30.9.20

Tonya

Tenho sessenta anos e vivo na casa onde nasci. É uma vivenda de dois pisos. Em baixo, sala de jantar, sala de estar, cozinha, despensa, casa de banho de hóspedes, quarto da criada e respectiva casa de banho. Em cima, três quartos, duas casas de banho, um hall grande em torno do qual se dispõem os quartos. Arrumações em cima e em baixo. A casa é espaçosa sem ser enorme, confortável, um grande terraço dá-lhe uma vista magnífica para o mar, ao qual o olhar chega depois de atravessar parte da cidade. Pouco tempo após a morte dos meus pais — foram os dois com um pequeno intervalo —, acrescentei-lhe uma cave com uma divisão especial para vinhos, temperatura e humidade controladas, rouparia, uma suíte que serve de quarto de passagem, biblioteca, arquivo e fourre-tout, como dizem os Franceses. 

Tonya tem quarenta anos e vive aqui há vinte. Viaja mais do que eu: é antropóloga, faz investigação no terreno, dá conferências e formação nos quatro cantos do mundo. Eu pouco saio. Sou engenheiro civil, faço cálculos e projectos para os arquitectos que mos pedem, para uma ou outra autarquia. No princípio da minha vida profissional, viajava bastante, mas o tempo permitiu-me seleccionar os projectos, e agora a ter de sair só aceito encargos que me permitam vir dormir a casa todas as noites. 

Não falei ainda do vasto jardim nem do carvalho que lá está há mais de um século. Já lá vamos. Não tenho cães nem gatos. Nunca precisei de me sentir o Napoleão fosse de quem fosse e não gosto de seres que ou são mal-educados ou são desprovidos de vontade. Aos gatos, não atribuo nenhuma virtude mágica em especial. São mamíferos e desenvolveram características que lhes permitem viver e prosperar num determinado ambiente. Se há magia, é na evolução, não nos bichos. 

Tonya veio viver para aqui quando começou o curso. Era filha de uma vaga amiga ou familiar de Paula, a minha mulher. Já não estamos casados. Paula morreu cedo e triste, coisa a que não consigo esquivar-me. Nem ao carvalho, de resto. Mas esse vejo-o todos os dias e não se mexe. Era professora de Psicologia. (Na universidade em que Tonya estudava, inevitavelmente. Só temos uma universidade na nossa cidade. Já lá vamos.) 

Para mim, o confinamento obrigatório não foi uma mudança radical de estilo de vida e de início até o acolhi bem. Estou sozinho. Tonya foi apanhada pela suspensão das viagens aéreas numa ilha qualquer do Pacífico Sul, onde orienta uma pesquisa, ou coisa que o valha. Conseguiu arrendar uma casa na cidade in extremis, antes de os voos serem suspensos e os hotéis fecharem. Tem Internet e falamos duas vezes por dia. A diferença horária é de dez horas: temos a noite e o dia trocados. As minhas saídas eram poucas, mas regulares: café de manhã, compras, copo antes do jantar, uma aguardente depois. Nunca lhes atribuí importância nenhuma: uma forma de a casa respirar, suponho; expirava-me e inspirava-me, reflexa e regularmente. 

Quando não está no estrangeiro, Tonya trabalha na faculdade e pouco pára por aqui. A vaziez da casa não me exaspera. É assim que a vejo desde miúdo, porque sempre vivi nas suas margens. Depois da revolução, os meus pais deixaram de ter criada e passei a dormir no respectivo quarto, que deixava para ir ao liceu e pouco mais. Fiz o curso em Lisboa e quando comecei a trabalhar viajava frequentemente. Só depois de os meus pais morrerem me vi a habitar a casa, deixei de distinguir os espaços entre «onde posso estar sozinho» e «onde não posso estar sozinho». Na adolescência e nos anos que se lhe seguiram, a minha mãe chamava-me «O morcego». Depois, morreu. Enfim, o meu pai foi primeiro, com um cancro. A mãe a seguir, de tristeza. Nunca conseguiu viver sem o marido e não era aos sessenta e muitos que ia começar. Só então me «mudei para casa» — a expressão é de Paula, que já estava comigo, mas ainda não vivia lá. Era da minha idade, trinta e alguns. Conhecêramo-nos na faculdade — antes de ir para Antropologia, fizera um ano ou dois de Engenharia. Depois, decidiu que o mundo não era feito de linhas rectas projectadas nem de cálculos de resistência de materiais e mudou para a nossa cidade, nesse tempo pouco mais de uma vila à beira-mar, anestesiada pelas mudanças que a modernidade lhe impusera e às quais se esquivara com uma agilidade invejável. O governo resolveu criar ali uma universidade para reter a gente nova autóctone e chamar a de fora. Olhando para trás, é fácil reconhecer que teve razão. Aposta ganha. Paula foi nos primeiros anos, começou e acabou o curso, foi ficando-se, como ela dizia. Víamo-nos regularmente e íamos para a cama irregularmente. Acabei o curso primeiro, voltei para a casa dos meus pais, ela começou a vir dormir mais vezes ao «quarto de baixo», como lhe chamava a minha mãe. Andámos assim meia dúzia de anos. Eles partiram e, um ano depois, entrou ela. 

Fui muito feliz com Paula. Ainda hoje sou, de certa forma, mas é uma felicidade triste. Melancólica. Ela vive na minha memória e em Tonya, quando fazemos amor ou nos dizemos «Olá!» assim que entra em casa vinda de uma das suas viagens. «Olá!» Tonya é alemã e costuma dizer que a nossa língua comum é o silêncio. Era aluna de Paula e, quando esta soube que precisava de uma casa, disse-lhe — depois de me perguntar — que o quarto da empregada estava livre. (As coisas têm uma prodigiosa capacidade de mudar de nome, não têm? Um nome não é parte integrante da coisa, ao contrário do que muita gente pensa. É parte de quem o pronuncia.) 

Tonya é uma mulher brincalhona, divertida, espiègle como diria um francês, a quem o silêncio serve de gabardina. Gosto do termo espiègle, porque me faz pensar em espiga e era assim que eu a via. Uma espiga loira, baixa e magra, agitada pelo vento, mas segura ao caule. A primeira vez que fizemos amor, Paula ainda estava viva. (Quando morreu, disse-me: «Trata bem da Tonya, prometes? Ela gosta muito de ti.» Nesse dia, confirmei aquilo de que desde muito suspeitava.) 

Os dias de confinamento são pesados. Não têm futuro, só passado e um bocadinho de presente, por ocasião das conversas por computador com a minha espiga direita e loira. Uso «presente» nos dois sentidos: o cronológico e o de dádiva. Fazemos amor duas vezes por dia, como o fazemos quando ela está cá. Habitualmente, as ausências são curtas: uma semana, às vezes dez dias. O computador é um mal menor, preferível à masturbação solitária. (Como se houvesse masturbações solitárias... Não há. As minhas, pelo menos, parecem-me um desfile de todas as mulheres que amei e quero amar, passando à minha frente sentadas num autocarro, umas atrás das outras. Não é que tenham sido muitas. Não foram. Mas trocam de lugares, reaparecem, às vezes fico dias sem as ver, outras é só uma a ocupar os bancos todos do autocarro.) 

Fiz um acordo com Tonya: o sexo é para se fazer, não para ser falado. Cada um faz o que quer (ou pode), desde que o outro não saiba e desde que não o magoe. A fidelidade é ao casal que nós formamos, não à outra metade dele. Nem sempre foi assim. Quando a conheci, Tonya tinha uma relação entusiástica, mas tecnicamente débil com a luxúria. Mais entusiasmo do que saber. Era preciso explicar-lhe tudo. 

— Põe uma almofada debaixo do rabo. 
— Uma almofada debaixo do rabo? 

Punha, sorria de alto a baixo e dizia:
— Que bom! 

Ou quando estava por cima de mim: 
— Não subas e desças. Isso é coisa de actriz porno. Anda para trás e para a frente. 

Às vezes, ajudava-a pondo-lhe as pernas por cima dos meus ombros e puxando-lhe pelos tornozelos. Depois, virávamo-nos, mas sem mudar de posição. Uma rotação de noventa graus que nos punha no mesmo plano. Continuava a puxar-lhe pelas pernas, às vezes mais devagar, outras mais depressa ou com mais força. Tonya aprendia depressa, soltava-se, tomava a iniciativa. Para alemã era baixa, magra e ágil, tinha o corpo seco da espiga, o ventre sorridente e acolhedor como o futuro da criança que nunca quis ter. 

Paula ainda era viva. Chegava a casa cansada, vinda da faculdade, e ia directamente para o duche. Agora, sei que ela sabia tudo. Mais: tinha sido ela a organizadora daquilo e os meus esforços para esconder a tarde de sexo que passara com Tonya parecem-me o que são na realidade: ridículos. Patéticos. 

Ando pelo mundo como um Meursault capaz de introspecção. 

