "só lhe restariam as paredes. O efeito seria o mesmo, mas o cão permite uma certa ilusão."

Vidas, mediadas

Uma das coisas que o Facebook nos ensina é que a vida só é suportável nos romances, nos filmes, na banda desenhada e - em menor grau - na fotografia. Uma tranche de vie no primeiro grau, em bruto, incendeia as hostes de críticos, indignados profissionais e amadores, amigos dos animais e outras bestas que povoam as redes sociais. A mesmíssima tranche de vie mediada pelo talento do dia desencadearia ahs! e ohs! comovidos, encómios entendidos, acenos de quem se compreende.

A vida real tem o inconveniente do cheiro, que a da literatura obfusca e os narizes sensíveis das massas, coitados, resentem-se. De caminho incendeiam, insultam ou - na melhor das hipóteses - não compreendem. Não compreendem nada, verdade seja dita, mas isso é outra história.

Cretinice unida

Não me sinto propriamente um Ignatius Reilly, mas nestes dias não consigo impedir-me de pensar na Conspiração de cretinos (A confederacy of dunces, para quem preferir). Fique em casa! Use máscara! Proteja-se e proteja os outros! A Suécia tem o maior número de mortos por milhão de habitantes!

Cretinos unidos jamais serão vencidos.

22.5.20

Felizmente...

... a raiva é solúvel em ternura.

O lugar da raiva

Vês? Eu bem te dizia. A noite desce calmamente - à velocidade das ilhas, diria o I. - e abafa em ternura a tua raiva.

Enraivece-te apenas contra aquilo que te pode dar luta. A estupidez não pode, coitada. É demasiado vasta, é infinita. Terias mais probabilidades de ganhar se decidisses que o Sol deve nascer a Norte e pôr-se a Sul, para acabar de vez com os pólos.

Não há raiva que resista à cozinha do Joan do Bar Rita. Nada resiste a nada que tu decidas não deve resistir. Deixa a raiva ir para o esgoto, é o lugar dela.

O teu é alhures.

Conselho: não dês de beber à raiva

Não é  - infelizmente - garantido que hoje consiga embebedar-me a sério,  apesar de querer muito.

Não. Ao contrário: é pouco provável que hoje queira embebedar-me muito, apesar de ser o que devia fazer.

Não. "Não te embebedes por raiva", diz-me a idiota que vive comigo e se chama Vida (alcunha: Experiência). "Não dissolvas a raiva em álcool, o cocktail sai amargo. Dissolve a alegria, as boas emoções, os "vastos sentimentos". Não dês de beber à raiva. Ela não saberá apreciar. A raiva é um touro cego a quem alguém deu um pontapé nos tomates.

Amacia-a. Dá-lhe croquetas de sépia, dá-lhe uma praça bonita, dá-lhe mulheres lindas a ver e outras a lembrar, dá-lhe a consciência deste fim de tarde cálido e doce. Transfere a raiva para a desobediência, para a vasta arena da liberdade que nunca ninguém te invadirá, para o azul tímido do céu de hoje, escondido num véu de cirrus.

Manda a raiva foder-se, não a deixes foder-te ela a ti. Nem um bico sabe fazer, usa os dentes e morde-te a pila. Deixa-a num canto e vem antes para a cama comigo."

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-05-2020

Ao fundo do túnel a luz não é um comboio: é mesmo o fim do túnel. Todos estamos fartos hasta los huevos, os dois I. e eu, todos queremos ver isto terminado e todos nos dizemos, "é agora que temos de ter calma e não nos deixar ir, é agora que não podemos estragar o que fizemos, é agora." Lembro-me do provérbio chinês que mais vezes devo ter citado: «metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li, são noventa.»

É agora. Em breve teremos o camarote de proa fechado, limpo,  nada mais a fazer. No dia em que isso acontecer lanço um foguete até à Lua.

Não é agora, mas está quase. É quase agora e o quase cada dia é mais pequeno.

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A bodega Can Rigo abriu e o idiota de quem manda ordenou máscara obrigatória no mercado.  Até ontem não era. Uma no cravo, outra na ferradura. Se é isto a humanidade  eu não sou  sócio e quero a minha desfiliação já, se faz favor.

Até na rua é obrigatória, mas só se nos cruzarmos a menos de dois metros, dizem-me dois polícias a quem perguntei e me pareciam tão desesperados como eu.

A minha misantropia vai mesmo levar uma injecção de anfetaminas e aquelas coisas que servem para os músculos mais sei lá, uma espécie de Viagra, se existir.

Viagra para a misantropia, que o da filoginia já existe.

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Vim cá fora fumar um cigarro, no mercado. Não suportei ver aquela gente toda de máscara, no que até agora foi o único espaço de liberdade. (Até esse me tiraram. Seria preciso uma puta do tamanho do universo para os poder acolher, a "eles" e à raiva que me provocam.)

Estava um senhor a quem perguntei se me podia sentar. Cinco minutos depois pediu-me o telefone para ligar à mulher (não tinha saldo no dele),  explicava-me que se estava a divorciar, que o cúmulo do divórcio e do confinamento tinha sido demais para ele. Até aqui tudo bem. Compreendo e empatizo. Depois entrou numa teoria conspirativa que me aborreceu e vim-me embora.

Não percebo porque precisam de tantas e tão complicadas teorias para explicar as múltiplas formas da idiotice.

