31.1.24

O zen e a arte de adormecer

Não sou grande especialista do sono (nem de mais nada, mas isso para agora é irrelevante). Raramente tenho grandes insónias; às vezes acontece-me não querer dormir, o que obviamente é diferente de uma insónia. Adormeço com facilidade, acordo quatro ou cinco horas depois e volto a adormecer, se for preciso.

Mas descobri algo faz agora anos que me ajuda a prever se a noite vai ser de insónia ou não. É um processo semelhante àquele de quando éramos miúdos e na hora de regressar da praia era preciso esvaziar os colchões. Abríamos o pipo e deixávamos o ar escoar-se, regularmente, sem fazer pressão no colchão porque ninguém tinha pressa (com a possível excepção dos pais ou da Conceição, a criada de que tanto gostava que foi convidada para o meu casamento). Os colchões esvaziavam-se. E eu também, exactamente da mesma forma (com a diferença de que o pipo é metafórico, claro. Nada de ideias sujas, credo). 

Um gajo esvazia-se, ouve o ar a sair, sente-se cada vez mais vazio e só dá por ele quando acorda para ir à casa de banho. É um processo zen. É como respirar só para fora, mas o ar é substituído por um fluido qualquer que está nas células todas do corpo.

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 31-01-2024

Mais um daqueles dias em que o carro é que decide para onde vamos. Desta vez, resultou de uma negociação:
- Fort-de-France outra vez?
- Porque não?
- Andas há tanto tempo a dizer que queres ir dar um passeio ao norte da ilha...
- Tens razão. Vamos.

Fomos. Primeiro até Saint-Pierre,  aonde almocei; depois continuámos até à extremidade norte da ilha, até ao fim da estrada, não podíamos ir mais longe; voltámos para trás, comi um gelado (outra vez em Saint-Pierre mas num sítio diferente e melhor (isto é, mais barato e mais autêntico, deve ser um "resistente"), depois meti para o interior e depois já só queria era chegar. Não que estivesse cansado da beleza - não estava e de qualquer modo perto da cidade ela desaparece, engolida pelo cimento e pelo alcatrão - mas porque andei por caminhos completamente desadequados àquele carro que já anda mal numa estrada, quanto mais em picadas como não vejo desde Moçambique. Fiz meia dúzia de fotografias (a ver o que se aproveita. A luz não estava grande coisa), dei boleia a um casal que "a tout plaqué" e agora vive de pequenos trabalhos em "quintas orgânicas" (ambas as aspas porque cito). Ela era engenheira em ambiente, ou coisa que o valha e ele especialista em imagens de síntese. Depois de ter vendido tudo comprou um burro (ele) e passeou por França com o dito durante três anos e meio. Esta foi a primeira vez na vida que apanhou um avião. Eram bastante simpáticos. Estive quase para os convidar para um copo mas foi mesmo no princípio do meu passeio e queria chegar a Saint-Pierre.  Fiquei mais impressionado por ele nunca ter andado de avião (deve andar pelos cinquenta e muitos) do que por terem tudo «plaqué», mas não avancei muito nessa conversa. 

Para quem perceba de árvores esta ilha deve ser um orgasmo visual. 

.........
Chego a bordo, trato do jantar e dos planteurs (já está feito, é só pôr no copo...) passo as fotografias para o computador e penso que a carcaça está a recuperar bastante bem da operação. Deve ser por vingança.  Apercebeu-se de que tenho andado chateado com ela e hoje resolveu mostrar-me a massa de que é feita.

Não sei. Infantilidades à parte, a verdade é que esperava muito pior antes da operação; e um inferno nos primeiros dias depois.

Hallelujah. Não serei eu quem se vai queixar. Nem da embalagem  nem da médica que a operou, tão bonita. Os pessimistas nem sempre têm razão, ao contrário do que vulgarmente se pensa.

........
Meia dúzia de clientes e uma miúda que me quisesse magoar (piada privada) e seria o homem mais feliz do mundo. Assim sou só o de meio mundo.

.........
Já Janeiro se foi. Arre que era tempo! Agora já só me restam quinze dias até a médica me declarar apto para todo o serviço. 

30.1.24

Desaçucarar, pieguice

«Todo en ti fue naufragio.

Todo te lo tragaste, como la lejanía.
Como el mar, como el tiempo.

Todo en ti fue naufragio.

Era la negra, negra soledad de las islas,
y allí, mujer de amor, me acogieron tus brazos.»

(Os versos são de Neruda, a música de Paco Ibañez. Procurar no Youtube, Ibañez canta Neruda, ou coisa que o valha.)

É preciso Paco Ibañez para desaçucarar Neruda. Ou melhor: é preciso Paco Ibañez para desaçucarar a pieguice, venha ela de onde vier. Ele e Patxi Andion dão à pé-de-salsice honras de salão. Isto é, despem-na e por baixo daquela rouparia toda descobre-se uma mulher linda. É o que eles fazem: despem a mariquice, verso a verso, compasso a compasso, sílaba a sílaba e ali fica ela, no meio da sala, despida e branca, um bocadinho tímida, porque por vezes calha ser púdica. Oiçam Palabras para Julia em modo de repetição e à milésima vez perceberão o que quero dizer. Depois troquem Julia pelo nome da vossa filha. Mas só depois.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 30-01-2024

Voltemos então ao princípio da história: comprei queijo (camembert e brie), manteiga da Bretanha, daquela que é metade sal e metade natas. Comprei também pão e vinho tinto (Bergerac, tem a vantagem de não piorar se for bebido fresco). Tudo isto no Leclerc, o supermercado mais barato da ilha, ao que leio e vejo (se bem a minha amostra seja insuficiente para dizer «da ilha»). A carne que tirei do congelador de manhã vai ficar para mais depois. Acresce que chegado a bordo vejo que o camembert está no ponto certo, quase quase igual ao que há alguns anos comprei na rua Daguerre, em Paris e comi no quarto do hotel. Ninguém imagina o que um bom camembert pode fazer pelo trajecto que vai das papilas gustativas às sinapses. (O brie é Président. Sem comentários). Há, porém, aqui, alguns desacertos: nem cheguei a abrir o vinho para acompanhar os queijos. Estava com demasiada fome e mal cheguei saltou-me um planteur do frigorífico e olha, ficou para o almoço. Há mais desacertos? ¡Qué vaya! São insignificantes e não merecem sequer menção. 

O Leclerc fica no centro comercial La Galleria (sic), uma daquelas coisas absolutamente execráveis, enorme, aonde sinto que serei obrigado a voltar muitas vezes. O próprio supermercado é abominável. Para se encontrar o que se quer percorre-se um interminável labirinto cheio de coisas de que não se precisa - a única vantagem, no caso deste, sendo que o Minotauro à saída não é muito feroz. Enfim, as minotauras, as caixas são monopólio das senhoras.

.........
Retomo com vigor a luta contra o TCA (Terminal de Contentores de Alcântara). É muito pouco provável que ganhe - enfim, é impossível - mas não me rendo sem luta. Não sou um patriota por aí além - se fosse não teria vivido fora do país a maior parte da minha vida - mas suporto melhor a estupidez alheia do que a nacional. Talvez esta seja uma boa forma de amor pela pátria, não?

Talvez fosse preciso é convencer uma equipa de futebol dessas grandes a apadrinhar o projecto. Talvez assim este povo tão simpático quanto apático se mexesse e se apercebesse do horror que a CML e a APL estão a preparar. E não é só um crime de lesa-Lisboa. É o país todo que fica prejudicado. 

Mosquitos

Tenho andado a ser mordido pelos mosquitos. É bom saber que há quem usufrua do meu corpo.

29.1.24

Mona, carcaça

Nesta velha luta entre a mona e a carcaça, vale a pena lembrarmo-nos de que aquela pode fazer um monte de coisas sem a outra, mas esta sem aquela não faz nada.

A nossa idade é a da nossa mente, não a do corpo.

Não esperes

Nadas num mar de paz? Nem por isso. Não é um mar, é um lago. Tem um fim, quer à vista quer não. Sabes que vai acabar, não sabes o que te espera nas margens. O essencial é nadares, não te afundares nessa aparência de calma. Não te esqueceres daquilo por que nadas: a beleza, a decência, o amor, a sabedoria. 

(Ou melhor: o saber, conjunto de peças com o qual se constrói a sabedoria.)

Sabes nadar, tens as direcções. Não esperes.

Modernidade, desenraizamento

Nunca fiz inteiramente parte daquilo que me rodeava. Sempre estive - às vezes um pouco, outras muito - do lado de fora.No navio tinham de me ir chamar para as AGT (Assembleia geral de tripulantes, se por acaso), para as festas de Natal ou de Passagem de Ano; nunca fui de grandes admirações, nunca tive ídolos - nem o Tabarly, (coitado de mim)... Isto não é inteiramente verdade. No sétimo ano do liceu não saía de casa sem ouvir pelo menos uma faixa do Jimi Hendrix. Mas no essencial, ou na maioria se preferirem, está correcto. No meu Vaurien - de seu nome ADN - navegava quase sempre sozinho. 

Isto tudo porque me apercebo agora de que a minha indiferença não é pela modernidade, ao contrário do que muitas vezes penso e digo.

Entre duas mortes

Descubro a pele nua de uma alma nua. Isto é: descubro uma pele e uma alma. O corpo está algures no meio, como um separador numa autoestrada. Como um nariz entre os dois olhos. Como um cérebro entre duas orelhas. Como uma vida entre duas mortes, o nascimento e a outra. 

Indubitável

"Vida" é uma palavra que define a mistura de Leonard Cohen, mar, rum e paz.

Não tenho a certeza de que estes quatro elementos sejam imprescindíveis: se fossem, não teria vivido até hoje.

Coisa que indubitavelmente fiz.

Agradeço

Hoje disse a alguém, pela primeira vez na vida (a minha), que estou em paz. É verdade. Estou. Sei que este sentimento é passageiro, sei que paz é um conceito fluido, sei que tudo isto ("tudo isto" sendo o conjunto de vários conjuntos) é tão instável como o pião de uma criança inábil (é o que eu sou. A analogia é fácil).

Tudo isto é fácil e inquestionável.  Só tenho uma pergunta: a quem devo agradecer?

O que aí vem

Olha, querida. Vou dizer-te a verdade. Mudei de rum. Repara: não troquei o rum por whisky, vodka ou gin. Não sou volátil, tu sabes, agora que me conheces bem. Sou fiel. Rum é rum, seja ambré, como até agora ou blanc como agora. Simples questão de economia e de gestão de stocks, nada a ver contigo. Troco de runs mas não troco de mulheres.