Um dia, ensinei Tonya a fazer uma felação como deve ser: com a língua tanto como com os lábios, em conjunto. O sexo é uma actividade racional cujo objectivo é levar-nos a uma profunda perda de razão. Nada que ver com o amor. Enfim, às vezes tem, mas é uma relação ténue e sem causalidade: não é porque te amo que te quero; ou, pelo contrário: amo-te, mas não te desejo. Ou: amo-te e quero-te. Todas as combinações são possíveis. Cervantes andou lá perto: «Amor y deseo son dos cosas diferentes; que no todo lo que se ama se desea, ni todo lo que se desea se ama.» A minha avó ensinou-me que não se deve misturar o sexo, o amor e o casamento. Nem sequer é muito original, é preciso dizê-lo. Surpreendente é ser dito a mais de meio do século XX. Antes do romantismo e de a esperança de vida se ter prolongado algumas décadas, era a norma. Ninguém sonhava com casamentos por amor e para sempre. A avó era uma senhora muito católica, de boas famílias, nascida no final do século XIX. Enviuvou, vestiu-se de preto e que eu saiba nunca mais teve homem na vida. 

Efabulações: é-me totalmente indiferente se teve ou não mais homens. Quando a conheci (isto é, quando veio viver para esta casa), já andava pelos quase setenta. Morreu dez anos depois. Aterrorizava-me: praguejava como uma carroceira e benzia-se logo a seguir, coxeava porque tinha sido atropelada e usava a bengala tanto para nos bater (mais ameaçar do que bater) como para andar. Não autorizava a entrada a seres do sexo masculino na cozinha. Dizia-me (teria eu oito ou nove anos): 

— A cozinha não é para homens. Vai-te embora daqui. 
— Mas, avó, eu só quero um copo de água. 
— Pedes-me e eu levo-to. Um homem não entra na cozinha. — Claro está, dizia isto porque sabia que eu não teria coragem de lhe pedir fosse o que fosse fora das horas estabelecidas: pequeno-almoço, lanche matinal, almoço, lanche da tarde, jantar. 

Oito ou nove anos depois, começava eu a dar os primeiros passos nos terreiros erógenos das cachopas da vizinhança, mas foi já mais velho — teria dezoito ou dezanove anos, pouco antes de conhecer Paula, que ouvi o conselho. Levei meia vida a percebê-lo: 

— Ó homem, tu não tens juízo nenhum. 
— Avó, estou apaixonado pela... — Seguia-se um nome, que variava trimestralmente. 
— Apaixonado! Apaixonado! — O tom de desprezo que ela dava à palavra é irreproduzível. Como se estivesse a falar de um palhaço a candidatar-se a um lugar de importância social ou política. — Apaixonado! 
— ... 
— Arranjas uma mulher séria para te casares, que te trate bem e goste de ti e te faça o almoço e o jantar e te cosa a roupa; depois apaixonas-te à vontade por quem quiseres. E no fim arranjas uma ou duas para fazer disparates. Apaixonado! Tem juízo, homem. Vá, agora deixa-me ir para a cozinha fazer o jantar. 

Saía da sala e ainda ouvi um último: «Apaixonado!» Levei muito tempo a perceber o bem fundado daquele conselho e nunca o pus em prática: apaixonei-me por Paula, que não tratava de mim, não cozinhava e não sabia sequer por que lado se pegava numa agulha. E quando a rapariga «para fazer disparates» entrou na minha vida, apaixonei-me por ela também. Isto é, aquilo que para mim é «apaixonar-me»: nunca consegui declinar a palavra sem ouvir a minha avó: 

— Apaixonado! Tem mas é juízo, homem. 

As memórias aparecem como uma bola a rolar por uma escada abaixo e eu olho para elas, vejo-as chegar e ir de degrau em degrau, como se não fossem minhas. Alguém viveu isto por mim. Alguém está fechado nesta casa, alguém um dia trepou àquele carvalho e gritou: 
— Paula, faz-me uma felação! Tonya, faz-me um bico! Tu, Luísa, tu, Rita, tu, Ilse, tu, façam-me um broche! Paula! Tonya! Quero um broche! Um bico! Uma felação! Quero uma boca nesta pila! 

Passei muito tempo em cima da árvore. Gritei até ficar sem voz, mas ninguém me deve ter ouvido. Foi depois de ver um filme de Fellini. Saí do cinema impressionado e quis experimentar a loucura do tio que queria uma mulher. Tinha duas em casa e provavelmente uma ou outra num lugar qualquer, não seria justo gritar «Voglio una donna!» como o outro. (Digo que ninguém ouviu, porque a casa estava vazia. Nem uma nem outra lá estava. Nas traseiras da casa, passa uma ruela, só esporadicamente utilizada. As probabilidades de ter sido ouvido são muito baixas. Até na loucura deve haver método.) 

Chegou a noite. Tonya desperta para o seu dia de confinamento e eu continuo o meu, moeda de duas caras ou duas coroas. Só agora percebo quanto me falta a saída vesperal, o pequeno copo de aguardente que tomava antes de encontrar Tonya na cama, nua à minha espera, a agarrar-me no membro ainda mole e a dizer-me: «Dá cá a palha, vou aspirar tudo o que bebeste.» Ou: «Uma transfusão dessa aguardente saber-me-ia muito bem.» 

O sexo por computador tem piada quando é uma escolha, quando sabemos que vai terminar em breve. Agora, não. Deito-me, aponto a lente da câmara para a minha cara e falo para onde quer que Tonya tenha escolhido. Por vezes, a vagina, outras um seio ou os dois, os lábios. O corpo feminino é tão mais rico do que o masculino. Arquipélago versus península, televisão em cores versus televisão em preto-e-branco, montanhas versus planícies secas e chatas. Masturbamo-nos os dois tentando sincronizar-nos, como se estivéssemos um no outro e não simplesmente um com o outro. 

Tonya sabe que deve vir-se primeiro. «Prioridade às senhoras, meu amor.»
Pode um amor ser o que não é? Pode. Tanto como não ser o que é. A verdade é que definir o amor me parece uma perda de tempo. Não sei o que é. O que sinto por Tonya, o que sentia por Paula é diferente do que sinto pela senhora da padaria. Talvez o amor seja a diferença entre dois estados e não um desses estados. 

Ensinei Tonya a percorrer-me o corpo com os bicos das mamas, só os bicos, muito ao de leve, uma pena — duas —, por vezes humedecendo-me com a língua, devagar, Tonya, devagar. 
— Mas eu quero-te dentro de mim! 
— Só depois de te vires. Continua. 

Enfiava-lhe o dedo grande do pé na vagina, Tonya «passeava os passarinhos pelo quintal» até não poder mais e sentar-se em mim como se me desse uma palmada. Fazer-lhe amor permitia-me separar o sentimento da sensualidade. Cresciam as duas, mas eu só percebia uma. 

Paula adoeceu e morreu muito depressa. Cancro no pâncreas. Recusou ser tratada. 

— Isto não tem cura e tu não ficas sozinho. 

Seis meses depois: 

— Trata bem da Tonya. Ela gosta muito de ti. Trata-a como me trataste a mim. Amo-te. Adeus. 


II 

Percebo pouco de palavras. Sou um homem de números e de sentidos. Gosto do que faço: pensar, calcular e concretizar. As palavras escapam-se-me, não sei por onde andam nem para onde vão. Sei, contudo, apreciar-lhes a beleza. Bourlinguer, por exemplo, é uma palavra bonita. La bourlingue. Bourlingueur. Confinamento é feio. O conteúdo é odioso, o continente feio. Confinar. Confinado. Tem con e finado. Em francês, con significa cona e estúpido. Fechado numa cona, estúpido. Morto. Fechado em casa e, mesmo quando se sai, tudo está fechado. Conas fechadas, estúpidos fechados. A vida fechada. Como se cona, estupidez e morte fossem a mesma coisa. Serão? 

Não sei. Pouco importa. Sei que detestaria estar fechado numa cona (e morto muito menos, claro), porque o melhor dela é tudo o que a rodeia. O corpo no qual se inscreve, a cabeça que a governa. Já a estupidez não tem cona. Não se pode foder a estupidez, nem fazer-lhe minetes. E se se pudesse, não seriam bons. 

Estou fechado em casa. Tonya está fechada noutra casa. O silêncio é a nossa língua comum, porque sei o que ela pensa: pouco mais ou menos a mesma coisa que eu, sem as elucubrações sobre a cona, a que ela chama «vagina» nos dias bons e «rata» nos maus. 

— A minha rata quer comer-te. 
— Não sou um queijo. 
— És melhor do que queijo, és a armadilha. 

Nenhum de nós sabe quando a rata terá a sua armadilha, de que tanto gosta. 

O sexo por computador interposto é possível, porque o sexo se faz com a cabeça; e é uma mentira, porque sem corpo não fica senão a representação desse corpo. É como foder um fantasma que se conhece bem, por dentro e por fora. Mas fantasma: só existe na minha cabeça, na minha memória. 

A cidade está vazia. É uma cona seca. As cidades são feitas de gente. O que nos leva a gostar de uma cidade são as pessoas que nela conhecemos, aquelas com quem nos cruzamos nas ruas, o casal que encontramos num bar e com quem trocamos palavras de circunstância, os restaurantes aonde alguém a quem perguntámos nos aconselha a ir, as livrarias que visitamos para ir comprar um livro e folheá-lo no café ao lado. Só depois vêm as paredes, os prédios, os monumentos. Paris tem uma rua chamada Rue Daguerre, que em duzentos metros concentra França. Queijaria, mercearia, café, livraria, restaurante... Mas que seria disso tudo sem as pessoas? Que seria disso tudo se os estores estivessem corridos como de certeza agora estarão? Sem pessoas, a Rue Daguerre só vive na minha memória, como as mamas de Tonya, as pernas de Paula quando me apertavam como um glaciar esmaga as pedras que encontra no caminho. 