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A máquina fotográfica chegou mas agora tenho de esperar que a bateria carregue e o calhamaço das instruções esteja mais ou menos folheado. Que saudades tenho de quando se comprava uma máquina e cinco minutos depois se estava a fazer a primeira fotografia. 

19.5.20

Medo: conta, peso e medida

O eixo das conversas desloca-se pouco a pouco do vírus ele-mesmo para o medo, coisa que agradeço a todos os santos: sei mais de medo do que pedaços de células que se incrustam onde não são chamados. A verdade é que sou um tipo medroso. Tenho frequentemente medo: nas três ou quatro vezes em que tive de brigar na rua; quando vou num automóvel depressa de mais (sobretudo se for eu a conduzir); mesmo a bordo, quando estou numa situação complicada não tenho medo na altura. Mas isso é por simples falta de tempo: tenho-o depois. Aconteceu-me quando uma corrente do ferro, toda embrulhadinha para poder ser arrumada onde fosse preciso peso me passou a milímetros da cabeça (tínhamos largado das Saintes-Maries-de-la Mer, entrou um mistral e estava em baixo a pôr as botas quando fizemos a primeira de três cangochas. Na terceira vi a praia, apesar de estar uma noite «escura como o pecado», aí a duzentos metros e disse ao gajo do leme que se fizesse mais uma talvez não fosse má ideia escolher uma praia sem rochas). Não tive medo  nessa noite, mas na manhã seguinte aquilo acalmou e ainda hoje penso na maldita corrente. Ou depois do ciclone, quando entraram as vagas e os tripulantes não conseguiam governar. Fiz vinte e quatro horas seguidas de leme, aquilo passou, fui dormir e quando acordei só não tremia porque ainda estava demasiado cansado. Também tive medo depois da noite que passei com o facho da bóia na mão, era a única luz que tinha a bordo e estava no meio de uma frota de arrastões da costa, à espera que o temporal passasse. Se os medos a posteriori só me acontecem no mar, em terra tenho-os antes e durante (e às vezes depois) e não tenho vergonha nenhuma: sem medo já não haveria humanidade.

Vergonha será talvez deixarmo-nos paralisar pelo medo. E mesmo nisso a questão não é a vergonha, mas sim que a paralisia pelo terror anula a razão de ser do medo, que é pôr-nos em estado de alerta, aguçar-nos os sentidos e os reflexos. O medo é um mecanismo evolucionário mas em excesso torna-se uma falha da evolução.

O pânico colectivo de que estamos a sair é disso a prova mais do que evidente: vai custar-nos mais caro do que o que o provocou, tanto em vidas como em dinheiro.

Fiz muitas idiotices a bordo por ausência de medo, por exemplo quando era moda navegarmos sem os rizos passados e era preciso ir à retranca passá-los e digo que são idiotices porque nem depois tive medo. Só hoje, dezenas de anos depois, avalio bem a inconsciência e a estupidez - se bem tenham tido pelo menos a vantagem de me mostrar até ponde posso (ou podia) ir. Já me aconteceu uma vez ter de voltar para bordo agarrado à escota da grande, por estar de pé em cima da balaustrada a fazer qualquer coisa na retranca. A ausência de medo tem a sua utilidade, mas hoje sei que mais vale tê-lo - desde que com conta, peso e medida.

18.5.20

Kalimeradas (ex-Jeremiadas)

Os dias de «confinamento» escoam-se pelo ralo com o movimento circular da água do banho, mas sem a utilidade desta. Não serviram para nada senão dar aos governos a possibilidade de nos pagarem uns copos que já foram pagos por nós e nos serão cobrados com juros. Imensa gente acredita nos governos, coitada. Gente que gosta de ser enrabada e não tem a desculpa - ou explicação, se preferirem - de ser maricas. Gostam de ser fodidos, no sentido de enganados. Eu não gosto nem de um nem de outro e a única coisa que posso fazer é esquivar-me, «fugir para dentro», fingir que estou de passagem como o outro fingia que era poeta: estando de passagem. Os mecanismos colectivos são-me estranhos. O Mercadona mais perto de minha casa tem duas entradas. Vamos chamar-lhes norte e sul, trocando exactidão por simplicidade. A entrada sul tem sempre mais gente do que a norte, provavelmente por duas razões: tem um tapete rolante que leva as pessoas do rés-do-chão (o supermercado é no primeiro andar) e tem mais caixas, o que leva mais gente a sair por ali.

A entrada norte só tem umas escadas e tem menos caixas. Durante o confinamento, quando havia filas para entrar (ainda há, mas menos), a entrada sul tinha dezenas de pessoas e a norte estava vazia. Isto não é um exagero, é assim mesmo. Eu subia sempre as escadas, para não dar ideias e entrava logo. Quem estava na outra porta via-me (e aos outros que utilizavam a mesma entrada, claro), mas não se mexia. Continuava na fila. Um dia enganei-me e apanhei o tal tapete rolante. A bicha à entrada era enorme e o segurança indicou-me o sítio para onde devia ir. Disse-lhe que não, que ia para o outro lado, o homem acedeu e quando cheguei à outra porta vi que pelo menos dez pessoas me tinham seguido.

Amaldiçoei-me, claro. «A partir de agora vou ter filas nas duas entradas», pensei.

Não. A entrada norte continuou sempre vazia e a sul sempre cheia. O que me espanta nisto é que nem sequer sou mais esperto do que os outros, Tenho simplesmente mais aversão a filas, a grupos, a imitações. Isso não faz de mim um gajo mais inteligente, claro, mas não consigo deixar de me perguntar que raio de mecanismo fazia as pessoas ficar especadas numa fila quando a cinquenta metros podiam aceder directamente ao sítio para onde iam.