Isto é: troco tudo: ventos, barcos, mares, vidas. Só não troco futuros. Esses não os tenho feitos. E preciso de ti para fazer este que aí vem.

Paráfrase

Cioran dizia «é espantoso que a perspectiva de ter um biógrafo não impeça ninguém de viver» (a citação é de memória e traduzida por mim. Deve ter várias falhas).

Gosto de a parafrasear: é espantoso saber que há quem me leia e mesmo assim continue a escrever.

Se por acaso

Não vá dar-se o caso de alguém algum dia me perguntar e eu me esquecer: a maior canção de todos os tempos chama-se Avalanche e é de um senhor chamado Leonard Cohen.

Todas as outras de todos os outros são aproximações. 

28.1.24

Basta viver

Já Janeiro se foi e entra Fevereiro, o melhor mês: é o mais curto, o último do Inverno (para quem tem Inverno). Depois vem Março, marçagão, manhã de Inverno tarde de Verão. Vivi muitos anos sem Inverno e um dia vi neve em Março, foi tão bom!

A pergunta é: há ele alguma coisa que não seja boa? Basta viver e tudo é bom.

Claramente

As coisas têm de ser ditas e ditas com clareza. Onde não há clareza não há coisas. Há palavras, quando muito e palavras não são coisas. São sons. 

Por exemplo: a música de Evanthia Reboutsika, de Eleni Karaindrou, de Angélique Ionatos, de Nena Venetsanou é maravilhosa. Digam o que quiserem, eu não me importo. Em Portugal temos uma assim, uma senhora que cantava com os Madredeus. Teresa, se bem me lembro. Nogueira? (Salgueiro, estúpido.) Assim que de repente me lembro é a única. Ah, e há também o Vasco Abranches, que compõe música como deve ser.  Isto é, música que não seja jazz ou medieval, renascentista, barroca ou até pós-romântica, porque essa é sempre como deve ser. Até Britten que morreu ontem à tarde tem boa música. Quem não gosta de Mahler levante o braço. Ou de Rachmaninov. São sons? Não. É clareza feita música. Quem não gosta de Ahmad Jamal ou de Mingus sai da sala. De Hildegarde von Bingen. Arvo Pärt. Chavela Vargas.

Podia passar a noite toda a recitar nomes, mas o objecto deste texto não é a música. É a clareza. A função das palavras. Dizer A e significar A. Dizer «Amo-te» e deixar bem claro que «amo-te» significa «quero amar-te. Quando te conhecer, daqui a cinco ou dez ou quinze anos, amar-te-ei». Dizer: «Não sei» e significar «Não sei». «Não sei quanto tempo levarei a conhecer-te porque o amor não é uma pomba que nos cai do céu, é uma parede que se constrói todos os dias, tijolo a tijolo, talocha a talocha.» «Não sei quem sou, porque contigo serei diferente. Se não for, de nada não serve estar contigo: o amor serve para nos mudar. Se for para ficar na mesma, mais vale mantermo-nos cada um no nosso canto.»

Por exemplo: «não sei» significa «não sei». Ou seja: um mundo. A quantidade de coisas que não sei é infinitamente superior às que sei. Este copo de café que agora bebo, esta música que oiço (Eleni Karaindrou, "Beatriz"), este rum (HSE ambré), este salão aonde escrevo (S/Y S. D.)... Que sei eu de tudo isto, sem o cimento aglutinador do amor? Sem o amor nada sabemos, com ele tão pouco mas pelo menos ficamos mais perto, é para isso que serve o amor, para ficarmos mais longe do que não sabemos, mais perto de saber qualquer coisa. Se eu ouvir Evanthia Reboutsika contigo oiço a mesma que oiço sem ti? Não sei.

Não sei. Conheço caminhos mas nem todos os caminhos são iguais. Interessam-me os caminhos que não conheço? Nem sempre. Às vezes gosto da segurança de um porto cujas ruas, cafés e bares já percorri. Gosto do sorriso que umas flores te dão. Acredito na capacidade unificadora de um olhar. Acredito na capacidade unificadora das palavras claras.  Acredito nos gestos simples, na capacidade apaziguadora de uma carícia, no desafio de uma dúvida. Acredito em tudo aquilo que quero acreditar porque não saberia acreditar no que os outros acreditam, mesmo que quisesse. 

Por isso acredito no amor: esta parede que fui construindo a várias mãos fez de mim aquilo que sou hoje, aquilo que amanhã serei contigo. Depois de amanhã não sei. Depende da qualidade dos tijolos e do cimento, do jeito dos pedreiros - nós. Há poucas coisas na vida que não sejam uma incógnita e «nós» é a maior delas todas. Há que dizê-lo claramente.

Introspecção, diáspora

Num momento de introspecção aguda descobri que sou a diáspora de mim próprio.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 28-01-2024

O almoço foi uma rouille de seiches "à la martiniquaise": enchi aquilo de cebolinho, pimenta da Jamaica (aqui chamada bois d'Inde) e malaguetas. Uma das poucas vantagens que vejo em viver sozinho é poder fazer a comida picante como gosto dela. Gosto muito. E acompanhá-la com a música de que gosto: primeiro medieval, depois barroca - duas espécies de rock avant la lettre.

De maneira oiço os Concertos para Oboé do Bach, saboreio a posteriori todas as matizes da rouille - feita e acompanhada com um Bourgogne Aligoté, não vá o diabo tecê-las. 

.........
Pouco a pouco, descubro uma condição que me era fugidia: a paz. Não sei de onde veio, nem se veio para ficar. Mas sei que está aqui agora e que ela nunca saberá quão grato lhe estou, por pouco tempo que fique.

.........
Esta paz é simultaneamente uma fuga para dentro e outra para fora: estou bem comigo e quero partilhar este bem-estar com outra pessoa. Estou bem sozinho mas estaria melhor com uma destinatária no outro lado das palavras, para não andarem desnorteadas, coitadas. 

.........
A música devia ser toda assim: ouvida trezentos anos depois de se composta. Ou mil.

Tempo, idade

O tempo e a idade andam sempre juntos, como gémeos, mas são diferentes. O tempo é uma linha contínua e formosa; a idade é uma escada com os degraus todos diferentes uns dos outros, alguns de lado, outros que faltam ou estão partidos.

Até que um dia se encontram e aí sim, fazem um conjunto harmonioso.

Amores, esculturas

Por muitas obras-primas que tenham dado à literatura mundial, nada há mais chato de ler, escrever ou viver do que um amor triste. Só cantados e ou filmados se podem tornar interessantes.

Ou esculpidos, se a senhora (no meu caso) for escultural. 

27.1.24

Um dia, no passado

Um dia, no passado, fotografarei todas as coisas, pessoas, paisagens, luzes que hoje quero fotografar. E escreverei a todas as mulheres a quem hoje quero escrever. E farei tudo aquilo que hoje quero fazer. 

Um dia, no passado, viverei a vida que hoje quero viver.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 27-01-2024

As surpresas estão aonde menos se espera. Venho ao mercado do Marin. É um mercado pequenino e uma grande armadilha para turistas, mas gosto-lhe do cheiro e das cores - mesmo em dias como o de hoje, em que a luz não está grande coisa (e muda de cinco em cinco minutos).

Entro por uma das entradas laterais e vejo um senhor a vender abricots (nada a ver com os abricots europeus, que não passam de pêssegos). Não conheço a fruta e compro uma, que ele abre para eu provar. Conversamos um pouco e de chifre pergunta-me - ou melhor, diz-me:
- És português?! És pedreiro? 

O homem é martiniquês e vende "abricots" e água de coco a um preço exorbitante, é certo. Mas daí a identificar o meu sotaque em poucos minutos surpreende-me.

Continua:
- Só trabalho com portugueses.

Perante o meu ar interrogativo, clarifica:
- Quando preciso de fazer obras nas casas. Tenho dois apartamentos que alugo a turistas e quando preciso de fazer qualquer coisa neles só chamo os portugueses.

Fico assim a saber que há pedreiros lusos aqui. E que um tipo que vende fruta no mercado é dono de dois apartamentos. 

..........
Surpresa suplementar: o senhor do Bon Boudin está cá e tem a loja aberta. Enganou-se no nome: devia ser «Le Meilleur Boudin». Estaria ainda mais perto da verdade.

.........
Mais: a senhora que vende bijuteria artesanal é portuguesa. Está cá "há dezasseis anos. Já sabia que você é português".
-Sabia? Como?

Aponta para trás, para uma pessoa que não identifico e acrescenta:
- A Leila (?) disse-me. Sou amiga dela." 

Não sei de todo quem seja a Leila (?). Hoje deve ser o primeira vez em todos estes anos que falo com alguém que não a Sandrine do A la Maison e o senhor do Bon Boudin para mais do que "quero isto ou aquilo, por favor". Ou seja: o sotaque português é bem conhecido aqui. Não fazia a menor ideia 

Nós marinheiros vivemos nas margens. "Noutro planeta", como me disse um dia a minha filha H. Vivemos nas costas da terra, tenha este terra todos os significados que a forma permite.

26.1.24

Ainda o Terminal de Contentores de Alcântara

Imaginem que têm uma missão a cumprir: percorrer as montanhas, florestas, vales de Portugal de carro para identificar uma coisa qualquer, pouca importa o quê.

Têm dois carros à disposição: um jeep Toyota daqueles que não partem nem torcem e um Jaguar. Qual escolheriam?

O que a APL está a fazer em Alcântara é: «escolhemos o Jaguar e vamos fazer-lhe modificações para lhe permitir cumprir essa missão».

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 26-01-2024

Para trabalhar vou ao co-work da marina. Tem uma boa rede, ar condicionado e bares na proximidade. Mas para escrever prefiro voltar para casa. Já não tenho a vista que tinha em Montgérald, mas a que tenho aqui tão pouco é triste. Dá vontade de cantar laudas ao vento e ao verde, a esta vegetação que ganha ainda mais vida com o vento que a agita, que lhe faz festas, acaricia e ela responde, contente e viva, ágil como uma adolescente nas suas primeiras aventuras. E tão velha que é.

........
Cheguei aqui há coisa de um mês e meio. Aquilo que eu previa aconteceu: hoje passo à frente de um daqueles escritórios aonde inicialmente deixava CV e perguntava (retoricamente) se tinham trabalho ocasional para mim. Desta vez não tive sequer tempo de entrar: a chefe de base sai de lá de dentro a pedir-me para entrar e a perguntar-me se tenho disponibilidade e se sim por quanto. Acordamos um número, explico-lhe que a minha prioridade é o S. D., mas que sim, posso trabalhar noutras coisas e agora tenho pendente uma viagem da Dominica à Guadeloupe num cata e mais dias quando houver chegadas de cargos (há muita gente que envia as embarcações em cargueiros especializados e aquele escritório é um dos mais activos nesta área). Não sei o que vai dar, mas sei que esta vegetação tem razão para parecer tão contente. E, sobretudo, para me alegrar tanto, de tão bela.

