31.12.18

Razões

Um homem ejacula quando está farto do que está a fazer e embebeda-se exactamente pela mesma razão.

30.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-12-2018

O termómetro diz que estão oito graus, mas o sol e esta total ausência de vento desmentem-no. Vou ao supermercado comprar metade de meia dúzia de porcarias e aproveito para ir dar um passeio na Panter. Confirmo hoje o que descobri há pouco tempo: sou um escritor. Não no sentido de ter livros publicados e dar aulas de escrita criativa, mas no de transformar em palavras escritas tudo o que vivo - ou pelo menos a maioria do que vivo. Se depois essas palavras são realmente escritas ou não interessa pouco. Nem todas são; mas todas resultam sempre do encontro de uma vida, um par de olhos, uma pele e um espírito, o que já é mais do que muita literatura tem.

Perco-me pelas ruas de Sa Calatrava, um bairro que conheço mal apesar de ter dois dos meus sítios favoritos em Palma (a Sifoneria e o Bar Rita) e consigo descobrir mais um lugar onde ir, este aberto aos domingos. Chama-se Café Santa Fe e fica na Plaza de Santa Fe, coincidência nada fortuita, aposto. O café parece um transplante do bar Rita e de - provavelmente - alguns milhares de outros espalhados pela cidade fora; a pequena praça de Santa Fe igualmente: Palma tem montes de praças destas, uma das coisas que a torna adorável: pedala-se tranquilamente por ruas onde já se passou mil vezes sem olhar, um dia olha-se e por qualquer razão descobre-se mais um café, um bar, uma praça, um sítio de onde nem com o frio se tem vontade de sair.

É como Lisboa: dá-se aos poucos e a quem a procura sem olhos de ver. Com eles, só se vê o que já se viu ou se quer ver.

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O Tati fecha hoje. O próximo será ainda melhor.

29.12.18

Way out



Assim começa o dia do décimo quinto aniversário deste blog.

28.12.18

Sónia?

Lutar contra a vontade de dormir unicamente para prolongar o dia não conta como insónia, pois não?

Adenda: se há coisa que me perderá é esta incapacidade de me fixar nas chatices e só reter o bom. 

Aprendizagem do mundo

Talvez no fundo envelhecer seja aprender a conciliar a ideia de que o mundo não gira em torno de nós com a de que nós somos o centro do mundo.

O fim de um bom dia

É tão difícil dizer adeus a um dia bom, não é? E tão bonito, também.

Onze mil e dois????

Entretanto, na véspera de completar quinze anos este blog passou a marca dos onze mil disparates, o que dá uma média de setecentos e trinta e três por ano, dois por dia. Muitos são música, outros tantos fotografias e o resto citações de livros decentes. Os disparates não devem chegar a um por dia. Já é muito, mas está dentro do aceitável.

[Onze mil e três.]

O estranho e encantado mundo de Leopoldo Marron, selenita exilado, operador de montanhas russas e piloto de planadores

O estranho e encantado mundo de Leopoldo Marron, selenita exilado tem a característica de se manter inalterado ao longo dos anos. Leopoldo aprende, claro, como toda a gente; mas o que aprende fica numa esfera incomunicável. É certamente um mundo muito bom para nunca ter mudado, ao fim de tantos anos na Terra, mantendo-se impermeável a tudo o que de novo lhe chega de fora.

Sendo Leopoldo composto por vários Leopoldos (dos quais hoje identificaremos dois), uma das vantagens é que quando alguma coisa corre mal um dos Leopoldos diz ao outro: "Eu bem te tinha dito". E largam-se numa gargalhada sem fim.

Um dos Leopoldos é piloto de planadores e o outro operador de montanhas russas.  Como se conheceram é um mistério, mas a verdade é que se dão bem. Deve ser por isso que o seu estranho e encantado mundo não muda. Aprenderam a viver nele, juntos. Quando estão no topo da montanha apreciam a vista; quando estão em baixo sonham com o céu; quando chegam a um aeroporto lembram-se das precedentes descidas vertiginosas e lentas subidas e assim vão os dois, felizes e estáveis, muito mais estáveis do que quem os acusa de instabilidade.

Partilham um amor, uma miúda cigana que conta histórias, lê as palmas da mão nas feiras e não lhes liga nenhuma; mas tratam-na como tratam o resto: "as coisas são o que são e não o que nós queremos que sejam. Venham mais vinho, ar, alturas e descidas estonteantes. Até os coxos se habituam a ter uma perna mais curta do que outra. Como não habituarmo-nos a um amor não correspondido?" diz o Leopoldo operador de montanhas russas ao Leopoldo aviador.

Entretanto um coelho coze em vinho tinto, temperado com pimentão doce da Conchichina, cominhos de trás do sol posto, cardamoma da Lua, ervas de provença da China e piripiri das ilhas Kerguelen. Coze com cenouras e aipo, échalottes e alho, tomate e batata, não necessarimente por esta ordem.

Leopoldo Marron antevê com prazer o seu almoço, a sesta que se lhe seguirá, o Sonny Rollins que toca nos altifalantes manhosos mas baratos, O vinho chama-se Davida e não tem sulfitos; Leopoldo chama-se Leopoldo e tem tudo o que uma vida precisa de ter, menos o que não tem, coisa que não o aflige por aí além porque no seu estranho e encantado mundo não há subtracções, só há multiplicações e exponenciações.

27.12.18

"Cada horizonte: de onde uma brasa atrai". Ida Vitale, descoberta do dia

"Exilios

…tras tanto acá y allá yendo y viniendo.
Francisco de Aldana


Están aquí y allá: de paso,
en ningún lado.
Cada horizonte: donde un ascua atrae.
Podrían ir hacia cualquier fisura.
No hay brújula ni voces.

Cruzan desiertos que el bravo sol
o que la helada queman
y campos infinitos sin el límite
que los vuelve reales,
que los haría de solidez y pasto.

La mirada se acuesta como un perro,
sin siquiera el recurso de mover una cola.
La mirada se acuesta o retrocede,
se pulveriza por el aire
si nadie la devuelve.
No regresa a la sangre ni alcanza
a quien debiera.

Se disuelve, tan solo."

O fogo e a obediência

Não é mulher que se esqueça facilmente. Pequenina, loira, pele muito branca, sensual como as acendalhas que se põem na lareira. Olhos azuis, da cor das chispas. Um dia disse-lhe: "Não ateies incêndios que não podes apagar". Obedeceu e nunca mais a vi.

Definição - saudades

Olho para uma fotografia de Bocas del Toro e penso nas saudades que tenho de todos os sítios onde já estive, de todas as mulheres que amei, todos os livros que li, músicas que ouvi, runs que bebi. As saudades não passam de uma estratégia da vida para nos lembrar que vivemos. Não lhes devemos acordar demasiada importância.