Há uma contradição nesta ideia de que duas cabeças pensam melhor do que uma só, porque se forem muitas deixam de pensar. Já não menciono sequer «melhor». Anulam-se. O QI é uma média, portanto o QI médio daquelas pessoas é cem. Mas isso é só se forem tomadas uma a uma. Em grupo o QI passa para zero, ou coisa que o valha.

Talvez até seja negativo, como agora se viu com isto do vírus: as pessoas preferem panicar e prejudicar-se a pensar. Ficam fechadas em casa e não contentes com isso injungem os outros a fazer a mesma coisa, como se baixar a média ou partilhar o medo fizesse delas pessoas de bom senso. Esta correlação imaginária entre o medo e a inteligência devia ser melhor estudada. Ter medo não é ser inteligente, é ser medroso. São coisas diferentes. Tal como o invés: usar a razão para analisar as situações não faz de quem usa o método um desmiolado irresponsável. Faz um ser racional, é tudo (é igualmente diferente de inteligente). Agora têm medo de ir à praia o levar os filhos à escola. Têm de andar o palerma e o palhaço a «dar o exemplo». Espero que tenham êxito para ver se pomos fim a este embuste.

Outro paradoxo: essa coisa de se aprender com os erros. Qual a percentagem de gente que vai reconhecer que se enganou? Duvido muito que se venha alguma vez a saber, mas aposto que vai ser muito baixa. E contudo a informação estava lá, desde o princípio. Permitia pelo menso que se começasse a duvidar do que nos diziam. O caso do paquete, os gráficos que demonstravam por a+b que o confinamento chegou depois dos picos dos contágios ou que não havia relação nenhuma entre os confinamentos e os contágios, os virologistas e epidemiologistas - foram muitos - a dizer que tudo isto acabaria por passar mal chegasse a Primavera, institutos insuspeitos como o Koch na Alemanha, a Suécia, os gráficos do Euromomo, as estatísticas sobre as mortes de gripe. De nada serviram, como o facto de haver uma entrada sem filas e as pessoas preferirem esperar. Houve um dia em que vieram atrás de mim, mas depois voltaram à sua prática habitual.

O problema é que no caso do Mercadona eu ficava a ganhar com o espírito de rebanho e no do vírus não. Perdi o mesmo que os outros, o que é uma injustiça. Yes it is.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-05-2020

O dono do Arabay (ou gerente ou seja lá o que for) é simultaneamente antipático, estúpido e arrogante, combinação pouco convidativa, no mínimo, para quem recebe clientes. Compensa tal amontoado de qualidades com o melhor café de Palma - talvez um dos melhores, ainda tenho de confirmar - e com a localização: mesmo ao lado de casa. Hoje apercebi-me de que tem também clientes à altura: estava na fila - por uma razão que desconheço e não compreendo de todo deixaram de servir à mesa - e o gajo à minha frente pediu-me para me afastar. A cara e a roupa de imbecil do homem desculpam tudo e portanto não teria sido grave se ele não tivesse composto o pedido com um «hay que ser responsable» e eu não estivesse já suficientemente longe dele, na minha opinião. Acedi educadamente. É a melhor maneira de lidar com um QI baixo, quanto mais não seja porque provavelmente terá muito mais prática de brigas de rua do que eu e de qualquer forma aquilo não o merecia. Dei um passo atrás e agora deixo essa gota de água escorrer no meu metafórico impermeável (o dia está esplêndido). Penso que consigo, mas não tenho a certeza.

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Palma está esquisita, sem turistas. Parece aqueles gordos que andam sempre com roupa apertadíssima e de repente emagrecem e a roupa assenta-lhes como uma luva ao Arsène Lupin.

As ruas foram feitas para esta quantidade de pessoas e não para as enchentes de alemães, suecos e hooligans ingleses (passe o pleonasmo). Isto dito, espero que voltem depressa, porque os negócios estão calculados para as enchentes e não para a elegância das ruas meio cheias.

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Jantar na Chichilla: tapa de jamón ibérico e dois copos de vinho. Em casa completo com meia dúzia de garfadas dos penne rigate que fiz ontem, um ragù di salsiccia e um copo de Rioja. Amanhã vou ao dentista e já me preparei para uma noite infernal, apesar de não ter razão nenhuma para isso. A quantidade de coisas que um gajo teme sem ter razões nenhumas para isso é insondável. Se é verdade que «on est tous le con de quelqu'un», mais verdade ainda é que mal vale ser o seu próprio imbecil do que o dos outros. 

Positivismo radical

Não há explicações metafísicas para a felicidade. A única válida, sempre válida que conheço é ciclista: felicidade é um semáforo verde no fim de uma descida íngreme. Ou marítima: felicidade é quinze nós de vento pela alheta. Ou gastronómica: felicidade é um cozido à portuguesa acompanhado por um bom tinto, daqueles que deixam traços no copo e no palato. Ou afectiva: felicidade é o teu olhar grato e saciado em mim. A felicidade ou se come, toca ou cheira ou não passa de uma efabulação cabalística destinada a preencher as tardes ociosas das senhoras das limpezas quando a patroa está longe.