........
Jantar maravilhoso ontem no Cayali, com a T. G. e um casal que não conhecia. A senhora merece palmas: conseguiu fazer rir o dono do restaurante, conhecido daqui até à Lua por não sorrir nem que lhe afaguem as plantas dos pés com uma pena. Mais do que isso: conseguiu humanizá-lo. Até agora, para mim era uma espécie de robot com aspecto humano, que eu «tolerava» (aspas porque cito o Manuel Monteiro) com uma dose monumental de humor. Tenho a certeza de que a partir de agora nada será como até agora, graças à S. C. - a quem aqui manifesto toda a minha gratidão e admiração.

Hoje repetimos a proeza, mas com mais gente do grupo da Treino de Mar. Admiro a empresa por conseguir juntar um grupo tão grande de malta e felicito-me por não ser invejoso. Olha se fosse... Bolas, só preciso de quatro pessoas. Mas não sou e congratulo-me por ver tanta gente a descobrir e a usufruir destas ilhas.

.......
O primeiro tripuilante para a travessia do Atlântico acaba de confirmar! SSSSSIIIIIMMMMM!!!!! Bem vindo a bordo.

(PS - Resultado: deixei ferver o café. As notícias andam sempre aos pares.)

Resultado dois: já só há três lugares para a viagem de St. Martin a Lisboa. Não se despachem não que não é preciso.

25.1.24

Morrer?

Bom, está na altura de fechar a noite. Dizer-lhe "boa noite, noite". Fingir que agora sim, vamos dormir. Não vamos, claro. 

É como se disséssemos "vamos morrer".

24.1.24

Disparates (A vida não é sensata)

É impossível escrever enquantio L. Cohen canta. Preciso de escolher: escrever disparates ou ouvir coisas sensatas?

Sensatas não é o adjectivo adequado. A vida não é sensata.

Disse?

 «I told you when I came I'm a stranger». 

Did I?

Que fazer?

As embarcações de recreio transformaram-se em residências secundárias. Eu não as tenho nem primárias, há tanto tempo. Não sei que fazer. 

Como deve ser

Penso em todas as mulheres que não amei como deve ser e a pergunta surge-me, como uma vaga na praia: «e as que não te amaram como deve ser?»

Maionese

Bom, vamos passar à parte diarística deste blogue, pode ser? Hoje fiz maionese e ficou óptima. 

(A culinária é a única área de actividade humana na qual é permitido dizermos que somos bons.)

Duvidosa, mas dádivada

Afogado em luz. Demasiada. Afogado em planteur. Insuficiente. Afogado em L. Cohen. 

Afogado. «São quatro da manhã, no fim de Dezembro. Está frio em Nova Iorque. Did you ever go clear?»

Não comprei cigarros. Não comprei nada, na verdade, senão um pouco de tempo.

Isso não se compra, meu velho. Recebe-se, como se fosse uma dádiva. Duvidosa, mas dádiva.

Bis repetitae

Like a bird on the wire,
like a drunk in a midnight choir
I have tried in my way to be free.
Like a worm on a hook,
like a knight from some old fashioned book
I have saved all my ribbons for thee.
If I, if I have been unkind,
I hope that you can just let it go by.
If I, if I have been untrue
I hope you know it was never to you. 

Like a baby, stillborn,
like a beast with his horn
I have torn everyone who reached out for me.
But I swear by this song
and by all that I have done wrong
I will make it all up to thee.
I saw a beggar leaning on his wooden crutch,
he said to me, "You must not ask for so much."
And a pretty woman leaning in her darkened door,
she cried to me, "Hey, why not ask for more?" 

 Oh like a bird on the wire,
like a drunk in a midnight choir
I have tried in my way to be free.

Vitórias?

À medida que vou lendo menos as noites vão sendo povoadas por recordações. De que são feitas, essas memórias? De uma mescla de corpos, sentimentos e vergonhas.

Mais tarde ou mais cedo haverá lugar para as vitórias. 

Não

É demasiado cedo para reflectir sobre a minha vida, por um lado. Por outro, acho que não o fiz suficientemente. Se o tivesse feito, talvez ela tivesse sido diferente.

A questão, claro, é: diferente é sinónimo de melhor? 

Diabas

Tentemos estender a noite. Só temos dois veículos: L. Cohen e rum. O primeiro será facilmente trocado. O segundo não.  Para além do rum só há cerveja e água, duas bebidas demasiado parecidas para serem alternativa ao que quer que seja. Continuo com os dois. Não há nada melhor do que os diabos que se conhecem. 

Com a possível excepção das diabas, claro.

L. Cohen e as perguntas sem resposta

Já amei uma mulher por causa de Leonard Cohen. Amei outra porque era alta; ou porque tinha um sentido de humor irresistível. Já amei uma mulher por ser bela como a Lua nos trópicos, apesar de ser russa e outra, apesar de ser burundesa. Já amei mulheres por engano - e fui amado igualmente -; já amei mulheres de toda a forma e feitio. Já as amei em todas as latitudes, longitudes e tudo o que lhes fica no meio (nada). Nada disso conta. 

Só importa uma coisa: quantas me amaram? Quantas se lembram de mim como eu me lembro delas? 

A resposta a essa pergunta está em Leonard Cohen.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 24-01-2024 / II

São precisos três meses para se conhecer uma cidade. E mesmo assim depende da cidade. Não se conhece Nova Iorque, São Francisco, Chicago, Londres, Paris em três meses. Ou seja: é preciso reformular. São precisos três meses para saber se queremos ou não amar uma cidade. 

- Como se uma cidade fosse uma mulher.
- É. Conheces alguma coisa feita pelo homem que não seja uma mulher?

........
Às vezes penso que dizia mal do serviço em Palma. Quero retractar-me: não chega aos calcanhares do de Fort-de-France. Aqui é tão mau que chega a poupar-me dinheiro, coisa pela qual lhe estou infinitamente grato.

«Amar alguém é amar-lhe os defeitos», dizia já não sei quem. Deve haver poucas definições de amor mais precisas e lapidares do que esta. Pelo menos é o que eu penso cada vez que vou ao Impératrice (isto é, todos os dias).

Aquilo de que nele gosto vale mais do que o serviço, que é na verdade a única coisa abominável, por um lado. E por outro: está longe, muito longe, de ser o único sítio com um serviço de bradar aos céus. Começo por lhe gostar da beleza (sejamos justos: é um dos sítios mais bonitos que conheço) e continuo por lhe gostar do tempo. Tempo, aqui, sendo aquela noção de que é uma ponte entre um tempo que já foi e outro que há-de vir e apreciar as mesmas coisas que eu aprecio. Como se fôssemos um traço de união, o Impératrice e eu.

Gosto de me sentir assim unido a qualquer coisa, união que não é só ocasional. Como se fosse uma mulher, não é?

........
Hoje li um artigo escrito por um senhor com quem tive, há tempos, uma divergência pessoal. Tão divergência que me levou a «cortar relações», expressão que abomino tanto que lhe ponho aspas. O artigo é óptimo e deu-me vontade de escrever ao dito senhor - coisa que de resto vou fazer. Ele que responda como achar melhor.

A verdade é que sou capaz de distinguir as esferas pessoais das outras - intelectuais, culturais, sociais, humanas, e por aí fora. Porém, pensando melhor, pergunto-me se não devia formular isto ao revés: sou incapaz de não distinguir as diferentes esferas que em cada indivíduo coabitam.

A verdade é que ser assim tem vários aspectos negativos, dos quais o desinteresse pelas biografias é o mais gritante. Li pouquíssimas biografias e agora quero recuperar esse atraso. Mas a verdade é que sempre me interessou mais o que as pessoas fazem (ou escrevem, pintam, compõem, esculpem, etc.) do que o que dizem. Ou, menos ainda, aquilo que delas dizem. 

Máxima essa que de resto me aplico: o que as pessoas pensam interessa-me, aquilo que pensam de mim é-me total e quase dolorosamente indiferente. 

........
A chuva parou, o vento voltou e leva com ele a luz. A noite senta-se à mesa, convidada daquelas que não se podem ignorar. A Lua está cheia, coisa que lhe acontece todos os vinte e oito dias, mais coisa menos coisa. Sou um selenita que não emprenha pela Lua e por isso penso nesta mesa, aonde gostaria que estivesse outra pessoa e não só a Lua e eu. 

Qual mesa? Esta, aonde estou sozinho contigo ou esta, aonde estou sozinho comigo?

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Venho para bordo e - mais uma vez - o mundo virtual salva-me: tenho Glenn Gould a tocar nos altifalantes de bordo. Uma embarcação não é uma residência secundária, mas quando se aproxima é tão bom, não é? A seguir virá Leonard Cohen, a sequência lógica.

........
Estou a bordo de uma embarcação de vela, escrevo disparates, bebo rum, faço uma maionese (ficou óptima) e oiço Glenn Gould. Talvez isto seja um resumo da minha vida, mas deixo isso aos eventuais biógrafos.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 24-01-2024

Continua a chover que Deus a dá. Por muito que se pense na beleza da paisagem, nesta vegetação explosiva de energia e de beleza, não deixa de ser enjoativa, tanta água.

.........
É preciso começar por dizer que a Big Laverie não é, nem pouco mais ou menos, a única. Isto acontece-me em todo o lado e não há precaução que chegue. Fui buscar os calções que ficaram para trás porque tinham uma nódoa que não saía. Quando os deixei, a funcionária disse-me que custaria talvez seis euros. Afinal eram vinte e a senhora (outra) teve a amabilidade de não contar os seis euros do anti-nódoas. Como reclamei bastante ainda reduziu o preço para dezoito euros, o preço «fidelizado». Hoje apanham-me em maré de desconforto - a chuva, a porra da convalescença que avança à velocidade de um caracol amputado, a confirmação do charter que espero com ansiedade - e decidi que a partir de agora vai ser queixa directa ao organismo competente. Arre, o que é demais enjoa.

Estou cada vez mais farto de relativismos. 

ADENDA: O seu a seu dono. Recebi um telefonema da Big Laverie a explicar-me que a senhora não sabia que eu já tinha pago a lavagem e a propor-se deduzir do preço da próxima lavagem aquilo que paguei a mais desta.

(Cont.?)