Estar confinado é isto: percorrer as ruas do passado. Não ter futuro. Cona que se recusa. Mulher que não te quer. 

Da minha janela, vejo o carvalho, se quiser vê-lo. Na maior parte dos dias, não quero. Quando era miúdo, espetei uma série de pregos no caule para fazer uma escada. No dia em que subi, já lá não estavam, devem ter sido engolidos. Tive de ir buscar uma escada. Tinha ido com Paula e Tonya ao cinema, e depois do filme elas foram beber um copo. Eu fui gritar para o carvalho. Onde se sentem primeiro as hesitações do amor, as suas bifurcações? Na pila? Na cabeça? Nas duas ao mesmo tempo? 

Quando voltaram para casa, já eu estava no escritório, punheta batida. Mas desta vez o autocarro só tinha duas passageiras e entraram juntas porta adentro. 

Em si mesma, a história do vírus é-me indiferente. Vírus há muitos, como chapéus. O que me intriga, interessa, fascina é estar a assistir, da minha casa perdida nos limites da cidade, ao primeiro episódio de histeria colectiva global. Nada escapa à globalização, nem o irracional. Os palermas do altermundialismo deveriam pensar nisto: o Homem não é como fruta no supermercado. Não se pode escolher só a boa. Vem tudo junto e não se pode separar. O Homem de hoje não é muito diferente daquele que na caverna de Platão via as sombras. Ou daquele de que fala Eliot, que não pode suportar muita realidade. Somos propensos ao medo e ele espalha-se pelas fibras ópticas. Todos iguais, no fundo. Nós e os que nos precederam, caçavam mamutes, temiam o Adamastor ou mandavam queimar bruxas. Comento isto com Bill, amigo do Facebook. Digo-lhe: 

— Nas histerias colectivas, as pessoas aceitam o colectivo, mas recusam a histeria. 

Bill responde-me que não é histérico. 

— Eu não sou histérico! 

Como os malucos dizem à entrada do manicómio que não são loucos e os presos no presídio que são inocentes. 

O problema é o risco, «gerir o risco». O problema é a morte. Desapareceu do radar, a morte é uma inconveniência, uma maçada, uma avó bêbeda que se hesita em trazer à sala quando há visitas. Tão limpa, tão rara, tão ausente. É preciso gerir o risco, não vá ele trazer inopinadamente a velhota já grossa para o meio das visitas. Para o Bill, é fácil, claro. Tem mais certezas na cabeça do que tem cabelos. Não há dúvida que ali penetre — nem dúvida nem pente, de resto. O homem é a personificação daquele verso de Blake: «Tudo aquilo em que se pode acreditar é uma imagem da verdade.» Só que para ele não é uma imagem: é a verdade, em três dimensões e numa mistura de granito, bronze, basalto e aço inox. Nem uma bomba atómica ali entra. A cabeleira protege-o da realidade, mantém-na à distância, carapuça bonita e loira. As pequenas gostam: não é só o riso que as leva à cama, as certezas também são muito eficazes para o efeito. Já alguém com dúvidas seduziu uma mulher? Isso e a música. Bill é músico, conhecido na praça, está sempre a ser entrevistado nas televisões. Nunca percebi por que carga de água lhe fazem perguntas sobre tudo menos sobre a única coisa de que ele pode falar decentemente. A mim, ninguém pergunta nada, ainda bem, não sou conhecido, mas tenho tanta autoridade para falar de vírus, do presidente dos Estados Unidos ou da cor da Fanta Laranja, como ele para falar de tudo e mais alguma coisa. Isto não é para dizer que deviam entrevistar-me, é para dizer que não deviam entrevistar o Bill. Os músicos que falem de música e dos seus engates, se quiserem. Para o resto, deixem-nos em paz. Quem diz músicos diz actores, escultores, performers (não perguntem) ou o resto da fauna. A única excepção a esta regra é Leonard Cohen, mas esse não era artista. Era um homem e por isso podia falar da humanidade e de tudo o que lhe apetecesse ou lhe perguntassem. E talvez Hemingway também. E Mark Twain. São pessoas que viveram. Enfim, não interessa. Que se lixe a vida e a leve a morte. Paula morreu, tenho de viver com isso, quer queira quer não. Presentemente, a minha vida é Tonya e pergunto a mim próprio quanto tempo vai durar. Por enquanto, não preciso de comprimidos, ao contrário da maioria dos meus amigos, cuja troca de números de telefone agora se resume a números de vendedores clandestinos de pílulas azuis. Que será de nós quando o sexo desaparecer? 

— Haverá uma nova superfície para o nosso silêncio se manifestar —responde-me. 



Paula morreu em casa. Estava morfinada havia semanas, esqueleto coberto de pele. Quando me falou pela última vez, já mal a consegui ouvir. 

— Ela gosta muito de ti. 

Como não tínhamos filhos nem ela irmãs, não houve partilhas. Fiquei com tudo o que lhe pertencia. Pus as coisas num dos quartos de cima, no qual só a mulher-a-dias entra e hoje é conhecido como «o quarto da Paula». Livros, cadernos, discos, roupa, meia dúzia de objectos. Tonya pergunta-me: 

— Quando eu morrer, vais fazer o mesmo com as minhas coisas? 
— Quando tu morreres, a casa será tua. Farás tu o que quiseres. 
— Quando tu morreres, nada será meu. 
— Quando eu morrer, miúda, tu poderás finalmente viver. 
— Cala-te e come-me. 
— Ainda é cedo, nem jantámos sequer. 
— Nunca precisaste de horários, não é agora que vais começar. 

Tonya era pequena, encaixava-se em qualquer espaço. Meço quase uns vinte centímetros mais do que ela e encaixo-me naquele corpo como as tardes de domingo nas semanas. 


III 

Paula era psicóloga, dava aulas de Psicologia Social na faculdade. Pergunto de mim para mim o que diria deste pânico cego. Sei a resposta: 

— Acreditas demasiado na razão e no teu solipsismo para poderes perceber estes movimentos colectivos. O gregarismo tem vantagens e, como tudo, tem inconvenientes. O medo é útil até um certo ponto e paralisa-te para lá dele. Multiplica isso por milhões de pessoas: a paralisia anula por completo a utilidade. O medo é como os venenos: depende da dose. Quando entras nestes fenómenos colectivos, torna-se impossível controlar a quantidade. O medo de um alimenta-se do do outro. Como diz uma professora da Universidade de Houston:[1] «A ansiedade é contagiosa.» 
— Sim, mas neste caso as pessoas estão a prejudicar-se, estão a suicidar-se. 
— Estão? Tens a certeza? Um toxicómano também está a suicidar-se? Um alcoólico está a suicidar-se? Um aventureiro está a suicidar-se? 
— Estão, mas tira o suicídio da equação. Viver é uma longa forma de suicídio. Explica-me o prejuízo que estão a infligir-se. 
— Em 1977, uma senhora chamada Frieda Gehlen[2] publicou um artigo no qual tentava explicar as razões das histerias colectivas. Comparou duas possibilidades: a resposta a um stresse ou uma «mania» à qual as pessoas aderiam inconscientemente — repito, a adesão era inconsciente — esperando obter uma vantagem qualquer, mesmo insignificante ou imaginária. Neste caso, a «vantagem qualquer» é a vida — a própria, a dos mais velhos ou a dos filhos. Pensas realmente que é com argumentos racionais que combates isto? 

O dia cai e tenho de interromper a conversa com Paula. Não me apetece fazer amor, nem cozinhar, ler, ver televisão — não tenho, mas se tivesse, não quereria vê-la, decido — nem falar. Nem trabalhar, sequer. Mando uma mensagem a Tonya: 

— Se comparares com muitos outros episódios de histeria de massas que ocorreram ao longo da história, verás que este foi relativamente benigno. Ou melhor: achatou a curva das consequências. Vão sentir-se durante muito tempo. 
— ? 
— Desculpa, enganei-me. Estava a pensar noutra coisa. Vou fazer um jantar enorme, ler e dormir. Hoje, terás de fazer sem mim. 
— Não te preocupes, também não tenho vontade de nada. Estou farta. A tribo que a Ana estudou era canibal ainda há bem pouco tempo e ela suspeita de que de vez em quando ainda comem um gajo qualquer da tribo ao lado. Hoje, pensei que se calhar eram mais razoáveis do que pensamos. Boa noite. 


Uma coisa é estar fechado porque se quer, outra completamente diferente é estar fechado porque os nossos semelhantes no-lo impuseram. A palavra-chave é «semelhantes», como diria Samuel. Oiço a Ressurreição de Mahler e o cérebro limpa-se-me, fica oco como gostaria que fosse sempre. Estar fechado é um paradoxo: fica-se cheio de vazio. Fica-se oco, cheio de uma coisa qualquer que não se sabe o que é. 

À medida que os dias passam, as noites transformam-se num inferno. Sempre dormi bem, mas agora passo noites inteiras em claro, Tonya ou não-Tonya. Diminuímos bastante o ritmo das nossas «cenas», como ela lhes chama. 