Adenda pós-prandial - à lista dos prazeres concretos, acrescentar:

- Ler uma frase daquelas que só Gabriel Garcia Marquez, Marguerite Yoourcenar, Samuel Beckett sabem e podem esrever. O Malcolm Lowry do Under the Volcano anda lá perto, às vezes; o Hemingway todo (mas especialmente a Outra margem), o London de To light a fire, o Joyce de The Dead, Somerset Maugham, Steinbeck... Pronto, resumamos: ler uma frase bem escrita, uma história bem contada, um livro bem escrito;
- Ouvir as Segunda e Quinta Sinfonias de Mahler, o Arvo Pärt todo (pelo menos o que conheço), ouvir Maria Callas cantar o Ave Maria de Schubert, o Carmina Burana de Clemencic, as Vésperas de Rachamninov (ao vivo, na catedral de Genebra, dirigidas por Michel Corboz), os cânticos de Hildegarde von Bingen. E muitos outros;
- Ver os quadros de Mantegna, Hopper, Klee, Rembrandt.

Acabo a lista (por lassidão pós-prandial), penso em todos os que ficaram de fora e pergunto-me como é possível não ser feliz. O esforço que ser infeliz exige é inquantificável.

17.5.20

Vicioso

Somos um povo de medrosos e cobardes porque somos tesos e somos tesos por sermos medrosos e cobardes. Vai ser difícil furar o círculo. 

Ode às brevas

A breva é um figo que só não é figo porque se atrasou. Não é fruto porque os figos não são frutos, são flores. A breva é um figo que não amadureceu a tempo e ficou na árvore, por um mecansimo que desconheço totalmente. Quando chega a Primavera os figos atrasados retomam a maturação e em Maio começam a aparecer nos mercados. Sou suspeito, porque gosto de figos mas agora, que descobri as brevas - graças a um livro chamado Secretos del Mediterráneo, abençoados sejam a obra e o seu autor, Lluís Ferrés Gurt - troquei de aliança e converti-me a estes figos simultaneamente precoces e tardios, menos doces... não são menos doces, são mais subtis do que os seus colegas que se despacharam a tempo. Acabo de comer meia dezena delas, só para mostrar ao meu pâncreas que eu faço a minha parte gastando uma pipa de massa em comprimidos para ele e agora é a sua vez de participar no esforço comum e produzir insulina em quantidades suficientes para tratar isto. Para quem gosta de figos, subtileza e de manter uma relação dinâmica com o seu corpo, a breva é a flor indicada.

Retrato ficcionado

Homem só com sorte: tem uma vida e nela acolheu o pior e o melhor, o sublime e o sórdido, a multidão e o vazio, o ruido e o silêncio, as palavras e o mar, o amor e o desprezo. Talvez o ódio a tenha visitado, mas não ficou: o amor e a amizade ocuparam os lugares todos do sentimento. Homem só com sorte: sorte é tudo o que tem.

16.5.20

Escuridão, amor

Pintar com duas ou três demãos de escuridão o que te vai na alma, tão luminoso e leve. Olhar-te como se a luz acabasse amanhã. Amar-te com o que resta de amor no mundo: todo. Não lhe tocámos sequer, pois não? Está ali intacto, disponível enquanto tiveres em ti a leveza da luz, a alegria da parede virgem.

Pinta-me com duas ou três demãos de amor a escuridão que amanhã apagarás.

Medo

As pessoas habituaram-se ao medo e agora usam-no como uma droga. É tão confortável ter medo, tão tranquilizador: uma banheira cheia de água quente e espuma na qual se mergulha e de onde não se tem vontade de sair.

Em breve trarão as refeições à banheira e será demasiado tarde: as pessoas dissolveram-se em medo e nada ficou delas. Nem a fome.

Nomes

Oferenda de que não sei se sou o dador se quem a recebe. É uma esfera grande, talvez inteira talvez parcial que escolheste para me albergar. Morna, molhada, recebes-me como se fosse eu o futuro, como se do Sol já pouco houvesse a esperar,  como se no Sul já não houvesse livros no Inverno, como se da gleba nada nascesse, terra coberta de gelo.

Em ti, que me deste ou me dei, tépido tempo sem falhas, sem soluções, sem medo sequer de enfrentar tudo o que ficou para trás, tudo o que nos persegue. Dia virá em que o passado nos confrontará, teremos de o batalhar, de o desafiar: ou a ordem ou nada, ou nós ou o nada.

Uma esfera grande, inteira ou parcial: como lhe vamos chamar?

Cicatrizes

Vejo em ti algumas marcas da beleza: cicatrizes.

Despeço-me

Despeço-me do tempo, escorro por ele dengoso, eu que nunca fui muito hábil com o meu corpo. Há um canto ali que ainda não visitei, uns braços que não me conhecem,  um mar que não naveguei.

Terei de lhes dizer adeus com um meneio elegante, vénia baixa e grata, olhar ao alto e para a frente, queixo firme. Despeço-me do tempo antes que seja ele a despedir-me. 

Desfaçatez

A desfaçatez com que os dias passam como se não fosse nada com eles, como se não tivessem nada a ver com o que os preenche...

Vida - reedição

Alguns leitores deste blog - e leitoras, forçoso é reconhecê-lo - pensam que eu não tenho vida. Quero aqui deixar uma contestação formal - violenta, mas formal - dessa ideia. Não só tenho uma vida como até já tive várias.