22.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 22-01-2024

A dor é uma esfera de vidro perfeitamente transparente na qual tu estás prisioneiro. Ninguém vê a bola senão tu, ali sentado no centro. Não se percebe bem em que é que te sentas mas percebe-se que estás isolado do exterior. Os ruídos chegam-te abafados, vês desfocado o que há para ver, os outros ouvem-te mas não compreendem o que dizes.

Quando passa, nem tu compreendes o que se passou.

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Resisto à tentação dos analgésicos, mas não percebo bem porquê. Algo entre estoicismo e negligência. Estupidez parece-me demasiado forte.

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Tudo isto para aprender duas palavras, uma das quais nem sequer existe em português. Os médicos têm isto em comum com os marinheiros: usamos o léxico como um uniforme. 

20.1.24

Pequenos e grandes problemas

O grande problema de se passar o dia no beliche é saber aonde se vai passar a noite.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 20-01-2024 / II

Jantado mereceria aspas: «jantado». Passei a maior parte do dia deitado e ao fim da tarde resolvi sair, não fosse começar a vomitar o pobre S. D. que culpa tem nenhuma. Fui ao Impératrice beber um ti'punch («um» é uma litote), comprei mostarda e pão e vim para bordo fazer hot dogs, uma forma de jantar que aprecio particularmente, sobretudo se for acompanhada por um planteur maison. Oiço Dollar Brand (African Marketplace, um dos seus discos que prefiro) e penso que relatados assim os meus dias não têm o mais pequeno interesse seja para quem for. Isto dos diários é uma mistura muito grande: há coisas das quais não me apetece falar porque nem a mim interessam, outras das quais não quero porque valorizo o pudor e finalmente acabo por falar apenas daquilo que em mim há dos outros, ou coisa que o valha. De maneira, aqui vai, meus caros: o Impératrice é adorável apesar - ou por causa - do seu serviço, que só não é abominável porque é cómico, como de resto o do Cayali e o da maioria dos lugares da terra. Estes dois têm pelo menos a vantagem de ser lindos e talvez seja isso que puxa a comicidade, vá lá saber-se. O Dollar Brand é outra história. Um dos raros concertos a que assisti foi dele, em Genebra, com o Carlos Ward no trompete, uma espécie de deus mudo, impassível, maravilhoso. 

Bebo café de novo aos litros, coisa que o bom senso desaconselha porque é um diurético. Vá lá, pelo menos consegui reduzir o consumo de água e o de cerveja, que é uma espécie de água com gaz e com cor, coisa que a outra não tem. Ou seja, neste momento o mix é: rum HSE ambré, café e Dollar Brand. Daqui a pouco um cigarro - comprei um maço, juntamente com a mostarda e com o pão -. Se isto não é uma mistura apaixonante não sei o que é. Amanhã é domingo, dia que só não é pior do que o sábado porque se lhe segue a segunda-feira e posso trabalhar e ir ao médico se for preciso. Espero que não, apesar de a senhora ser linda de morrer, o que não estraga nada, muito antes pelo contrário. No outro dia disse-me que devia evitar erecções durante três semanas e pensei imediatamente «Isso é fácil. Bastar-me-á não me lembrar de si» mas calei-me. Às vezes acontece saber calar-me. Sobretudo se o outro lado vier a ter um bisturi nas mãos. Ando completamente desregulado com os comprimidos para a diabetes mas como o coiso tem andado baixo deixo andar. Uma das grandes qualidades do rum é que não me aumenta a taxa de coiso no coiso. Deve ter a ver com a homeopatia, como aqui disse recentemente. Matar o mal pelo mal. Melhor: ressuscitar o bem com o bom. 

Uma coisa de que ninguém pode acusar-me é de maltratar a carcaça, que é uma mal-agradecida de todo o tamanho.

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De Dollar Brand passo a Jimmy Dludlu, um senhor que aconselho a todos os que gostarem de «afro-jazz» (aspas porque não sei se tal coisa existe). Isto da desmaterialização tem vantagens, por muito que lhe queira resistir. E já que estamos assim, a seguir virá o Wazimbo. Falta-me tanto, isto. Faltam-me tantas coisas, «isto» sendo todas as que vivi. Não tarda começo a pedir um prolongamento, vão ver. Eu, que sempre aspirei a morrer cedo. Não sei se foram os netos se as memórias que me estragaram os planos.

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Penso muitas vezes num poema de Reinaldo Ferreira chamado A que morreu às portas de Madrid. É assim:

A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque - antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

Não há maior felicidade do que ter a sorte que se quis, a morte que se escolheu. Por muito cara que essa sorte seja e muito ansiada a morte.

Crença, saber e modernidade

A modernidade devia aprender a distinguir entre crença e saber.

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 20-01-2024

Passo o dia deitado, como se a dor fosse um tapete. A imagem é falsa: isto só dói em certos momentos. O resto do tempo está tudo na paz do senhor. A água e o casco entretêm-se em animada conversa. A ventoinha fornece-lhes música de fundo, música que não pus ainda porque não me apetece ouvir nada. Tão pouco me apetece ler. Depois do Modiano que acabei ontem (Chevreuse, uma obra-prima) o Sueño de Ulises parece pesadão, com a escrita demasiado elaborada, tricot, rodriguinhos. O raio da chuva não tem maneira de se conformar ao mês e parar, nem de se decidir: ora agora chove ora agora faz sol. Acabo por deixar de abrir as escotilhas. Fiquem fechadas e as ventoinhas que trabalhem. Gosto de ouvir esta conversa do casco com a água,  pouco ritmada, com níveis de som bastante variados. Por vezes vem um balanço ou outro, sempre suave. O sueco que tinha as adriças a bater desalmadamente ou se foi embora ou tratou delas e já não se ouve esse detestável ruído. O S. D. está limpo, arrumado, tranquilo. O J. S. deixou de fazer os melhores sabões do mundo e foi para a Suíça fazer não sei o quê. Isto é uma maçada permanente, encontrar sabonetes decentes. A prima da A. I. morreu de cancro, este emigra. Que acontecerá ao próximo que encontrar? Sobretudo: quando o encontrarei? Aqui não será de certeza.  

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Tenho cinco multas por excesso de velocidade. Isto é revoltante, tanto mais que não sei se poderei ignorá-las, como fazíamos dantes quando éramos flashados em França. Tento pensar que em contrapartida o Estado francês me tratou (enfim, a ver) de borla e as multas são uma modesta contribuição para o tratamento.

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Preciso de navegar, mas enquanto isto não estiver a cem por cento nem pensar. Se bem tenha boas recordações do hospital em Bequia. Também era de borla ou quase: o pagamento fazia-se indo à farmácia comprar remédios para lhe oferecer. "A senhora da farmácia sabe aquilo de que precisamos". Aqui pelo menos o hospital está bem equipado. Só não percebo a origem destas dores, mas isso fica para depois.

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Ficou decidido que a largada para Lisboa vai ser de St. Martin. Vou voltar a ver o meu querido goonies. Tenho de reservar o lugar, aquilo vai estar cheio. Na pior das hipóteses fico na laguna, do lado holandês. Ou em Port Royal... O J. ainda estará vivo? Aquela brasileira de sonho ainda trabalhará no goonies? (Pergunta retórica, claro. Sei que não: há muito tempo que não a vejo nas fotografias da página deles do FB.)

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Preciso de mar.

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Não consigo extirpar o chip "Portugal" e continuo inquieto com o resultado das eleições. É uma estupidez, claro, porque pessoalmente não vai mudar grande coisa. É mesmo só vontade de ver aquela porra daquele país sair da cepa torta - coisa que também sei que não vai acontecer tão cedo, qualquer que seja o resultado. Chama-se a isto amor desinteressado e talvez seja uma boa forma de patriotismo.

19.1.24

«O som e a fúria», a noite e a noite

«A noite estende o seu suave manto»... já li isto algures. O rum estende o seu suave manto... O rum não estende manto nenhum, ó sua besta. No fundo é da noite, deste jantar à beira-mar, desta noite que a música quase me fez dançar - ou melhor: fez, mas por pouco tempo - desta ideia de ficar a dormir aqui em vez de ir para o Z'Abricots, desta noite em que as dores são debeladas à custa de Tramadol e Paracetamol, desta noite que não quero falar. 

É importante não querer falar de qualquer coisa. Tanto como querer falar dessa mesma coisa, creio. O que é a fúria, na expressão «O som e a fúria»? Deve ser o silêncio, imagino. Mas o som, a palavra, podem ser igualmente «fúria». Equivalem-se, o som e o silêncio, o som e a fúria, o som e o caos. O silêncio e o caos. A noite espalha a sua mão protectora. A noite é uma chata, pá, ainda não percebeste? Não acaba, a porra da noite. Mesmo quando é de dia é de noite, não percebes? Até esta noite acabar não haverá dia.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 19-01-2024

Não percebo bem quais os comprimidos que tomei e quais me falta tomar. A partir de uma certa dose tudo se mistura. Pouco me importo, para dizer a verdade. A carcaça que se amanhe e me avise, se puder e quiser. Não tenho nada contra a química, antes bem pelo contrário. O que me chateia é estar tão dependente dela. Enfim, mais ou menos. Temos que atenuar esta «dependência». Se tomei tomei, se não não e se tomei a dobrar paciência.

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Jantar no Cayali. Nunca vi restaurante com pior serviço do que este. É tão mau que ou nos rimos ou fugimos. Opto pelo riso mas é difícil persuadir o T. Espero conseguir. Aliás: sei que vou conseguir. Questão de tempo.

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Fui ao hospital de manhã mas vim-me embora sem ser atendido. Uma hora para uma «urgência» (aspas porque sobrevivo bem com ela) é um exagero em qualquer parte do mundo. Vou esperar até segunda-feira. Aí verei se era uma urgência ou não. Isto de deixar a carcaça mandar tem limites. 

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Fico a dormir no Marin. Insistência do T. à qual achei bem ceder. Na verdade não sei que pensar. Qual o nome de «quando um filho dá ordens ao pai»?

Definição: humor

Humor não é só sabermos rir-nos de nós próprios. É também - ou sobretudo - rirmo-nos daquilo de que não gostamos.

A hipocondria e o melhor SNS do mundo

Por razões que não vêm agora ao caso hoje de manhã resolvi ir ao hospital outra vez. Ao fim de uma hora de espera lembrei-me de que não sou hipocondríaco e vim-me embora. O melhor SNS do mundo tem concorrentes aonde menos se espera. Apesar de lhes ganhar, claramente: aqui já fui operado, do SNS ainda nem uma mensagem recebi. Algo me diz que vou ganhar a aposta e que vou chegar a quinze de Fevereiro sem notícias do hospital Egas Moniz.

