31.12.20
Mistérios
30.12.20
Diário de Bordos - Lisboa, 30-12-2020
Por onde começar? Cronologicamente:
- A Ler por aí... fechou. De certa forma, é uma a porta que se fecha, de outra uma que se abre. Prefiro esta versão: um porta que se abre;
- Mais um jantar maravilhoso no Qozco. Um restaurante ao qual é de acorrer em massa, impedir que feche, temos que lutar contra a insanidade ambiente. Sinto-me burro cada vez que lá vou: como não fui antes? Que comida inacreditável de boa, que simpatia no serviço, que tudo de tão bom!
- No caminho para casa, exposição do Sebastião Salgado na rua Augusta. Cada vez que vejo qualquer coisa do homem penso na história do fotógrafo francês chegado a Bujumbura num avião de carga, deitado em cima dos sacos de já não sei o quê. Provavelmente, arroz. Já aqui a contei, deve andar por aí algures. Externalidades: a música horrível, xaroposa e mal tocada de um desses tocadores de acordeão romeno (ou coisa que o valha); a luz, insuficiente a partir de metade da mostra; a distância entre as fotografias, demasido grandes para o demasiado perto que estavam. Internalidades: sem ser grande fã do senhor, é forçoso reconhecer que é um grande fotógrafo. Não é o génio que a esquerda faz dele nem a nulidade que a direita pinta. Amanhã volto lá.
- Mexi nos botões do telecomando da televisão e descobri que a Mezzo tem (pelo menos) dois canais. Sou de reacções lentas, eu sei; algumas são imperdoáveis, de tão demoradas. Estou nesta casa há mais de um mês e desde que pus a televisão a funcionar e encontrei a Mezzo nunca mais mexi nos canais. No Mezzo que até agora tenho ouvido desde esse dia, um músico falava da desigualdade de salários entre homens e mulheres. Faço parte daquele grupo de pessoas para quem os músicos devem fazer música, coisa em que são normalmente muito bons (pelo menos aqueles de quem gostamos) e não devem falar, actividade em que deixam invariavelmente a desejar. Tudo o que vá para além de «Hello, are you allright?» no palco é prescindível. (No limite, mesmo esta pergunta o é. Já todos sabemos a resposta.) O único músico que valia a pena ouvir falar era Leonard Cohen e esse já não pode fazê-lo, para generalizada lástima da humanidade (e Frank Zappa, às vezes). De maneira atirei-me a um dos telecomandos (as televisões agora têm dois, suponho que por uma questão de igualdade de género ou de paz nas famílias) e tenho música decente, uma senhora cujo nome ignoro a cantar scat (e palavras) sumamente bem, acompanhada por um pianista assertivo, como agora se diz, um baixo que faz aquilo que todos os bons baixos fazem - fazer-se ouvir sem se fazer ver - e um baterista para cima do correcto.
- Tudo isto acompanhado por um vinho tinto da Adega de Vila Real, um real vinho da adega, um real prazer da vila, uma delícia de tinto que me trouxe à memória um senhor da «Bila» (aspas porque cito) que gosto de ler, as francesinhas de um restaurante dali que eram tão boas que voltei lá para ter a certeza (eram). Preciso de voltar para Palma - todo o meu cérebro mo pede - mas um dia descobrirei que o caminho entre dois pontos aleatórios deste planeta passa por Portugal todo, de sul a norte, em ziguezague como se estivesse à popa arrasada (ou à bolina cerrada, para quem preferir).
Status
29.12.20
Ironia da poupança
Beber vinho «caro» por não ter dinheiro para comprar vinho barato (aspas porque chamar caro àquilo é como chamar mar a um lago, coisa reservada aos teutões e outras gentes poupadas).
Ficção, não-ficção
Vou regressar à não-ficção. Ler romances e poesia é necessário, mas não é suficiente.
Tudo, nada
Vejo-te, mulher, cesta carregada de paz, fruto maduro de se morder para a vida, noite que se alegra ao ver-te, dia que sem ti vagueia sem destino, orla de uma costa desenhada dedo a dedo, sorridente e hospitaleira. Acolhes-me como a luz do farol acolhe o navegante exausto. Passeio-me em ti como no deserto o homem perdido se reencontra repentinamente depois de perder a solidão.
Trazes-me a paz e eu nada tenho para te dar em troca: tudo contra nada.
Conversas de noite
O melhor é apagar a luz e esperar tranquilamente que o dia chegue, carregado de vinho, nozes e figos, um dia mediterrânico, dia ventre do mundo, berço da civilização, dia de palavras auto-sustentadas, palavras de andaimes interiores, de mares traço de união, mares súbitos, repentinos, inesperados.
Esse dia chegará. Basta apagares a luz e esperar. Tudo acontece quando a brisa de um mar longínquo te chega à noite.
Falta-te uma noite no mar. O movimento de um casco, o suspiro satisfeito e saciado do corpo que deixaste no camarote para entrares de quarto, a Lua demasiado irrequieta para te indicar o caminho, o café que te aquece os dedos e o desejo. Nada ver senão por vezes os clarões do verde e do encarnado, o branco esganiçado dos panos, a conversa da proa com as vagas, o adeus líquido da esteira, o negro, agora que a Lua se pôs nas bandas do Oeste. Não tarda o dia, mas tu preferias que ele não viesse já: queres ouvir o que não vês, ser parte integrante dos diálogos, queres não-ver, simplesmente. O que não se vê lá fora desenha-se claramente cá dentro. Os teus olhos abrem-se, do tamanho do mundo.
É noite, não vês nada e nada te vê. Excepto tu a ti, o mar o casco, o vento o pano: é a melhor conversa do mundo, antes da luz chegar.
28.12.20
Obrigado a todos os denunciantes que durante esta crise nos defenderam (e ainda defendem)
Graças aos denunciantes os velhos terão uma velhice maravilhosa, afastada daqueles que amam e os amam, isolados em casa e em lares, protegidos. Graças a si, cara ----, impediremos estas opiniões nefastas de se difundir. Obrigado!