— Hoje, quero uma cena diferente. Vamos fazer sem imagem, só com som. 

No dia seguinte: 

— Agora, fazemos o contrário: só imagem. 

O som funciona melhor do que a imagem. Até para o silêncio há limites. 

Paula nunca gritou muito. Um orgasmo nela era como um pneu a esvaziar-se. Uso a imagem propositadamente: quando acabávamos, parecia um pneu furado. Um dia, disse-lho e ela começou a dizer «furar» em vez de «foder», «comer», «ir para a cama». Isso permitia-lhe brincar quando estávamos acompanhados. «Aposto que tenho um pneu que se vai furar não tarda.» «Hoje de manhã, o pneu do carro furou-se. Ainda bem que aprendi a mudá-los num ápice. Dá-me cá um gozo...» Certa vez, um amigo nosso disse-lhe: 

— Estás sempre a ter furos nos pneus. Por onde é que andas com o carro? 
— Nem tu fazes ideia dos caminhos por onde me perco. 

Nesse dia, acabou-se a conversa dos furos, pelo menos quando tínhamos gente à volta. Pergunto a mim próprio por onde andará hoje, que só tem a minha memória — e a de quem a conheceu, claro — para se «perder». 

Ao contrário de Tonya, Paula era alta. Portuguesa, de tão mulher. Havia mais sensualidade num dos seus dedos do que em muitos corpos que conheci. Foi com ela que me habituei a fazer amor todos os dias, duas vezes por dia. Era um amor rápido, vinte minutos, meia hora. Às vezes era igual, outras não. Era sempre bom. A minha avó enganava-se de quando em quando. Eu também. Não era só a inteligência de Paula, a sua sensualidade, o seu sentido de humor, a sua vitalidade que me faziam gostar tanto de a furar. Não havia nada que não gostasse de fazer com ela: conversar, passear, comprar livros, ir jantar fora, tomar banho, esperá-la na pastelaria em frente da universidade quando por acaso tinha vontade disso. A pastelaria estava cheia de alunos e alguns sabiam que era o marido de Paula Gouveia. Nunca mais lá voltei, nem quando Tonya vai dar uma aula ou fazer uma palestra. O tempo é composto por camadas geológicas que não se misturam, mesmo que coexistam. Não: o tempo é composto por camadas geológicas que não devem misturar-se. Na verdade, acabam sempre por amalgamar-se e tudo o que consigo é separar as franjas: não ir esperar Tonya à pastelaria, não ir com ela à praia onde pela primeira vez fiz amor com Paula e onde, anos mais tarde, lhe disse que talvez não fosse má ideia casarmo-nos. 

— Curioso, estava precisamente a pensar o mesmo. 

Mas isto são só as franjas, eu sei. Impossível fugir à realidade nesta enorme caixa de ressonância, dela separada por um conjunto de normas absurdas. Enfim, digo que são absurdas, mas, na verdade, não sei o que são. Numa democracia, o governo deve fazer o que o povo quer. Uma democracia é — entre outras coisas — dar ao povo o direito de se enganar. Antes um erro em liberdade do que uma boa decisão totalitária. 

— A sério? — Paula pergunta-me com o olhar sardónico que me atraiu quando nos conhecemos. — Vais acabar a dizer que as sociedades precisam de um chefe? De um comandante? — O pai dela havia sido comandante da marinha mercante e tinha uma certa tendência para pensar que uma sociedade deveria ser gerida como um navio, o que eu contestava energicamente. 

— Porra, Paula, cala-te. Deixa-me pensar. 
— Não sou a Paula, querido. Sou a Tonya. Estás a trocar os nomes, mas não me importa. Pensa. Compreendo que para ti não seja fácil. Um misantropo humanista entra num bar... 

Há duas semanas que não fazemos amor, Tonya e eu. Há uma que nem sequer nos falamos. O confinamento invade-nos, rói-nos por dentro como aquelas formigas que na madeira vão traçando túneis separados. Por fora, a madeira não muda, mas de repente juntam-se e o edifício desaba. Conseguiu um voo para finais de Maio, meados de Junho o mais tardar. Faltam três ou cinco semanas. 

Que encontrará nesta casa? Que acontecerá às coisas de Paula? 


IV 

Tonya: 

A prova de que tenho uma vida é que as mulheres da minha vida passam a vida a fugir de mim. Tenho uma vida ciumenta, é o que isso quer dizer. Mas se na minha vida não há lugar para ti, que se foda a minha vida. Ser amado por ti é uma sorte que não mereço, mas que agradeço todos os dias. Já te vi nua, vestida, ansiosa, saciada, sorridente e decepcionada. Já te vi pelas frinchas todas que uma pessoa tem. Já te vi como se fosses eu. Quero amar-te e foder-te, ouvir-te e ver-te. Quero te na minha vida e que nunca dela saias, sem te, sem hífen, sem nada entre nós. Amo-te até «amo-te» perder a cor, de tão esfregado, limpo, rasgado, raspado até não ser mais do que a essência de «amo-te», aquilo que dele resta depois de ser repetido um milhão de vezes. 

Monologar para ti é melhor do que dialogar com quem quer que seja outro, e se pudesse foder-te com palavras, foder-te-ia até acabarem as letras do alfabeto, de todos os alfabetos de todas as línguas do mundo. Se pudesse foder-te com silêncios, o silêncio desapareceria e o mundo transformar-se-ia num interminável trovão. Se pudesse dizer-te quanto te amo, esgotaria todos os dicionários do mundo. É sempre a ti que volto, a ti que regresso, como se fosses o princípio e o fim, como se o que começou em ti acabasse em ti forçosamente, como se a nascente e a foz do rio fossem a mesma coisa. 

Só que isto não é um rio: não tem margens. 

Fui o primeiro a dizer «amo-te» e tu foste a primeira a calá-lo. Continuo a dizê-lo e tu a senti-lo. O fim deste fim está próximo — tudo é breve, num amor como o nosso, que não tem tempo. Tudo será amanhã, tudo foi ontem. Só nos falta o hoje, porque no-lo roubaram. 

Felizmente, teremos tempo para lhes roubar o tempo que nos roubaram. 


10-05-2020 





29.9.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 29-09-2020

Amanhã faço sessenta e três melancólicos outonos... Fomos jantar ao Auberge de Chambésy. O núcleo duro da família aumentou: S., eu, os dois filhos e respectivos cônjuges (as aspas não se vêem mas estão lá). Paradoxalmente, nunca os senti tão "meus" como agora, que os partilho (e eles a mim, mas isso sempre aconteceu). Aos trinta anos vê-se o produto acabado. Daqui para a frente será apenas evolução. As bases estão lá. 

Estão sólidas e bonitas, seja S. louvada e agraciada.

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Na escola ao lado de casa não vejo quase ninguém de máscara no recreio, atulhado de miúdos até aos doze anos, creio. Os putos brincam como sempre brincaram, agarrados uns aos outros de todos os modos e feitios.

Cada vez gostaria mais de ver um estudo sobre a relação entre severidade e abrangência das medidas anti-Covid e PIB per capita.

27.9.20

Jantar improvisado - Frango guisado em cerveja

Começou da maneira clássica: a carne a alourar em lume forte, flamejada (com Kirsch); na mesma frigideira - mas uma vez retirados os peitos do jovem galináceo - cebola, pimentos, duas cenouras pequenitas, um belíssimo ramo de salsa frisada e pimenta rosa em grãos. A seu tempo, vai tudo junto para a panela, cobre-se de cerveja (Super Bock, por acaso) e tempera-se com paprika doce, curcuma, sálvia, orégãos e rosmaninho fresco. Cozeu até ficar pronto. 

Os dois convivas gostaram, mas o que cozinhou não tem a certeza de conseguir repetir - prova de que é um péssimo cozinheiro (e não se importa nada com isso, infelizmente).

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 27-09-2020

Domingo de votações na Suíça. A nível federal, uma iniciativa xenófoba da UDC foi recusada, o governo viu aprovado um envelope de seis mil milhões de francos para comprar um avião militar (50,1% a favor, 49,9% contra), o PDC perdeu a votação para incluir os custos da guarda das crianças nas deduções fiscais (coisa que deixou a esquerda toda contente, claro. Baixar impostos provoca-lhe urticária) e os cantões urbanos ganharam contra os rurais uma alteração de lei para aliviar as regras sobre a caça de lobos. A lei actual é de 1986, quando praticamente não os havia. «Agora há em excesso e atacam os rebanhos», dizem os agricultores. «Queremos poder abatê-los.» Que nenni, responderam os betos urbanos. Um congé paternité (direito de os pais terem uma folga remunerada aquando do nascimento dos filhos) de duas semanas passou a rampa. Ao nível cantonal, uma má notícia para Genebra: o «soberano» (o povo) aceitou a introdução de um salário mínimo. Vinte e três francos / hora (aproximadamente vinte e um euros / hora). De uma maneira geral, estas eleições foram ganhas pela esquerda (felizmente, no caso da iniciativa sobre a imigração) e se eu cá vivesse teria ficado chateado. Chatice essa mitigada por um facto simples e inegável: aqui são as pessoas quem escolhe. Não são os políticos. Abençoado país! (E a UDC levou outra nega. Que venham muitas mais.) Agora só falta ver esta malta começar a rebelar-se contra as máscaras e outras medidas «anti-Covid» idiotas (entre aspas porque são tão eficazes na luta contra o vírus como eu no salto em altura).