25.12.18

Prato de um dia há muitos anos - Koftas de borrego

Comecei por misturar a carne de borrego picada (750 gr), um ovo, uma embalagem de hortelã-pimenta muito picadinha, outra (mais pequena) de cebolinho, gengibre rapado, um bocado de pão embebido em leite e esmigalhado, curcuma, cominhos e alecrim, pimenta e sal e um bocado de pão ralado.

Depois foi para o frigorífico estagiar.

[O resto não sei, isto já tem uma pipa de anos. Provavelmente fritei-as. Qualquer dia repito e logo se vê.]

24.12.18

Sum liber, ergo sum

Não é a primeira vez que passo um Natal sozinho e não é coisa que me devaste. Aliás já os tive muito piores. Hoje, pelo menos, a casa onde estou é óptima, está vazia e tenho o frigorífico cheio. Não me queixo de estar sozinho - mesmo sem as piadas do "ser muitos" posso preencher suportavelmente o meu espaço -.

Acontece por vezes chatear-me com a solidão, mas isso não tem nada a ver nem com o Natal nem com estar sozinho. Tem a ver com a vida que escolhi e essa é a melhor prenda que alguma vez recebi: ser dono das minhas escolhas, responsável pelos escolhos que se me atravessaram a frente. Há quem lhe chame liberdade; na verdade é mais simples: sou eu.

Frango de Natal com Gratin Dauphinois

É como aqueles desenhos dos jornais de antigamente, labirintos com vinte pontos de entrada e sem saída, pelo menos visível. Talvez não sejam vinte: começou com o leite onde cozi as batatas para o gratin dauphinois e me custa deitar fora; com entretenimentos facebookiano-natalícios, que fizeram passar a hora do magret de cannard ; com a paprika do argentino do Mercado de l'Olivar, o homem tem as melhores especiarias dos últimos anos (para encontrar melhores tenho de ir a Genebra, é obra); com o Lee Konitz (e agora Dexter Gordon), que me adoçaram o ritmo. A verdade é que acabei por fritar o frango com rodelas grossas de gengibre, flambeá-lo em brandy (não tenho rum), cozê-lo no leite das batatas, que ainda tinha a noz moscada misturado com leite de coco. Tudo isto temperado com a dita paprika, cardamoma, curcuma e cominhos, mai-la inevitável pimenta e o sal. Na panela, para dar cor deitei um bom molho de coentros picados, outro de aipo ditto.

A coisa coze, o gratin está de pousio no forno, o Dexter foi substituído pelo Gerry Mulligan e como Natal é quando um homem quer, vamos para a mesa, eu todos.

Adenda: o frango ficou óptimo, o gratin não porque o fiz com natas sólidas e deviam ser líquidas (mas as batatas estavam como devem ser, rijas) o o Gerry foi substituído por um pianista maravilhoso que não conhecia chamado Junior Mance.

23.12.18

Café

É um homem lacónico, de fala e feições. É o Senhor Tavares. Trabalha numa loja de café que se não estou em erro se chama Chaimite, na Duque d'Ávila. A escolha não é muito vasta mas a qualidade de cada um dos cafés que alí está é garantida.

Isto para reclamar contra esta porcaria desta invenção do café expresso. Não me refiro àquilo que vem dentro de cápsulas de alumínio e a que a burguesia internacional (actual e pretendente) se rendeu. Isso tem café no nome, mas está para o bom café como a Ana Malhoa para a Monserrate Figueras. Não. Refiro-me às máquinas de fazer bicas, cuja única função na sociedade parece ser extrair do café o que ele tem de pior, a uma temperatura demasiado elevada e em quantidades demasiado pequenas (há excepções, quando as máquinas estão bem afinadas, mas são raras e a afinação dura pouco tempo; e de qualquer forma o DV não é um Compêndio do Bom Cafezeiro).

Quando em 1974 cheguei a Portugal e pedia uma bica ainda me perguntavam "de máquina ou de saco?". Isso infelizmente desapareceu, o que só demonstra que o mundo não caminha necessariamente para melhor (e hoje lamento amargamente não ter ainda, nesse ano, tido o Sr. V. como armador; só aconteceu em 1975 ou 6).

O Sr. V. era um cafeeiro de Angola que em Portugal se dedicou à construção civil e me deu o meu primeiro emprego de skipper. Era numa lancha de 35', uma Princess com a qual passava fins-de-semana (e às vezes semanas interiras) no Portinho da Arrábida e que logo na primeira viagem para o Algarve partiu um hélice. O que sei de café aprendi com ele. Pelo menos as fundações, bastante sólidas. O resto veio por auto-aprendizagem.

Já aqui contei a história, mas este blog está a menos de uma semana de fazer quinze anos e já pode permitir uma certa repetição. Foi em Salvador, em 2007 e o sítio chama-se (ou chamava-se) Camafeu de Oxossi. Levaram-me lá porque "tu gostas de café e ali vais beber o melhor café de Salvador". Era um understatement: foi o melhor café que jamais bebi tirado de uma máquina expresso. Não resisti à timidez e fui falar com o senhor: felicitá-lo e sobretudo perguntar-lhe porque é que ele tinha café tão bom e os outros não. Trocámos meia dúzia de frases (pelas quais fiquei a saber que ele demorara um ano até encontrar um bom fornecedor de café e quem lho torrasse como deve ser). A certa altura pergunta-me de onde vem o meu conhecimento de café. "É o primeiro cliente que me entra a qui e sabe que o meu café é cem por cento arábica".
- Tive um excelente professor.
- Ah sim? Quem?
- Um senhor que era cafeeiro em Angola e foi o meu primeiro armador.
- A sério? Como é que se chamava? Eu também fui cafeeiro em Angola.
- Chamava-se V.
- V.????? Era o meu melhor amigo!

Vivam o café e a amizade, abaixo a bica!

PS - Por um amigo israelita com quem a certa altura co-habitei em Antigua aprendi a fazer café "à árabe". Não é rigorosa, mas é suficientemente próximo: pôr uma panela ao lume (com água fria) e nela deitar o café. Aquecer até estar quase a ferver, mas não deixar ferver, nunca em caso algum, sob pena de morte pelo deus do café. Há quem o filtre para servir, mas não me importo muito com as borras, antes pelo contrário: deixá-las pousar é um dos prazeres da bebida. Não é tão bonito como um balão, mas pelo menos faz uma coisa decente. E se se acrescentar uns grãos de cardamoma fica ainda melhor.

21.12.18

Uma história portuguesa

O melhor de Portugal não é o clima, a comida, as paisagens. O melhor de Portugal são os portugueses.