27.12.20
Manifesto anti-frio
A única verdadeira revolução de que Portugal precisa é acabar com o frio dentro das casas. Proponho que se faça um manifesto anti-frio, subscrito em primeiro lugar por quem já viveu em países simultaneamente civilizados e frios. Numa segunda fase, as pessoas de idade superior a cinquenta anos. Terceira fase: crianças, adolescentes e jovens adultos. Quarta fase: restante população. Políticos não teriam direito a subscrever o documento nem, por conseguinte, a receber o dito fim do frio, se e quando ele chegasse.
PS - com a óbvia excepção dos políticos de quem eu gosto. Esses teriam direito. Claro.
O corpo, numa planície, nu
O corpo deixa-te, pouco a pouco. Vai-se tudo embora: os olhos, os ouvidos, a força, a vontade... Tudo. Ficas nu. À tua volta uma planície sem fim, desolada, cheia de animais jovens e belos. Começas a embuscar os mais velhos, os mais feios do que tu, a acarinhá-los. São eles que te dão a ilusão de que viver nu no meio da planície é possível. Tu sabes que é uma ilusão, mas não te preocupas. Importante é mantê-la controlada, seres tu o mestre. A savana à tua volta é abominável. Dois blocos de basalto, surdos, ignaros de conceitos como bondade, empatia, compaixão guardam-lhe a entrada. Tu olhas, sozinho, vês passar o teu antigo corpo, já te pertenceu, já foi teu, mas se o puseres agora não te serve. O quadro é simples: amarelo, o negro dos basaltos, corpos de todas cores. Às vezes chove. A planície reverdece, a água chilreia nos canais, os animais deixam-te em paz, os basaltos transformam-se e adquirem uma aparência humana. Há vida, temporariamente. Depois esvai-se e leva-te mais um bocado do corpo. Tudo volta ao normal. Aprendes a respirar lentamente, a ver devagar, a ouvir em surdina, como se o teu interlocutor fosse uma vasta gama de silêncios. Silêncios de todas as cores, gama toda da ausência de sons. Os teus movimentos tornam-se bruscos, descontrolados, azedos. Não vês, não ouves. Resta-te a voz, o olfacto, o... não, o tacto também já foi.
As cores, os sons, os corpos fundem-se numa lava escura e fria, colante. Enterras-te. O teu corpo transforma-se numa vasta gama de nadas. As palavras deixam de ter sentidos: são dispensáveis.
Sem palavras e sem corpo és - finalmente - livre.
«Não avançamos para a verdade. Mudamos de dogmas, é tudo»
Os dogmas que aí vêm - ou já estão - cilindram todos esses conceitos e não os substituem por nada melhor. Eles também suscitarão, a seu tempo, reacções tendentes a repor o fiel da balança a caminho do centro. Daqui a trinta anos, a palavra gay será tão inaceitável como maricas é hoje (e haverá pessoas a lutar pelo direito de a usar, como hoje há quem resista e continue a dizer maricas, porque não lhe dá nenhuma conotação pejorativa e não vê razão para tanta sanha contra o léxico, porque não reconhece às palavras o poder de mudar o mundo. É este que as muda, não aquelas este).
26.12.20
Micro-jogo
Era como se estivéssemos a jogar pinguepongue, mas em mesas separadas. Ela numa, eu noutra, ao lado. Ouvíamos o barulho das bolas, mas nunca conseguíamos devolvê-las. Um dia, trocámos as duas mesas por uma cama e acabámos com o jogo.
Frio
A solução é relativamente simples e fácil de encontrar: erguer diques contra o que vem de fora e impulsionar o que vem de dentro. Os diques devem ser selectivos e separar o bom do mau. Idem para os mecanismos interiores, por difícil que seja encontrar qualquer coisa boa cá dentro. Alguma haverá. «Fugir para dentro», como dizia Nuno Júdice. Diques filtrantes, inexpugáveis mas permeáveis, Filtrar, filtrar, eis a palavra chave. Reduzir a quase zero, mas não a zero. Filtar o que entra, expulsar o que está dentro, miasmas, eflúvios a esgoto, pestilenciais, cheiro a lepra.
Expulsa tudo. Em troca, terás frio, mas antes isso.
II
Que frio? Há uma discrepância entre o frio que vem de fora e o que vem de dentro? Trata primeiro do exterior. Começa pelo mais fácil. Cobre-te dos pés à cabeça, bebe vinho quente, refugia-te numa gruta aquecida, tapa-lhe a entrada com um rochedo. Aquece-te. Só depois estarás em condições de tratar o outro.
Imóvel. Quanto mais quieto estiveres, mais depressa eles sairão. Olha-a nos olhos. Não tenhas medo. Deixa-os partir. Um dia partirás tu também. Sem medo.
25.12.20
Razão, rebeldia
O problema é a pressão social, ampliada pelas "redes sociais" (aspas porque cito). Voltámos ao tempo das aldeias, só que agora não conhecemos os vizinhos. Sou um optimista: acredito nos pêndulos e na rebeldia. Esta nunca morrerá, aqueles nunca cessarão. C. diz-me que a sinusóide é atenuada e que o pêndulo parará. Sim, claro, mas não será amanhã a véspera. E que fosse. Nada podemos fazer, se não manter a dignidade, a calma. Levamos o féretro ou só o vemos passar? Com um pouco de rebeldia, talvez consigamos alterar-lhe a trajectória. A verdade é que a nossa civilização já morreu mil vezes, desde os gregos e a seguir os romanos, os bárbaros, a Idade Média, a Renascença... Nunca deixámos de morrer e de continuar vivos.
A civilização ocidental não vai durar sempre, claro. Mas não serão os novos dogmas a dar cabo dela. Todas as sociedades vivem de e com mitos. Há palermas que acreditam no poder salvífico dos automóveis eléctricos, na "pegada ecológica" (aspas porque não gosto de palavrões), no "género" (ditto), no poder do homem para mudar o clima? Sempre houve palermas e mitos. Já se queimaram mulheres por andarem montadas em vassouras, ou se acreditou que as doenças eram provocadas pelos pecados dos homens. Já se pensou que a Terra era o centro do universo ou que os corpos mais pesados caem mais depressa do que os outros. (No vazio não caem, mas sem vazio é difícil acreditar nisso.) E nada nem ninguém impediu Galileu, Copérnico, Spinoza, Mozart, Beethoven, von Bingen, Agostinho, Bach, Einstein e tantos outros de existir. A inteligência não vai desaparecer, vai simplesmente mudar. Talvez no futuro um teste de QI seja feito baseado em jogos de computador, caso em que qualquer puto de hoje bateria qualquer Wittgenstein. Mas não deixará por isso de ser inteligente.