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A três dias de fazer sessenta e três anos entusiasmo-me tanto com as votações como me entusiasmava quando cá cheguei, com vinte e dois. O que mudou foi que agora tenho mais conhecimento de causa, o que torna o entusiasmo mais agradável. Só espero já não ser deste mundo se um dia o soberano votar positivamente a adesão à União Europeia (a menos, claro, que esta adopte o sistema político suíço, o que faz parte do campo do possível tanto como ver-se António Costa transformar-se num homem de Estado.)

25.9.20

Gemelidade quase perfeita

Eram gémeos como duas bananeiras do mesmo bananal mas diferiam numa coisa: A. detestava-se, B. não. A. matou B.: não suportava ver-se como poderia ter sido.

Veneno, autocarros

O autocarro está parado porque a rua está bloqueada. Uma senhora pergunta delicadamente ao condutor se pode descer ali. "Não", responde o jovem. Simpaticamente acrescenta "Porque se lhe acontece alguma coisa a culpa é minha." Não é uma paragem, mas o autocarro está na faixa junto ao passeio. Todos sabemos que cada vez que descemos de um autocarro acontece qualquer coisa, não é? É arriscadíssimo descer de um autocarro. Não tarda pedem-nos capacetes. Já bom senso não vale a pena pedir. A cultura da ausência de risco e da desresponsabilização é pervasiva como um gás. E venenosa, mas isso é outra história.

24.9.20

Escritores, preguiça

Os melhores escritores são aqueles que parecem preguiçosos e não escrevem uma única palavra que possa ser lá posta pelo leitor. Parecem: é dobro do trabalho.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 24-09-2020

Ontem, a G. ofereceu-me um bon cadeau [como é que se diz isto em português? Vale presente? Cheque presente? Não me lembro]. Trinta francos em livros na Payot, a maior livraria de Genebra. Comprei três: Le Clézio, Orsenna e d'Ormesson. Preciso de francês puro, elegante, o francês de filigrana. Gosto desta língua tanto como gosto do português: a este, amo de amor, nasci nele e com ele cresci. Àquela, amo de razão, é amor construído e tardio. São os que duram mais. (Nota nada neutra: o Avenida está a ser traduzido - e bem -  para francês.)

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Em Genebra como em todo o lado: a culpa da difusão do vírus somos nós e se alterarmos o nosso comportamento conseguiremos vencê-lo. Para todas as religiões, o homem é à partida culpado e deve mudar o seu comportamento se quer a redenção: não comer carne de porco, não beber álcool, não fornicar a mulher do próximo, e assim de seguida. O mesmo se aplica ao ambiente (tema de actualidade aqui, com um protesto em Berna e um julgamento em Lausanne). O planeta aquece porque somos maus e devemos ciliciar-nos se queremos que ele arrefeça. O homem precisa de um deus, Frederico. Sem ele, sente-se perdido. O acaso não o satisfaz: precisa de necessidade também. Ainda hoje Lamarck é mais bem compreendido do que Darwin. 

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Genebra continua a ser a cidade do mundo com mais mulheres bonitas por metro cúbico. Porém, desta vez não sei se devo calar-me por modéstia ou gritá-lo com orgulho: contribuí activamente para isso. A minha filha é linda (e adorável, mas isso é outra história).

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Amanhã acaba a balbúrdia com o tempo e as temperaturas caem a pique. Já estou em modo «Embarque»: não terei frio de certeza, mas vou precisar de fazer ginástica com as lavagens de roupa. A história do rato do campo e do rato da cidade adaptada. 

Mal adaptada. Preciso tanto de uma como do outro.

23.9.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-09-2020

A melhor razão para se gostar de cozinhar chilli con carne é ser uma coisa que se cozinha devagar.  Uma tarde, no mínimo. Comecei por refogar a carne e o toucinho (com a pimenta rosa em grão, essa convém estar desde o início), separadamente as cebolas, os pimentos, as cenouras (com os orégãos) e por fim os alhos, Misturei tudo, deixei-os a conversar um bocado, juntei o tomate (três, grandes), mais uma volta de conversa até o tomate deixar de ser tomate e entram a água (até acima, a panela era alta) e as especiarias: um nada de noz-moscada, outro de cravinho, um montão de paprika e um igual de cominhos. Cozeu quatro horas.  Sinal de que estava sintonizado: não tive de juntar nada, nem água nem especiarias. Ficou um bocadinho curto de sal para uma das convivas, só. Ficou bom porque: a) o pimentão doce, a paprika fumada, a paprika picante e os cominhos eram excelentes; b) a carne idem; c) a sorte ajudou, ajudada pela vontade de fazer um bom chilli. Era muita, esta. O objectivo era mesmo que ficasse bom, um querer que vinha de dentro, como quando estamos numa regata e não vamos deixar o gajo ao lado rondar a bóia antes de nós.

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Esta discussão em torno do vírus e da ciência parece-me estéril. Não é preciso «ciência» para se ver que a abertura das escolas sem máscaras e em condições normais não aumentou o número de mortos nos países que fazem isso, ou é? É. A ciência é empírica. Recusar-se a ver esses dados é religião, não é ciência.

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G. era vizinha da S. quando cheguei a Genebra e fui viver lá para casa. Foi por seu intermédio que arranjei o trabalho no Marchand de Sable. Era uma actriz que trabalhava num café para sobreviver. Depois foi trabalhar para um tribunal e lá ficou até à reforma, contra todos os prognósticos. É uma personalidade e uma personagem e um dia, eu sei, vai ser preciso falar dela. Não será hoje: precisa de um vasto espaço. 

Por agora, chega-me o prazer que é falar com ela sobre cinema ou teatro. Às vezes penso que tive sorte. Isto é, ainda mais sorte.

22.9.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 22-09-2020

Dia desastrado, dia desastroso? Sim e não.  Fui ainda mais desajeitado do que sou habitualmente. À primeira vista parece dificil, quase impossível. Deixei cair a máquina fotográfica e tenho de a mandar reparar. Com a maré no estado em que está e sem dar sinais de mudar, o mínimo que se pode dizer é: "Não foi oportuno." (Isto para não mencionar que vou ficar muito tempo  sem poder fazer fotografia, o que bem vistas as coisas tão-pouco é agradável.) Depois lá mais para o fim do dia a coisa balançou um bocadinho para o outro lado. Isto é: não ficou tão em baixo.

Há dias assim, em que me pergunto por que milagre consegui habituar-me a viver comigo.

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Amanhã é dia de chilli con carne, não a pedido de várias famílias mas sim de vários na família. A memória das famílias é feita de coisas assim. Ocorrências recorrentes: chilli, fondue, qualquer dia amêijoas à Bolhão Pato, a distracção e a falta de jeito do pai. Estatisticamente, ainda tenho uns bons vinte anos disto (a menos que venha uma Covid e me prolongue a vida), mas como sei por experiência própria que vinte anos passam num ápice, mais vale aproveitar e sugar cada segundo.

Até ao tutano.

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Amanhã começo uma campanha de promoção do Avenida. Seja o diabo cego, surdo e mudo se não conseguir vender coisa  que se veja. Quero continuar a trabalhar no segundo volume.

En attendant, parece que desta vez acertei com a tradução para francês. Hallelujah!

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Pequena nota privada: é incrível, inesperado, assustador quão todas as cabeças, mesmo as de que menos se espera tal coisa, são permeáveis ao zeitgeist, à l'air du temps, ao ar do tempo. Estou "proibido" de usar os termos "pédé" (maricas) e "gouine" (fufa). Devo dizer "homosexuel". As aspas em "proibido" servem para mostrar o que tenciono fazer da "proibição". 

Malditos tempos... Antes o chili, ainda que pouco picante. Um dia, homosexuel e gay terão a mesma carga semântica que têm hoje maricas e fufa, mas já cá não estarei para me rir. Todas as épocas se esquecem das que as precederam e erigem-se em absolutas. Nas que lhes sucederão, então, nem pensam. Somos - nós e as palavras - um ponto no espaço-tempo, um degrau na escada semântica, um sopro na evolução dos valores. Sopro tão fraco que nem para apagar um fósforo chegaria. Quanto mais definir eternidades.

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Por exemplo: quem apostaria um avo em que eu seria, ao fim de tantos anos, forçado a reconhecer o meu gosto por Genebra, maior do que agora sou capaz de dizer?

Uma cidade é feita de pessoas e uma vida também.

21.9.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-09-2020

A chuva parou, por agora. Vai ficar até sexta, com intermitências. E as temperaturas vão baixar, tornar-se mais consentâneas com a estação do ano. E eu, quando me tornarei consentâneo? E com quê? Hoje pensei fazer uma ode aos sofás. Isto é, uma ode a dormir num sofá. Fazer e desfazer a «cama» todos os dias deve ser a melhor forma de se ter a noção de que hoje é outro dia. Nem sequer amanhã. É hoje. Um gajo acorda, tira os lençóis, dobra--os, dobra o edredon, ajeita a almofada, o sofá-cama volta à posição sofá, a roupa da cama vai para o gavetão... ecco. Uma noite passou, não deixou traços, o novo dia encontra-te fresco e disposto. Todas as manhãs, todas as noites os rituais repetem-se. Um amigo do meu Pai dizia que não tendo carro tinha mil e quinhentos carros - era a quantidade de táxis que havia em Lisboa nessa altura. (Hoje são três mil e quinhentos, diz o Google. Não se pode dizer que o aumento tenha sido exponencial. Ou então a minha memória engana-me. Pouco importa.) 

