19.2.11

Livro de Bordos - Le Marin, Martinique, Caraíbas Francesas, 19-02-2011

Hoje começa o meu primeiro charter. Esta longa espera chega ao fim. Foi longa e apetece dizer "chega ao fim, finalmente". Os clientes - três casais de alemães de idades entre os 45 e os 65 anos - vão chegar às seis e meia da tarde. Às duas vou receber o barco, e um briefing.

Já houve uma breve troca de mails com os clientes. Querem ir para as Grenadines e depois Grenada - é a chapa 5 dos cruzeiros do sul das Caraíbas. Hoje apercebi-me de que foi há sete anos, mais mês menos mês, que fiz a mesma coisa, com o meu amigo Júlio Quirino, grande arquitecto e criador de cães d'água portugueses, e uma tripulação fantástica. Espero que este charter se passe tão bem como aquele.

A embarcação é um Orana 44. Chama-se "JINGLE". Até hoje não encontrei uma única pessoa que me tenha dito bem deste modelo da Fontaine Pajot. A regra vai ser, portanto, não puxar pelo bote. Não há nada mais aborrecido durante um charter do que ter uma avaria grave, das que obrigam a escalas mais longas do que o previsto ou a despesas inesperadas.

Hoje ao jantar far-se-ão as apresentações, definir-se-ão vontades e ideias de percursos. Amanhã vai ser dedicado às compras, e segunda-feira largamos. "Segunda-feira largamos": é difícil transmitir o prazer profundo que estas três palavras suscitam.

É o que vou tentar fazer com esta série de posts, sobre este e outro charter que farei antes de ir para o Brasil. O próximo vai ser completamente diferente - será como trabalhar no McDonalds da vela. Uma empresa que faz charter à cabine a preços abaixo da linha de água, e que é rentável porque a) os salários são baixos (muito baixos) e b) os barcos têm taxas de ocupação dementes.

É contudo uma experiência que me interessa bastante; por um lado pelo desafio em termos de relações humanas - 10 passageiros (e quase sempre franceses, qui plus est) num monocasco de 50 pés durante uma semana exigem prodígios de psicologia aplicada - e por outro pela operação em si. Assisti ao nascimento da Switch e participei com gusto em todos os debates sobre a viabilidade ou não viabilidade da empresa. Sempre defendi que ia vingar, e vingou. Agora vou ver por dentro o mecanismo. Ontem falei com um amigo daqui que trabalhou dois anos e meio como responsável pela manutenção. Contou-me que chegaram a mudar motores num dia.

Não é o tipo de charter que me interessa, claro - mas creio que é uma experiência importante. Um pouco atrasado, mas aquilo que me fez vir para as Caraíbas realiza-se. Graças à eficácia e à preocupação de um funcionário público francês, para quem eu "poder exercer a [minha] profissão" foi um motivo suficientemente importante para me dar uma equivalência em dois dias úteis.

Segunda-feira largamos.

Obrigado...

...ao Pedro Rolo Duarte pela citação. Fico sempre surpreso e inquieto quando descubro que o DV é lido pelas grandes pointures.

Atestados de pesporrência

O Estado Social é para todos. O sr. Armando Vara tinha uns robalos ao lume, um avião para os levar e prontosssss, lá teve que ir contra as suas profundas convicções socialistas.

"Vara passa à frente de todos em centro de saúde"

(Via 31 da Armada)

18.2.11

Piratas do Índico

Enquanto os políticos politicam, o sector privado age. Até que enfim! Se forem hoje já é tarde.

A especialidade da casa

Algo recente me diz que o imposto "especial" é mais para financiar salários, não?

Silêncios, não-ditos, malditos

Já aqui deixei vários posts sobre o silêncio, que é uma coisa nobre e apreciável, e o não-dito, exactamente o contrário: cobarde, indigno, mal educado. Portugal é um país de não-ditos, mas não é um país de silêncios.

Esta verdade simples e, para mim, linear não deixa nunca de me magoar, apesar de a conhecer há anos e de cor. Tudo o que não compreendemos nos magoa (enfim, falo pelas almas sensíveis e frágeis como a minha).

Não consigo compreender como é que um povo (ou pelo menos uma burguesia) tão bem educada, tão cheia de chichis e cocós e maneiras e chás e saber viver e pergaminhos e mais meia dúzia de que os pariu não percebe que é preferível dizer uma má notícia, ou "não", ou seja o que for a ficar calado.

E o pior é que não quero perceber.

Critérios

Um dos critérios para acreditar que Portugal pode mudar (para melhor, claro. Para pior é fácil) é os nossos deputados começarem a fazer leis à prova de funcionário público. Leis que resistam à incompetência, à má vontade, à preguiça - enfim, a todo aqueles males que costumam achacar os nossos felizes disfuncionários públicos.

17.2.11

Uma breve nota

Convem não esquecer, caro João Lisboa, que não pagar, fugir, diminuir ou seja como for pagar menos impostos do que o "devido" releva, em Portugal, do imperativo moral. Dar dinheiro à corja ("dar dinheiro à corja" não é uma fórmula) que nos governa é imoral. É ser cúmplice de uma extorsão, de um roubo, de um assalto. 

Horta Osório, um grande gestor e um grande homem passa com isto à categoria dos benfeitores nacionais. Só é pena é ter sido tão pouco.

"Uma questão de sobrevivência"

Quando o Jorge Costa escreve normal, quotidianamente, escreve muito bem e faz posts interessantíssimos. Quando se esmera faz posts como este. Devia ser de leitura obrigatória.

16.2.11

Breve e parcial autobiografia administrativa

Hoje estava a pensar nas minhas experiências com a burocracia portuguesa (experiências profissionais). Deu isto:

1986 - AQUARELLE – Multa por fazer charter sem licença. Mais do que justificada.
(Adenda: a multa foi anulada, e safei-me com a obrigação de tirar os posters que tinha feito para publicitar o day charter. Porquê? Porque na Capitania estava um polícia marítimo que conhecia o meu Pai. Tinha lá sido colocado porque estava implicado naquele gangue de polícias / traficantes de droga de Aveiro, e a Polícia Marítima não podia despedi-lo ante de ser julgado. Foi enviado para Ponta Delgada para esperar pelo julgamento. Depois foi preso, coitado de mim.) 

1987 - INDOMÁVEL – 18 meses à espera da subvenção do turismo dos Açores (prazo previsto: 3 meses); 6 meses à espera da licença de charter.
(Adenda: passo alguns pormenores sobre episódios caricato-lamentáveis, um dos quais me obrigou a meter-me num avião para vir explicar ao então DG do Pessoal do Mar - que decerto por causa disso foi evoluindo na carreira até chegar a IPTM - que não era por ter três camarotes que o INDOMÁVEL podia ter três tripulantes. Se assim fosse, os passageiros teriam de dormir no convés, coitados.) 


1988 - DON VIVO – Arrestado 4 meses na marina de Vilamoura, devido à falta de reconhecimento numa assinatura. A embarcação era francesa, o armador francês, e a Polícia Marítima portuguesa não tinha, quanto a mim, autoridade para arrestar a embarcação por esse motivo.

1989 - “SCARLETT” – 2 anos (dois anos) à espera de uma licença de charter, devido à “falta de um certificado de estabilidade dinâmica”. Não se obteve a licença. A embarcação era construída de série, foi um dos grandes sucessos do estaleiro Fontaine Pajot, havia centenas a navegar, e se as autoridades francesas tinham julgado que a estabilidadade dinãmica da embarcação era suficiente, as autoridades portuguesas poderiam fazer o mesmo.

Por outro lado, houve um pedido de suborno claro e explícito da parte do então IGN ao qual não acedi - verbatim: “O BMW da minha mulher está avariado e não tem reparação. Preciso de um novo” "Um BMW avariado? Que curioso! Eu ando de Fiat e nunca tive nenhuma avaria", ceci expliquant peut-être cela. (O senhor tinha dado um passo grande; às outras empresas pedia queijos e peças de bronze).

Multa de 250 contos por charter sem licença.