Quando as mudanças apareceram nas bicicletas, muita gente reclamou: o "verdadeiro" ciclismo era em bicicletas sem mudanças (e de cubo fixo, ainda por cima). Não é. Salva a possível excepção do doping, o ciclismo de hoje é tão verdadeiro como o do passado. O futuro não será necessariamente melhor do que o presente, mas tão pouco será pior.
Não sei. As civilizações acabam, sem dúvida. Não me parece que o fim da nossa esteja ao virar da esquina. Seria uma lástima que o ultimo acto ficasse associado a um estúpido vírus que não sabe sequer fazer mal a quem não padece de outras (muitas e graves) maleitas. É verdade que a estupidez - ou melhor, a histeria - que este vírus revelou pode legitimamente levar a pensar que o fim está próximo. Uma civilização com os meios técnicos da nossa não consegue reagir racionalmente a isto?
Desde a Idade Média que andamos a lidar com histerias colectivas (documentadas. Não registadas deve ter havido muitas antes disso). Esta não é diferente. Não mudámos. Não vamos desaparecer amanhã. Vamos continuar a ser os homens imperfeitos que sempre fomos, nem melhores nem piores.
E sim, sobreviveremos à pressão social, porque a razão e a rebeldia não desaparecerão. Afinal de contas, estão connosco há milhares de anos. Jesus, esse magnífico rebelde, limitou-se a consolidá-las, a dar-lhes um âmbito mais vasto.
24.12.20
Instruções
Simples questão de ver claramente, apesar do nevoeiro espesso e branco como puré de batata. Adivinhar como quem vê. Fazer da suposição certeza.
Ver como um cego.
Nota bene
Diário de Bordos - Lisboa, 25-12-2020
Estou com saudades da neve, de frio a sério, de casas aquecidas, de fondue e de raclette.
Uma cidade coberta de neve é como chegar a casa e ver o corpo amado adormecido debaixo de um edredom espesso, leve e macio. O melhor da neve é o silêncio. A cor e a luz vêm depois. E a ausência de ângulos agudos. A neve arredonda e suaviza tudo por onde passa e se poisa, absorve os ruídos, silencia os passos e distrai o olhar, incapaz de se fixar num ponto concreto.
Mas como quem não tem neve tem amigas e uma bicicleta Vitus, "vou levando". O jantar foi bacalhau cozido, um dos meus pratos favoritos; a amiga e anfitriã foi a M., daquelas amizades que vão crescendo dia a dia, palavra a palavra, olhar a olhar, sorriso a sorriso, silêncio a silêncio... sei lá, peça a peça, daquelas que fazem da amizade aquilo que é. O regresso a casa foi rápido. Descer leva menos tempo do que subir, faça-se o que se fizer (falo de bicicletas a pedais. A electrons é outra história, menos agradável).
A bicicleta é um meio de locomoção maravilhoso. O resto é conversa de pedalar na maionese. Tem o defeito de não ser prática na neve. Não faria aquelas descidas se as estradas estivessem brancas (e as subidas tão pouco, mas por outra razão).
Acho bem: deixa-se a neve para a nostalgia, a amizade e os pedais para hoje. É uma boa divisão de tarefas emocionais. (Curioso, este calendário: só tem hoje e amanhã. Tudo o que ficou para trás tem o nome genérico de "Nostalgia".)
Feliz Natal! (Isto é simultaneamente uma exclamação de júbilo, uma descrição e um voto dirigido a todos os que me lêem.)
23.12.20
Diário de Bordos - Lisboa, 24-12-2020
Dióspiro é fruta fugidia, fogo de Zeus, fruto dos deuses, fruto para todas as horas. Há melhor coisa de se comer à uma da manhã, hora de cama para os senhores do Olimpo, hora de saída para a galdéria da insónia? Não, não há. (Aproveita-se e fico a saber porque fazia uma enorme confusão entre kaki e dióspiro: são a mesma coisa. Passa-se de fogo e deuses para calças e calções num abrir e fechar de olhos.)
Ou seja: começo bem o dia de Natal. Vou jantar a casa da M., que teve a simpatia de me convidar. Verdade seja dita que o convite tem 99,98% de amizade e 0,02% de simpatia (Não!, não estou obcecado com a Covid!) O que não retira valor nem a uma nem a outra, claro. Amanhã o almoço será em casa da T. Isto é que vai ser um Natal!
Agora só falta que o pai do dito pense no P. e me ponha uma viagem para Palma no sapato. (Não disse que dióspiro era fruta fugidia? Começou na cozinha aqui ao lado e acaba em Maiorca. "Não há machado que corte / a raiz ao pensamento"...)
E ao tempo? Ao tempo sim: decidi que os degraus vão ser baixinhos e subidos um a um. O primeiro vai ser tratar da vista. Voltar a ver normalmente parece-me um objectivo legítimo. Meio surdo e meio cego é forma errada de entrar na terceira idade, que está aí tão perto. A seguir virá outro e depois outro e depois por aí acima até sair do buraco. Sempre fui o meu melhor antidepressivo e ainda não passei do prazo. O princípio activo está cá e bem activo, seja Deus louvado e agraciado.
Se um dia aprendesse a cantar sem assustar quem me ouve, a minha primeira canção seria um lauda. A seguir, um Deo gratias (sou ateu, mas não tenho repugnância nenhuma pela palavra Deus). Depois, viriam as outras todas, ao molhe. Até acabar com o Leonard a cantar Hallelujah, Avalanche, Anthem, Dance me to the end of love e eu a ouvir enquanto construía altares: para as mulheres que amei, para as que não amei, para as que me deixaram e - finalmente, o maior de todos - para as que amei, deixei e ainda amo. Broken hallelujah, Leonard, if it be your will (that I speak no more... If it be your will to let me sing). Hey, that's no way to say goodbye. Não há boas maneiras de dizer adeus, Leonard. Com a admitida excepção daqueles que se transfomam em olá, ou nunca deixaram de o ser. Olá, adeus, olá... Há antónimos que parecem tranças ou irmãos gémeos.