18.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 18-01-2024

O problema da velhice é saber quem manda na carcaça: ela ou eu? Saio do hospital a pensar nisto - isto sendo a minha relação com esta puta que vive do e para o meu dinheiro. Quando era miúdo - muito miúdo - tinha problemas com os dentes. E com o freio da língua. Vindo de Moçambique foi a vez do septo nasal, uma tortura que não estou perto de esquecer. Vim para a rua na Alexandre Herculano sem saber em que país estava, quanto mais cidade ou rua. A seguir, muitos anos depois, foi de novo o septo nasal, em Genebra. 

Enfim, não vou aqui fazer a lista das maleitas. A verdade é que até agora tinha a sensação de que, apesar de tudo, tinha um certo controle sobre elas. Hoje não tenho - nem controle nem certeza nem sensação nem nada. Quem manda é ela, a carcaça. Eu limito-me a segui-la e a tentar controlar os danos. Beber quando e o que me apetece, por exemplo. Também verdade seja dita que não há muito mais mal que lhe faça. Fumo pouco, como cada vez menos, durmo quase bem. De vida resta-me a bebida, como este rum que agora bebo depois de uma série deles no vizinho, o idiota que afinal é um gajo porreiro sobretudo quando se esquece de que é um gajo porreiro.

Oiço Lou Reed - Rock and Roll Animal não é o seu melhor disco. Esse é Magic and Loss, seguido de Songs for Drella. Os outros vêm depois - bebo rum (um pouco mais do que devia, mas agora é tarde), penso nesta relação torcida que tenho com o corpo, daí vou para os corpos e logo a seguir para as mentes e penso que não sei qual a relação que tenho com a minha. Como se a minha mente e eu fôssemos a mesma pessoa, contrariamente ao corpo e eu, que somos dois.

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Como Janeiro: estamos a dezoito. Ainda ontem foi o ano novo, como a operação que foi ontem também. Ccomo se o tempo e eu fôssemos entidades diferentes, correndo cada um à sua velocidade.

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A única vantagem de se beber muito é que - eventualmente, talvez, quiçá - se dorme melhor. Isto é,
dorme-se.

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Os homens deviam ser medidos não pela altura ou pela força física, mas pela capacidade de viverem sozinhos. Quanto mais sozinho mais homem? Ou ao contrário, quanto menos mais?

Não sei. Não tenho resposta a essas afirmações.

16.1.24

Diário de Bordos - Z'Abricots, Martinique, DOM-TOM França, 16-01-2024

O vento continua demasiado forte para a época, mas já está a cair; a chuva é igualmente demasiado frequente para um mês de Janeiro; a Lua está em crescente, perfeitamente normal e regular; amanhã vou ser operado, bastante menos frequente, Allah u Aqbar; mudaram-me a hora de chegada ao hospital, das sete para as dez da manhã, re-Allah-etc.; fui pela primeira vez ao centro comercial Galeria (sic), uma dessas coisas monstruosas, odiosas e gigantescas aonde os trópicos se dão a ilusão de civilização; a primeira fase de trabalho no S.D. está terminada, re-re-Allah-etc.; estou impaciente e inquieto. Enquanto não vir esta porcaria resolvida não descanso. Tenho a vida a ponto e vírgulas até isto estar fechado e arrumado. A rede da Digicel continua a merda que sempre foi mas como é a única que dá para todas as ilhas foi a escolhida. Continuo a acreditar que regressarei a Bequia, às Grenadines, a Mayreau, a Union Island, a todos esses sítios deslumbrantes - mesmo sabendo que hoje o serão talvez um pouco menos; bebo ti'punch com rum da Distillerie La Favorite. Juntamente com a HSE são a melhor relação qualidade-preço do mundo dos runs francófonos; estou a precisar de mar como preciso de ar ou de mudar de pontuação.

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Sou um rapazinho obediente. Hoje telefonaram-me do hospital para me darem instruções sobre o que devo fazer. Uma delas dizia respeito à comida. Não me lembro se era comer ou ingerir: devia parar à meia noite. Bebi a última gota de rum do copo às onze e cinquenta e nove. Se isto não é obedecer não sei o que é. 

Talvez cagaço?

15.1.24

Cicatrizes, sorte

Fugiram de mim mais mulheres do que aquelas de quem fugi? Não faço a mais pequena ideia. Não é essa a boa métrica. O que importa é saber quantas me deixaram uma cicatriz, tenha sido eu ou tenham sido elas a fugir. 

Estou cheio de cicatrizes. 

Tenho sorte. Estou pronto para a próxima. 

14.1.24

Estrelas, estúpido

Temos Orion, logo por baixo Sirius, que é a alfa do Cão Maior, temos os Gémeos - Castor e Pollux - a Ursa Maior, com Canopus que um dia te pregou um susto ao largo das Filipinas, lembras-te? E Aldebaran, a Cassiopeia, a Ursa Menor mai-la Polar. Eram uma série delas, isto sem contar com os planetas: Marte, Júpiter, Vénus, Saturno, de que nunca viste os anéis por simples negligência. Mercúrio, tão difícil,  anda sempre perto do Sol. É este, o teu caminho nas estrelas, balizas involuntárias que antigamente se prestavam de bom grado a dizer-te por onde andavas. Hoje confias em satélites, mais fiáveis,  mais rápidos, sempre disponíveis e olhas para as estrelas sem saber bem porquê. Só porque são bonitas? Porque lhes aprecias a melancolia? Porque gostas da distância? As estrelas falam-te silenciosamente, acenam-te como se estivessem a ver-te, não podem - ao contrário de ti - mudar de rumo, alterar a rota. Talvez seja isso que nelas buscas, não?

Estou a falar das estrelas, estúpido. 

Resumo do terceiro capítulo, agora sem os dois precedentes

Resumo do terceiro capítulo:

A história adensa-se. Temos uma livreira apaixonada (ou com desejo de, não é a mesma coisa) por um autor que começou um pouco perdido este texto e agora o está ainda mais. Um leitor e uma personagem principal escorraçados pela senhora, que não quer testemunhas na sua tentativa de engate. Sendo bonita e tendo ar de bibliotecária é pouco provável que não consiga. A questão que se nos põe agora é: tem o autor vontade de ser engatado por uma livreira que cobra pelos pontapés que dá? A caldeirada está comida, o vinho branco bebido, o autor sugere uma aguardente e a senhora anui. De qualquer forma, «não» é uma palavra que fugiu subitamente do seu léxico, seja ela a proferi-la seja - mais arriscado - ela a ouvi-la. Para tentar salvar-se o autor muda o nome da senhora para Raquel. Não está muito longe do nome original - Nela, Nelita - e começa por um erre, letra que aguça os sentidos, por assim dizer. Está mais perto de tigreza, leoa, leãozinho. O homem pensa em música brasileira, percebe-se. Deixa-se invadir pela torpeza da serotonina, ouve meio distraído as perorações de Raquel (o nome fica-lhe bem), desiste de lhe tirar a mão dos joelhos, divaga aereamente pelos açudes da volúpia, por enquanto só imaginada. Decide-se:
- Se quiseres ir para a cama comigo podemos ir, mas quem faz tudo és tu. 
- Não queres acabar a tua aguardente?
- Quero. Mas quem faz tudo és tu. Eu estou em ponto morto. Deixo-me ir pela encosta abaixo. Ou acima. Depende de ti. Fico muitas vezes assim, depois de uma boa refeição (isto é mentira, mas não faz mal). Uma mistura de volúpia e abulismo. Sei o que quero e o que devia fazer para o conseguir mas não quero fazer nada porque se não o tiver fico igualmente bem. 

A isto chama-se em teatro uma saída pela esquerda baixa. O autor está ferido pelo seu último falhanço amoroso, não sabe se a cicatriz está fechada ou não - às vezes pensa que não, outras sim - e quer ter uma escapatória não vá dar-se o caso de a tal cicatriz ainda estar a sangrar e a sua falta de vontade manifestar-se ruidosamente.

- Sim, talvez seja isso. Mas também estou farto de ser um predador, percebes? Estou farto de ter de ser eu a dar o primeiro, o segundo e o terceiro passos. Foste gentil, já deste os dois primeiros. Continua, sim? Hoje sou a tua presa, a tua vítima, o teu troféu. Brinquedo. O que quiseres, desde que...
- Percebo. Às vezes acontece-me isso também. Uma vez um gajo quis comer-me e eu disse-lhe que sim. A coisa correu bem, o rapaz era atencioso e terno. Mas no dia seguinte tanta atenção e ternura enjoaram-me e limitei-me a ficar deitada na cama sem fazer nada, rigorosamente nada. Menos do que uma boneca, suponho. O homem vestiu-se e foi-se embora sem uma palavra.
- Não penso que chegarei tão longe.
- Veremos, como diz o ceguinho. 

Decidem encontrar um hotel nas imediações e deixar os carros aonde estão.

Vão a pé pela avenida Luísa Todi, a esta hora quase deserta - não é Verão, está visto.

- Gostava mais de Setúbal antes da autoestrada. Agora parece aquilo em que se transformou: um subúrbio de Lisboa. Dantes tinha um carácter muito próprio, era outra coisa. Tive aqui uma das mais bonitas histórias de amor da minha vida, mas infelizmente não me lembro do nome da rapariga. 
- Vais esquecer-te do meu? 
- Não sei.
- Desafio interessante, esse. 
- Não devias ver isto como um desafio. Não é. Desafio pressupõe um adversário, uma dificuldade, um obstáculo. Não é isso que vais ter. Vais ter um corpo e uma erecção - tua, só tua - mas não te prometo mais do que isso. 

O autor tem Jaime Queredo a chateá-lo - quer aparecer na história - e a personagem principal, que não pára de o inquietar. Até agora não tens nome, atira-lhe o rapaz, com a livreira pelo braço. Não sabes sequer se sou homem ou mulher, parvalhão. Decide-te! 

É com este diálogo na cabeça que o autor avança pela avenida. O hotel não é muito longe mas a noite está clara, ele vê Orion, Sirius não tardará a aparecer, os Gémeos estão claros. Estamos portanto no Outono. A rapariga é bonita e contida: não se atira a ele, imita-lhe o silêncio, limita-se a dar-lhe o braço quando se apercebe de que ele gosta. Há mulheres assim, sabes? (O autor dirige-se à personagem principal). São poucas. Percebem o silêncio. Falam silêncio, como se fosse uma língua estrangeira que levou muito tempo a aprender. Mas esta ainda é nova. Tem o quê? Quarentas? É a idade em que elas começam a ser mulheres. Antes disso têm aquilo tudo misturado: a reprodução, a segurança, o marido, os filhos se os há. Aos quarenta o novelo começa desenrolar-se. Têm os filhos na escola, estão divorciadas ou bem casadas, sabem o que querem na cama e fora dela. As melhores aprendem a falar silêncio, como esta. Melhores para mim, pelo menos. A língua mais bonita de todas é o francês. Logo a seguir vem o silêncio. Isto é, o silêncio em francês, porque cada idioma tem o seu silêncio. Como se fosse um sotaque, percebes?