1990 - “--------” (Não me lembro do nome. Era um monstro alemão de 50 toneladas de deslocamento para 16 metros de comprimento f-a-f. Vinte anos de navegações constantes. Olhava-se para aquilo e tinha-se pena do ciclone que o encontrasse no caminho) - 2 anos à espera de uma licença de charter. Era preciso uma vistoria, e não se podia fazer uma vistoria sem os planos de construção de uma embarcação. Note-se que obtivemos os planos, mas não eram os planos de construção. Em nenhuma parte do mundo civilizado se pedem os planos de construção a priori. Pedem-se se alguma coisa parecer mal ou suscitar dúvidas.

Pedi que o IGN fizesse uma licença temporária para navegação no Tejo no Verão, enquanto esperávamos a licença definitiva. Foi recusada. Ao fim de dois anos os alemães foram-se embora.

2002 - “ZONACAT” – 3 anos à espera de uma licença de charter. As razões foram o mais variado e disparatado possível (um inspector do IPTM quis obrigar-me a condenar vigias de emergência, por exemplo). Na altura era frequente os inspectores do IPTM terem empresas a quem nos aconselhavam a pedir o registo das embarcações. Caso esse “conselho” não fosse seguido, os prazos dilatavam-se de uma forma inconcebível.

O caso do ZONACAT foi tão disparatado, tão insensato, que uns anos mais tarde pedi para consultar o processo no IPTM. Tinha “desaparecido”. Seria talvez interessante ver se esse desaparecimento se mantem.

Omito a partir daqui porque os prazos começam a ser "razoáveis": meros meses. Faltam duas coisas: por um lado os erros de gestão que fiz ao longo destes anos. Foram muitos, e foi um só: ter continuado. Devia ter aprendido e não aprendi. Ainda não aprendi.

A outra é... a outra que se lixe. Gostaria que isto mudasse, ponto final parágrafo.

15.2.11

Estranha forma de humor

Os nossos deputados poderiam talvez fazer humor um bocadinho mais barato, não? E já agora menos ofensivo (se bem depois daquele que se queixava de não ter dinheiro para comer seja difícil)? 

Serviço Público - Restaurantes Le Marin

A Paillote Cayali é um digníssimo restaurante sito na praia, a menos de meia dúzia de metros da água. É um dos meus locais favoritos no Marin. Gosto de lá ir ver navios (enfim, na verdade não são navios; são embarcações de vela, centenas delas, fundeadas na baía mesmo à frente do restaurante); e ouvir música, frequentemente muito boa.

O restaurante Paillote Cayali avisa algures os seus clientes de que não faz crédito; mas não os avisa de que tão pouco serve à mesa. Uma pessoa senta-se nas mesas (de plástico branco, tal como nas nossas esplanadas e praias, infelizmente) e espera tempos infindos; se não tem sede ou fome, levanta-se e vai-se embora; caso contrário, levanta-se e vai ao balcão, onde é recebido por um senhor que não fala e não exprime o mais pequeno sinal de ter percebido o que lhe dissemos. Estas regras têm uma excepção notável: as pessoas que acumulem as qualidades de cliente e amigo do senhor são atendidas, ouvidas e faladas. Mas são as únicas.

Nunca comi nada de muito sofisticado na Paillote Cayali: frango ou entrecosto grelhados e – não sei se é memória se sonho – umas accras de bacalhau. Tudo muito para lá do correcto, a raiar o excelente. Quando chega o momento de pagar essa impressão mantém-se: a Paillote Cayali é um excelente restaurante, híbrido de self-service e restaurante com serviço de mesas (é o senhor que traz os pratos à mesa. Um dia, manda a verdade que o diga, até lhe consegui arrancar uma frase completa: “as accras são apenas para as pessoas que comem” - ou seja, para as pessoas que almoçam ou jantam. Foi na primeira vez que lá fui, e porque insisti bastante: não percebia porque não havia accras num sítio tão agradável e tão apropriado ao seu consumo. Nunca mais lhe consegui arrancar uma frase completa).

Hoje vim comer um frango grelhado. As embarcações estão no seu lugar, muitas delas com a luz de fundeadouro acesas – planetas imóveis, almas penadas agarradas ao fundo. Os cascos, brancos na sua esmagadora maioria, traçam uma linha clara entre o negro do céu e o da água, tão semelhantes. Na praia a água é transparente, e como não há vagas e se vê bem o fundo a transição entre a areia seca da praia e a que está coberta pelo mar prolonga-se alguns metros.

Seria injusto – e um grande erro - não incluir a Paillote Cayali na vossa lista de restaurantes do Marin, se por acaso por aqui passarem.

Cultura geral

Hoje descobri que Ronaldo e Cristiano Ronaldo não são a mesma pessoa. Há quem ache que não saber estas coisas é falta de cultura geral. Eu concordo.

14.2.11

Fragmentos

"Les choses sont ce qu'elles furent et ce qu'elles furent en fait ce qu'elles seront, cercle dans lequel je me trimballe et trimballe mon pour ainsi dire bagage."

Cida

Gosto muito do posfixo “cida”, como em espermicida, por exemplo; ou suicida, a mesma coisa em mais radical. Devíamos todos, homens e mulheres, andar com um espermicida no bolso e ser capazes de, quando o momento chegar, resistir à tentação de não o usar. Evitaríamos assim uma enorme quantidade de suicídios.

Redução

Escrevo “seduzir uma mulher” no bloco-notas do meu telefone portátil, e ele transcreve “reduzir uma mulher”.

É o contrário, estúpido.

Amor

Eu ouvi-a claramente dizer-lhe “és um amor” e pensei “estás lixado, meu caro; acabas de perder as possibilidades todas de a levar para a cama. Tanto esforço, tanto sorriso, tanta doçura para nada...” As mulheres são seres pragamáticos que detestam redundâncias. Se já têm um amor à mão não o vão fazer.

À flor da pele

As pessoas dizem que têm os sentimentos à flor da pele mas não têm. São palavras, só palavras. Tenho vontade de ti, por exemplo, é uma expressão composta por palavras. Bonita, sem dúvida: tenho vontade de ti, toda tu e não apenas uma parte de ti, seja a parte qual for. Quero-te toda e ao mesmo tempo. Sentimentos? Não: palavras.

Os sentimentos nunca têm pressa, contrariamente às palavras, que por vezes parecem uma matilha de cães selvagens. Para um cinófilo há um sentido – isto é, uma beleza – nas palavras que os cães ladram; para mim a beleza está nas palavras por detrás das quais se escondem os sentimentos. Ou que, por vezes, largam a correr à desfilada e param todas à porta da pele, à flor da pele (ou, noutros contextos, à flor d'água).

Os sentimentos não estão nunca à flor de coisíssima nenhuma, e nunca têm vontade de ninguém.

Os românticos acreditavam que as palavras são a face visível dos sentimentos, ou que estes nasciam (e desaguavam) nessa coisa mítica chamada natureza, ou que os sentimentos... tretas, meu amor. Palavras. Só palavras.

E às vezes uma pele, à flor das palavras.

11.2.11

Bondade

A bondade seria uma arma contra a burguesia, se burguesia fosse sinónimo de boa consciência, autonomia, independência, sucesso e todas essas coisas contras as quais a bondade seria uma arma, se fossem sinónimo de burguesia.

Assim não sendo, a bondade é uma arma contra tudo o que não é tão bom como ela: uma maldade, a bondade. Há aproximadamente dois mil anos que o tentamos ignorar: a bondade é uma arma.

Cepticismo, objectivos

F. está deitado de costas numa cama larga, de casal. Tentem imaginar o cenário: uma cama king (ou queen?) size, um tecto de madeira, paredes nuas. Não sabemos se é um quarto de hotel, o quarto da casa onde mora F. , um quarto onde está de passagem.

Sabemos que F. está deitado de costas, braços abertos e olha para um ponto no tecto que seria, pensava ele, o ponto para onde olharia se quisesse olhar nos olhos as mulheres que já ali, naquele preciso sítio, estiveram.

“Ponhamos de lado as outras e concentrêmo-nos”, diz, “nas significativas, relevantes, importantes. Imaginemos que as mulheres que restam são vectores e que esses vectores apontam para um alvo. As questões são: apontam? Se sim, onde está esse alvo?”