A noite avança, a galdéria vai para a cama com tudo o que lhe aparece pela frente. Agora está com o Cohen, não tarda será o gajo dos Magnetic Field, também percebe de amores e das diferentes formas de riso que exigem. Não sei. Ela que faça o que quiser.
Charlotte Gainsbourg, L'un part, l'autre reste.
Vá, estúpida, deixa-te de pieguices. Vai para a cozinha.
Lisboa, não me digas que me amas, eu acredito
O "gambrinus" da Casa da Índia - um honorável, antigo, bonito e sério restaurante sito ao Calhariz - chama-se, simples e humildemente, "mista" (ou "imperial mista", para quem não gosta de atalhos ou é recem-chegado às fainas). O nome, justo é dizê-lo, é o mesmo em todas as casas com a antiguidade, a experiência, a humanidade da Casa da Índia, onde hoje não resisti a vir beber uma mista e comer um pastel de bacalhau.
Já fui cliente frequente desta casa. Hoje não sou. Mas a fidelidade, a lealdade, a profunda emoção que sinto quando vejo estas mesas corridas cheias de gente aos gritos, às amizades, às promessas de "vamos embora, este é o último", às anedotas com duzentos anos (agora calhou a do Black and White em copos separados) - essas são as mesmas. Há tempos, escrevi que amar África é como amar uma mulher bela que nos trai constantemente.
Vou ter de adaptar o dito a Lisboa, cidade que não me trai - nunca me traiu - mas por vezes me faz declarações de amor às quais preciso de muita força para resistir e não levar a sério.
Dissociações
a) Entre o meu cérebro (coitado!), os meus dedos e o teclado do meu computador (ou caneta, quando é o caso);
b) Entre o meu profundo e irremediável ateísmo e a clara preferência que tenho por Jesus sobre Maomé ou Buda;
c) Entre a minha carteira e o meu (inexcedível bom) gosto;
d) Entre a minha vontade de beber um bom café e a falta de vontade de o fazer.
22.12.20
Ovos podres
Fui bloqueado no Facebook. Não por causa das minhas opiniões sobre a trágica palhaçada que vivemos, mas devido a uma ironia, claramente identificada como tal.
Há três hipóteses:
a) O bloqueio foi decidido pelo algoritmo. É a minha preferida, se bem me pareça estranho a "máquina" ter levado quase dois dias a reagir.
b) Foi decidido por um censor humano. A ser verdade, o Facebook tem um sério problema de recrutamento.
c) Fui denunciado. Pouco provável e não vale a pena perder muito tempo com isso. O comentário "faltoso" estava na página de uma escritora e é quase impossível que os outros comentadores não tivessem visto a ironia - repito, claramente identificada.
Seja qual for, isto está a tornar-se grave. Lembram-se d'O ovo da serpente, do Bergman? Lembrem-se. E também do Cabaret, de Bob Fosse: enquanto cantamos e rimos, o ar começa a cheirar a ovos podres.
Futuro radioso
21.12.20
Toda a gente
Diário de Bordos - Lisboa, 21-12-2020
Antigamente, no Gambrinus empilhavam-se pires para se manter a conta dos gambrinus que lá se bebiam. É uma forma bonita de contar os copos, mais do que assentá-los num papel ou num computador. Não sei se ainda hoje é assim: não vou àquela casa desde o grande terramoto de 1755, mas hoje pensei nela. A minha forma de contar os ti'punch que bebo é manter dentro do copo os quartos de lima que fui usando. O princípio é o mesmo, se bem o método dos pires seja mais bonito. Hoje pus o Mingus no iucoiso e fui bebendo ti'punch - não ao ritmo da ira do homem, seria demasiado frenética - mas ao meu ritmo, melancólico, ritmo de prisioneiro.
A liberdade absoluta é a prisão absoluta e tal como esta, aquela não existe: todos estamos presos a qualquer coisa, seja ao John Zorn que agora oiço, seja aos afectos, ao dinheiro (ou falta dele), a um corpo e uma mente que se esperam ou desejam, seja ao que for que erijamos em prisão. «Cada homem escolhe as prisões que mais lhe convêm e é a essa escolha que se chama liberdade».
A ironia do Zorn faz-me rir. Aí está outra prisão: o humor. É uma das piores, porque simultaneamente nos prende e nos liberta. Prisão chave das outras prisões todas.
Estou preso em Lisboa pela razão simples de que não é aqui que devo estar, mas é aqui que tenho de estar. Tanto gostaria eu de resolver de uma vez por todas estas duas dicotomias: entre o que tem de ser e eu gostaria que fosse, entre o que tem de ser e eu que eu gosto que seja. Lisboa está triste, mas assim estará Palma, assim estão todas as cidades vítimas desta loucura. Cada vez acredito mais nos mecanismos neurológicos das religiões, sejam elas sacras ou laicas. Não é de certeza por acaso que se reage hoje a um vírus como se estivéssemos na Idade Média. A diferença sendo que ontem se invocava Deus ou o demo e hoje se invoca a ciência - da qual a maioria sabe tanto como sabia de Deus há uma dúzia de séculos. O denominador comum é o medo e esse medo não nasce do acaso. Antevejo com prazer um regresso à leitura de não-ficção. A neurologia deu passos de gigante desde o Changeux, o Laborit, o Monod, o Jacob (e os outros todos que li na mesma leva e não são dessa área). Mas sim, vou voltar a essas leituras, vou investigar os novos autores dessas áreas, vai ser bom. Je suis devant ce paysage féminin / comme un enfant devant le feu vai tornar-se Je suis devant cette perspective de connaissance / comme un enfant devant le feu. Venham eles, assim me volte a vista.
(A lista dos comportamentos indignos, etc. é vasta e inclui coisas como «torce[r] a cabeça de forma estranha», «não cessa[r] de apontar ora para os dedos ora para si mesmos», etc. O mais bonito vem no fim: «outros ainda estão sempre a rir a cada palavra que dizem, como se fossem meninas namoradeiras ou palhaços sem compostura. Todavia, o autêntico decoro manifesta-se num porte sóbrio e grave, aliado a uma atitude jovial.» (Partilho inteiramente esta opinião, que continua com o «Não quero dizer...» acima mencionado.)