Já fui, por exemplo, provador de vodka na Rússia e de enfermeiras na Namíbia; já participei em experiências sobre a resistência inata ao SIDA em Moçambique e sobre a cultura geral das jovens universitárias no ex-Zaire, hoje Congo e sempre desaire; já me embebedei com mezcal em Johannesburg - Jo'burg para os íntimos - e com cinema na Venezuela; conduzi automóveis em sítios onde nem cabras andariam; tive armas apontadas à cabeça e apaziguei assassinos com cigarros Marlboro; nadei com tubarões nos Açores (era só um, espero) e com amantes em várias praias.

Essa ideia de a vida ser um cheque ao fim do mês, pronto a ser gasto no Gambrinus ou no Pavilhão Chinês; em automóveis potentes ou livrarias fotogénicas; em mulheres bonitas ou restaurantes infames devia ser abandonada, rapidamente abandonada - ou pelo menos repensada.

Vida é aquilo que nos faz ir para a cama todos os dias e perguntar-nos se amanhã acordamos com prazer ou nos Prazeres; no mar da China, às mãos de rufias russos, cocaínomanos venezuelanos ou de um soldado burundês bêbado; nas tuas centenas de olhares, nos nossos milhares de despedidas.

(10 de Agosto de 2008)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-05-2020

Já os secretos marinam em limão, alho e pimentón de la Vera. Os (ou será as?) patató salteiam em lume brando, cobertos de salsa e coentros picados. Vermute de Palma, pão com azeite da U., uns bocadinhos de bellota, sol, os versos de Alejandra Pizarnik para me lembrar de onde estou e onde poderia estar:

«Todo hace el amor con el silencio.

Me habián prometido un silencio como un fuego, una casa de silencio.

De pronto el templo es un circo y la luz un tambor.»

« Escucho resonar el agua que cae en mi sueño. Las palabras caen como el agua yo caigo [sic]. Dibujo en mis ojos la forma de mis ojos, nado en mis aguas, me digo mis silencios. Toda la noche espero que mi lenguaje logre configurarme. Y pienso en viento que viene a mí. Toda la noche he caminado bajo la lluvia desconocida. A mi me han dado un silencio lleno de formas y visiones (dices). Y corres desolada como el único pájaro en el viento.» 

(O primeiro poema chama-se Signos e o segundo L'obscurité des eaux e ambos vêm de La extracción de la piedra de la locura. Otros poemas.)

O vinho vai ser o que sobra do carmenère, chega bem para o almoço. Terça-feira tenho consulta marcada na dentista, os ranúnculos inclinam-se a tentar ver o que escrevo. A música é de Ballaké Sissoko mas em breve mudará para Toumani Diabaté. Fusão por fusão prefiro música e o momento pede música e não entretenimento, por muito agradável que seja.

Assim se aconchega uma manhã de sábado, uma vida, uma solidão.

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Acabo por decidir grelhar os secretos, em vez de os fritar. Vêm das Carns Coma, o talho do Mercat de l'Olivar que deve poder orgulhar-se de ter as maiores filas. Às vezes tenho pena do vizinho, que está quase sempre vazio e vou lá comprar qualquer coisa. Ontem não: a fila no Coma era pequena e queria ter a certeza de ter porco que não se desfaça em água.

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[Este não desfez.]

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Gostaria de escrever uma ode ao pimentón de la Vera. A primeira vez que comi pimentão fumado (não confundir com paprika, por favor, que é a forma húngara do pimentão) foi na Califórnia. Creio que a ideia vem da América Latina, não sei. Há um problema grave: depois desta (a de Vera) mais nenhuma parece comestível. São aproximações - as posteriores e as anteriores também.

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O Perez Cruz está aberto há dois dias. Algumas coisas só ganham com a espera.

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A vida é como aqueles armários para especiarias, com muitas gavetas. É raro estarem todas cheias ao mesmo tempo, não é?

15.5.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-05-2020

Ia deixar isto para o fim, mas não posso. Agora que a vi nua, tenho vontade de Palma. Nua no sentido de despida e não num qualquer outro sentido metafórico ou metafísico. Despida de gente, as ruas de rugas à mostra, estrias no ventre que nunca tinha visto. Acordo hoje em Palma, mãe de milhões de filhos e pergunto-lhe onde estão os teus filhos, que não os vejo? Onde estavam as tuas rugas, que nunca antes as vira? Porque mas escondeste?

Percorro-te Palma as ruas meio vazias, vejo-te a meio gás. Só quem tem esplanadas tem gente. Quem não tem, ou faz para levar ou não abriu sequer. O aquecimento global foi com a Greta ou pela greta, vá saber-se, mas não me importo. Se nos extremos prefiro o calor, na mediana gosto tanto de frio como de calor. Além de que este frio é tudo aquilo que há décadas se diz do frio: revigorante, exaltante, agradável. (Poderá talvez dizer-se que dezanove graus centígrados não é frio. Isso é para os absolutistas. Tudo é relativo.)

Assim vai o dia: Palma a meios, temperaturas em baixo e eu como os dois.

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Descobri um café que me faz os mojitos exactamente como eu gosto deles. Fica na praça Jaume qualquer coisa, mesmo à frente do hospital de bicicletas onde I. me dá vontade de o abanar cada vez que me diz o preço de qualquer coisa: se pedisse o dobro ainda seria barato. Não digo nada e pago o que ele me pede. Não por egoísmo mas porque ele já me explicou que me pede o que quer, etc. Abrevio, meio por vergonha meio por não achar o tema interessante. Ele sabe da vida dele. Uma vez perguntei-lhe se era maiorquino e se bem me lembro respondeu que sim. A estar a minha memória correcta, é um maiorquino adorável, daqueles que até agora só tenho visto nos livros.