F. não sabe. Tem 40 anos, tenta dar um sentido a tudo o que até ali viveu. É solteiro e gostaria, como diz em todos os garden parties onde vai, de “se casar e ter filhos”. Ninguém o leva a sério: aos quarenta anos um homem normal, com um inegável sucesso na sua vida profissional, bonito, culto, inteligente não quer “casar-se e ter filhos”. Quando muito, quer seduzir uma senhora que acredite em tais patranhas.

F. concorda parcialmente com essa leitura céptica da vida. Mas sabe que não é inteiramente justa: que fazer, daqui a meia dúzia de meses, com as “senhoras que acreditam em tais patranhas?” F. pensa que as únicas mulheres amáveis são as cínicas, as incrédulas, as que já viram tudo, estiveram ali e fizeram isto e aquilo. Essas, justamente, são as que não acreditam em F.

Um análise...

...que subscrevo inteiramente. É pena ter durado tanto tempo, porque as diacronias em política são chatas (sobretudo as diacronias "para trás") mas enfim, tudo tem o seu tempo.

Africanidades

E ainda há quem duvide da nossa alma africana.

"Ver para crer"

10.2.11

Infinito

Uma boa ideia de infinito é a quantidade de erros que podem ser feitos numa vida; ou a qualidade deles.

TGV

"Madrid - ida e volta 25Eur. Preço final, tudo incluido!"

"Coisas de países pobres"

Este post faz-me lembrar uma das coisas que me levam a ter uma admiração sem fim pela política suíça. O Governo Federal suíço é composto por 7 pessoas, dos quais uma, rotativa e anualmente ocupa o posto de Presidente da República.

Cheguei à Suíça em 1979 e desde aí já houve pelo menos três votações para permitir aos ministros contratarem secretários de Estado (um por ministério). A resposta do povo, prenhe de bom senso é sistematicamente "Não". Numa das votações o governo tentou um expediente que raiou o confrangedor: secretários de estado a meio-tempo, com um salário patético (para a Suíça, claro). A resposta foi "não".

O argumento dos promotores do "Não" é sempre o mesmo: "ninguém vos obrigou a irem para o Governo. Se acham que têm muito trabalho, saiam". Até agora, que eu saiba, ninguém deixou de ser ministro argumentando excesso de trabalho. E a Suíça não está muito mal.

"Filhos e enteados"

"Não seria bem mais simples baixar os impostos e os chamados “custos de contexto” para todas as empresas?"

Seria. Mais simples, mais justo e - sobretudo - muito mais eficaz. É por isso que não há a mais pequena probabilidade de vir a acontecer.

Instruções

Alda era uma miúda pequena, magra, com um grande par de mamas . Uma combinação à qual eu, que sou gordo e grande (e quase velho: um homem de sessenta anos não é velho, hoje em dia), resisto mal. Tinha menos 20 (e poucos) anos do que eu; tentei várias vezes viver com ela, apesar de todos os dias acordar com vontade de lhe dar uma chapada (só não dava por causa dessa porcaria dos jornais, um homem na minha posição já não pode dar-se a certos luxos).

Não tinha cabeça nenhuma, a mulher; dizia-lhe as coisas vintes vezes e era como se estivesse calado. Ou pior ainda: como se lhe tivesse dito o contrário do que disse. Era de perder a cabeça, mas mesmo assim aguentei-a e dei-lhe de comer e dinheiro e roupa e um carro – tudo, dei-lhe tudo (enfim, com o prédio do Príncipe Real teve sorte, porque o malandro do notário – agora tenho a certeza de que também andava metido com ela; cada vez desconfio mais que me enganava com toda a gente – não conseguiu anular a doação a tempo. Disse ele; eu não acredito. Se não, agora veria o prédio por um canudo, essa é que é essa).

Foi num jantar que dei lá em casa. Estávamos a falar dos pratos favoritos de cada um. Isto pode parecer conversa trivial, conversa de chacha; mas, meus caros, quando os vossos convidados juntos representam mais de 1% do PIB português não há conversas de chacha.

Eu estava farto de dizer à Rita que gosto das batatas fritas grandes. “GRANDES, percebe?” - Tinha que lho gritar cada vez que combinávamos um menu que incluísse batatas fritas. E a porcaria das batatas (descupem, mas ainda estou fora de mim) lá vinha pouco maior do que batata-palha. “Rita, o peso mínimo para cada pedaço de batata crua é 40 gramas. Q-u-a-r-e-n-t-a g-r-a-m-a-s, percebe a menina?”

Ela dizia que sim com a cabeça, fazia-me uma festa no braço, olhava sugestivamente para um pouco abaixo da minha cintura – e pronto, eu parava de gritar e ela lá ia à sua vida.

Até ontem. O tema era, como disse, os pratos favoritos de cada um; quem começou a conversa foi o Bertrand (um francês dono de uma cadeia de pronto-a-vestir): falou em foie gras, e essas coisas que são de esperar da parte de um francês. Até que chegou a vez do Ramiro: “eu vou surpreender-vos; o meu prato favorito é...” fez a pausa da praxe, “batatas fritas. Mas grandes, batatas fritas grandes. Venderia a boa metade da minha familia, se não estivesse já vendida” (piscou o olho à assistência. Pareceu-me que... Enfim, não interessa) “por um bom prato de batatas fritas grandes”.

Eu fiquei mortificado, como podem imaginar. E logo o Ramiro, a pessoa que eu queria interessar para uma ideia de negócio que tive há uns tempos e que me parece uma oportunidade única (uma escola de sopradores de vidro, se quiserem saber). Tentei balbuciar qualquer coisa, “Ó Ramiro, eu também … eu … desculpe... “ mas as palavras entaramelavam-se-me todas. Até que lá consegui dizer “Vê, Rita, quantas vezes lhe tenho dito que as batatas fritas devem ser grandes?”

E foi aí que aquela estúpida se volta para mim com uma frieza extraordinária, um sorriso lindo na cara, e responde “António Francisco, estou-me completamente nas tintas para o tamanho das batatas fritas; há outras coisas cujo tamanho é muito mais importante”.

Pu-la a andar, como imaginam. Não podia fazer outra coisa. E hoje vim para a casa da Praia das Maçãs escrever um livro de instruções para a próxima. Não estou para perder outra vez património por causa de um par de mamas e de batatas fritas.

Nove anos

Para além de todos os aspectos humanos, as únicas coisas que o caso da senhora que morreu em Sintra há nove anos demonstram é a velocidade à qual as nossas instituições trabalham, e o respectivo modus operandi.

Adenda: é nestes momentos que me pergunto de que é feito o amor por um país.

Leadership

O que é melhor, numa situação de crise? Mentir e dizer que tudo está bem, Madame la Marquise, ou dizer a verdade, como Stephan Elop, CEO da Nokia?

Sugestão

Nos países tropicais, o lugar para as pessoas que fumam devia ser o interior, e não o exterior.

9.2.11

Renata

Não sei se ainda existe um bairro em Atenas chamado Plaka. Antigamente era onde ia beber café “grego” (as aspas servem para assinalar o cuidado necessário para não se dizer “turco”. Arriscávamo-nos a ser sumariamente expulsos do local, se cometêssemos esse erro de base) acompanhado por um brandy áspero. Nos passeios estreitos velhos sentavam-se horas e horas a discutir política. À noite iam para casa e a Plaka era invadida pelas hordas de turistas “intelectuais”, que transportavam dentro de si, todos, um Leonard Cohen à espera de ser descoberto e sonhavam com a autenticidade.

Ia lá encontrar-me com uma jovem checa, ou eslovaca – não me lembro, nessa altura não havia diferença – muito loira, muito bonita, chamada Renata. Assim mesmo – Renata. Se calhar era romena, não sei.

Alta, magra, estudara uma coisa qualquer que terminava em “logia” e começava por psico, antropo, sócio ou algo no género. Encontrávamo-nos ao fim dos respectivos dias de trabalho – ela trabalhava naquilo a que agora se chama um hostel, e na altura pensão barata; e eu num restaurante onde um grego obeso e mudo me explorava selvaticamente; em inglês o homem só sabia grunhir, mas em grego falava num tom odiosamente meloso. Não percebia o que dizia aos clientes, mas via bem a atitude dele, os sorrisos deles. Nojento.