20.12.20
Objecção ao romantismo
Como um galope numa praia deserta ao pôr-do-sol. O romantismo não descreve a realidade mas chateia os cavalos, que a essa hora preferem estar na box, descansados.
Boa notícia
Uma mulher que não vai para a cama na primeira noite é uma boa notícia: significa que haverá pelo menos uma segunda noite.
Louvor da cama
Descobri já muito perto dos sessenta o prazer do sono (não digo da cama para evitar duplos sentidos, mas é a esse que me refiro, o de estar na cama a ler, a coscuvilhar o Facebook ou simplesmente a receber o calor dos edredons), da languidão e agora entrego-me a ele com o fervor dos recém-convertidos. Ao contrário do que sempre pensei, quando se está na cama o tempo não pára nem se perde. Quando muito, torna-se um bocadinho mais sinuoso, mais meândrico, grande rio tranquilo dos meus sonhos. Deixo-me levar, enredar pelo calor, penso em quem gostaria de ter so meu lado ou, pelo contrário, quão bom é não ter ninguém. (Quem não sabe estar sozinho é incapaz de acompanhar. Estar acompanhado não é o antónimo de estar sozinho, é o seu complemento directo.)
A noite é uma ponte na qual é bom perdermo-nos. Amanhã tenho que fazer e hoje também: dormir, abrir docemente a porta às tarefas que me esperam pacientes, sonhar.
Como é que consegui durante tanto tempo pensar que isso tudo era perder tempo? Não é. É construir os alicerces do dia seguinte, pôr-lhes uma plataforma em cima.
Diário de Bordos - Lisboa, 20-12-2020
Os últimos dias têm sido frenéticos - agradáveis mas frenéticos - e hoje decidi instalar um pouco de calma na melancolia. O dia ajuda, é preciso dizê-lo: a temperatura é suave, o sol azuleja o céu e aquece a rua, descobri um café perto de «minha» casa que é um prazer para todos os sentidos (o único defeito é só terem aquelas horríveis cervejas «modernas», mas enfim. Com isso pode um homem bem). Antes fui comprar pão à padaria Ceres, que tem o melhor pão do universo e aproveitei para beber um café, bastante bom. O cheiro do pão quente escapava-se das entranhas da loja, a mesa fica à janela, uma vidraça grande que nos consegue simultaneamente aproximar e separar da rua, ambos com resultados apreciáveis. A área foi invadida por franceses e a qualidade da alimentação ressente-se positivamente. A tristeza escorrega por mim como o sol pelos pelos de um gato. Vou passar a tarde em casa a trabalhar, dormir, comer (gratin dauphinois, ça va de soi) tudo isto em camadas alternadas como as de um mille feuilles.
Há que tratar bem a melancolia, sentimento nobre s'il en est. Acariciá-la e enchê-la de ternura; ela agradece e retribui.
.........
A cozinha, a escrita e o mar são os três vêrtices fixos de um quadrilátero que define a minha vida. O quarto oscila, alterna, varia entre a solidão, o amor, um corpo que se dá, a leitura, a bicicleta, a música, a fotografia. Não me posso queixar: o dinheiro nunca fez parte dessa geometria e agora é tarde para o incluir no filme. Fica como está, não se lhe mexe mais na montagem, nem no som.
Enquanto houver domingos como este, a única acção possível é a de graças.
18.12.20
Vento e outras coisas
Digamos que não percebes nada: trata-se de uma planície, de um fogo que vem de longe, de um rio que algures lhe faz frente, dos animais que a ele - rio - vêm beber. Não percebes nada de rios, fogos ou planícies, mas sabes de sedes. Agarremo-nos a elas, às sedes que vêm de longe e tu tão bem conheces. Queimemo-nos: não há tempo que não cure uma boa queimadura nem deserto que não absorva um rio. Pensa no vento: não o vês, pois não?
Memória do fogo
Há uma espécie de lugar que não é bem um lugar. Tão pouco é uma espécie. Não passa, se queres saber, do espaço vazio que em mim deixaste, uma espécie de espaço, uma espécie de vazio, desocupado desde há muitos anos antes de te conhecer.
Chamas-me à memória as chamas que há muito tempos me chamam. Uma espécie de vazio que preenches sem querer. Não há chamas nesta planície senão as tuas, as que chamas, as que me aparecem em labaredas enormes, daquelas que queimam o tempo, me queimam, te tocam as rugas com as quais as fitas. As chamas não são indecisas. Indeciso é o tempo: vê-te e não sabe que fazer. Eu olho para o tempo e deixo-o passar: tu vens nele.
Um lugar, tempo
A ideia é simples: fazer uma gincana com os corpos de ontem, hoje e amanhã. Ver quais são os mesmos. Ver-te estendida no chão do ginásio e pensar: "já te vi antes. Habitaste-me a memória desde quando ainda não te conhecia. Nela, memória, ficarás até depois de nunca, ou de sempre, como preferires. Eu direi ao relento que te guarde, fresca e sorridente, rugas ao canto dos sorrisos (é o lugar delas, eu sei). Dir-lhe-ei também que te estou grato e isso merece o teu lugar, o lugar que hoje ocupaste em mim, muito mais importante. O caminho é longo, tem altos e baixos. O tempo não é plano. Nunca foi. Já te vi antes de te ver e ver-te-ei depois. Tens um lugar no meu tempo e o meu tempo tem um lugar para ti."
Prioridades
É importante que tenha rugas nos olhos: sem elas, uma mulher não pode mostrar se gosta de rir e muito menos se já chorou.
17.12.20
Diário de Bordos - Lisboa, 17-12-2020
Mal Waldron e Steve Lacy impedem de ir para a cama até o mais heterossexual dos homens. O álbum chama-se One-Upmanship e só ele justificaria os oito euros e qualquer coisa que pago por mês ao Youtube. Deve ser o dinheiro mal gasto mais bem gasto de sempre. O fdp que me ficou com os CD devia queimar-se no inferno dos marinheiros (infelizmente não pode: não é marinheiro. É yachtie, uma sub-espécie de sub-homens do mar cujo trabalho consiste basicamente em lamber cus e lamber conveses. Ganham uma pipa de massa por isso, vá lá. Putas por putas antes bem pagas).