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Genebra também aderiu à moda das máscaras, do distanciamento social e da «luta contra o vírus». Teria de ir para a Suíça-alemã para escapar a isto. Há uma componente cultural fortíssima nisto da »luta». Os nórdicos são mais pragmáticos e menos cobardolas do que os latinos. E há uma função social, também: o medo une as pessoas, tanto quanto as separa. Há um inimigo comum. Paradoxalmente, para nos unirmos contra ele temos que nos distanciar, desunir, de certa forma. É por isso que nós, os cépticos, somos tão violentamente atacados: «assassinos», «idiotas»... So não nos chamam «associais» porque é um termo demasiado complicado para a maioria dos do grupo.

O problema é que do social à política vai um minúsculo passo, daqueles que dávamos quando escolhíamos as equipes de futebol, pé ante pé,  E claro, agora quem manda é a política. Nunca gostei muito de governos de tecnocratas, mas o caso da Suécia faz-me pensar. Claro que os tecnocratas devem ser competentes. Se forem como os Buescus, os Fróis e os Joões Seixas da nossa praça estaríamos ainda pior. 

Aqui em Genebra tentam fazer algo ligeiro. Hoje vi uma turma de escola, miúdos dos seus dez anos, na rua. Nenhum usava máscara, nem o professor. Não sei se é por estarem na rua. Os jornais e a televisão estão enviesados, mas isto carece de análise, ainda não os li suficientemente. O jornal esquerdista local, Le Temps, sei que está, mas esse não li uma única vez. Pertence ao Monde e está ainda mais à esquerda. Não me apetece ter deixado de ler os pasquins nacionais para ler os dos outros.

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Cada vez gosto mais de Genebra e cada vez mais estes preços me enfurecem. Nunca vislumbrei em mim manisfestação de inveja e impotência mais límpida, clara, cristalina do que a que me assalta quando me passeio por estas ruas escovadas mais do que varridas, bem pavimentadas, com poucas buzinadelas e cheias de bicicletas. Autocarros e eléctricos ininterruptamente (e se compararmos os preços numa base PPP mais baratos do que em Lisboa). Depois sento-me para beber um copo de vinho - um decilitro, medido ao milímetro - e a impotência toma o lugar da inveja.

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Com a diferença a que o sofá-cama dá forma, a vida amical é bastante semelhante à vida conjugal. S. trabalha, eu cozinho e trato da cozinha, leio e escrevo. Quando trabalhava aqui, a diferença estava na escrita: escrevia menos. Este casamento evoluiu como um bom vinho: tornou-se naquilo que já era, mas mais apurado, mais sofisticado, mais complexo

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Outro motivo de inveja: as livrarias. Hoje encontrei praticamente tudo de Sapienza Goliarda, de quem ouvi pela primeira vez falar há coisa de seis meses. Só tenho de esperar que chova - chuva da outra, claro. Esta, para os livros só contribui com as árvores.

E os supermercados, claro. Os queijos. Na Suíça há todos os queijos franceses, mai-los suíços. Em França, só há os franceses. Adivinhem quem fica a ganhar?

20.9.20

Jantar improvisado - Frango com emoções

Comecei por dourar os peitos de frango em lume forte e flambeá-los numa bela porção de kirsch. Enquanto isso, na panela vizinha estrugiam em azeite uma cebola às rodelas e um pimento encarnado, com um fundo de bagas de pimenta rosa. A isso, em devido tempo, juntei dois tomates pequenos cortados aos bocados e um bocadinho de salsa que languescia no frigorífico. Depois de um compasso de espera, vieram umas batatas tanbém elas em cubos.

Deixei que se misturassem bem, polvilhei com «paprika» fumada (entre aspas porque não tenho a certeza de que tenha vindo da Hungria), cominhos (que ao cheiro parecem sublimes), orégãos e uma boa colher de sopa de mostarda Maille à l'Ancienne, a marca e o modelo são importantes. O sumo da flambée juntou-se à festa, eu bebi um absinto (ou dois, vá lá, que absinto deste nem todos os dias me atravessa o estreito, vem das montanhas, etc.), desliguei o fogão e sentei-me a escrever tudo isto.

Agora passamos à mesa, as emoções e eu.

Excessos?

Pergunto a quem sabe: aquela regra segundo a qual tudo o que é em excesso faz mal também se aplica a mulheres e a dinheiro? Nunca tive de mais nem de um nem das outras.

17.9.20

Auto-citações da «gripe»

 «Isto é tudo muito bonito e tal até que o corpo se lembra de que sem ele a festa fica incompleta e hoje me pespegou uma gripe de caixão à cama.»

«A doença vira um gajo do avesso. As costuras belas e regulares mostram a sua natureza interior e parecem-se com cicatrizes mal tratadas; as costuras das bainhas, até ali invisíveis, ficam a ver-se (e não são nada bonitas); e por aí fora: a tosse é de tal forma que se não tenho cuidado qualquer dia apanho os pulmões no céu da boca, a hiper-sensibilidade faz-me pensar que dormir em cima de lixa deve ser mais agradável do que nos lençóis. Nada apetece - nem estar deitado, nem sentado, nem de pé. »

«As mulheres gozam com a nossa reacção às gripes porque elas não as têm. As mulheres têm gripinhas, gripes cor-de-rosa e não esta mistura de gripe e peste bubónica que nos aflige.»

«A S. chegou e com ela os remédios: spray nasal, muitos comprimidos, supositório, tudo. Ela queria ser veterinária mas a meio resolveu mudar para psicologia. Comigo pode praticar as duas disciplinas. Tentei reclamar com o supositório - não sou contorcionista nem artista de cabaret - mas não serviu de nada.»

(Conjunto de excertos de posts escritos quando tive aquilo que na altura era conhecido por gripe e hoje seria, provavelmente, Covid-19. Fevereiro de 2020.)

Marta

Quando o doutor chegou à nossa aldeia estava a manhã quase no fim. 

 - Obrigado e até à próxima -  (ao motorista).


 Desceu e dirigiu-se imediatamente ao mercado, do outro lado da aldeia. 

- Boa tarde - (à miúda que vendia tremoços, conhecida por «a tremoceira»).

- Bom dia - respondeu a outra, espigada de feitio. - Ainda não é meio-dia.
- Está quase.

- Quase é uma palavra que engana muito.

- Obrigado. Tem tremoço de barrela?

- Isso é coisa do norte e vossemecê está no sul, homem. Não acerta nem na hora nem no lugar.

- Não é bem do norte, é mais do centro.

- Seja de onde for, não tenho. Quer alguma coisa ou só fazer-me perder tempo?

A tremoceira era conhecida na aldeia e nenhum dos ouvintes estranhou. Salvaguardava-a o facto de ser bonita e ter os melhores tremoços da região. Vinham pessoas de longe para lhos comprar. (Muitos só para a ver e lhe cantar a canção do bandido, mas a esses despachava-os ela em menos tempo do que leva a trincar e deitar fora uma casca.)

- Se quiser, eu ensino-a a fazer tremoços de barrela.

A rapariga hesitou. Não era todos os dias que alguém lhe respondia como se não a tivesse ouvido. 

- Obrigada, não preciso. Ensine-me antes coisas que eu não saiba. - Tinha uma reputação a defender.

O doutor era duas vezes mais velho do que ela mas parecia três. Conservador excêntrico, gostava de desestabilizar os interlocutores, mantendo sempre uma educação e uma cordialidade inatacáveis. O seu maior gozo, contudo, era encontrar alguém que não se deixava enredar. Percebia tanto de tremoços de barrela como eu de astropaleontologia. Era um indivíduo alto, magro, cabelos brancos impecavelmente aparados, óculos sem  aros, roupa de qualidade no género «falso desleixado». Tudo nele era falso excepto ele próprio. 

(Isto pede uma clarificação: o que havia de falso no doutor - o bom doutor, como ficou conhecido na aldeia - era o que dava a ver. Não havia qualquer correspondência entre o que mostrava - «exportava», dizia - e o que dele não se via. Em tempos tivera um carro, um 2Cv que transformara de forma a acolher um motor quatro vezes mais potente do que o original. A transformação fora perfeita, de fora nada se via. Só o mecânico que a fizera a conhecia - e tinha-o avisado: isso não vai durar muito tempo. Durou dois anos, talvez três. O bom doutor não era dado a precisões numéricas. Já as palavras o entusiasmavam.)


- Se você - dirigiu-se à tremoceira por você durante alguns anos, apesar de tratar toda a gente por tu e pedir reciprocidade - se enganar num número o erro é total, já viu? Se escrever 908 em vez de 1908 é possível que ninguém se aperceba do erro. Pode ser que nunca o encontre. - Olhou-a de frente e beijou-a levemente na testa. - Mas se disser «múnero» ou «númaro» em vez de "número" toda a gente percebe.   