Encontrávamo-nos na Plaka, Renata e eu, sempre no mesmo sítio – um café do qual o dono tinha vivido nos Estados Unidos e que passava jazz num gravador roufenho. O cheiro a tabaco – e nessa altura ainda fumava – era insuportável. Os “café brandy” sucediam-se; o cheiro a tabaco e o barulho dos copos e das conversas misturavam-se e entranhavam-se-nos pela roupa, até às tripas.

Eu estava perdidamente apaixonado por Renata, pelos seus olhos claros, pela sua voz, sobretudo: grave, rouca, directa – Renata nunca hesitava numa frase, nunca procurava uma palavra. A voz saía-lhe profunda e fluida como se tivesse estudado o que ia dizer há semanas. Ela falava um inglês melhor do que o meu, muito melhor; e eu apercebia-me claramente da sua impaciência quando procurava o termo certo, a formulação adequada.

Renata não estava apaixonada por mim tanto quanto eu por ela. Situação banal, dir-me-ão. Noventa e nove por cento da literatura desabaria, se os amores fossem equilibrados, simétricos, “amáveis”. Não são, nem na literatura nem na vida. São chatos, complexos, porcos, e a maioria das vezes cheiram mal. Continuamos a apaixonar-nos não porque o amor seja bom, mas porque a sua ausência é pior.

Renata fazia tudo para me dissuadir de a amar – excepto no amor. Ela entregava-se ao sexo como se a sua vida disso dependesse; e eu agradecia os inúmeros “café brandy” que tinha consumido, porque os cafés mantinham-me acordado e os brandies permitiam-me retardar as ejaculações (foi há muito tempo).

Eu esforçava-me: – pensava que se o caminho para o coração passava pelo corpo, ¡qué vaya!, que passasse. Mas não passava. Mal acordávamos, no dia seguinte, ela voltava à distância, à frieza, ao sarcasmo. Um dia disse-me “Não vale a pena. Aprecio os teus esforços e acho que és um tipo maravilhoso. Mas não concebo que alguém goste mais de mim do que eu”. Renata odiava-se. “Não é difícil, minha querida, encontrar quem goste mais de ti do que tu. Qualquer pessoa que lide contigo mais de cinco minutos encontra-se nessa situação. De resto, amar é muito mais simples do que ser amado, mais fácil, menos sujeito a dúvidas e hesitações. Não te peço que me ames tanto quanto eu te amo; basta que me deixes amar-te”.

Nesse dia à noite ela não veio ao encontro, e eu não a fui procurar. Era o que tínhamos combinado, logo desde o início. No dia seguinte mandei o grego passear e meti-me num navio que ia, descobri quando me acordaram, para a América Latina.


II

Renata tinha o hábito de se masturbar quando fazíamos amor. As primeiras vezes timidamente: ficou surpreendida quando eu lhe disse “não só não me importo, mas também gosto. Algumas tarefas domésticas devem ser partilhadas”. A única coisa que me aborrecia naquela relação era o abismo que havia entre o meu amor por ela e o dela por mim. Não era nada de pessoal: ela recusava-se a amar fosse quem fosse, e incomodava-a ser amada ”de mais, percebes, tu amas-me de mais, eu não mereço esse amor todo. Se te limitasses a fazer-me amor e a cozinhar para mim ter-me-ias ao teu lado por muito tempo”. “Não sou um co-inquilino, Renata”. “Es ist Schade”. Às vezes respondia-me em alemão. Como para acentuar a dureza do que me dizia, como se o inglês não fosse suficiente.

Atenas é (ou pelo menos era) uma cidade suja, feia e poluída. Os automóveis buzinavam como se a buzina fizesse parte do motor e fosse indispensável para os fazer avançar. A pensão onde Renata trabalhava era conhecida no meio dos toxicómanos: o dono, um sri lankês minúsculo proporcionava “curas de desintoxicação” sem qualquer custo para além do do quarto. A cura consistia em fechar a porta à chave e não deixar o cliente (para alguns era “a vítima”) sair de lá enquanto não lhe tivesse passado a vontade. A colega de Renata, uma dinamarquesa pequena e rechonchuda, era um caso de sucesso dessa terapia. “Devem ser raros”, disse-lhe um dia, “os casos se sucesso”. Mas a colega dizia que não. A legislação anti-droga grega era terrível, a heroína de péssima qualidade, e se a pessoa tivesse juízo era fácil não recair. Além disso, a desintoxicação era barata – e difícil e dolorosa, de facto, pelo que eles podiam tentar mais vezes, em caso de recaída (não era verdade. O dono da pensão só aceitava o mesmo cliente duas vezes no máximo). Fui ver o quarto, um dia; tinha colchões pregados à parede. “Deve ser isto que doloroso quer dizer”, pensei.

III
Foi nesse dia de manhã, enquanto tomávamos o pequeno-almoço, que lhe disse que ela não devia ter medo de ser amada – a escolha era minha, ninguém me obrigara a amá-la; e era suficientemente grande para sofrer as consequências da minha escolha. “De resto, amar é muito mais simples do que ser amado, mais fácil, menos sujeito a dúvidas e hesitações”.

Nessa noite que ela não veio ao encontro, e dois dias depois eu acordei a bordo de um tramper grego, desses que aceitavam passageiros contra trabalho e comida, a caminho da América Latina.

Razão

As pessoas que defendiam que a terra é chata tinham razão, às vezes.

Frágil

Por vezes ela dizia-me "amo-te", mas eu nem respondia. Não lhes tocava, sequer: eram "amo-te" muito frágeis, como o spaghetti de que ela tanto gostava e eu não os queria partir, nem amolecer.

8.2.11

Dormir, esquecer

Durmo como se me esquecesse, mas não esqueço. Tento, apenas; e nem sempre consigo.

Noite

Noite: meia dúzia de luzes na baía, o bar fecha, o vento agita árvores que prefeririam de longe ficar quietas. O mar ouve-se mas não se vê. Hoje acaba; mas o amanhã não começa. Ponte suspensa que todos os dias cai, mas nunca sabemos para que lado.

Indiferença

Nada disto é indiferente; o que foi, será, é conta, marca para sempre. As bóias verdes e vermelhas por onde amanhã passarei, a ilha que num dia de chuva, vento e nevoeiro me recebeu, às escuras mas mesmo assim acolhedora e quente, o restaurante onde um dia adormeci extenuado ou o beijo que me recebeu no aeroporto de Orly; a mão que me disse sim, o olhar que antes do não já o anunciava, o feliz que fui ou o triste que de mim fizeram. Somos o conjunto das coisas que foram, serão e são. Não é indiferente.

Redifusão

Urgência

Havia uma urgência na sua voz, ou melhor, uma mistura de urgência e de calma, que lhe fazia lembrar os madrigais de Gesualdo, um dia de vento forte num arquipélago grego, ou aquele momento imediatamente antes do primeiro beijo, em que tudo ainda é expectativa e já é inelutável.

(25/04/07)

António Costa e a bicicleta

Em 1983 o Parlamento Suíço elegeu para o Governo um senhor chamado Otto Stich. Esta eleição foi excepcional a mais de um título; mas, para que se saiba, esse título é que Otto Stich prevenira que só iria para o governo se fosse ministro das Finanças; e que sendo ministro das Finanças, a sua missão seria substituir o infame ICHA (Impôt sur le Chiffre d'Affaires) pelo IVA (enfim, TVA). Se o Parlamento quisesse, tudo bem; se não quisesse, amigos como dantes.

Era um caso bicudo porque Otto Stich era (e presumo que ainda seja) socialista. E na Suíça, um país regido pelo povo e pelo bom senso um socialista não é, ponto final, ministro das finanças, tal como alguém de um partido de direita não é ministro dos assuntos sociais (o que é pena, mas enfim).

Porém Otto Stich era bom, o consenso contra o ICHA sólido e, suspeito, mais ninguém queria assumir a tarefa chata de mexer num imposto na Suíça, fosse ele o ICHA. Otto Stich foi eleito.