Há um paradoxo neste país no qual penso há muito tempo, mas que só hoje se me revelou. A história começa por uma encomenda para Coimbra que não é recebida pela pessoa a quem a enviei, porque me enganei na morada. Tento falar para os CTT pelos números disponíveis na página web deles e nenhum responde. Falo com os Correos: por enquanto nada a fazer. Como sou simultaneamente persistente e persuasivo vou obtendo números de telefone em Portugal. Todos ou se revelam equívocos ou não respondem - chegaram a dar-me o número de uma pessoa que já não trabalha nos CTT -.

O meu objectivo é simples, se bem composto: a) tentar fazer com que a encomenda seja entregue na morada correcta; b) ter a certeza de que me é devolvida caso a) não se concretize. Hoje consegui finalmente falar com um senhor que  vai tentar interceptar a encomenda e reencaminhá-la para o endereço correcto.

Não sei se na segunda-feira o senhor encontrará a encomenda se não; neste momento não há nada a fazer e portanto essa questão saiu do radar. Em contrapartida, penso no abismo que há entre os portugueses individualmente e as instituições que esses mesmos portugueses construíram. Não há relação nenhuma entre os dois. O português individualmente é uma pessoa prestável, amável, competente, eficaz. Ponha-se muitas pessoas como essa num organismo e este transforma-se numa fera prepotente, incapaz, indiferente, arrogante, incompetente.

O senhor que hoje me respondeu ao telefone (e a quem peço desculpa pela minha impaciência) tem aqui o meu agradecimento. Vamos a ver se na segunda-feira a encomenda volta para trás, para o caminho correcto. Uma coisa ninguém lhe tira: a simpatia e a boa-vontade com que se prestou a fazê-lo.

(Entretanto, interrompi a correspondência e-mail com o serviço de reclamações dos CTT: era compungente de mais.)

20.12.18

Luta? Adversidade? Cos'è?

O terceiro round foi uma mistura complexa de café Flexa, livraria Biblioteca de Babel, poesia no Antiquari (não cheguei a tempo para ler), café Can Rigo, Bodega Belver e mais duas ou três escalas entre isso tudo.

Lembro-me vagamente de que havia uma luta contra uma coisa chamada adversidade; ignoro o que seja. O próprio conceito de luta me parece algo distante: quando tudo é uma luta como singularizar um episódio em particular?

Livrarias, cafés e sombras

Pergunto ao jovem - sublinho jovem - livreiro qual de dois livros me aconselha. Nenhum. Em vez de sugerir descreve-mos, porque visivelmente os leu. Faz uma espécie de crítica literária ali sentado atrás do balcão. Há um ano ou dois foi ele que me aconselhou Gamoneda, o que só por si sería suficiente para lhe ficar grato até ao fim dos meus dias.

Acabei por comprar um Tanizaki. Chama-se Elogio da Sombra (a tradução é minha, mas não é dificil) e preferi-o aos passeios alpinos do pai de Virginia Woolf.

Todas as livrarias e cafes deviam ser como a Biblioteca de Babel.

Fragmento

...como duas nuvens que se amam e o vento insiste em separar.

19.12.18

Vergonha ortográfica

Não sei se isto vos acontece também, mas cada vez que leio livros em inglês, francês ou espanhol tenho vergonha do AO90. Se eles foram capazes de manter as consoantes, porque não nós?

Notas dispersas

Um gajo habitua-se a tudo, mesmo à ideia de que nunca passará de um diarista. Sorte ter dias para contar.

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Não tenho muito jeito para engatar senhoras, é certo. Mas compenso essa falta com uma habilidade incomparável para ser engatado. Ponham uma miúda bonita, culta, com a minha idade ou menos dez, vinte (máximo: vinte e cinco) anos do que eu, mau feitio (péssimo, se possível), independente afectivamente, livre, com um sentido de humor comparável ao mau feitio, inteligente (passe a redundância), capaz de comer de garfo e faca e não se assoar ao guardanapo (isso está reservado para mim), que saiba a diferença entre uma antepara e uma caverna, fazer leme e marear uma grande e vão ver se não sou logo engatado. Basta ela querer.

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Um casal de lésbicas senta-se à minha frente. São ambas muito gordas, obesas e estão visivelmente apaixonadas. Acho bem. Sou contra o desperdício e a favor da felicidade individual (também verdade seja dita não há outra).

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Antigamente era frequente encontrar dinheiro nos bolsos das calças ou das camisas que vestia (nunca consegui lavar dinheiro a sério, as notas vinham amachucadas mas tinham resistido à máquina). Agora encontro notas, mas são de outro tipo e saem de um bloco. Na verdade sou um esquilo disfarçado.

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Esta banda Bach & Gould é interessantíssima. Toca uma espécie de jazz que parece música barroca.

A luta continua. O povo unido jamais será vencido

O segundo round da luta contra adversidade não fez mais do que confirmar a sua (dela, adversidade) estrondosa derrota. O próximo, ainda sem hora ou local marcados deixá-la-á estendida no solo, batida por KO técnico.

Fui ao Door 13 (o nome é horrível, eu sei. Mas o lugar é muito bom) ouvir o pianista Jack Pescod, hoje melhor do que da outra vez. Não gosto das paredes negras, mas o Stéphane e o Gianni são profissionais de mão cheia, daqueles que nos saem na rifa quando os deuses estão felizes (ou distraídos). E lá em baixo nem se dá pelo preto das paredes, portanto a objecção é irrelevante.

Dali fui ao Moltabarra, que estava cheio mas não a abarrotar e depois vim para casa. Se isto não é uma vitória estrondosa não sei o que uma vitória é. Verdade que a adversidade tentou uma contra-ofensiva, mas foi rechaçada sem piedade (repelida, para quem não gosta de galicismos).

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(Claro que isto mereceria uma discussão epistemológico-semãntica sobre o sentido da expressão "ganhar à adversidade". Ela ainda lá está: o mastro não vai para o sítio antes de sete ou oito de Janeiro. Mas isso fica para depois. Agora oiço a dupla Gould / Bach, leio o bloco-notas cheio de notas esquecidas, penso na música do Pescod e estou-me nas tintas para a semântica.)

A luta contra a adversidade

Dispositivo de luta contra a adversidade (status às quinze e vinte e cinco):

- Vermute: Yzaguirre, Bandarra et al., quantidade indiscriminada;
- Vinho tinto: da casa, La Sifoneria,  ditto;
- Uma ida ao Mercat de l'Olivar;
- Ragú di carne alla bolognese (no sentido clássico de "À bolonhesa": aproveitar restos), a cozer;
- Closer, dos Joy Division, alto.

A luta continua.

Actualização, 15h35: um cigarro de marca Camel, maço comprado na tasca ao lado.