Já passaram o hotel, mas Raquel não diz nada, não lhe puxa pelo braço. Deixa-se guiar por ele, numa curiosa e inesperada inversão de papéis. 


(Cont.)

Este texto é dedicado a duas senhoras: à C., que um dia me pediu desculpa pelo seu silêncio, sem saber que é uma das minhas línguas favoritas. E à D., que não o lerá porque não fala a nossa língua mas fala silêncio como eu falo português. 

Diário de Bordos - Port de plaisance Z'Abricots, Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 14-01-2024

Lavo, limpo, arrumo, selecciono: estou em plena fase de sedução do S. D. 

Sim, é disso que se trata. Navegar é um acto de amor e como todos os amores tem as suas fases: a sedução, o acto - que neste caso dura um bocadinho mais, não fiquem invejosas, senhoras - as carícias pós-acto (de que a lavagem do barco quando se chega a um porto é o melhor exemplo). Agora estou, por assim dizer, nos preliminares, tão importantes. É preciso saber aquilo de que ele (barco) gosta, onde se esconde e o que esconde, lavá-lo a fundo («A limpeza é o melhor amigo do skipper e o pior inimigo do shipchandler», como diz um ditado que acabo de inventar). Neste caso com uma data-limite, coisa que me irrita: terça-feira que vem devia estar tudo pronto. Uso propositadamente o imperfeito: é pouco provável que esteja. Os dias estão cada vez mais curtos ou eu cada vez mais cedo cansado. E depois uma embarcação é um buraco (de que «barco» é uma aproximação muito próxima, basta eliminar uma letra e mudar outra de lugar) não só de dinheiro mas também de trabalho: quanto mais se faz mais aparece por fazer. (Como nas grandes paixões, não é? É)

Hoje até o palerma do vizinho fez uma observação, à qual respondi polidamente: sim, há muito trabalho mas estou a chegar ao fim. Não lhe disse que estou a chegar ao fim da primeira fase. Ainda faltam duas.

(Exagero, Kalimero. Esta conseguirei acabar até terça.) 

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A prova de que isto está quase é que cada vez mais sinto necessidade de ir para as ilhas.

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Um dia terei de escolher entre dar uma casa aos meus livros e viver num barco. Temo esse dia e espero que venha longe.

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Aclimatar é uma forma de aculturação. Eu começo a estar aclimatado, por exemplo: agora o frio começa nos vinte e três graus. À noite já tenho de me cobrir. Felizmente só com um lençol e depois de apagar a ventoinha. Há pessoas que não gostam do calor. Para as perceber, tenho de me imaginar no Inverno em La Chaux-de-Fonds, em Nakhodka, em Genebra, no mar entre Atenas e Palma quando de lá saí em Janeiro e a temperatura no pontão era de menos um grau.

Infelizmente não funciona sempre: às vezes gosto do frio. Até me acontece ter saudades dele, imagine-se. Felizmente estas crises são curtas e passam depressa.

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Não sou grande adepto da homeopatia mas começo a entrever - enfim, a confirmar-lhe - um princípio: matar o mal com o mal. Quanto mais rum bebo menos açúcar tenho no sangue. Em meu favor, apresso-me a esclarecer que não bebo rum em doses homeopáticas.

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Tenho uma objecção contra o planteur: faz-me desaparecer todo o rum a uma velocidade siderante. Além disso, agora que descobri que é melhor se ficar a macerar dois ou três dias impõe-me este cruel dilema, que consiste em decidir se o bebo agora antes desse período ou se espero até ele estar pronto. Dilema esse bem conhecido de quem compra vinho às caixas, de resto: o vinho está no ponto quando se chega à última garrafa, as outras tendo sido bebidas «para provar». 

13.1.24

O sonho de Ulisses

"A epopeia sobre o Mediterrâneo nasceu no trágico confronto entre o indivíduo mortal com o universo dos deuses imortais. Tanto num como no outro mundo há uma infinidade de pontes, analisadas por Homero com recurso à ironia."

A tradução é minha e por isso mesmo sugiro que leiam ou o original ou uma tradução decente do livro todo. Chama-se El sueño de Ulises e é de um senhor chamado José Enrique Ruiz-Domènec.

Feitas à mão

Aparece-me no FB um anúncio de gravatas "feitas à mão" e imagino imediatamente uma vida feita à mão, como a minha. Descanso no beliche antes de ir para o Marin, penso na quantidade de horas que hoje trabalhei - e descansei, os dias já não são o que eram, nem os dias nem a carcaça - penso em tudo o que me falta fazer, é cada vez menos mas ainda é muito, penso em vidas como esta, bordadas em ponto cruz [intervenção de uma especialista bem vinda], feitas à força de braços,  de copos, de livros, de ventos, de mar e digo-me:

- Que bela gravata isto tudo daria!

Manigâncias

Já me aconteceu várias vezes jogar no totó-milhões e portanto não vou aqui fazer-me de virgem ofendida. Só não compro mais vezes por duas razões:

a) Não estou em Portugal e essas coisas só se compram em casa;

b) Não quero privar ninguém do prémio,  se por acaso me calha. É preciso pensar nos outros e eu penso. Imaginem que ganhava eu e com isso privava um SBF (sem barco fixo) de adquirir a embarcação dos seus sonhos?

Nada disso. Para mim só quero o que me cabe de direito e mesmo esse natural. Nada de manigâncias.

12.1.24

Diário de Bordos - Fort-de France, Martinique, DOM-TOM França, 12-01-2024

Chove e venta. Estão ambos tardios, o vento e a chuva. Estamos em meados de Janeiro, que diabo! Tempo de parar com esta porcaria desta chuva diurna e de acalmar os ímpetos eólicos, que não precisamos de gerar electricidade e menos ainda de salvar o planeta. Só para navegar seria isto útil, mas por enquanto estou amarrado ao hospital (metaforicamente, claro) e preferiria um pouco menos de ar, um pouco menos de chuva (e um pouco mais de ilhas, mas isso só depois).

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Madame,

Quand j'étais jeune et le «taureau furieux» habitait chez moi (je n'étais pas son seul refuge, évidemment) je demandais souvent que l'on me castrât. Aujourd'hui il s'est de beaucoup assagi mais n'est pas mort du tout. S'il vous plaît, n'écoutez pas mes prières d'aintain.

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Esta música é abominável. Penso no Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, que parafraseia Agostinho: «O que é a qualidade? Se não me perguntam eu sei mas se me perguntam não consigo explicar».

É o restaurante mais bonito que conheço em Fort-de-France. (Mais sobre isto depois.) Infelizmente os empregados não percebem que a música é para os clientes, não para eles. (Já não falo sequer da ausência de música, seria como falar de ir a Marte a um paralítico.)

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Uma vez mais confirmo uma ideia que me é querida: o melhor momento de um preconceito é quando descobrimos que estávamos enganados e devemos trocá-lo por outro. Desta vez, o motor da confirmação foi o L'Impératrice, que por sinal é o sítio mais bonito que conheço aqui. (É importante notar que não conheço muitos.) De tão bonito nunca lá comi, pensando que seria caríssimo. Pois bem: hoje descobri que não, não só não é caro como é mais barato do que a maioria das espeluncas aonde tenho andado a comer a preços exorbitantes.

Descoberta esta que devo à Carole, com quem ontem me «zanguei». Aspas porque é mentira. Não me zanguei com ela. De resto é raro zangar-me seja com quem for. Desvaneço-me, é tudo. Decidi simplesmente que não voltarei a almoçar lá. 

O serviço do Impératrice é péssimo - aquilo é profundamente local -, as empregadas são obesas, o sítio é lindo de morrer, a comida excelente, os preços desafiam a credulidade deste pobre marinheiro longe de casa (depois se veria que tem razão, mas isso é outra história), a horrível música do almoço foi substituída por uma algazarra que tem pelo menos a vantagem de ser «local».

O meu amor pelos trópicos é sempre matizado pela ausência generalizada de qualidade, no sentido que o Pirsig lhe dá. O que não significa, de forma alguma, que não prefira estar aqui agora a estar noutro lado qualquer. Prefiro, sim. De resto, tudo o que pode retardar esta metamorfose em velho rezingão é bem vindo.

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Metamorfose sendo o título da primeira exposição que fui ver aqui. Duas jovens miúdas, muito jovens, abalançaram-se a fazer um estudo sobre as mudanças ocorridas na ilha desde não percebi bem quando. A coisa tem todos os clichés, lugares-comuns e mitos da actualidade mas tem também dados numéricos e factuais interessantes. Resultado: quero ir ver outra vez. Infelizmente a mostra de hoje é única e uma das jovens não sabe quando será a outra. Deixei-lhe um cartão, para me avisar. Tenho de despachar os cartões. Se fossem em Braille e os desse a alguém que vê bem o efeito seria o mesmo.

Domingo organizam um passeio pela ilha e estou sinceramente tentado a ir. Quanto à exposição: fica para depois, se ainda me lembrar.

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Hoje aprendi que se deve controlar a conta em todos os restaurantes. Sublinho todos, mesmo os bonitos. Elas vão descobrir uma razão pela qual aquilo que vamos pagar difere daquilo que pensávamos pagar. Isto acontece em todo o lado. O importante é controlar os preços no momento do pedido.

11.1.24

Vinte anos

Sou tão bom com aniversários que deixei passar o vigésimo deste blogue. Uns dias depois lembrei-me e voltei a esquecer-me de o assinalar. Aqui fica agora, com duas semanas de atraso: vinte anos, meu caro DV. Já temos mais do que uma vida em comum.

Dispersas anteriores - Le Marin, 11-01-2024

Hoje descobri que peso 85 quilos e pensei "Porra, se pesasse menos 5 seria um ás". Porém esqueci-me de me perguntar "Um ás de quê?" e não pensei mais no assunto até agora, aquele momento antes do sono em que o dia todo desfila perante os nossos olhos fechados.