- Me troço - respondeu a miúda. 

- Tremo, só. 

- Te, moço?

- Tremo, seira, eira, beira, leira. 

A tremoceira não percebia metade das palavras que ele lhe dizia, mas sabia duas coisas: estava apaixonada por ele e ele por ela. São duas coisas diferentes, isso sabia de experiência. O bom doutor todos os dias a acompanhava ao mercado e todos os dias a ia buscar. No intervalo, «escrevia livros». 

- Mas que escreves tu? Porque não posso ler o que escreves? 

- Um dia a menina lerá. 

- Estúpido. Trata-me por tu! - A rapariga não tinha perdido a sua truculência. Domesticara-a, quando muito.

- Mas alguma vez não te tuteei?

Os diálogos eram sempre curtos. Ela tinha de digerir novos vocábulos e ele um amor que se renovava cada vez que falava com ela. Era uma mulher orgulhosa e não se envergonhava da sua ignorância. Usava-o como um trampolim.

- Ensinar é a coisa que fazes melhor, a seguir a foder-me. 

- O terceiro lugar vai para quê?

 

Chama-se Marta embora o doutor, velho cinéfilo, me tivesse pedido Laura.

 

Marta olha o bom doutor nos olhos. Estão na casa que ele comprou poucos meses depois de chegar à aldeia. É um edifício grande, de esquina, com dois pisos, um terraço,  um jardim grande. As portadas são azuis, as paredes brancas. Estão no jardim, o dia acaba e como sempre no Verão da planície o calor não se vai embora. Desliga-se, simplesmente. A aldeia é no sul do país, esteve muito tempo sob domínio árabe e o jardim – que provavelmente não existia nesse tempo - parece lembrá-lo. Marta tem trinta e poucos anos, não tem cultura para perceber porque gosta tanto disto, mas gosta e tem inteligência suficiente para saber que é melhor aproveitar a vasta sabedoria do doutor. Sobretudo, o seu gosto em ensinar. Sobretudo, o seu amor por ela.

          Com a ajuda dele, o negócio dos tremoços prosperou. Marta e a mãe dirigem agora uma pequena equipa que os tempera, envasa e expede para vários pontos do país. Comprou-lhe um carro para ela poder contactar novos clientes dava-lhe um conselho aqui e ali, se via que precisava. Se não, deixava-a aprender sozinha. O bom doutor baseava a sua pedagogia no método de «ensinar a ver» e não no de «forçar a ver». Aspas porque o cito.

          Quando chegara à aldeia não tinha a menor intenção de se apaixonar fosse por quem fosse. Uma pequena herança dera-lhe a possibilidade de se reformar antecipadamente do seu trabalho de professor de literatura francesa numa universidade da capital. Era apreciado pelos seus pares, que lhe agradeciam a falta de ambição e não se apercebiam de quão indiferentes lhe eram. A mulher deixara-o havia alguns anos, provavelmente devido a essa mesma falta. Era uma senhora de boas famílias. Quando se separou comprou-lhe metade da casa, dinheiro que ele pôs a recato. Era um homem frugal. Alugou um apartamento pequeno, ia comer todos os dias à tasca da esquina, pagava correctamente uma senhora que lhe fazia a limpeza da casa uma vez por semana e a outra que também uma vez por semana (mas em dias diferentes) ia lá dormir, «para não perder de todo a prática», explicou um dia a uma colega que lhe perguntou como lidava com a solidão. A mulher nunca mais lhe dirigiu a palavra para além de «bom dia» e «boa tarde», o que o satisfez pois era esse o objectivo. Sabia que poucas semanas depois a universidade inteira pensaria que organizava orgias em sua casa todos os dias, mas isso deixava-o indiferente. (A bem da senhora, devo dizer que o bom doutor se enganava: não disse a ninguém, receando que alguém lhe perguntasse como é que sabia. E porque não era o género dela, verdade seja dita.) Não gastou o dinheiro da casa todo em livros, mas ao princípio esforçou-se bastante. Comprava livros a torto e a direito. A certa altura parou, porque já não tinha sito para os guardar. O apartamento era pequeno e num quarto andar, o que não ajudava. Decidiu só comprar um livro depois de ter acabado o que estava a ler. Posteriormente, lembrou-se de que tinha centenas de volumes não lidos e deixou de comprar livros novos. Lia simplesmente os que tinha. «Mesmo assim, precisarei de duas vidas para os ler todos», disse um dia à tremoceira, que nunca tinha visto tantos livros juntos na vida, exceptuando as visitas que com a escola fizera a uma biblioteca da capital do distrito.

- Então para que os queres?

- Para me lembrar de tudo o que não sei.

- Para isso, basta-te olhar para mim.

- Bastar-te-ia olhar para mim, minha querida. Usa o condicional.

 

Passava-lhe as mãos pelos cabelos, pelos seios, pelas pernas. Bebiam um vermute no jardim, os pássaros gritavam uns aos outros para definir a posse de um território ou para impressionar as fêmeas, a brisa fazia as folhas mexerem-se devagar. Era mais tremer do que mexer. Marta tinha olhos verdes e uma basta cabeleira negra. Parecia fazer parte do cenário.

- A primeira noite que dormi contigo, alguém foi dizer à minha mãe. Um velho cá da aldeia, chamávamos-lhe Manuel da Arrifana porque no Verão ele ia trabalhar para lá. A minha mãe zangou-se comigo. Disse-me que podias ser meu pai e eu respondi-lhe que sim, claro: nasceste no mesmo ano do que ela. Têm a mesma idade. A certa altura perguntei-lhe se estava com ciúmes. Não me bateu por um triz. Talvez não te lembres, mas mudei-me para cá muito depressa. Já não conseguia ouvi-la. Nunca te falei nisto porque estou capaz de apostar que já o sabes. Ou pelo menos sentiste-o. E depois, no trabalho continuávamos a entender-nos bem, ela e eu. Era só nisto da vida contigo que nos desentendíamos.

O bom doutor não disse a Marta que tinha tido uma conversa com a mãe dela. Não dizia muitas coisas, fiel a uma máxima de Camus que o perseguia desde a adolescência: «Um homem é mais homem pelo que cala do que pelo que diz.» Explicara gentilmente à senhora que também ele estava surpreendido, que nunca mais pensara apaixonar-se e muito menos por uma miúda com metade da idade dele. Não disse que de qualquer forma não tinha muito tempo de vida, que aqueles meses com Marta tinham sido um bónus, uma gratificação inesperada. Retirara-se para aquela aldeia para escrever e morrer, não para amar e viver.

 

Marta e o doutor estão no jardim. Acaricia-a levemente, como o vento as folhas das árvores. Foi naquela casa que passaram o confinamento. Coabitavam havia três anos e aqueles meses tinham-lhe feito ver os limites de «coabitar»: um habituado a estar sozinho, outra que se realizava no contacto com a clientela. Nunca gostara de relações simbióticas e aquela convivência forçada custara-lhe mais do que conseguia admitir; para ela, também não fora fácil: passar os dias com uma só pessoa, ademais sempre a mesma, ia contra o âmago do que era.

Antes de morrer, o doutor queria casar-se com Marta e perguntava-se se devia falar-lhe nisso agora que o amor deles tinha sido sacudido daquela forma. Ter-lhe-ia o terremoto atingido os alicerces? Viviam juntos havia três anos, talvez três e meio. O livro estava pronto. Tinha sido aceite por uma editora, revisto e paginado. Faltava o título e escolher um pseudónimo: não queria que as pessoas da aldeia soubessem que tinha sido ele a escrever aquilo a que injustamente chamava «uma longa jeremiada». Durante o confinamento não fora ao médico e o cancro que lhe roía os intestinos não parara. Perguntava-se também se lhe devia dizer que ia morrer. Sabia que para ela o confinamento também tinha sido difícil, que os negócios tinham retomado mas não muito, que tinha saído daquela prova magoada. Casar-se era um acto egoísta ou, pelo contrário, ajudá-la-ia nos trâmites de heranças, etc.? O testamento estava feito e era simples: «Deixo tudo o que tenho e os eventuais proveitos futuros à senhora Marta Barbosa, etc.» Tinha sido visto por um advogado, segundo o qual casar-se não alteraria muito as coisas. Quando muito, simplificá-las-ia. O doutor lembrou-se do que sempre pensara sobre o casamento: é um acto social, nada tem de pessoal. «Caso-me perante os outros ou perante Deus. Para mim, estou casado com Marta desde a primeira vez que a vi. Não preciso de papéis.»

Resolveu dizer-lhe metade.

- Marta, quero casar-me contigo. Aceitas-me?

- Sim.

 

Morreu três meses depois da cerimónia, sem saber que Marta tinha deixado de tomar contraceptivos e ia ser pai. Passou o último mês morfinado, deitado numa cama a definhar sem se aperceber de nada do que o rodeava. O livro foi publicado, teve um sucesso de estima e caiu no esquecimento. O miúdo chamou-se Henrique, como o pai, mas na aldeia ficou conhecido por «o filho do doutor». Era igual ao progenitor que nunca vira: alto, magro, ensimesmado, delicado e pouco dado às aparências (ou muito, consoante o ponto de vista: nada do que mostrava de si era verdade). De Marta, só sei que o negócio continuou a prosperar e que se reconciliou totalmente com a mãe. Ignoro se voltou a casar-se: uma vez esta história terminada perdi o contacto com ela. O livro chamou-se «Amar até ao fim», título escolhido pelo editor e de que o doutor não gostou, mas já não teve forças para contestar. Nunca chegou a escolher um pseudónimo e a obra apareceu com o seu nome.