Actualização, 16h05: Johnny Cash; água a ferver para o spaghetti; poemas de Li Bai e Omar Khayyam.

"Pues en el mundo no reside la morada nuestra.
Estar sin vino y sin amante es un gran error,
cuando se espera y teme lo creado y lo eterno,
ya que, creado o eterno, del mundo partiremos."

(Omar Khayyam, Rubayat, versión de Clara Janés y Ahmad Taheri, Alianza editorial)

Actualização, 16h30:

"Difícil a viagem

Vinho puro em cálices de ouro, dez mil taéis cada taça,
Iguarias muito caras em pratos de jade.
Enfastiado, pouso o copo, lanço fora os pauzinhos.
Inquieto desembainho a espada, não sei o que fazer.
Se quero atravessar o Rio Amarelo, gelaram as águas.
Se quero subir as montanhas Taihang, estão cobertas de neve.
 ...
Gostaria de deslizar sobre as ondas, uma nuvem por vela,
e, soprado pelos ventos, atravessar o mar azul."

(Poemas de Li Bai, Tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 2a Edição).

Actualização, 17h05: Lennie Tristano, Note on Note; Café e Hierbas secas sem gelo. A adversidade perdeu este round.

Local da batalha:





Actualização, 17h30: 2ª Sinfonia de Mahler, Orquestra do Festival de Lucerna dirigida por Claudio Abbado; sesta.

O segundo round é logo à noite no Door 13.

Actualização, 18h10: Hemingway, A very short story. Se alguém um dia me perguntar qual é o melhor conto de sempre e eu responder "Dubliners", por favor lembre-me deste.

DesÁrvore (de Natal?); ou: Le Père Noel est une ordure

A guilhotina caiu. Mastro só em Janeiro, sete ou oito de Janeiro. Notícias destas deviam receber-se a uma hora em que se possa beber um rum* ou um whisky* ou o raio que me parta.

* - Uma piscina de rum ou de whisky. Raios que me partam chega um.

18.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-12-2018

Os músicos que vêm tocar para a vizinhança do Antiquari costumam ficar na Costa de Sa Pols, em baixo das escadas do Carrer d'Arabi. Este não: pôs-se entre o bar e a Babel. Começa por não me entusiasmar por aí além, mas depois toca o Tutti Frutti e a falta de entusiasmo transforma-se num quase desespero. O rapaz é bonitão e simpático, mas para tocar música talvez devesse considerar uma carreira nas obras públicas, na decoração de montras ou até, quem sabe, no tiro aos pombos.

Está porém longe de ser tão mau como um colega que há alguns anos tocava aqui também, mas na esquina da igreja (agora basílica). Esse era arrepiante de mau.

A verdade é que me sentei praticamente ao lado dele, mesmo no canto da esplanada da Babel e quando passou o chapéu dei-lhe cinco euros. É muito, eu sei, mas no fundo estava-lhe grato por não ser muito pior e penso que os músicos de rua com um nivel igual ou acima de medíocre mais devem ser encorajados. Já tive amigos músicos de rua, já tive inclusivamente uma namorada que cantava divinamente e devia ter cantado muito mais na rua do que cantou. Sei o que é, o que custa, a chatice de contar moedas, o problema que é para as trocar.

O rapaz agradeceu muito e quis meter conversa, mas pretendi que não falo espanhol e foi-se embora. Prefiro a generosidade - e a gratidão - silenciosas. Mais vale deixar a publicidade para as me too.

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O apoio da sapata sofreu um novo atraso. É praticamente impossível ver o P. arvorado antes de Janeiro.

Seria interessante ir agora a um psicólogo e falar-lhe em paus em cima e no que me fazem sofrer. Aposto que não interpretaria correctamente o meu desespero.

Só quem nunca tenha lido uma linha de Freud e faça vela percebe: Freud levaria inevitavelmente a um sorriso, mesmo que escondido e hoje não tenho espaço nem para um esgar, quanto mais um sorriso.

17.12.18

Sarabande, agregação, desagregação, etimologia

Desagregação é uma palavra bonita. Tem a ver com grego, ver-se grego. Um homem em desagregação é um tipo que se está a ver grego consigo próprio.

Agregação é o contrário: é quando uma pessoa comeca a juntar os bocados, a deixar de se ver grega, a ver o sentido do que fez no que faz.

Conhecem aquela frase do Adorno (creio. Tenho de confirmar) que diz "Todos os artistas criam os seus precursores"? Eu diria ''Todas as vidas criam o seu próprio sentido". Um dia olhamos para trás e as peças que nos pareciam espalhadas, desarrumadas pelo tempo fora alinham-se como filas de aristocratas a dançar a Sarabande.

(Talvez seja por isso que só sabemos quem amámos quando já não amamos, mas isso é outra história).

Adenda: não será decerto má ideia lembrar que o Don Vivo não é um tratado de etimologia.

Shaker

Vinte nós de vento, sol, frio ma non troppo, dor de cabeça, tosse, interminável tosse, vinho excelente, lasagna assim-assim, mar azul com carneiros correspondentes ao vento (é por eles que lhe vejo a velocidade), luz que ilumina a cala clara e leitosa, luz de Outono quase Inverno, de solidão e alegria, melancólica, fluida como os dias e como eles lenta.

Tudo isto se mistura neste shaker que sou, todo eu.

16.12.18

Relativismo

Dinheiro tem para mim o valor que poesia tem para um banqueiro.

15.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-12-2018

Não gostar de ver loiça suja pela manhã conta como mariquice? Há pouco pensava nisso, fui levar um copo vazio à cozinha e lavei-o de seguida. Tinha contido vinho tinto e não queria ver as marcas roxas ao acordar. Antigamente não era assim: fazia exactamente o contrário. Deixava a loiça toda por lavar para o dia seguinte e os meus dias começavam a lavá-la. Verdade seja dita que deixava a loiça por lavar, certo, mas arrumada, ordenada. O processo obedecia a regras estrictas: primeiro os copos, depis os pratos menos sujos, a seguir os pratos e as panelas mais sujas. As frigideiras ficavam para o fim, mesmo antes dos talheres (mais ou menos no meio mudava a água, claro). A ordem é importante em tudo, mesmo na lavagem de loiça. Tudo isto mudou: já não dou tanta atenção à ordem de lavagem (apesar de a respeitar, menos severamente) e em contrapartida não deixo nem um miserável copo de vinho para amanhã. Não sei se por mariquice, se por idade, se por simples evolução natural. As coisas mudam e nós com elas.

Nem todas, é verdade: continuo a não gostar de Wagner, por exemplo. Faz-me transpirar de aborrecimento - digo-o porque escrevo enquanto tento ouvir pela quinquagésima milésima vez O Anel dos Nibelungos, desta dirigido pelo Dudamel -. Vou ouvir mais um movimento para ter a certeza de que não gosto. Parece-me importante testar regularmente aquilo que não nos atrai: nunca se sabe, de repente vamos a ver e mudámos e agora gostamos.