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Ainda não faz um mês que estou aqui e confirmo: a minha casa é a Europa e dentro dela o meu quarto é o Mediterrâneo. A sala de estar é o mar do Norte, aquele pedaço de mar que começa pouco depois da Bélgica e acaba por alturas de la Rochelle. A cozinha é tudo o que fica a leste da linha Reno - Ródano e a oeste dos Balcãs. Não há casa de banho. 

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Não consigo largar esta ideia de escorregar pelos dias. É tão falsa quanto atraente. Na verdade, são os dias que passam por mim como sabonete por uma pele cansada.

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Mal posso crer que estes trajectos dementes - quarenta quilómetros para lá e quarenta para cá - estão a acabar. O automóvel é a prova provada de que a liberdade se paga caro.

10.1.24

Resumindo

As palavras voam, levam as mãos atrás, por cima o olhar que as hipnotiza e uma pele recebe a dádiva, atenta e grata.

9.1.24

Resumo do segundo capítulo, tendo o primeiro como antecedente, não vá ele perder-se (o capítulo)

Resumo do primeiro capítulo: o nosso herói reflecte sobre o ponto aonde se encontra na vida e tudo o que o levou ali. Reflexão curta, apresso-me a esclarecer o leitor não vá este pousar o livro na estante e desatar a correr pela livraria gritando silenciosamente "Socorro!" Ou, pior ainda, quem se escapa do livro é o herói, feito personagem de uma rosa qualquer do Cairo. Nenhuma destas hipóteses agrada ao autor, que apesar de não fazer a mais pequena ideia do ponto em que ia pôr a personagem principal do livro a queria nele (isto é, no livro) e também muito gostaria de ter um leitor, um que fosse, a conversar com ela (a personagem principal) e não cada um a correr para seu lado, coitada da livreira, uma rapariga bonita dos seus quarenta anos que quer tudo menos confusão; disso já ela tem que chegue em casa com um marido que só não lhe bate porque ela é especialista em krav-maga ou lá como se chama a arte marcial dos israelitas. De maneira sugiro veementemente ao autor que faça curta a reflexão do herói; que está agora num ponto qualquer da sua vida mas não sabe bem qual. Os pontos da vida têm nomes como as paragens de autocarros ou as estações dos comboios - infância, adolescência, idade adulta, etc. - mas estão muito longe uns dos outros. Devia haver paragens intermédias e o caminho entre elas devia ter mais árvores para que um herói desorientado se possa sentar à sombra, proteger da chuva ou fazer xixi. 

O herói não é marinheiro mas visualiza o caos como se este fosse um conjunto de ventos. Quando tem a vida ordenada - isto é, naqueles breves momentos em que o comboio de tempestades pára para meter água ou combustível - o vento é só um e chega-lhe da alheta; depois o tal comboio ganha movimento outra vez e os ventos vêm de todas as direcções. "Vá lá que o que tenho de frente é fraquinho" diz o herói que não é marinheiro. Não se sabe bem a quem fala. À livreira lutadora? Ao leitor assustado? "Que raio de trio foi este palerma arranjar", diz o leitor antes de fechar o livro e sair calmamente com ele debaixo do sobretudo. Mas a livreira viu-o e com dois pontapés e um murro pô-lo no chão. A cena compõe-se. Pode facilmente imaginar-se a continuação. A livreira diz-lhe "cada pontapé dos meus vale trinta euros e cada murro vinte. O senhor deve-me oitenta euros da pancada e vinte do livro". "Mas o livro só custa dezoito e noventa", responde o homem titubeante. "Pois, mas eu não tenho troco. Se quiseres dou-te uma chapadinha a um e dez, para não te sentires lesado". "Não, obrigado. Posso pagar com o cartão?" "E o rabinho untado com água de rosas, não?"

A livreira é bonita, tem um corpo harmonioso e óculos que a fazem parecer uma bibliotecária. O leitor está por terra, ainda. A seu tempo levantar-se-á, irá ao multibanco que fica ao lado da livraria, levantará os cem euros, despedir-se-á da senhora - Nelita, fica aqui baptizada - e ir-se-á embora a jurar que nunca mais na vida roubará um livro deste autor ou com esta personagem. 

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Nela apercebe-se de que ficou com o livro e decide ver se encontra o inábil ladrão de livros.

Não teria a mais pequena hipótese de o encontrar se, a pensar nas necessidades da narrativa, o leitor não tivesse deixado cair um pacote com cartões de visita.  Chama-se Jaime Queredo e mora a caminho de Setúbal. A personagem principal regozija-se. Gosta de Setúbal e assim pode convidar a livreira para uma caldeirada na tasca da Tia Rosa, que bem boas as faz. O autor lembra-se de que ainda não deu um nome à personagem mas agora não lhe apetece pensar nisso. O importante é reencontrar a tasca e ter a certeza de que está aberta.

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Resumo do segundo capítulo:

A tia Rosa está aberta. Jaime Queredo, leitor inábil sabe aonde fica o restaurante e aceita - hesitantemente, de passagem seja dito - encontrar Nela e receber o livro que tão duramente pagou. Ou seja: neste momento estão na já mencionada tasca o leitor, Nela, a personagem principal e o autor. Nela está furiosa. Entrega o livro ao homem e diz-lhe:
- Tome lá o livro e desapareça da minha vista. E veja lá se aprende a roubar livros, seu traste. - Isto para o tal Jaime. Para o autor:
- Por que raio de carga de água me fizeste esperar tanto tempo para te encontrar? - Para a personagem principal:
- Desapareça você também. Tenho de ter uma conversa muito séria com este homem. 
- Desculpe, minha senhora. Não posso desaparecer assim. Sou a personagem principal deste livro.
- Ó homem, ponha-se daqui para fora e já.

Ficamos assim a saber que a personagem principal do livro é um homem capaz de enfrentar o mau humor de uma campeã de krav-maga mas conhece os seus limites. Ainda não lhe sabemos o nome e de momento continuamos a história sem isso. O importante agora é o mau humor de Nela. Porque está zangada?

Já aqui a descrevi: parece uma bibliotecária, o que sendo funcionária de uma livraria faz sentido. Quando não está zangada é uma doçura de mulher, passem-me por favor o cliché. É culta, sensual e tem um sentido de humor devastador. Isso, porém, fica para depois. Educa sozinha dois filhos, apesar de partilhar bastantes tarefas com os respectivos pais. Um chama-se Eduardo e é guarda-livros num banco. Do outro não revela pormenores. Diz apenas que é um gajo que está sem estar, um gajo - insiste na palavra gajo - que consegue conciliar a ausência e a presença, como os aviadores e os maquinistas de comboios.
- Ou os marinheiros - arrisca o autor.
- Esses não. Nunca estão.
- Ou os escritores?
- Ainda pior. Estão sem estar. Parecem fantasmas. 
- Você hoje está amarga - arrisca o autor. Agora que estão sozinhos, a caldeirada da Tia Rosa chegou e o moscatel foi substituído por uma garrafa de vinho branco a conversa flui um bocadinho para fora das margens.
- Amarga? Eu? Já me provou? Ou melhor: já me provaste? Farta de te tratar por você. - (Até ali a conversa tinha oscilado entre o tu e o você, mas pouco importa.)
- Concordo. Estávamos a falar dos teus dois filhos, não é?
- E tu, tens filhos?

O autor aprenderá à sua custa que falar com Nelita é um duelo e não tem nada daquilo a que Marguerite Yourcenar chamava «construir um muro, em que cada um acrescenta um tijolo».

- Essa fufa genial... É um dos meus escritores favoritos, sabias? Ainda antes do Adriano. Comecei com o Alexis, continuei com a Oeuvre au Noir e só depois cheguei às Memórias. Não a posso ouvir, mas tão pouco posso não a ler. 
- Escritores?
- Fizeste-me esperar uma eternidade. Isso não se faz.
- Posso dizer o mesmo, não posso?
- Podes. Deves. - A zanga passou-lhe, efeito sem dúvida do vinho branco. Põe a mão no joelho do autor e diz-lhe:
- Já li livros teus, sabias? - O tom mudou radicalmente. - Já te conheço, mesmo antes de te conhecer.
- Uma coisa é o que eu sou, outra o que escrevo. - O autor está nitidamente numa atitude defensiva. Tenta afastar discretamente a mão de Nela do joelho mas ela agarra-se-lhe. 
- Fizeste-me esperar. Agora tenho de decidir se te perdoo ou não.

É do conhecimento geral que se uma mulher diz isto é porque já perdoou.

As mãos, as palavras

Amanhã tenho de acordar às cinco da manhã para ir para o hospital. São dez da noite e não tenho um pingo de sono. Normalmente, escrever disparates acalma-me. É o que estive a fazer até agora, o que faço agora. Pensar em outras mãos também. Isto é: no conjunto delas com a minha pele, esta pele feita para ter outras mãos. Segundas mãos. Segundo as mãos, o corpo é um ou outro. Em segundo lugar, as mãos? Sim. Primeiro os olhos. Isto é, o olhar. Só depois as mãos, essas mãos que segundo o corpo vão decidir o caminho.

Amanhã o caminho está decidido: consulta pré-cirúrgica. As mãos, essas, estão indecisas. Serão como sempre as palavras a indicar-lhes o caminho. Todos os caminhos começam com palavras, todas as palavras começam com um olhar, todas as mãos. Sim, é um círculo. As mãos, as palavras, o caminho, a peĺe. Tudo devastam e tudo começam. Coroa entrançada em que o princípio é o fim e o meio é o princípio de novo. As mãos,  a pele, as palavras. De quem, para quem, umas e outras?

7.1.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 07-01-2024

O vento. Abençoados alísios, que nos acariciam e refrescam. Em Palma no Verão são as térmicas que cumprem esses deveres, acariciar e refrescar. Em Portugal é a nortada, mas essa é violenta, agreste e fria, quantas vezes. Aqui as coisas correm com o vento: este frango delicioso, o almoço com o filho, que o adorou, a música, desta vez melhor do que da outra. 

O quadro é uma roulotte ao lado da qual um senhor assa frango num meio-barril. Um euro a peça. O fumo vai para cima da roulotte. Pus-me a barla do grelhador, um dos senhores da equipa perguntou-me se queria uma mesa, respondi sim mas - se for possível,  se não for não faz mal - e ele trouxe-ma e aqui estamos, o T. e eu num estreito relvado entre um estacionamento e uma avenida a ouvir música que não sei identificar mas é melhor do que a da última vez.

Melhor é um exagero. É menos má e já é muito.