Bom, passado este bocadinho de raiva controlada: não tinha o One-upmanship. Tinha uma série de discos do Mal, dois ou três do Steve, mas não este. Que se lixe: faz sempre bem desaguar as iras comprimidas. Um dia chove a sério e ofereço uma casa - uma janela, vá - a um bom vendedor de discos de ocasião. (Com limites: não pagarei duzentas e cinquenta libras esterlinas para readquirir From gardens where we feel secure, por exemplo, miss Astley que me perdoe. Antes mais uma ronda de insultos ao filho de um comboio de putas, etc.)
De modo fico na sala a ouvi-los. Aproveito e bebo um copo da mistura de aguardentes que herdei recentemente e penso no médico de amanhã, no almoço de amanhã. em tudo de amanhã. Deve ser a primeira vez nas últimas semanas que penso tanto tempo para a frente. Consigo finalmente projectar-me no futuro, que alívio.
Nas tintas
É com muitos lamentos, lástimas e lágrimas que lembro aos meus amigos pró-Covid - reais e FB - que penso daquilo que eles pensam sobre a Covid o mesmo que eles pensam do que eu penso. Um balde de tintas, um contentor de tintas. o mundo todo de tintas. Eles pensam o que 80% das pessoas pensa e para mim a relação causal entre «maioria» e «ter razão» é nula, inexistente, mera ilusão de óptica, vício de raciocínio. Uma mentira partilhada por muita gente não se torna verdade, tal como uma verdade não o é mais por ser universal.
16.12.20
Destinos
De um corpo o traço, de um azar a chuva, do amanhã o sol. Areia quente, molhada, moldada. Dois traços, duas chuvas, dois braços, dois moldes. Destinos.
Traço sobre traços
Em frente
A maneira correcta de se sair de um pântano é andar em frente. Se se andar às voltas, não se sai. Nem de um pântano nem de lugar nenhum, aliás.
O problema de "andar em frente" é definir "em frente". Andar toda a gente sabe o que é, desde o primeiro aniversário. "Em frente" é mais difícil. Não basta opor frente àquilo que ficou para trás. Fia mais fino: frente inclui tudo, incluindo o que já foi.
Aliás, voltar para trás é frequentemente a única forma de andar em frente.
Diário de Bordos - Lisboa, 16/12/2020
14.12.20
Expira
Enrola-te se quiseres na noite, no cansaço, no medo, no frio. Todos os braços estão abertos para receber quem neles quer entrar. Aconchega-te na música que ao longe ouves, deixa-te ir por esse rio abaixo, hirto, tronco de uma velha árvore, duro e pálido cadáver que sonhas ser, como foste em vida. Sonha: da solidão levas o melhor, da companhia também, do amor conheceste o suficiente para encher três rios. Morre farto, enredado nesse cansaço de que não te separas, nesses braços que te asfixiam. Morrer não passa de oferecer ao passado o futuro embalado e selado.
Respira fundo. Expira.
O ponto da (minha) situação - I
13.12.20
Diário de Bordos - Lisboa, 13-12-2020
Ontem houve um jantar da marca Serpa, a certa altura apareceu misteriosamente uma garrafa de rum Mount Gay - para quem não sabe, a melhor relação qualidade - preço para praticamente tudo, desde shampoos a bebidas passando por vassouras, bloco-notas e outros objectos imprescindíveis da vida quotidiana e hoje o meu corpo passou o dia todo chateado comigo. Tive de o fazer dormir uma grande parte da manhã e da tarde, proporcionar-lhe um revigorante passeio de bicicleta já noite fechada e fazer uma carne picada no forno com batatas hasselback para ele se reconciliar, finalmente. (E mesmo assim com uma condição: ir já para a cama, outra vez.) Do jantar não falo, porque se não me importo de falar do que é bom acho detestável falar do que o é muito, muito, muito. Pode dar falsas impressões a quem me lê. Do resto do dia já falei, nada a acrescentar.
Senão talvez lamentar a preponderância que o meu corpo adquiriu. É um chato e eu gostaria talvez de lhe explicar que não aturo chatos e que se ele pensa que vai passar assim o resto dos dias está muito enganado.
Fica o aviso feito, meu velho de mim.
Escondo-me nas curvas das letras, revelo-me no sedoso de uma pele.
12.12.20
Monstros
De monstros, eu sei. Estou rodeado deles, sou pasto deles, sou o alvo da sua desmedida fome, imparável bulimia. Monstros, à noite, debaixo e em cima da cama; de dia, atrás da porta, prontos a saltar ao mais pequeno sinal de fraqueza. Monstros: tomei-lhes o gosto e nunca mais me largaram, até hoje.
11.12.20
Medo
Não tenho medo? Tenho, claro. Só os imbecis não o têm. Ser corajoso não é não recear nada. Isso é ser idiota. Ser corajoso é saber lidar com o medo, saber geri-lo: passar por cima dele quando é preciso, ceder-lhe quando é sensato. Se me disserem para ir para o mar sabendo que um ciclone se aproxima, eu não vou. Tenho medo. Se estiver no mar e um ciclone chegar, lido com ele o melhor que posso e esqueço o medo, que de nada me serve. Antes pelo contrário, só atrapalha. Aquilo que se sabe deste vírus é muito mais do que o que se desconhece: foi isso que nos permitiu fazer vacinas tão depressa. (Em contrapartida, o resultado das vacinas é desconhecido, esse sim. Pode inventar-se tudo menos tempo.)
Em relação à Covid, não tenho medo: é inútil, desnecessário, supérfluo. Já há dados suficientes pra saber que é uma doença inofensiva para a esmagadora maioria das pessoas - isto não é uma opinião, é um facto quantificável - e que o custo do pânico é de longe superior ao custo da doença. Estamos a matar moscas com um canhão: os danos colaterais são de longe superiores aos resultados.