Já aqui contei a saga da adopção do IVA - foram precisas 4 votações; e o IVA só foi aceite à quarta porque Stich se lembrou de incluir nas perguntas do referendo uma muito simples: "Se respondeu Sim à pergunta anterior (que basicamente consistia em perguntar se as pessoas aceitavam a implantação do IVA) a taxa deve ser de 4%, 4,5% ou 6%?" Enquanto esta pergunta não figurou nos formulários, a resposta foi Não. Quando apareceu, os Suíços optaram pela taxa intermédia, e o IVA substituiu o ICHA.

Otto Stich era uma personalidade peculiar, que ia para o Palácio Federal de bicicleta; todos os dias às cinco da tarde dava por findo o seu dia de trabalho e ia jogar xadrez para os cafés da praça que lhe ficava à frente. Vi-o muitas vezes, com o nó da gravata desapertado, a jogar xadrez e a falar de tudo "menos de trabalho" com os outros clientes dos cafés.

A bicicleta de Otto Stich era uma bicicleta do Exércíto, sem mudanças e que devia pesar alguns 25 quilos.

"Ideias para Lisboa: António Costa de bicicleta entre o Intendente e a Praça do Município"

PS - não me perguntem qual é a relação; não há relação. E sim, eu sei que há diferentes concepções do poder. E que essas diferentes concepções têm diferentes consequências.

PPS - é possível que haja algumas incorrecções factuais - não me lembro se foram 3 se 4 votações; e não sei se a norma de excluir socialistas do ministério das finanças ainda se aplica. Nem o DV é um jornal, nem eu tenho muita paciência para ir verificar agora.

7.2.11

Serviço público, Simplex

Na sexta-feira às nove da manhã fui ao escritório do director dos Affaires Maritimes de Fort-de-France pedir uma equivalência entre o meu diploma da Escola Náutica e o brevet Capitaine 200, o grau mais baixo das licenças para poder ser skipper de uma embarcação de recreio com utilização profissional.

Embora à primeira vista pudesse parecer que tinha direito digamos imediato e automático a essa equivalência, o assunto era um pouco mais complicado; passo pormenores, mas a verdade é que era preciso um bocado de boa vontade para reconhecer de facto aquilo que de jure (ou pelo menos formalmente) talvez não fosse simples.

Hoje (segunda-feira seguinte, para leituras posteriores) recebi, por e-mail, a equivalência. Passo, de novo, pormenores; em Portugal, a Escola Náutica pensa poder dar-me a tradução da certidão que lhe solicitei dentro de duas semanas (para obter a equivalência, submeti ao senhor uma tradução "feita por um tradutor não ajuramentado, mas operacional"). O senhor estava preocupadíssimo com o facto de eu não poder exercer a minha profissão, e pediu-me encarecidamente que lhe enviasse as coisas (a tradução, e um outro papel para ter uma equivalência a Capitaine 500, um grau superior) o mais depressa possível: ia de férias na quarta-feira e queria deixar o assunto resolvido.

Isto num país onde não pago impostos, e que não é o meu.

II

O custo do atestado de equivalência foi zero. Em Portugal, a certidão da Escola Náutica custou-me 50 euros; e uma das razões pelas quais demorei mais de três semanas a recebê-la foi não ter pago, por lapso, o euro e cinquenta cêntimos do selo para envio pelo correio. Isto num documento que me custara 50, cinquenta, euros.

O tempo e a vida, sobrevida

O tempo é reacças e resolveu ir passear para o campo porque estava farto de ver senhoras de meia-idade com cuecas de adolescente; mas tropeçou numa linha de caminho-de-ferro que por ali estava meio enterrada e ficou tem-te não caias com os braços às voltas como se tivesse a remar ao contrário, pelo que toda a gente parou a olhá-lo, sentada no café. Um cantor inventou uma canção cujo tema era Ó tempo volta para trás, um poeta declamou, numa voz esganiçada, histérica, Il faut être absolument moderne, e o tempo não sabia para que lado cair, se caísse.

Finalmente conseguiu sentar-se para descansar e se recompor. Parecia um manga-de-alpaca: não se mexia. Quando o tempo se disfarça de burocrata tudo pára, mesmo a vida, que é o único sinal visível do tempo. O mundo estava imóvel. Os peixes, que precisam de movimento para respirar, asfixiavam; o vento andava às voltas, sem alento; as cuecas de adolescente das senhoras de meia-idade deixaram de se ver. Uma vida sem tempo parece um quadro naïf: nada se mexe, nada respira, nada vibra.

No fundo o grande problema do tempo é que só sabe andar para a frente, contrariamente ao que lhe pedia o cantor. Toda a gente pensa que ele é corajoso por isso; não é. É inevitável, o que é diferente. Corajoso é o exacto oposto de inevitável. O tempo é uma mentira; a coragem não.

Aos poucos o tempo recompõe-se; a vida volta; as saias das senhoras saltitam e os seios também; o tempo distrai-se e arrota. A vida recomeça. O tempo arrota outra vez. Toda a gente olha para ele. “É a vida”, explica. Esta riposta e diz que não.

O tempo e a vida pegam-se; são um casal muito antigo. Tudo volta ao normal. Pelo sim pelo não o tempo manda retirar as linhas de caminho de ferro que estavam, descobre-se agora, enterradas nele próprio. A vida continua. O tempo decide, uma vez mais, que não vale a pena matar-se. “Sempre vivi com duas linhas de caminho-de-ferro enfiadas no peito e sobrevivi”, explica-se. A sequência "vida / sobrevida" diverte-o. A vida vê-o sorrir e diz-lhe “anda, vamos para a cama”.

“Sobre a vida”, pensa, saciado. Ela adormece, satisfeita, a cabeça no peito do tempo. Antes de adormecer pensa “este sacana fode-me como nunca ninguém fodeu”.

Rum, potassa

Numa terra chata como a potassa, dever-se-á usar o rum para a arrumdondar?

Aborrecimentos

Há pessoas que se aborrecem no mar. Eu confesso que não percebo como. Venham passar uns dias ao Marin sem poderem sequer procurar um embarque e depois expliquem-me como se aborrecem no mar.

Uma pergunta

Essa greve que por aí grassa dos transportes públicos significa que um chauffeur da Carris ou um maquinista do Metropolitano ganham mais de 1,500 euros por mês? É que se assim é, eu acho que João Miranda tem razão: a "Deolinda" que saia da Universidade, já! (E deixe o carro em casa, já agora).

Funcionários públicos: oxímoros; ou: a força e a farça

A expressão "funcionário público" em Portugal é um oxímoro. Podem ser públicos, mas funcionários não são. São um bando de prepotentes e arrogantes, "sempre com a lei na boca mas incapazes de se servirem dela para o bem público" (Miguel Castelo Branco, Combustões), que pensam que o mundo se rege pelo mesmo calendário que eles e que os seus ritmos de trabalho, perdoem-me a hipérbole, são os do resto das pessoas, e que deve ser o mundo a vergar-se aos cafés de suas excelências em vez delas, excelências gongóricas e fátuas a adaptar-se ao ritmo das pessoas que trabalham.

Dizem-me que eu tenho de aprender a lidar com esta cáfila? Recuso-me. Seria a capitulação da razão perante a força, da esperança perante a farça. Seria como aprender a lidar com a Cosa Nostra. Não devemos pactuar, não podemos aceitar.

Acho inaceitável - inaceitável e revoltante - que um funcionário público francês se preocupe mais com a minha situação  e tente resolvê-la rapidamente do que um português. E acho revoltante e nauseabundo ter de pedir a um funcionário público francês e eficaz que me faça um favor porque os "meus" funcionários públicos são uma cambada de inúteis e incompetentes.

Alternâncias

A riqueza cromática destes dias, em que a chuva e o sol alternam com uma regularidade quase de metrónomo é sublime. Quando vem a chuva a baía transforma-se numa fotografia a preto e branco, com todos os gradientes do cinzento presentes; depois vem o sol, e as cores explodem, palete em três dimensões de um pintor louco. Como se Deus fosse bipolar...

Factos e opiniões

Há dias, em diálogo no Facebook com uma senhora da esquerda que defende Sócrates, fui acusado de confundir factos e opiniões. Para mim é uma acusação grave, porque eu gosto de assentar as minhas opiniões em factos (ao contrário da esquerda, que prefere o oposto, parece-me - é uma opinião). A razão foi eu ter dito que Sócrates é uma desgraça para o país, o que para a senhora é uma opinião, não um facto.