Por exemplo: comprei a poesia completa do Garcia Lorca. Dezoito euros e cinquenta é uma pechincha, se desta vez começar finalmente a atinar com a poesia do homem. Até ver, nunca me "fez dar um salto na cadeira". Pode ser que com esta edição "completíssima" (a citação não é literal, mas é o que a contracapa diz, mais sílaba menos sílaba) mude de opinião. Nunca se sabe, isto da poesia é como lavar a loiça ou preferir uma bicicleta de cidade a uma de estrada.

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(Momento Kalimero do dia). Não vou a Lisboa para o Natal. Sozinho por sozinho antes aqui.

(Não tem nada a ver com o Natal, claro: enquanto não vir o P. arvorado não descanso. Ver se começamos a recolher o cabo que até agora largámos).

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O Wagner que se lixe. Parece música para um circo de intelectuais. O Youcoiso desafia-me com um Dolphy mai-lo Mal Waldron e o Ed Blackwell e é com eles que me vou despedir (e passar pelo Lorca, ver se a música ajuda).

Notas do bloco

Do bloco-notas Clairefontaine, provavelmente de Maio ou Junho deste ano:

"Há dias que não se sucedem a outros."

Mais uma para a série "Pérolas do DV" (reedição)

Diálogos possíveis
- Lês muito?
- Não, só o suficiente para saber que escrevo mal.

14.12.18

Da importância de se poder escolher um livro ao acaso na mesa de cabeceira

"Só os néscios não ligam à importância da tradição, do que já foi feito e do conhecimento. Hölderlin: «Somos originais porque não sabemos»".

(George Steiner, La Idea de Europa, ed. Siruela, col. Biblioteca de Ensayo)

Uma casa nas nuvens

Foi a primeira mulher - e até hoje a única - que conseguia ver nas nuvens o mesmo que eu. Às vezes recebia uma mensagem dela no telefone: "Estás a ver o dragão"? Ou "O cachorro tem uma cara gira". Invariavelmente, olhava para o céu e via o dragão, o cachorro, a casa. "Vês a nossa casa?"

- Vejo uma casa, mas não sei se é a nossa.
- É, se tu quiseres.

Não queria. Naquele tempo, a simples perspectiva de ter uma morada assustava-me.

Um dia recebi uma mensagem. Dizia :"Vês o adeus?" e desde aí nunca mais a vi.

(Para a A. P., com um beijo extensível à B., claro).

Palavras, balões

Hoje passei por um gajo com um monte de balões na mão. Isto é, quem tinha os balões era ele. Eu ia na burra (na Órbita, agora que tenho duas é preciso ser preciso) e passei por ele na rua de San Feliu. Aqui dizem carrer: carrer de San Feliu. Os balões estavam cheios de hélio mas de trelas curtas, não iam muito alto. Eram bastante coloridos e tinham formas variadas. Ocorreu-me que é mais ou menos assim que eu ando com as palavras: sempre a quererem fugir, todas diferentes umas das outras, bem no ar acima de mim, presas mas prontas a escapar-se à menor distracção. 

13.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-12-2018

Hoje foi dia de potlatch. Enfim, como estou sozinho é um potlatch um pouco especial: é de mim para mim. Comecei por me oferecer uma quantidade industrial de postais (metade já está escrita, não foram assim tantos) e uma revista feminista (juro. Foi por engano, gostei do nome. Chama-se Pikara). Para me pagar disso fui à loja de discos em segunda mão e comprei um Ornette, um Jan Garbarek e uma colectânea do Charlie Parker, cinco discos por vinte e seis euros. A loja tem pouquíssimo jazz, mas tem muito pop rock e a preços imbatíveis. Já só me falta conhecer uma, mas não vai ser amanhã. Chega de potlatch.

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Almoço com o L. É um dos escassos amigos que me ficou dos primórdios de Genebra. Deve ser cerca de dez ou quinze anos mais novo do que eu (perguntei à S. Em breve saberei). É um prazer ver alguém melhorar tanto com a idade como ele.

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O apoio da sapata do pé do mastro sofreu um novo atraso, desta vez por causa do tempo. No sítio onde estamos o P. mexe-se de mais. Polegares, indicadores, Oooooommmm. Não há nada a fazer. Amanhã vai estar igual. Faltam dois dias de trabalho, mais dois dias (no mínimo) para aquilo curar. Antes de próxima sexta não terei o pau em cima (salvo seja, claro). Eu diria antes segunda, mas é Natal. É nestes momentos que invejo a malta das teorias da conspiração: pelo menos tem uma explicação para tudo.

Bom, a pintura do interior acabou (a do primário, tenho sempre de mo recordar. ). Ao menos isso.

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As prateleiras dos camarotes estavam fixadas ao casco por meio de parafusos. Isto é, parafusos directamente ao casco. Sabem aquela malta que tem as cinco chagas nas mãos, sangram e tudo? Pois é assim que me sinto quando olho para os buracos no casco. Chamem-me piegas, mas aqueles parafusos é como se estivessem postos em mim. Infelizmente são muito mais do que cinco. Vamos fechá-los todos, um a um, mas antes a máquina de vácuo vai trabalhar outra vez. Aquela espuma sai daqui sem um micro-miligrama de humidade ou eu não me chame Luís Serpa.

Isto dito, o P. ainda está o estaleiro que se pode imaginar, completamente desmontado e já tem outro aspecto, outro cheiro, outra cara. Um gajo entra nele e é recebido com um sorriso e um abraço apertado e grato.

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Há pouco pensava nas mulheres que não me fazem frente (de resto, um tema iniciado pela S.: "nunca andes com uma mulher que te deixe fazer o que tu queres. Dás cabo dela em meia dúzia de semanas"). Como a S. me conhece como se  me tivesse feito aceito o conselho e penso no P. Deve tê-la ouvido e não há nada que eu faça que não seja uma luta, milímetro a milímetro. Esse não me deixa fazer o que eu quero sem discutir arduamente antes.

Deve ser por isso que gosto tanto dele e cada dia mais.

Imperfeições

Gosto de Palma como gosto de uma mulher bela e imperfeita; ou porque demasiado jovem (menos de trinta e cinco anos, digamos), ou demasiado chata (isto é, razoável, realista e de pés na terra), ou demasiado mole (deixar-me fazer tudo o que quero, por exemplo) ou porque, sei lá, simplesmente.

(Há milhares de maneiras de se ser imperfeito, eu sei. Não faz mal: a perfeição assusta-me muito mais.)