Em contrapartida, tenho - isso sim e muito - medo do que aí vem. Das portas que estamos a abrir à ditadura (se preferirem, às restrições de liberdades); à censura - toda a gente acha normal que o Facebook, media, organismos oficiais censurem as opiniões que vão contra a corrente -; tenho medo da maldade que esta crise revelou nas pessoas - maldade que já lá estava, foi uma revelação mas só no sentido fotográfico do termo. Maldade em nome de um «bem superior»: impedimos crianças de brincar, condenamos velhos a uma solidão atroz, fazemos empresas falir, instauramos uma desconfiança insuportável na sociedade - tudo isto em nome de quê? Abrimos uma porta que não sabemos como se vai fechar e isso faz-me medo. sim, muito. Não convivo bem com a malvadez, apesar de saber perfeitamente que ela existe; vê-la instituída desta forma é aterrador. Nenhuma ditadura foi até hoje instaurada em nome do mal dos povos. São-no em nome do bem comum, não em nome do mal para todos.
Estamos a abrir portas que não sabemos onde nos levam? Mentira. Sabemos muito bem: já lá estivemos, há bem pouco tempo. A facilidade, a alegria, o alívio com que as pessoas abrem essas portas e marcham por elas dentro assusta-me. A liberdade não é um presente dos deuses. É uma conquista dos homens. Perdê-la em nome da sua velha nemésis - a segurança - já sabemos que não resulta. Tenho medo? Sim, tenho. Mas não fujo à luta, porque isso não seria ter medo. Seria ser cobarde, que é a categoria mais desprezível dos humanos.
Estamos embarcados num petroleiro que não vai mudar de rumo - primeiro porque ninguém quer e segundo porque mesmo que se quisesse é demasiado tarde: a maldade, a insensibilidade, a indiferença tornaram-se aceitáveis, porque foram sacrificadas num altar a um deus maior. Que se aceite que esse deus é maior - e não o simples resultado de uma histeria criada, manipulada, incentivada por duas ou três instituições facilmente identificáveis - a OMS, os media, os governos - é medonho. No sentido primeiro da palavra: faz medo.
Tal como, de resto, descobrir que é com «isto» que temos vindo a conviver: descobrir que o que mais prezamos na vida em sociedade está nas mãos de pessoas que não se apercebem sequer do que estão a perder. Esta troca é assimétrica: em nome de um risco praticamente nulo hoje dão aquilo que nos custou tanto conquistar ontem.
Sim, tenho medo e não tenho vergonha nenhuma de o dizer.
Pedras, palavras
Quanto mais pedras puseres no teu alforje, viajante, mais palavras dele tirarás e mais longe elas voarão.
Tempo, pele
Acaricio a suave pele do tempo. Amanhã será rugosa? Que me importa? O que hoje me dá não ficará esquecido num cais de gare ferroviária. Nada do que o tempo me deu ficou alguma vez esquecido - excepto, por vezes, o tempo ele-mesmo, numa pele.
Breve tratado das marés
Trata as marés por igual. Altas, baixas, vazias, vazantes ou enchentes, vivas ou mortas, são todas iguais - não passam de água em movimento - e merecem a atenção polida que acordas a tudo o mais. Uma piscina não tem marés porque é pequena, limitada, insignificante. As marés são para os grandes. Desconfia das que só sobem tanto quanto das que baixam sem parar. Nunca se sabe aonde te levarão, umas e outras. Pensa nelas com carinho: mesmo as que te são desfavoráveis mudarão em breve e ajudar-te-ão. Todas te fazem ver diferentes aspectos do dia ou da noite: as negras paredes do cais são outras, vistas de baixo ou de cima. Aproveita tudo de todas: a maior das contrariedades hoje pode ser a tua sorte de amanhã. Graças às marés aprendeste a nadar, a ver, aprendeste o tempo, a Lua, o Sol. Ama-as: sem elas pouco ou nada mais serias do que uma folha de vinha num tanque.
10.12.20
Malvadez e insensatez
Dizem-me frequentemente que estou obcecado com a pandemia. Claro que estou. Não percebo é como se pode não estar.
É uma desumanidade inconcebível, é maldade, insensibilidade, solipsismo, prova da incapacidade de integrar na mistura o preço que se está a pagar por ela, de avaliar a crise holisticamente. Concentram-se no número de mortos Covid, a reboque dos jornais, e esquecem o número de mortos não-Covid, as mortes que estão a provocar por falta de tratamento, o colapso da economia - e respectivo cortejo de mortes e abjecção -, a miséria social que estão a provocar, a degradação da situação política. Dói-me e mói-me quotidianamente, sim.
9.12.20
Diário de Bordos - Lisboa, 09-12-2020
Chama-se French Arth (os franceses e o inglês...), é um cantinho de Paris em Lisboa, fica na rua de S. Bento e é um sítio porreiro para se vir beber um demi Ricard ao fim do dia, uma prática que os nossos amigos gauleses designam por apéro. A rua, aliás - ou pelo menos este bocado dela - está cheio de galicismos: a padaria da esquina - Ceres - é francófona e macacos me mordam se não tem o melhor pão que comprei até hoje nesta cidade. Os franceses têm meia dúzia de defeitos e metade disso em qualidades; mas cada uma destas vale por três daqueles, de maneira o saldo é largamente positivo. Já o bar à frente da padaria é um attrape-couillons e ignoro se é francês. Compensa o talho da outra esquina, português até à medula e fantástico de bom. Isto está tudo ligado.
Apesar da porcaria desta censura. Ainda não me calhou, mas não sei o que farei se um dia me quiser calar. Esta sensação de dependência é abominável. Se sair, não o poderei substituir. Os conteúdos são fáceis de gerir: bloquear, desamigar e deixar de seguir, por ordem decrescente de remédio. Mas saber que de certa forma estou a ser cúmplice de uma empresa que censura quem não alinha no discurso oficial repugna-me. Nunca gostei de me calar, não é agora que vou começar a aceitá-lo facilmente.