Quanto a mim, isto é um facto; e mais: um facto quantificável. Basta pegar nos diferentes indicadores económicos, sociais, etc. e vê-se que estamos piores agora do que há 6 anos; não me parece contestável.

É igualmente incontestável que Sócrates é o primeiro-ministro de Portugal. As pessoas que defendem Sócrates dizem que não há uma relação entre estes dois factos. Eu acho que há (é uma opinião?). Seria interessante ver o que diriam se as coisas de súbito se pusessem a melhorar. Continuaria a não haver relação?

Na realidade, parece-me que sim, que haver uma relação entre o facto de Sócrates ser primeiro-ministro e o estado calamitoso do país é um facto, e não uma opinião. Se não, para que serviria um primeiro-ministro, não sei quantos ministros, secretários e subsecretários de Estado, chefes de gabinete, 14 mil organismos públicos, 230 deputados e ninguém sabe quantos Ruis Pedro Soares, Armandos Varas et al.?

Tempestades, limpidez

A tempestade chegou à uma da manhã, violentíssima. Tive de fechar as janelas do meu apartamento com vista para o vento, pela primeira vez em quase duas semanas, porque a água da chuva chegava à cama. Hoje, livre das poeiras atmosféricas, o ar estava límpido, intrigante como uma fotografia feita com lentes Zeiss.

É preciso chover, para se ver claro.

6.2.11

África, mar

Será África o mar da terra?

Chuva

A chuva prevista pelo serviço meteorológico reduziu-se - não é o verbo apropriado, creio - a três ou quatro aguaceiros, dos quais um ou dois fortíssimos; e o churrasco na praia transformou-se num almoço com o Ricardo do LUCERO no meu apartamento com vista para a Marina, para a chuva, para o vento.

Estes aguaceiros no mar são horríveis: obrigam-nos a rizar, a vestir-nos, a molhar-nos e logo a seguir o processo inverso - despir a roupa de mar, desrizar e continuar como se nada tivesse sido. No outro dia, de regresso de Sta. Margarita, vínhamos com o radar ligado e aproveitei-o para fazer uma gincana com os aguaceiros, mais do que muitos.

Em terra não: limito-me a pensar nas plantas, e a dar graças a Deus por não estar no mar.

Passé, présent

On ne refait pas le passé; mais en le revisitant on refait peut-être le présent.

Tempos e dogma

Um espírito livre nunca será do seu tempo, qualquer que seja o tempo: "on n'avance pas vers la vérité, on change de dogme, c'est tout".

[Alvíssaras a quem me ajudar a descobrir o autor deste verdade de base, que li há 20 anos e cujo autor perdi há 19 e meio.]

Citações a sul

Circo-navegação

Por muito respeito que tenha - e é muito o que tenho - pela Marinha nacional, não consigo deixar de achar confrangedor todo o reboliço à volta de uma viagem de circumnavegação que, francamente e entre nós, não teve nada de especial. É triste que Portugal esteja reduzido a celebrar viagens como esta.

5.2.11

Tragédia

A verdadeira tragédia em Portugal é que um gajo está hoje a gritar contra o Sócrates por causa do amiguismo, do regabofe, do descontrolo das contas públicas; e amanhã estará provavelmente a dizer o mesmo contra Pedro Passos Coelho, ou quem quer que seja que se siga.

Uma boa e uma má notícia

A má é "Sócrates diz que não haverá despedimentos na função pública". A boa é "Sócrates diz que não haverá despedimentos na função pública" - significa que vai havê-los, und schnell.

Cães

Nem detesto cães, nem os aprecio por aí além. Suporto-os, dou-lhes de comer quando é preciso e levo-os a passear, esteja a chover, nevar ou fazer sol. Além disso não tenho uma vida que me permitisse ter cães, mesmo que gostasse deles por aí além. Mas há uma raça que me deixa na dúvida. É esta.

Dispersos diversos

Os planos para a tarde eram ambiciosos: comprar uma baguette, accras e boudin créole e ir para casa comê-los acompanhados por ti'punch (ou vinho tinto? Eis o objecto de um intenso debate interno); e depois ou lavar o chão ou cozinhar os legumes biológicos da irmã do senhorio. Acabei a acompanhá-los com cerveja e de seguida fui ler, o que demonstra o valor das ambições e a utilidade dos debates internos.

O gajo da mesa à frente da minha ouve a mulher, que não pára de falar, gesticular, levantar-se, gritar aos cães; é magra, muito magra, demasiado magra, mas tem uma voz bonita. De vez em quando os nossos olhares (dele e meu, quero dizer) encontram-se e o dele diz-me "que queres? Todos temos de fazer sacrifícios para atingir alguns objectivos", e o meu responde-lhe "eu sei, meu velho, eu sei". Mas depois apercebo-me que não posso dizer "meu velho" porque ele tem pelo menos mais 30 anos do que ela e da próxima vez que os nossos olhares dialogarem vou mudar para "meu caro".

PS - a mulher consegue finalmente que ele lhe deite a unha e celebra dando beijos ao cão (ele levantou-se para ir à casa de banho. É um truque antigo, mas continua a funcionar como um relógio suíço).

Há dois ou três dias que sou alvo de mosquitos como nunca fui. Acho que foi da mudança para rum velho, um Clément Vieux muito acima do correcto (quando se bebe sozinho. Faz uns ti'punch demasiado sem carácter, a meu ver).

O blog estava para ser bilingue, ao princípio. Depois ficou em português, com raras incursões noutras línguas. Vai continuar assim por mais uns tempos. Ainda não deixei Portugal, e não sei se alguma vez deixarei, por muitas tentativas que faça.

Um país estrangeiro entra-me primeiro pelos olhos e depois pela boca.

É um pouco tarde...

...mas talvez não seja demasiado tarde. Depois de Angela Merkel,

"David Cameron denuncia fracasso do multiculturalismo"

Reencontro

Reencontro um velho amigo e colega de Conservatório. Tem um blog chamado Raposas a Sul, que aconselho a todos os que gostam de boa poesia (da má não há quem não goste, de qualquer forma).

Ontologia

Sou como sou, e são cinco da tarde: já não é desta que mudo.

Aquecimento global

A temperatura não passa dos 28º; este fim-de-semana vai chover. O maldito globo não pára de aquecer, e nós cada vez com mais frio.

Factos

Ver uma pessoa de esquerda, cuja relação com os factos é conhecida pelo menos desde 1917, invocar "os factos" nunca deixa de me alegrar: pode ser um sinal de que um dia a esquerda vai, finalmente, olhar para os factos. Mas também me preocupa um pouco: um mundo sem uma esquerda delirante seria tão triste como outro sem uma direita nacionalista e reacça.

Um post inabitualmente longo (mas, como sempre, de leitura perfeitamente dispensável). Podia chamar-se Mr. Smith vai para Washington; ou: apologia de Mr. Smith

As razões pelas quais não (ou raramente) entro em debates na blogosfera são várias. Algumas são facilmente confessáveis: não tenho a bagagem teórica , por exemplo, da maioria das pessoas que dizem coisas que acho contestáveis; e muito menos a prática retórica. Outras são-no menos.

Contudo, por vezes não consigo, ou não quero, conter-me; apetece-me dizer qualquer coisa. E faço-o, claro. Ninguém vai preso por falta de bagagem teórica ou de inteligência, e não insulto ninguém exprimindo uma opinião à qual faltam esses importantíssimos ingredientes – excepto eventualmente o seu excelso ego, para o que há muitos e bons remédios.

Os temas, ou as pessoas, que me fazem ter vontade de não respeitar a decisão de entrar em debates são poucos: a raiva de Palmira Silva contra a Igreja Católica, as causas que defende como se tivesse sido mandatada pelo deus da verdade (ou provocada pelo diabo da mentira); uma ou outra observação de um socialista que me parece omitir uma parte substancial da coisa da qual fala. Muito raramente contesto, por exemplo, um imbecil comunista, ou da direita reacças, nacionalista, anti-semita: não vela a pena. Em sete anos de blogosfera devem contar-se pelos dedos de uma mão os debates nos quais participei.