12.12.18

Da série "Pérolas do DV" (reedição)

- O dinheiro não me faz correr.
- Para nada, excepto para o bar mais próximo.

Encontranços seredenpíticos (reedição)

Só pode amar Portugal quem gosta de superficialidades. Quem, por exemplo, num circo prefere os palhaços aos trapezistas.

10.12.18

Analogia náutica

Vivia como se fizesse leme sentado a sotavento.

Cúpido, Psique e a inatingível clareza

Aproveito estar deitado para reler a história do Cúpido e da Psique, por causa de um post da A. V. Aproveito a releitura para me lembrar de Veyne, mas não tenho o livro à mão. Não tenho nada à mão se não o presente, de resto. Depois lembro-me de outras coisas: por que raio de carga de água eram os mitos gregos tão complexos? Nem os autores dos trinta e uma partes davam tantas voltas, reviravoltas, curvas e contracurvas. Sempre gostei deste casamento, verdade seja dita. E do episódio dela fazer amor com ele meses e meses sem nunca o ver. A ideia de que o amor e o sexo vão juntos foi refutada há muito tempo.

Aproveito para me lembrar de duas ou três miúdas, talvez mais. Dessas que têm - ou pelo menos tiveram - o condão de unir em mim o Cúpido e o pouco que me resta de Psyque. Bem tento separá-los, note-se; mas às vezes é difícil.

Cúpido era desajeitado com as flechas; acertavam ao calhas. Nisso não concordo com ele. Não é lavado que nos faz amar alguém. Antes fosse, claro.

Antes fosse claro, tudo isto.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-12-2018

Um restaurante em que se ouve Paolo Conte; uma tasca à frente da qual passo desde que venho a Palma e onde nunca tive vontade de entrar por simples desconfiança, provocada pela localização em pleno bairro turístico; um clube de jazz onde oiço uma jam session que sem ser grande coisa não é má de todo. Uma cidade que se desenrola à minha frente como se nunca cá tivesse estado.

Não se pode viver sem a priori, claro. Os preconceitos são pilares essenciais da nossa mundividência, da nossa compreensão do que nos rodeia. Mas é forçoso reconhecer que os momentos mais agradáveis da nossa convivência com as ideias pré-concebidas são aqueles em que descobrimos que são falsas, ou já não são verdadeiras ou nunca o foram e chegou o momento de as trocar por outras, novas, lavadas, como fronhas de almofadas. Não nos desfazemos de preconceitos: limitamo-nos a trocá-los, é tudo.

O restaurante chama-se Gustar, fica na Plaça del Banc de l'Oli (a cem metros de casa), ando há anos a prometer a mim próprio que tenho de cá vir - pura intuição - e hoje vai directo para a lista de restaurantes recomendados.

São dias assim que me ligam à vida: trocar de pele é como ressuscitar. Deixamos de ser nós e somo-lo ainda mais. Como se a confirmação do que se é viesse da mudança, da aprendizagem, da renovação - a nossa e a da cidade que diariamente percorremos e de vez em quando reconstruímos -.

Só me falta deixar de tossir.

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Hoje comprei aquela que espero ser a última lata de  tinta primária para o interior e o S. não apareceu para fazer a base da sapata do pé do mastro. Esquecera-se de que tinha de ir ao médico. Encostar as pontas do indicadores às dos polegares e fazer Ooooooommm. Costuma resultar, pelos menos nos livros.

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Oiço no Youtube um disco de que gosto sem limites: Magic and Loss, do Lou Reed. Parece que há uma pequena probabilidade (pequena é um exagero. Eu diria micrométrica) de recuperar os meus discos. Se isso acontecer, passo a ser o nómada com mais discos e livros da história. Reflexão interessante sobre a finalidade do ter, mas fica para depois.

9.12.18

Diálogo

- Olha, se por acaso a meio da noite ouvires bater à porta, não ligues. Sou eu quase de certeza. Pensa: "Deve ser o vento e nada mais. É inverno, está frio e ele vem do Norte carregado de neve". Não abras. Estes ventos entram e não saem, agarram-se a ti como se fossem sentimentos, como aqueles amores que nasceram selvagens e selvagens ficam para sempre. Sabes que baterá milhares de vezes à tua porta, à janela, vai dar-te voltas ao jardim, espezinhar os canteiros. Não ligues. Um vento desses em casa pega-lhe fogo e a ti com ela, é uma reviravolta, uma acção de graças, não fica parede de pé.

- Não fales. Entra-me pelo sorriso dentro. Não me deixes a vida por viver.

Imperfeito, condicional

- Se aqui estivesses deitava-me contigo.
- Se aí estivesse deitar-te-ias comigo. Não ponhas um imperfeito no condicional. 

Bloco-notas

O liberalismo perdeu a batalha da comunicação por duas razões:

- Primo, é fundamentalmente avesso ao proselitismo. Acredita que a variedade de opiniões e pontos de vista é um bem, no direito ao erro, na ideia de que é preferível um erro escolhido a uma verdade imposta.

- Secundo, concentrou a sua crítica ao marxismo e à esquerda na liberdade, nunca fazendo passar a mensagem de que a liberdade é um meio (essencial, mas um meio) para um fim que é o bem-estar e a prosperidade das pessoas. Sem liberdade individual não há prosperidade colectiva, mas os liberais focaram-se apenas no primeiro lado da equação e deixaram à esquerda o monopólio do bem colectivo.

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Uma vez conquistada a maioria dos seus objectivos, a esquerda voltou-se para as minorias. Infelizmente muitas minorias não fazem uma maioria. É preciso encontrar cada vez mais minorias (o que começou como LGB já vai em metade das letras do alfabeto e não vai de certeza ficar por aí). As minorias agora incluem os animais, não tarda as árvores (que se votassem estariam em maioria, daí a ansiedade).

Por outro lado, uma vez instalada no poder, a esquerda - imbuida que estava da sua superioridade moral e da bondade intrínseca dos seus objectivos - permitiu uma série de derivas: corrupção, rendas de situação, desprezo pelo Estado de Direito.

Agora admira-se com as revoltas das maiorias.

8.12.18

Quase

Foi numa praça deserta, só estávamos ela e eu, noite cedo (quase se via o dia ainda), eu bebia um vermute e ela dizia-me "estou comovida".

- Descomove-te, mulher - respondi. - Não há quem não tenha um amor assim, antigo e eterno como a dor nas costas. Aprende-se a viver com ele, é como ser um bocadinho surdo, muda o mundo mas pouco, ouve-se tudo na mesma, quase tudo e o meu amor por ti é esse quase, é o que me falta para ter o mundo todo, o que falta para que esta noite seja noite, para que esta praça se encha de miúdos a andar de skate ou de jovens senhoras trintonas a comentar as últimas compras que fizeram ou os últimos engates que aceitaram, falta pouco, não passa de um pequeno quase, habituamo-nos a viver com ele (ou sem ele, se preferires), é como ter fome e saber que o jantar está quase apesar de saber que o teu amor não está quase, se te descomoveres é mais fácil apreciar a beleza desta praça tão pequena, tão elegante, bem proporcionada e acabarmos o vermute em paz.