Esta gente demora a despir, mas uma vez nua é muito bonita. A cidade é linda vestida e apaixonante nua, mas isto é coisa que tem de ser vista, digerida e revista.

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Comprei umas flores que aparentemente se chamam ranúnculos. São tão bonitas! A mesa de trabalho já era pequena mas a beleza amplia-a. Não há nada a que a beleza não mude as dimensões.

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Há quanto tempo não ouvia as Vésperas de Rachmaninov? Só há duas respostas: «estou a ouvi-las» e «demais».

Se se pudesse viajar no tempo, voltar ao dia em que as ouvi na catedral de Genebra dirigidas por Corboz estaria perto do topo da lista.

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«Dicen unos que una tropa de jinetes, otros la infantería,
y otros que una escuadra de navios, sobre la tierra
oscura és lo más bello; mas yo digo
que es lo que una ama.»

Safo, Poemas y testimonios, ed. Acantillado, Barcelona 2020. Ed. e trad. de Aurora Luque.

«Fiesta

He desplegado mi orfandade
sobre la mesa, como un mapa.
Dibujé un itinerario
hacia mi lugar al viento.
los que llegan no me encuentran.
Los que espero no existen.

Y he bebido licores furiosos
para transmutar los rostros
en un ángel, en vasos vacios.»

Alejandra Pizarnik, La extracción de la piedra de locura. Otros poemas.

Ed. Visor Libros, 2018 Madrid

14.5.20

Geometria

Geometria. É de geometria que falo. De linhas rectas, curvas que as intersectam, os planos e espaços que definem. E de ti que falo: dos planos  e espaços que em mim definiste, das nossas intersecções, das nossas curvas e rectas, infinitamente prolongadas.

Encontrámos o silêncio e nele nos refugiámos, protegidos pela linha recta do amor, pelos ângulos que o protegiam, pelas curvas do tempo.

Moldámos o tempo e ele moldou-nos. Fez de nós um dos seus planos, infinito.

Onde quer que estejas

Sonho de um sonho, pesadelo de um pesadelo. Acordas dentro de uma redoma que está dentro de outra redoma, mas não consegues ver-lhes as cores. Nem os materiais, o peso, a textura. Perguntas-te se serão efémeras, se perenes mas na verdade não sabes sequer quantas são. Duas? Mais? Envolvem-te, vomitam-te, reabsorvem-te, mastigam-te, passam-te de uma para a outra. Parece-te que mantêm a sua forma perfeita de meias-esferas, elegantemente encaixadas umas nas outras. Não lhes ouves um ruído, não te ouvem, não reagem ao teu esbracejar nem aos teus gritos. Na verdade não as vês, nem elas ti: sabes apenas que estão onde tu estás, onde quer que estejas. 

Relativismo(s)

Voltou a chuva e com ela o frio. Um frio relativo. Vinte graus centígrados não é propriamente a Antárctida mas nisto como em tudo, tudo é relativo. Pergunto-me se no amor também há relatividades e respondo: não. O amor é absoluto e amo a miúda que amo tanto ao meu lado como a duas mil milhas de mim, amo-a tanto sozinho como com outra mulher qualquer nos braços. Não há relativismos no amor como os há nas temperaturas, nos vinhos - o Carmenère que agora bebo, por exemplo, é magnífico, mas trocá-lo-ia por um Balanches em Mértola, por um Humagne em Genebra ou por um copo de água no mar. Este Carmenère é o melhor agora, enquanto chove e Sinatra canta. Dois remédios para o relativismo: Sinatra e um Perez Cruz de 2016 esplêndido, comprado por engano. Tudo tem remédio, no fundo. Até a solidão, diz o misantropo. Menos a solidão, diz o amoroso.

13.5.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-05-2020

O café d'en Coll fica na Plaza d'en Coll. A praça é pequena, só tem cafés e restaurantes, muitos dos quais pertencem ao mesmo dono. O café d'en Coll não é um desses. pertence a um músico e é, portanto, ponto de encontro de músicos de terceiro e quarto escalão, boémios de fraca extracção e outros bêbedos. Não sou um grande frequentador da praça - tem um restaurante italiano que não é mau e uma papelaria onde hoje fui comprar um bloco-notas e uma esferográfica, mas fora isso não lhe vejo grande préstimo. Porém, hoje resolvi fazer dela o meu campo de batalha pela normalidade.

Só posso dizer que acertei. São cinco e meia da tarde e numa das mesas uma mulher grita com um gajo qualquer doutra mesa. A indiferença é geral e começa no senhor que acompanha a mulher, nos tipos que acompanham a vítima e prolonga-se pelos outros clientes. A certa altura faço um ssssshhhhhiuuuu prolongado e audível, mas só os meus vizinhos me ligaram, com um sorriso e um encolher de ombros. A coisa durou talvez uns vinte minutos, meia-hora. Agora estão todos amigos, passam de mesa para mesa, fazem saúdes com os copos a tocar-se. Não oiço as conversas - já me é complicado ouvir o que me é dirigido, não preciso de me meter em conversas alheias - mas aposto que comentam a cena. O Mediterrâneo é um mar de tempestades súbitas, violentas e breves.