Recentemente, contudo, provoquei dois (vou já buscar o cilício: não posso sequer invocar o rum como motivo dessa insistência na asneira). A razão, tal como a vida, está alhures: o espanto, a admiração, a surpresa, a incompreensão, o facto de me sentir intrigado. Provoquei os dois debates (um público e o outro privado) com mesma pessoa, pela mesma razão: não perceber e querer perceber (não me parece que seja um motivo muito errado, de passagem seja dito, mas isso é outra história).

Agora escrevo estas linhas para tentar pôr ordem nas coisas que aprendi com esses debates – que foram, na minha perspectiva, mais diálogos do que debates.

Uma das coisas que me surpreendia nos escritos de Palmira Silva é a sua raiva contra aquilo que ela designa como ICAR. Eu não sou católico, nem sequer crente; aquilo que o Papa diz e faz é-me profundamente indiferente, e aquilo que as pessoas que acreditam no Papa dizem e fazem também – pelo menos até começarem a pôr bombas nos aviões ou mandarem doentes mentais suicidar-se. Mas como amanhã não é, previsivelmente, a véspera desse dia, vou, reconheço, prestando cada vez menos atenção ao que diz o Papa, onde vai, o que faz e porquê. Palmira Silva, que é tão agnóstica como eu, não: não deve haver um dia (vá, dois) em que não haja um post da senhora contra a igreja, o Papa ou as camisas-de-vénus que o Papa, aparentemente, não quer que os fiéis dele usem (se bem seja conhecida, há séculos, a indiferença dos fiéis dos papas por aquilo que eles dizem; mas isso é outra história).

Um dia enchi-me de coragem e mandei uma mensagem a Palmira Silva perguntando-lhe – a título meramente pessoal e de curiosidade – de onde lhe vinha tão forte e tão permanente raiva contra a igreja. A resposta dela começou com “Vocês, os crentes” e eu vi logo que tinha perdido o debate. Pois se eu, não sendo crente, era apodado de tal logo ab initio, de que seria chamado quando dissesse o que penso?

Um outro desses diálogos ocorreu hoje no Facebook, e era a propósito de uma manifestação que vai haver amanhã contra a homeopatia. A situação aqui é semelhante. Eu não acredito na homeopatia, acho aquilo uma treta sem fim – mas pergunto-me por que raio de carga de água as pessoas que acreditam não o hão-de poder fazer em paz? Afinal de contas a homeopatia não é mais, nem menos, treta do que muitas outras coisas, do socialismo à psicanálise, passando pela acupunctura. Mais uma vez saí do debate esmagado, acusado de pensamento mágico e de não ver a necessidade de combater a mentira.

É por isso que vou tentar, neste post, pôr ordem nas minhas ideias a respeito das causas e dos debates. Assim resistirei melhor, suponho, à tentação de falar.

A primeira coisa que me fascina nos “activistas” é isso mesmo: a actividade. Os activistas sentem-se na obrigação de defender a verdade e combater a mentira. Não sei porquê, nem quem os mandatou para tal. Por que raio de carga de água se sentem na obrigação de manifestar os senhores e senhoras que amanhã o vão fazer contra a homeopatia? O que os motiva? O bem público? Mas a homeopatia não faz mal a ninguém - excepto eventualmente aos seus adeptos, mas isso não é razão suficiente para meia dúzia (ou meio mihão) de pessoas o irem gritar no jardim. A atitude dos paladinos da verdade faz-me pensar numa pessoa que, num café, ouvisse um vizinho noutra mesa encomendar qualquer coisa de que ela não gosta; e, sem para tal ter sido solicitada, vai a correr dizer ao cliente "olhe que o prato que você encomendou não é bom (ou é caro de mais para o que é, ou seja o que for)”. Eu aceito que seja feito de boa vontade, e que até pode ser útil; mas detestaria ver alguém intrometer-se na minha escolha (a menos que fosse o José Quitério, claro).

Outra coisa que me deixa totalmente confuso é a escolha das causas. Porquê umas e não outras? Porquê a homeopatia e não a astrologia? Eu acredito que há causas que devem ser defendidas – mas acho que essas causas, antes de serem defendidas devem ser avaliadas, estudadas, e só depois, se for caso disso, defendidas. Por exemplo: a excisão feminina. Essa é uma causa pela qual se deve lutar, quanto a mim: ninguém ganha com a mutilação feminina (excepto as senhoras que a praticam, mas para essas podia arranjar-se uma outra fonte de rendimento sem dificuldade de maior, creio), é uma prática bárbara, cruel, inútil. Já, por exemplo, o trabalho infantil é menos líquido. Hoje, como consequência da adesão de milhões de consumidores à luta contra o trabalho infantil, as ruas das cidades do terceiro mundo estão cheias de miiúdos que, para substituir o dinheiro que ganhavam nas fábricas, são obrigados a prostituir-se. E as crianças sempre trabalharam, e trabalharam e estudaram, sem que daí lhes adviesse muito mal. Proibi-las de trabalhar teve consequências muito mais terríveis para elas do que, por exemplo, conciliar trabalho e estudo.

A validade de uma causa mede-se, também, pelas suas consequências – as directas e as perversas. É por isso que eu, na minha ingenuidade e boa-fé, acho que se deve estudar bem um assunto antes de o defender ou combater. E deve haver critérios mais ou menos objectivos: uma determinada prática é voluntária? A quem pode prejudicar? Quais as consequências se se conseguir erradicá-la? E assim por diante.

A impressão que tenho é que os activistas, os paladinos da verdade, os dizimadores da mentira, não escolhem bem as causas. Ou então escolhem-nas mal, o que vem a dar no mesmo.

Uma outra coisa que me intriga é a atitude dogmática dos activistas. Até aos anos 80, um anticomunista era um ser primário, idiota, cuja única aspiração na vida era explorar os fracos e oprimidos e defender os capitalistas. Não podia haver outra razão para se ser anticomunista. Hoje, uma pessoa que emite uma dúvida sobre a eficácia, sei lá, do salário mínimo, das leis de protecção do emprego ou das leis da renda (esta está a deixar de ser consensual, finalmente; mas ainda há dez anos contestar a lei das rendas era o mesmo que colocar um painel nas costas a dizer “eu defendo que todos os inquilinos devem ir dormir para a rua”) é imediatamente acusada de querer que todos os “trabalhadores” vão para o desemprego, ou que as pessoas comecem a ser pagas com côdeas de pão seco.

O mesmo se passava, por exemplo, com o multiculturalismo: ninguém imagina a quantidade de horas que passei a rebater, com colegas de trabalho que não tinham sequer a desculpa de não saberem, atitudes do género “não há nada a fazer, é a cultura deles e temos que a respeitar”. (Muitas vezes não é sequer a “cultura deles”, são práticas recentes impostas pela guerra, pela fome ou por outra coisa qualquer, mas isso fica para outra ocasião). Verdade seja dita que esses debates só tinham lugar com colegas recentes. O que andavam no humanitário há muito tempo já não eram relativistas. Deve haver uma razão para isso, pensei – afinal, perder uma atitude paternalista para com os outros povos é quase como perder a virgindade: já não se pode voltar atrás.

É claro que uma pessoa pode defender a inexistência de um salário mínimo porque acha que é melhor para os empregados com poucas qualificações; mas isso é impossível debater (e devo reconhecer que a direita muitas vezes se deixou arrastar. Foi preciso o Giscard dizer a Mitterand que ele não tinha o monopólio da compaixão para que alguns olhos se abrissem à direita). Mas isso é uma coisa que os activistas não conseguem debater – se eu disser alguém que a lei laboral é perniciosa, esse alguém vai pensar que eu estou a dizer “perniciosa para os patrões”. Não é: é perniciosa para os empregados. Mas isso não é “ouvível”, perdoem-me neologismo bárbaro, pela maior parte da esquerda blogosférica. E devia poder dizer-se que determinadas práticas são inaceitáveis, ponto final parágrafo – para além da excisão, que essa é mais ou menos consensual.

É por isso que eu acho tristes os debates entre blogs. Não são debates. É uma cacofonia de surdos a acusar os outros de serem surdos, o que é no mínimo paradoxal.