Enfim, quase paz. 

6.12.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-12-2018

A história é muito complexa, um verdadeiro puzzle. Começa por o Antiquari estar aberto apesar de hoje ser feriado. Acabei por lá parar a beber um vermute ou dois. Este café é o equivalente do Tati em Palma, infelizmente sem o jazz do Gonçalo. À frente está uma igreja, importante e imponente, há pouco promovida à categoria de basílica. É uma das mais importantes e antigas de Palma. Um senhor activa-se a lixar, com um utensílio eléctrico, a porta das traseiras, a que dá para o café. Saí de casa com a intenção de trabalhar e o raio do barulho da lixadeira desconcentra-me mais do que os vermutes me concentram.

Faço uma observação (bonacheirona) à empregada:
- O homem vai ficar ali o dia todo?
- Espero que sim. - Poucas coisas há que aprecie mais do que uma ironia bem colocada. Ela tem razão: rir é o melhor remédio, claro. Pouco tempo depois a rapariga volta e explica-me  que os trabalhos são devidos à vinda de um "padre" (aspas porque cito, traduzido do espanhol cura) de Roma e querem ter a igreja em condições.

Bem, isto acontece em todo o lado, até na Santa Madre Igreja: não se mostra a outrém a merda em que vivemos.

- Mas não lhe deram as tintas. O homem não sabe o que fazer. - Ora se há coisa de que a dita Santa Igreja não tem falta em Palma (e provavelmente no resto do Universo todo inteiro) é massa, guito, carcanhol. Houve ali incompetência, simples esquecimento ou o cura de Roma não é assim tão importante que justifique uma demão de tinta na porta das traseiras da Basílica?

Não sei, obviamente. Assim que de repente me lembre nunca sequer lá entrei, quanto mais privar com o manda (ou troca)-tintas. Sei que o barulho continua até o N. entrar no café, em cuja casa vivi quando pela primeira vez estive em Palma. É do outro lado da rua, mas não falamos da porta da Igreja ou dos déboires do pintor sem tinta. Falamos do trabalho dele (é restaurador de móveis, mas agora evoluiu para restaurador de tudo e mais alguma coisa, desde cerâmicas do Picasso a adagas do século XIX), do meu trabalho, de bicicletas - N. é um ciclista amador a sério -. Tem uma bicicleta para vender que a priori me parece melhor do que a minha Órbita Estoril II (que os senhores da Órbita me perdoem, mas não é difícil). Amanhã vou experimentá-la. N. ajuda-me a vender a Órbita, pelo que em princípio a operação será neutra de um ponto de vista financeiro, se não contarmos o período de sobreposição das duas burras.

A ver, como dizia o nosso amigo velhinho.

A verdade é que com a conversa do N. deixei de ouvir o barulho do pintor e hoje é feriado e quando lá cheguei (ao Antiquari) pensei que a Igreja estava a fazer pessoas trabalhar a um feriado, mas depois lembrei-me de que a Igreja trabalha especialmente aos domingos e feriados e portanto para ela isto não é nada de excepcional. "Espera, é", diz-me um dos muitos narradores que se escondem nas traseiras das minhas sinapses: "o feriado é político, não é religioso". Começa um diálogo: "no código genético da Igreja não todos os feriados são religiosos". "Certo, mas não se deve fazer barulho aos feriados à frente do melhor café da cidade quando alguém lá vai para trabalhar". "Pois. Mas define barulho: mal começaste a conversar acabou o barulho".

Bom, despedi-me do N., montei na minha bicicleta "elástica" (adoro esta expressão tanto quanto detesto aquilo que ela designa) e vim passear. Encontro a L., que no Inverno deixa de vender bijuteria e vende camisolas, xailes, luvas, gorros e por aí fora em lã ou em alpaca. Ficamos à conversa - conseguiram finalmente um apartamento longe de Palma, o D. tem um carro, o G. (o músico que conheci em Antigua há sete anos e por intermédio de quem conheci esta malta toda) esteve em Palma - e acabo, finalmente a beber um vermute ou dois no Ca na Chinchilla. O tablet está configurado e funciona, tenho ficheiros e programas e posso, portanto, escrever disparates.

Os quais me faltam muito, isto tem andado um bocadinho escasso, não por falta de vontade de os debitar, longe disso, mas sei lá, por outras razões quaisquer que agora não me saem, talvez por não serem disparates.

De maneira agora bebo os meus vermutes na Chinchilla, salvo seja e penso como seria Palma se tivesse um bocadinho mais de cultura, só um pouco, um café Tati, uma livraria Snob, uma Ler Devagar, um Procópio (está encavalitado em duas categorias: Bares e Cultura), um Povo, as Primas Terças e por aí fora.

Imagine-se uma cidade onde não há um terço do barulho de Lisboa, onde as bicicletas são bem vindas - até nas lojas, um gajo entra com a bicicleta e toda a gente acha normal - mais pequena do que Lisboa, limpa, com os pavimentos das ruas em bom estado, cosmopolita - e a tudo isto junte-se-lhe a oferta cultural de Lisboa.

O que me leva a pensar que nunca me tinha apercebido desta minha necessidade de cultura, mas enfim. venha um vermute, Angel.

(Não é bem verdade, eu sei. Mas o DV não é um registo histórico. É ficção.)

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Hoje é feriado e a Rambla começa a encher-se de gente. A porcaria das compras de Natal espanta-me: gosto de dar presentes, de oferecer bugigangas, livros, roupa, flores, o que for. Por que raio de carga de água fazê-lo só numa altura do ano? É um pseudo-potlatch sem a dignidade dos verdadeiros (suponho. Nunca assisti a um). Vá lá que pelo menos as pequenas são giras, ao menos isso, desviam-me o pensamento das fealdade dos stands.

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I. foi trabalhar hoje, ver se conseguimos acabar a primeira demão até ao fim-de-semana. Uma coisa que eu pensava ia demorar três ou quatro dias (não por excesso de optimismo, mas porque seria o normal) já vai em mais de duas semanas. Deixei de fazer previsões de datas. As coisas fazem-se e quando estão prontas estão prontas. Nunca pensei que o meu amado P. fosse um tão bom professor de Taoísmo.

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E. e eu estamos a pensar organizar um jantar literário na Volta Dos. Há vários problemas a resolver, entre os quais o dos idiomas. Só inglês, ou inglês, francês e espanhol? Se pomos francês temos de pôr alemão também. Só inglês e alemão?