8.12.20
Parábola
Como um navio-tanque encalhado a meio da noite, à espera que a maré suba e o vento caia. Neva, quase de certeza. A frente fria é vasta, a depressão a que está associada profunda. Já alijou todo o lastro que podia. Mais, só indo a carga. Fora de questão, claro. Não se resolve um problema criando outro maior. Está encalhado num baixio cartografado. Foi erro, azar ou a habitual mistura dos dois? Raramente andam separados, daí serem tantas vezes confundidos. Já enviou o tradicional telegrama: "Encalhei o navio." Quando desencalhar enviará outro: "Desencalhámos o navio." Não há a menor dúvida de que se vai safar? Há, claro. "São os capitães demasiado seguros de si próprios que perdem os seus navios." A dúvida salva. Sem ela estamos perdidos. Não basta esperar que a maré suba, o vento caia ou ronde, o navio aguente. Se pudesse, mandaria transfegar carga para a distribuir pelos tanques. Quer mais peso a ré e menos a vante. Mas os tanques estão cheios a deitar por fora. Nada a fazer, desse lado. Não perde muito tempo a analisar o que o trouxe ali. Isso fica para depois. Agora, há que safar o navio e a tripulação. Manter a ordem a bordo. Ordenar. Classificar por prioridades. Arrumar. Filtrar o essencial do acessório. Não deixar a situação piorar. Aguentar firme, um pé na certeza o outro na dúvida. Não ter medo, sabendo-se o elo mais fraco da cadeia. Se o vento sobe e as vagas crescem o navio pode partir-se em dois. Ou avançar mais no baixio. Resistir à tentação de pôr as máquinas a trabalhar, sob pena de as encher de areia. Não tem um ferro a ré e se tivesse de nada serviria. Tem de esperar pelo rebocador. Vem a caminho. Nada a fazer senão isso: esperar, um olho no barómetro, outro no anemómetro, outro no radar, outro na sonda. Sobretudo, não deixar crescer o temporal que de dentro espreita a primeira ocasião para se apoderar dele, da situação, de tudo. Esperar. Aguentar. Quando o rebocador chegar há que ter os cabos de reboque preparados. Quantas braças? Não sabe. É o capitão do rebocador que lho dirá. O imediato e o contramestre tratam disso. Deixar cada um fazer o seu trabalho. Não se intrometer. Pede um café à cozinha. A noite vai ser longa. Todos os encalhes duram uma vida.
"Desencalhámos o navio."
Apelo
A minha experiência da beleza feminina é totalmente unilateral e enviesada: só a conheço pelo lado do contemplador. («Utilizador» seria falso, exagerado - e redutor, por muito tentador que seja.)
É portanto deste pressuposto assumidamente insatisfatório que lanço um apelo em defesa dos cabelos brancos nas gentes femininas: não os tinjais, senhoras! Há lá testemunho mais belo de uma vida vivida, da sabedoria adquirida? Deixai a natureza manifestar-se em vós, que sois a sua mais perfeita obra.
7.12.20
Optimismo
Esta bizarra espiral que te envolve, feita das mais variegadas formas, cores e pesos, gira a diferentes velocidades. Poderia ser feita dos anéis de Saturno se de repente o planeta se tivesse desvanecido e os anéis começassem a afunilar, cone de gelado sem a bola por cima e contigo no centro. Deixa-te sem fala, sem ar. Sem silêncio, sequer. Deixa-te nu, enfriado, estátua oca de ti. Tudo gira à tua volta, a ponta do cone na terra esburaca a crosta, vais-te enterrando cada vez mais, protegido do lado iluminado da vida por essa armação intocável, por mais que estendas o dedo e balbucies sons ininteligíveis. Do lado de fora da carapaça girante, cónica, multicolorida ninguém te espera, ninguém te ouve, ninguém te vê afundares-te na terra seca e fria que se vai pulverizando e desfazendo em finos grânulos de poeira que agora te asfixiam. Um dia, sabes, o sentido da rotação inverter-se-á. A espiral desfazer-se-á, as cores tornar-se-ão sons e tu terás aprendido um pouco mais da arte de te transformares em pó - arte a que alguns, num momento de detestável e sedento optimismo, chamam vida.
6.12.20
Reencontro
Reencontro com alegria a Nuvem do não-saber, que deixara esquecida em casa da A. I. "Vela para que só Deus e nada mais opere na tua inteligência e na tua vontade. Tenta destruir a consciência das realidades inferiores a Deus, as quais deves afastar para muito longe, calcando-as sob a nuvem do esquecimento".
Encontro finalmente uma justificação para os meus esquecimentos.
3.12.20
Reinaldo Ferreira
2.12.20
Imagens, palavras
Árvores nascidas em nuvens, com as raízes no céu e os braços no mar suspendem palavras que suspendem mundos e salvam-nos como marinheiros salvam náufragos. Palavras aquecem-nos como seixos aquecidos pelo sol nos aquecem as mãos. Palavras guiam-nos como as agulhas das linhas dos eléctricos os orientam para o seu novo destino. Palavras dizem-nos: "fim da linha. O resto da tua vida começa aqui." Palavras, felizes e suspensas palavras.
Carreiros
Deitado, o senhor pensa em carreiros. Todos: os que ligam os ontens a hoje, hoje aos diferentes amanhãs que nos chamam, os outros a nós e nós aos outros (nem sempre são os mesmos), os carreiros que durante a noite silenciosas formigas percorrem, investigando-lhes as formas, os cheiros, as cores, as sílabas. Tenta adivinhar quantos há, quantos carreiros saem de nós e quantos recebemos; quais os alegres, iluminados, leves, quentes, direitos e quais os outros, frios e empedernidos.
Adormece tranquilamente quando pensa - ou será um sonho, já? - que os carreiros mudam, como nós. Ou melhor: connosco.
1.12.20
Brincar, tempo
Brinca com o tempo, deixa-o brincar contigo. Se te pregar uma partida, não te zangues: anda sempre nisso. Se te pedir para jogares com ele à apanhada, vai: é o seu jogo favorito. Às escondidas, então, é mágico: sabe onde estarás ainda antes de lá estares. Fá-lo saltar ao eixo, ora tu ora ele. Põe-no a jogar à macaca.
Brinca com o tempo: nada se perde, quando se sabe que se vai perder.
Autenticidades
As pessoas "autênticas" enjoam-me. Às vezes, de tão "autênticas", parecem caricaturas de si próprias. Ou - pior ainda - ersätzen.