O pior é que os “activistas” - que frequentemente escolhem mal as causas que defendem, não as estudam correctamente (muitas vezes) e que são, de uma forma geral, intolerantes a quem não pensa como eles – os activistas, dizia, afirmam estar a defender a ciência, o progresso (e claro, a “verdade”). É provavelmente isso que explica – e justifica, a seus olhos – a sua actividade: a luta pelo bem, pela verdade e contra a mentira faz parte do “código genético da esquerda”.

O argumento seria recebível, mas na minha opinião cai por terra quando vejo que muitos desses auto-proclamados exterminadores da falsidade são pró-Socrátes. Como é que pessoas vítimas da cegueira partidária, que vêem o mundo através de óculos cor-de-rosa e se protegem da realidade com uma espessa gabardine ideológica querem que os levem a sério quando dizem que estão a lutar contra a mentira? Por Deus, eles não vêem o PS de hoje, o regime de amiguismo e incompetência, o descalabro que provocou no país, o regabofe que é a norma geral da vida pública em Portugal, e querem ir para a rua lutar contra a homeopatia? Por amor de Deus!

Por mim, continuo a defender um (creio) saudável cepticismo, banhado em empirismo – isto é: ver as coisas e pensar que elas não são tudo o que vemos. Bem sei que é uma atitude à la Mr. Smith, falha de acuidade intelectual e de bagagem teórica. Mas faz menos mal, aposto, do que querer fazer o bem a todo o preço.

Isto dito, é óbvio que se as pessoas querem ir manifestar-se contra a homeopatia têm todo o direito de o fazer; como de manifestar-se contra o sol, o vento ou o sal na água do mar. Mas não deixa, na minha infundada opinião, de ser um bocadinho pateta.

4.2.11

Graças a Deus é sexta-feira (Deus deve ser muçulmano)...

...e o Marin anima-se. Começa no Mango Bay, cuja Happy Hour (duas por uma) é dedicado à cerveja Lorraine;  pessoas montam stands de grelhados em todo o lado - hoje até vi uma novidade, bratwurst, de que tanto gosto; o Zanzibar tem música ao vivo.

Só falta o vento, hoje outra vez.

Prosélitos

O furor apostólico de certas pessoas não deixa de me surpreender. Que raio de carga de água leva os "activistas dos direitos dos consumidores" a "participar numa overdose maciça de produtos homeopáticos"? Se não gostam, alguém os obriga a tomá-los?

PS - não sei se é preciso acrescentar, mas acho a homeopatia uma treta de todo o tamanho; não é obviamente isso que está em causa.

PPS - será que um dia os vamos ver a manifestar-se contra a psicanálise, cujo grau de treta excede largamente (em âmbito) o da homeocoisa?

Esparsos diversos dispersos

Saí de Parnaíba com o mínimo de roupa. Decidi não trazer um cinto: o rum e a cerveja torná-lo-iam certamente dispensável. Enganei-me. Tenho de aplicar-me mais e melhor, para não andar de calças na mão.

Reunião com um burocrata. Diz-me que pode fazer o que lhe peço, "para que v. possa exercer a sua profissão". Depois pede-me que me despache a entregar-lhe o papel que falta (uma tradução do certificado da Escola Náutica): "na quarta-feira que vem vou de férias e gostava de deixar isto resolvido antes de partir". Os franceses queixam-se da burocracia. Eu nunca me queixarei de um sonho. (Ah: e é gratuito. Tremeu, quando lhe disse que tinha pago 50 euros pelo certificado da Escola: "a nossa burocracia pode ser pesada, mas é gratuita"). Tudo isto com um sorriso e uma simpatia inexcedíveis. Não é pesada, Monsieur. Talvez o seja para um inglês, mas para um português é de uma leveza insuspeitável.

Entro de novo na Librairie Antillaise, desta vez a de Fort-de-France. Compro livros ao acaso, outra vez: Tolstoi, Tabucchi, Toni Morrison. Anteontem foram Delerm (uma delícia de um pequeno livro sobre um blogger involuntário), Leiris, Jean-Claude Carrière. Nunca porei a leitura em ordem; e muito menos ordem na leitura.

Hoje vejo, pela primeira vez, Fort-de-France com simpatia. Não sei porquê, mas suponho que seja devido a não sei quantos dias no Marin. Ou ao vento, que regressou. As mulheres continuam bonitas, as ruas estreitas e apinhadas, a arquitectura um misto de antigo colonial e moderno sem estilo;  talvez seja por causa do burocrata...

"O rum enlouquece", dizia-me o Bernie em St. Martin. Talvez; mas não engorda.

Alguns debates sobre o ti'punch estão, para mim, encerrados (prova da minha grande flexibilidade e abertura de espírito). Por exemplo, a inclusão ou exclusão de gelo, ou a superioridade do xarope de cana ao açúcar em grão. Outros não: prefiro um ti'punch feito com rum novo, branco, a um com rum velho, castanho. Mas não consigo dizer que este último é mau. É um bocadinho como escolher entre uma mulher bonita, mas estúpida, e outra feia mas com um sacré caractère. Há um rum que seja como uma mulher bonita e com feitio? Há: o El Dorado 15 anos, mas esse é bom de mais para se fazer ti'punch. Ou o Mount Gay, mas não fala francês (pelo menos aqui na Martinique. Em St. Martin existe e os barmen chamam-lhe, tristemente, "Monguê").

Talvez tenha encontrado um barco com o qual voltar ao Brasil, em Março. É uma das viagens mais chatas da navegação à vela, ir das Caraíbas ao Nordeste do Brasil nesta altura do ano (nas outras também, de passagem se diga, só que em vez de muito vento contra há pouco vento contra). Seria um sonho, como um burocrata simpático ou a introdução do conceito de low cost nas companhias de aviação destas ilhas.

Hoje fui ver a igreja de Marin. O altar veio de um barco que ia com ele a caminho do Peru, mas se afundou por aqui durante um ciclone. Os marinheiros venderam-no à comunidade local, e por aqui ficou. O tecto foi construído por carpinteiros navais - os únicos que por aqui existiam na altura, suponho - e parece o casco invertido de um barco. É lindo. O da de St. Anne é igual, mas mais pequeno.

3.2.11

Vento, amor

Um dia dir-te-ei que te amo como o mar o vento, porque o ajuda a ser ele próprio.

Vento, mar, etc.

Sem vento o mar parece um lago, e um lago uma banheira. É o vento que dá ao mundo a sua verdadeira dimensão.

Vento, árvores

Uma das vantagens do vento é que olhamos para as árvores e parece que estão a dizer-nos adeus; como se o vento as ajudasse a perceber que estamos de passagem.

Palavras, sonhos, vento?

Palavras leva-as o vento, diz o ditado. E quando não há vento? E aos sonhos, que lhes faz o vento? Leva-os também? Não, pelo contrário constrói-os, consolida-os, dá-lhes corpo e força. Mas se as palavras são sonhos e os sonhos palavras, como os distingue o vento? Como os distinguimos nós, pedaços de palavras sonhos de vento?

Hallelujah

"Alemanha e França vão exigir limites de défice na Constituição de cada país europeu."

Esperemos que seja verdade, e sobretudo se concretize. Afinal foi para isto que apoiámos a entrada na Europa, não foi?

Vento

Não há vento. Há muito que não havia um dia assim, "tão sem vento". O Marin parece diferente; parece, sei lá, um beco sem saída. O vento traz com ele uma capacidade onírica, uma quarta dimensão? Nada disso. O vento limita-se a tornar habitável o que sem ele não passa de um buraco. Seja o Marin, Genève ou o que for.

Aí, mulheres valentes

Até quando

Esta escalada na selvajaria era mais do que previsível. Esperemos que a por assim dizer "comunidade internacional" reaja depressa e em força.

Kein limits, puppy

2.2.11

Empirismos de base

Uma mulher só se separa de um homem se tiver a certeza de que o magoará; se achar que lhe é indiferente espera que seja ele a tomar a decisão.

Pachorra e droga maradas

"Pachorra" e "Droga marada".

Vale sempre a pena pôr estas pérolas lado a lado, não vão as pessoas, coitadas, equivocar-se.