Temos de encontrar um autor e livros para todas as línguas? Fazemos uma mescla? Se for só inglês tem de ser relativamente acessível para todos os não-anglófonos.

Enfim, hoje ocorreu-me que seria mais fácil fazer um só em espanhol no Antiquari. A H. não deu pulos com a ideia de o fazermos no Smack (em francês). Não sei, estas coisas parecem uma agulha magnética à procura do Norte: andam de um lado para o outro até acertarem.

Pelo sim pelo não comprei duas versões do Khayyam em espanhol. Na livraria (a Babel, claro) comento a quantidade prodigiosa de traduções que os espanhóis têm. "É verdade", responde-me o mais velho dos dois vendedores. "Vocês em Portuga falam muito mais línguas. A vossa burguesia é muito mais culta do que a espanhola. E então da catalã nem se fala!"

Aos olhos dos outros, deixámos definitivamente de ser o país de onde vêm as mulheres a dias e os pedreiros.

4.12.18

À porta da vida

Ia deitar-me um bocadinho, só um bocadinho, esperava não tropeçar em ti num canto qualquer do sono ou do sonho, têm as mesmas portas, os mesmos cantos mas é inútil: estás sempre lá, à porta de um e do outro, mal eu entro saltas-me à garganta e não vejo mais nada se não tu. Isto acontece sempre, seja no canto do sono seja no do sonho. Às vezes até nos dois, estás num e no outro logo a seguir. Depois acordo e é a mesma coisa, saio e dou contigo ali à espera, à porta da vida.

Concorrência

Anos antes de se casar comigo, Marie-Thérèse teve uma aventura com um padre. Foi uma história longa para os os padrões dela da época, explicou-me. "Durou quase um ano. A mim, acabada de sair de uma relação completamente desequilibrada com o Édouard pareceu um casamento." "Uma relação com um padre não deve ser um modelo de equilíbrio", respondi. "Que raio te passou pela cabeça?"

"Bem, o homem era lindo. Parecia o Alain Delon de sotaina. Mas o que na verdade me atraiu não foi isso. Nem sequer o risco, quem o corria era ele, não eu. O que me deixava louca era a ideia de estar a fazer concorrência a Deus."

"Concorrência desleal... Na cama nem Deus te ganha."

2.12.18

Luz

A luz de Lisboa é um gouache; a de Palma uma aguarela.

Perder-se, encontrar-me

E se me perdesse? Como seria perder-me, eu que nunca me encontrei? Onde me perderia - em ti? No mar? Na vida? Numa rua dessa cidade de que tanto gostamos os dois? Numa nota de música? Na sombra de uma nuvem no oceano?

Se me perdesse seria em ti, só em ti: foi em ti que me encontrei.

Vida, aqui tão perto

Não me digas nada. Ouve comigo Gould maltratar Bach (e percebe que maltratar pode ser amar, às vezes). Bebe comigo um Limoncello, é demasiado doce mas não faz mal, bebe-se. Vive comigo este dia, tão perto do fim, dia que mais parece uma vida, um oceano.

Ouve-o espraiar-se em ti como se aqui estivesses, azul fosforescente que és como foi hoje o céu. Ouve-me: nunca estarás tão perto da vida.

Mar-oceano

De que é um dia feito? De peças, como um puzzle? Tijolos, como uma casa? Vagas, como o mar?

Ao contrário das peças e dos tijolos as vagas não se adicionam. Sucedem-se mas não se sobrepõem. Ninguém sabe para onde vão (isto não é mentira, é licença poética. Toda a gente sabe.) Ou seja: um dia como o de hoje foi um puzzle, uma casa ou um mar-oceano?

Pergunta

O barroco é o rock n'roll da música erudita, não é?

In/dependências

As coisas são como são; não como nós queremos que elas sejam. Contudo, por vezes as coisas e a nossa vontade coincidem. Tenho estudado o fenómeno por várias razões: a) é raro; b) é imprevisível; c) é inesperado: acontece sem intervenção do nosso querer, tão maltratado, ninguém - nada - lhe liga nenhuma.

Enfim, tudo isto para dizer que cozinhei uma carne que "não ficou mal" e ouvi E. ler-me os seus textos com fundo de Schubert. Há, acreditem, algumas formas melhores de fechar um dia. Mas são poucas e não dependem só de mim.

A biblioteca na internet - Li Bai

"Calcorreei todos os caminhos
e nenhum lugar me retém.
Parto de novo sem rumo certo,
entre as folhas que caem sobre a terra."

[Preferiria "Percorri" a "Calcorreei", mas deixo a versão traduzida por quem sabe (António Graça de Abreu)]

"Viajante do mar cavalgando ventos,
levando sua escuna para terras distantes,
deixando o rasto de
um pássaro entre as nuvens."

Presente, futuro

- Estou a fazer aquilo que não foi feito em trinta e cinco anos - menciono a um amigo em conversa.
- Não. Estás a fazer o que não foi feito e a corrigir o que foi mal feito em trinta e cinco anos.

Não há melhor súmula do que são os meus dias. E do que é o meu futuro - um presente destes é um presente em todos os sentidos do termo. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-12-2018

O dia está lindo, bonito de mais para deixar a constipação prender-me em casa. Que vá para o diabo que a carregue, mai-los espirros, tosse e assoos constantes. Pego na bicicleta e venho passear. O céu está azul vivo, azul quase fosforecente mas a luz é pálida, tímida. Ou seja: subtil, elegante, fina como esta esplanada do Passeig d'es Born onde bebo cappuccini e escrevo cartas e postais a eito.

Deixo a melancolia dissolver-se lentamente, por entre letras e corpos bonitos, até dela nada ficar se não aquilo que a une à felicidade, aquela estreita ponte que à alegria traz densidade e a matiza e à melancolia ligeireza.

Em breve vou ao almoço dominical do Smack; hoje blanquette de veau. O céu está cada vez mais azul, mas a luz continua igual. A Rambla e a Plaza Mayor estão cobertas de stands natalícios. O Born escapou, felizmente.

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Mas não escapou ao acordeonista que toca mal e porcamente música péssima. Escapo eu, pela esquerda baixa.

1.12.18

Porquê?

"Que não ficou mau..." Referia-me ao hummus que fiz há pouco; mas também ao frango do almoço; ou talvez até ao sábado todo, que foi de festa e não foi mau.

Espero é que ninguém me pergunte porque foi o sábado assim tão bom. Não saberia dizer-lhe.

O que só faz o dia melhor ainda: estar feliz sem razão especial não tem a gravitas de estar triste pelo mesmo motivo (ou ausência dele) mas é infinitamente melhor: um gajo não tem de se preocupar com o porquê.