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A tentação seria dizer que pouco a pouco a vida regressa mas cedendo-lhe faltaria à verdade. A vida irrompeu, voltou impetuosamente, como se nada tivesse acontecido. As ruas voltaram a encher-se, pouca gente usa máscara, o afastamento das mesas é uma anedota. O vírus perdeu... Enfim, não foi o vírus que perdeu. O vírus é parte da vida e fundiu-se nela, simplesmente. Foi ao seu lugar.

12.5.20

Lamentos, mariquices, parvoíces e outras coisas do mesmo quilate

«Sou homem e nada do que é humano me é estranho». É nesta frase de Terêncio que o meu humanismo radica. Sou homem, sou todos os homens. Já a minha misantropia não estou seguro de onde vem. Talvez de tudo o que detesto em mim? Da minha incapacidade de ser todos ao mesmo tempo?

Por muito que compreenda grupos, rebanhos, clubes, partidos sou incapaz de fazer parte deles (e ainda agora tive uma prova involuntária disso, no que respeita a partidos). Compreendo a histeria de grupo, sei que as pessoas que se juntam a movimentos histéricos como este a que assistimos não são todas estúpidas ou maldosas, sei que não me dizem para ficar em casa por maldade, que denunciam os vizinhos porque pensam estar a ajudar quem denunciam.

Sei isso tudo, mas não sou capaz de me juntar a eles. Não aceito que se abdique daquilo que nos faz homens e daquilo que nos faz nós.

Humanista, misantropo, céptico e solipsista. Já vi edifícios ruirem por menos.

11.5.20

Andaimes

Não é à minha vida que eles se referem, quando falam dela. É da mistura de vida e vidas, vida e liberdade, vida e sentimentos.

Não vêem os andaimes e encanamentos por detrás disto tudo. Eu conheço-os mas esqueço-os.

Oração matinal

Sentar-te em mim e assentar, sentir-me em ti e assentir, consentir contigo em mim e dizer sim ao tempo, a tempo de parar o tempo, começar o dia como se o dia tivesse fim. Não tem. Nada em ti é finito, tudo contigo é infinito.

10.5.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-05-2020

O primeiro sinal não foram as crianças. Foi a quantidade cada vez maior de pessoas que cruzava na rua. Nunca me afastava muito de casa - arranjava simplesmente os caminhos "defensáveis" mais longos - e a cada dia cruzava-me com mais gente. As ruas  continuavam desertas, é certo. Mas um bocadinho menos. Uma pessoa menos,  às vezes duas pessoas menos.

As crianças vieram depois, faz hoje uma semana ou coisa que o valha. Enterneceu-me vê-los a correr como se não houvesse amanhã. Fecharam uma das faixas do  Passeig Maritimo e aquilo está cheio de miúdos,  graúdos, velhos a pé, de bicicleta, patins, skates, trotinetes e o diabo a quatro. Pergunto-me como foi possível conter esta gente toda em casa durante dois meses?

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A verdade é que estou exausto - física, psíquica e metafisicamente exausto, apagado, eclipsado. Oiço Karen Dalton e escrevo na cama, apesar de tão cedo. As dores passaram, amanhã as esplanadas abrem, a minha Peugeot é linda e rápida, o trabalho no P. lá vai andando, só com o Iv. a bordo.

Estou cansado mas pelo menos vou trabalhando e escrevendo. O meu corpo não passa de um idiota ingrato. Deve ser por isso que tanto aprecio a gratidão: à força de convver com a sua ausência vai-se aprendendo a sua importância.

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Hoje as esplandas e algumas lojas abrem. Já só falta abrirem os aeroportos... Ficará para o fim, apesar das pressões dos TO alemães. Querem começar a trazer turistas em Junho. A situação política está tensa, para usar um eufemismo. Se o Sánchez pudesse prolongaria o estado de emergência até ao fim da legislatura.

4.5.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-04-2020

O I. abriu a loja e bicicleta ficou pronta. Era um furo, só. Fui passear. Estava dentro do horário. Faz arrepios, não faz? Horário de passeios, como na prisão. Havia duas ou três senhoras na praia com as respectivas crias. Fiquei a saber que o horário dos putos é diferente: às sete têm de estar em casa. Vedade seja dita que até os polícias tinham noção do absurdo: o que estava a falar pelo altifalante foi simpático, cordial. Até "por favor" disse. "Por favor, senhora, saia da praia". Ouvir um polícia espanhol dirigir-se a alguém com "por favor" dá bem ideia de como o homem se sentia.

Sábado fui eu. Safei-me com uma admoestação, mas não tive direito a simpatia, empatia, emoções ou sentimentos. Vá lá, quando me perguntou há quanto tempo estou em Mallorca respondi com uma saída pela esquerda baixa e o guardião da ordem, da saúde pública e da idiotice ambiente não insistiu. Ficou com a morada e com o número do BI e em troca avisou-me de que para a próxima seria "detenido". Não é exagero. Nesse sábado foram quarenta tipos presos, li no jornal.

- O que é que está aqui a fazer?
- Vim ver o mar, señor.
- Onde mora?
- Praça aqui ali e acolá.
- Número da porta?
- Sete.
- Andar?
- Terceiro.

Poupo o resto do diálogo. Ver o mar. Puta que os pariu a eles, a quem lhes dá as ordens e por aí fora.

Hoje fui ver o mar na minha burra mas estava dentro do horário. Tudo isto para aplacar a histeria de um monte de palermas que se recusam a admitir que são histéricos e palermas, um não exclui o outro, pode muito bem ser-se os dois ao mesmo tempo, mesmo se eu acredito que a maioria das pessoas é inteligente, isto é,  a maioria das pessoas tem um QI entre 115 e 85, como - espero - eu.