16.9.20

Diário de Bordos - Lisboa, 16-09-2020

Lisboa, de «cidade branca» - apodo tolo - a «cidade triste» (injusto). 

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Nesta coisa em que Lisboa se transformou e na qual não é fácil reconhecer-me, sobrevivem ilhotas, oásis, pontos de beleza, cabeços de amarração. O Tambarina é um deles. Quando chego está desoladoramente vazio (menos qundo saio). É-me doloroso vê-lo assim. Mas o Domingos é o mesmo, a cachupa não sei porque ainda não chegou (é).

- Ando longe, Domingos - digo-lhe.

- Não faz mal. Longe ou perto estamos aqui.

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Gosto de Lisboa aos pontos, como antigamente tínhamos os hurricane holes, portos (normalmente, golfos) nos quais nos devíamos refugiar em caso de ciclone. Ainda hoje os temos.

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Máscaras e palermas em todo o lado. Por muito que saiba que não há relação de causalidade entre eles, que não pertencem juntos, they don't belong together, à força de os ver juntos é difícil distingui-los.

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O nó do problema, como sempre, está em mim: convivi tanto tempo com esta gente afável, polida, hospitaleira que hoje se mascara, põe gel nas mãos de cinco em cinco minutos e não hesita em denunciar quem não usa máscara? Comprava e lia estes jornais que hoje se revelam infames? Esta gente adorável não passa de um bando de cobardolas e bufos? (Mas isso já sabias, estúpido.)

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Tantas mamas tão jovens e tão bonitas por essa cidade. A sorte que têm os meus compadres mais novos. Posso estar enganado, mas enquanto a humanidade produzir mamas assim, nada mudará radicalmente. Não há feminismo nem correcção política nem ambientalismo, animalismo, wokismo que resista a um par de mamas bem feitas num par de mãos bem treinadas. Ou ansiosas, se souberem controlar-se e pensar que é para as mamas e respectivas donas que trabalham, não para si e respectivos donos.

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Esta Lisboa na qual não quero viver... Não é que queira viver no campo, não é isso. Quero mudar-me para outro mundo.  

Gazeta Rural VI - OS LUGARES QUE DEIXAMOS

          Pensamos muitas vezes nas cidades que já visitámos, nos países onde estivemos, naqueles aonde gostaríamos de ir. Mas quantas vezes nos lembramos dos lugares que tivemos de abandonar, voluntária ou involuntariamente? (Sim, há «ter de» voluntário: uma vez estava na Horta, na Pousada. Era o meu aniversário, tinha ido jantar com uma senhora fotógrafa e bailarina – isto é uma combinação que não se inventa – americana de ascendência açoriana, o que explica a sua presença no Faial. Não seria justo dizer que era minha namorada – tínhamos iniciado uma relação afectiva uns dias antes, semana, talvez duas – mas tão-pouco era aventura de passagem. Depois do jantar – num dos restaurantes chiques da Horta, não me lembro o nome – fomos para a Pousada. Como provavelmente sabem dá directamente para a marina. A senhora era muito bonita, morena e musculada, inteligente e culta. Às duas da manhã eu ainda não tinha adormecido, ela sim. Dormia ao meu lado, solta e feliz, os longos cabelos negros espalhados pela almofada, o ventre e as pernas musculadas da bailarina à vista, a dizerem-me: «Não me deixes.» Às duas e meia da manhã decidi que tinha de me ir embora. Vesti-me, ela acordou, expliquei-lhe que ia para Lisboa e se ela quisesse vir era bem-vinda a bordo porque ia fazer a viagem sozinho. Hesitou um pouco, disse «Não vou», combinámos encontrar-nos em Lisboa e vim-me embora. Creio que este é o melhor exemplo, se bem não seja o único, de uma pessoa querer ir-se embora porque tem de ir-se embora. «Os teus cabelos, o teu amor, o teu ventre, as tuas pernas de bailarina são um repto demasiado forte para a minha fraqueza. Vou-me embora e quando nos reencontrarmos em Lisboa estaremos em igualdade.»)

          De que sítios saí, ao longo da minha vida? Saí de Quelimane e de Lourenço Marques, sem querer. De Nakhodka, idem. De Caracas, querendo. Detestei aquele país, hoje vejo que injustamente. De Lisboa. La Chaux-de-Fonds, duas ou três vezes. Aveiro, onde acabara de passar um ano. Zurique... Que horror! Ainda não estou em metade da minha vida e já deixei metade de meio mundo. Passei a vida a deixar lugares, pessoas, vidas. Viajar, muito mais do que chegar a qualquer lado é largar desse lugar, seja ao fim de quatro meses seja depois de mil sonhos. Como quando larguei dos Açores pela última vez, desta vez de avião, parecia que deixava para trás uma tonelada de basalto que trazia agarrada às costas. O meu barco chegou depois, chamava-se Don Vivo e ficou arrestado na marina de Vilamoura por causa de um polícia marítimo maldoso. Havia muitos, nesses longínquos anos oitenta. 

De onde é que já saí? De Maputo, mas ainda é cedo para pensar nisso. De Bocas del Toro – larguei, voltei a entrar, voltei a largar e ainda hoje penso no Palmar Tent Lodge onde ia todos os dias ao fim da tarde beber um rum punch e ver o mar numa das praias mais bonitas que me foi dado ver. (Não sou grande apreciador de praia, por isso dizer que aquela praia está ao nível da de Salines, na Martinique ou das do Parque Nacional Manuel António, na Costa Rica, ou daquela onde ia nas Filipinas, não recordo o nome, é dizer muito.)

          Deixei Genebra aos bocadinhos, levei quase dois anos a mudar-me para Cascais – daqui a dias estarei ali de novo, o que me leva a pensar no que é «deixar um sítio», partir. Alguma vez partimos, verdadeiramente? Onde é que ia, antes deste desvio todo? Zurique. Nunca mais ali voltei. Morava na Niederdorf, no centro do centro. O apartamento ficava por cima de uma boutique da moda, que não tinha cabines para as senhoras mudarem de roupa. Quando saía para ir trabalhar – trabalhava nas limpezas, para um refugiado político checoslovaco que só não me surpreendeu porque já tinha estado na Rússia Soviética. O homem conhecia o conceito de exploração até ao fundo e levava-o a sério -  via as senhoras na boutique a mudar de roupa no meio da loja, visão abençoada naquele tempo em que ninguém usava soutien. Limpava bancos (literal, não metaforicamente). Um dos que limpava tinha uma quantidade que me parecia ilimitada de obras do Christo e ali me familiarizei com as obras deste artista. 

          Outra cidade que deixei várias vezes e nunca deixei foi S. Luís do Maranhão, onde ainda hoje um bocadinho de mim se passeia pelas ruas e ao fim da tarde vai beber uma cerveja ao Mercado do Peixe, ver o decote da Jeny e trocar com ela sorrisos de entendido: «Este decote serve para vender cervejas», diz-me. «Eu sei, Jeny». Falávamos sem trocar uma só palavra. (Não sei de onde vem este gosto pelo entendimento tácito. Suponho que seja a noção de pertença a um grupo. Esta grande fraternidade de pessoas que não se conhecem, mas conhecem as mesmas coisas, viveram as mesmas situações, passaram pelo mesmo e sabem que hoje sou eu e amanhã és tu e depois de amanhã será outro e é para isso que estamos cá.)

          Deixei Antigua, aonde espero nunca mais voltar; Bequia, onde quero voltar para morrer. Deixei St. Martin, ilha mágica porque mistura tudo o que as outras são. Deixei Jost van Dyke vezes de mais porque ali se  bebe o melhor cocktail do mundo – chama-se Painkiller e é o único cocktail que conheço cujo nome corresponde à realidade. Deixei Bitter End, fim amargo de tudo o que de bom aquelas ilhas têm. Deixei o Burundi, vencedor vencido e o Zaire, vencido mas revoltado. Deixei Kindu, uma evacuação como aquelas que se vêem nos filmes, soldados armados por todo o lado, o avião a parar para me deixar entrar, uma mãe a ter de escolher qual dos filhos a acompanharia na fuga.

As partidas marcam mais do que as chegadas, com a possível excepção de Bequia (pronuncia-se Béqüei) porque ali mal cheguei e pela segunda vez na vida vi o lugar onde quero morrer (o primeiro é praticamente inacessível. Chama-se península de Burton e fica na margem oeste do lago Tanganica. Não se pode querer morrer num lugar ao qual não se pode voltar). A Bequia quero voltar, todos os marinheiros querem. Richard Dey escreveu as coisas mais bonitas que há sobre esta ilha. Não tenho o livro comigo, mas é de lá que vem aquele verso que não me deixa: «I know them. I am one of them.»

          Já deixei mais sítios do que aqueles a que cheguei: a matemática das viagens não é algébrica, é alquímica.

 (Para o R. A., com um abraço.)