Enfim, celebrei a burra com duas embalagens pequenas de salmão fumado, uma do Alasca outra da Escócia e uma cava que estava no frigorífico há mais de um mês. Já não comprava salmão fumado há eternidade e meia. Desde que fui levar aquele noruego a Copenhaguen, faz uma série de anos. Rica viagem essa.

E a música sem fundo e sem tempo de Eleni Karaindrou, Nena Venetsanous, Angélique Ionatos, Evanthis Reboutsika.

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Os últimos dias de uma pena de prisão devem ser os piores. Nunca estive preso mais do que um dia (melhor dizendo, uma noite) e portanto não posso garantir por experiência pessoal.

Qualquer dia largo tudo e vou para a Índia, ver se emagreço.

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Pelo menos as noites fizeram as pazes comigo e deixam-me dormir. Já vou em duas seguidas. Revolta-se-me o corpo todo. Se tivesse uma psicóloga ao lado, dir-me-ia:
- Estás a somatizar.

Como não tenho, digo-mo eu.

2.5.20

A evolução é um processo em curso

As pessoas que têm uma abordagem racional dos fenómenos - fenómenos aqui no sentido lato - não fazem mais do que usar a principal característica do homem, aquilo que faz do homem homem, o que separa a humanidade do resto do reino animal: a razão.

Não deixa de ser paradoxal que essas pessoas sejam quase sempre apelidadas de desumanas. Como se usar a razão não fosse aquilo que a evolução levou milhões de anos a aperfeiçoar. 

1.5.20

«and God will call the past to account»

A Time for Everything

3 There is a time for everything,
and a season for every activity under the heavens:

2 a time to be born and a time to die,
a time to plant and a time to uproot,
3 a time to kill and a time to heal,
a time to tear down and a time to build,
4 a time to weep and a time to laugh,
a time to mourn and a time to dance,
5 a time to scatter stones and a time to gather them,
a time to embrace and a time to refrain from embracing,
6 a time to search and a time to give up,
a time to keep and a time to throw away,
7 a time to tear and a time to mend,
a time to be silent and a time to speak,
8 a time to love and a time to hate,
a time for war and a time for peace.

9 What do workers gain from their toil? 10 I have seen the burden God has laid on the human race. 11 He has made everything beautiful in its time. He has also set eternity in the human heart; yet[a] no one can fathom what God has done from beginning to end. 12 I know that there is nothing better for people than to be happy and to do good while they live. 13 That each of them may eat and drink, and find satisfaction in all their toil—this is the gift of God. 14 I know that everything God does will endure forever; nothing can be added to it and nothing taken from it. God does it so that people will fear him.

15 Whatever is has already been,
and what will be has been before;
and God will call the past to account.

Eclesiastes 3.

Carta aberta ao senhor meu corpo

Querido corpo,

Viva. Não te pergunto como estás porque sei que não andas muito bem, mas escrevo-te esta breve mensagem para te avisar de uma coisa simples: se tu pensas que a nossa vida daqui para a frente vai ser assim, tira os cavalinhos da chuva.

Acho a tua múltipla reacção a este confinamento exagerada, tão exagerada e absurda como a reclusão ela própria. Isto é chato, mas não é motivo para reagires como estás a reagir. Lembro-te de que desde muito novo te enchi de whisky, rum, vinho, vodka, gin, cerveja - nem sempre dos melhores, mas tão pouco dos piores - de carne, de piripiri, de peixe fresco e congelado, te proporcionei momentos de indescrítivel grandeza, te dei a amar corpos sublimes (outros menos, é certo), te ofereci dias e noites seguidos de festa e de festas (e horrores, sim, eu sei); não te podes queixar. Tiveste uma vida que a maioria das pessoas que conheço não teve, andaste várias vezes à soleira da morte e sempre dela te safei. Acho indecente, injusto e injustificado o que me fazes passar estes dias. Não serve de nada queixares-te da falta de médicos. Sabes perfeitamente que nunca fui presto a levar-te a eles e mesmo que agora os houvesse far-te-ia esperar como sempre fiz.

Acalma-te, meu caro. Melhores dias virão. Não penses que conseguirás arrastar-me para esse poço onde pareces querer levar-me; e não contes comigo para te curar as maleitas. Cura-te tu, que tens boa idade para isso.

Teu,

Eu

Paráfrase

«Sobre aquilo que não se pode calar, deve-se falar.»

Os vinhos, as pessoas e as companhias

À partida, um vinho a 15,5º não tem nada para me ser agradável. Comprei a garrafa por curiosidade. U. disse-me que gostava muto dele e resolvi testar o gosto da senhora. Sem qualquer espécie de premeditação acompanho um chilli con carne que saiu do congelador com esse vinho (Honoro Vero 2017, de Jumilla, produzido por Juan Gil Bodegas Familiares a partir de casta Monastrell, para quem estiver interessado). O vinho é óptimo, a adstringência acompanha bem o picante, o corpo enfrenta a riqueza de sabores do prato.

Os vinhos - como as pessoas - devem julgar-se por quem os acompanha tanto como si próprios sozinhos.

Nobreza

Reacção e reaccionário são duas palavras a que esta crise confere nobreza, dignidade. Nunca foram insultos (pelo menos para mim) mas agora são elogios.

Reagir a esta besta insidiosa é um imperativo da cidadania.