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Repesco o post com música: Eleni Karaindrou. Não há maneira de fugir ao Mediterrâneo e uma vez mais confirmo, uma vez mais e sempre: sou do Mediterrâneo, sou desse mar de onde a melancolia nasceu e foi vencida e sobrevive. Daqui a pouco vai passar a Evanthia Reboutsika, escolha do Youtube que aprovo inteiramente. A música grega de hoje tem dois mil atrás dela e um mar, uma civilização - e, digam os pessimistas o que disserem, dois mil anos à frente e a mesma civilização.

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Hoje fui ao galope do mastro do S. D. Há quem fique muito impressionado quando nos vê lá em cima. Tenho pena de desiludir: requer força e um bocadinho de concentração no que se tem de fazer, mais nada.

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Pergunto-me para onde vai o Don Vivo e sei a resposta: para onde eu for. Agora oiço Sappho de Mytilene, da Angélique Ionatous e da Nena Venetsanou. Comprei o disco em Atenas há não sei quantos anos. Eu sou de aonde estou, de aonde estive, de aonde estarei. Até ver, metade do mundo.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 06-01-2024

Acabo de escrever uns poucos postais. Poucos: não chegam a meia dúzia, divididos por três destinatários. Gosto deste ritual e tenho pena de estar demasiado cansado para continuar. Também tenho pena de ter deixado de escrever cartas. A bordo do P. tenho um bloco de papel de carta e respectivos envelopes que já não uso há anos. Talvez esteja na altura de recomeçar, quando regressar.

Escrever postais é isso mesmo, um ritual com várias fases: escolher o par postal / destinatário, pensar no que se vai dizer, lamentar a caligrafia (mentalmente. Por escrito, só a primeira vez), procurar a morada, deixar a tinta secar, pôr o selo (se o tiver), ir ao correio, perguntar-me quanto tempo levará a chegar, se a letra será percebida... Uma relação à distância mais complexa do que se me limitasse a enviar um e-mail, a que a instantaneidade rouba densidade. Ou talvez seja simplesmente porque no correio electrónico há menos operações. Ritual do passado, também. Sempre viajei muito e escrevi postais de onde me encontrava. Às vezes não os escrevia seuqer: ficava com eles para me lembrar dos sítios por onde passei.

Até agora ainda não encontrei postais interessantes da Martinica. Só aqueles demasiado "turísticos", fotografias bonitas, receitas locais, etc. Em Palma e em Genebra há-os mais giros, humorísticos.

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O trabalho não avança ao ritmo que quero. Uma série de pássaros voa à minha volta grasnando aflitivamente e enrodilhando-me em cabos que me tolhem os movimentos. Não sei aonde os levam, esses cabos. No bico, com certeza. E aonde vão buscá-los? Esta é que é a boa pergunta.

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Um deles eu sei: o risco de que o cartão europeu de seguros de saúde não seja aceite pelo hospital. «Hospital» não é a expressão correcta. Pelas funcionárias das caixas do hospital. Assunto para tentar resolver amanhã. Até lá, basta tentar fastar os malditos corvos.

5.1.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 05-01-2024

Mais uma casa. Chegamos e arrumamos as coisas, mas pouco a pouco elas vão escolhendo os seus lugares. As chaves preferem estar ali, o chapéu não gosta deste sítio, o porta-moedas, o telefone e os óculos escuros têm de estar juntos e há sempre uma pequena guerra entre eles até chegarem a um consenso. Depois há o problema da cozinha: não sei aonde estão os utensílios. Depois, finalmente, nós habitamos a casa e ela habita-nos, se for bonita e sóbria. Esta é. 

Infelizmente só aqui ficamos um mês porque o T. encontrou um apartamento em St. Anne e eu vou para bordo, que é a minha casa natural. A despesa vai diminuir bastante e - sobretudo - estes horríveis trajectos entre os Z'Abricots e o Marin. 

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O trabalho no S. D. começou a sério. Gosto muito destas limpezas profundas quando chego a um barco. Não é só simbólico, se bem sendo-o não se perderia nada. É também a melhor maneira de se conhecer um bote a fundo.

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Cada vez me convenço mais de que a fotografia foi o princípio do fim do jornalismo. A machadada final foi a televisão. As redes sociais são o equivalente da incineração.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 04-01-2024

O homem fala sem parar. Cada vez tenho menos paciência para estes moinhos de palavras, que ademais têm a característica de debitar uma asneira (ou uma certeza, é a mesma coisa), a cada três sílabas. É hispanófono, mas mas não consigo identificar de onde. Venho jantar ao Cayali, o melhor dos maus restaurantes do Marin e não me apetece ouvir espanhol. Não me apetece ouvir nada, na verdade. O sacana continua a não me servir só accras ou boudin. Tenho de comprar uma porcaria qualquer para levar para casa. Continuo a comer cada vez menos, passe a idiossincrasia assíncrona. Ou coisa que o valha. O M. saberá desenvencilhar isto. Eu não sei. Penso simplesmente na história que comecei ontem e tanto gostaria de acabar. Penso em tudo o que não devo pensar, por causa da porra do espanhol atrás de mim. Não pára de falar. Aonde é que eles vão buscar tantas coisas para dizer? O resto do Cayali está maravilhoso, como sempre. O vento caiu, as mesas estão longe umas das outras, à minha frente só tenho uma bóia ou duas e dezenas de luzes de fundeadouro, picadas de mosquito na noite, pequenos túneis de mim para eles, ou deles para mim. Estamos aqui fundeados, cumprimos as regras, se calhar estamos a olhar para as luzes de terra como tu olhos para as nossas: com inveja.

O Cayali é um restaurante na praia. Literalmente na praia: a água está a cinco metros, se tanto, da minha mesa. De outras estará a três. O espanhol continua a falar, como se a maré enchesse. O restaurante é calmo. Depois de amanhã haverá música. Depois de amanhã eu serei outro. Há uma mulher à mesa dos hispanófonos, mas nem isso o cala.

Há um dinghy na praia. Outro chega agora, a remos e sem luzes. O espanhol fala. As bóias piscam, ora verde ora encarnado. O boudin era óptimo e o planteur mais do que aceitável, sobretudo depois de lhe ter dito que precisava de menos gelo e mais rum. O espanhol fala - já percebi que é espanhol - e eu faço o quê? Como um centésima parte do frango, peço ao homem outro planteur, peço-lhe para embalar o frango - que está óptimo, como sempre. Escrevo disparates enquanto tento não ouvir os da mesa ao lado, muito piores do que os meus.

Ou seja: que faço eu? Hoje fui ao hospital. Há menos de meia dúzia de pessoas neste mundo que se felicitarão por isso.  Mudei de casa. Fui às compras com o T. e bebo planteurs sozinho no Cayali, também conhecido por La Paillote.

2.1.24

Resumo do primeiro capítulo

Resumo do primeiro capítulo: o nosso herói reflecte sobre o ponto aonde se encontra na vida e tudo o que o levou ali. Reflexão curta, apresso-me a esclarecer o leitor não vá este pousar o livro na estante e desatar a correr pela livraria gritando silenciosamente "Socorro!"

Ou, pior ainda, quem se escapa do livro é o herói, feito personagem de uma rosa qualquer do Cairo. Nenhuma destas hipóteses agrada ao autor, que apesar de não fazer a mais pequena ideia do ponto em que ia pôr a personagem principal do livro a queria nele (isto é, no livro) e também muito gostaria de ter um leitor, um que fosse, a conversar com ela (a personagem principal) e não cada um a correr para seu lado, coitada da livreira, uma rapariga bonita dos seus quarenta anos que quer tudo menos confusão,  disso já ela tem que chegue em casa com um marido que só não lhe bate porque ela é especialista em krav-maga ou lá como se chama a arte marcial dos israelitas. De maneira sugiro veementemente ao autor que faça curta a reflexão do herói,  que está agora num ponto qualquer da sua vida mas não sabe bem qual. Os pontos da vida têm nomes como as paragens de autocarros ou as estações dos comboios - infância, adolescência, idade adulta, etc. - mas estão muito longe uns dos outros. Devia haver paragens intermédias e o caminho entre elas devia ter mais árvores para que um herói desorientado se possa sentar à sombra, proteger da chuva ou fazer xixi.

O herói não é marinheiro mas visualiza o caos como se este fosse um conjunto de ventos. Quando tem a vida ordenada - isto é, naqueles breves momentos em que o comboio de tempestades pára para meter água ou combustível - o vento é só um e chega-lhe da alheta; depois o tal comboio ganha movimento outra vez e os ventos vêm de todas as direcções. "Vá lá que o que tenho de frente é fraquinho" diz o herói que não é marinheiro. Não se sabe bem a quem fala. À livreira lutadora? Ao leitor assustado?

"Que raio de trio me foi este palerma arranjar", diz o leitor antes de fechar o livro e sair calmamente com ele debaixo do sobretudo. Mas a livreira viu-o e com dois pontapés e um murro pô-lo no chão. A cena compõe-se. Pode facilmente imaginar-se a continuação. A livreira diz-lhe "cada pontapé dos meus vale trinta euros e cada murro vinte. O senhor deve-me oitenta euros da pancada e vinte do livro". "Mas o livro só custa dezoito e noventa", responde o homem titubeante. "Pois, mas eu não tenho troco. Se quiseres dou-te uma chapadinha a um e dez, para não te sentires lesado". "Não, obrigado. Posso pagar com o cartão?" "E o rabinho untado com água de rosas, não?"

A livreira é bonita, tem um corpo harmonioso e óculos que a fazem parecer uma bibliotecária. O leitor está por terra, ainda. A seu tempo levantar-se-á, irá ao multibanco que fica ao lado da livraria, levantará os cem euros, despedir-se-á da senhora - Nelita, fica aqui baptizada - e ir-se-á embora a jurar que nunca mais na vida roubará um livro deste autor ou com esta personagem. 

........

Nela apercebe-se de que ficou com o livro e decide ver se encontra o inábil ladrão de livros.

Não teria a mais pequena hipótese de o encontrar se, a pensar nas necessidades da narrativa, o leitor não tivesse deixado cair um pacote com cartões de visita.  Chama-se Jaime Queredo e mora a caminho de Setúbal. A personagem principal regozija-se. Gosta de Setúbal e assim pode convidar a livreira para uma caldeirada na tasca da Tia Rosa, que bem boas as faz. O autor lembra-se de que ainda não deu um nome à personagem mas agora não lhe apetece pensar nisso. O importante é reencontrar a tasca e ter a certeza de que está aberta.

(Cont.)

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 02-01-2024

Ou sou eu que ando a escrever muito ou são as canetas que não se enchem. Isto anda quase automático: trago uma caneta para não escrever no telefone e ecco!, caneta sem tinta.
Mas não era disto que queria falar. Na verdade não queria falar de nada se não desta necessidade de não falar, desta necessidade de pôr ordem na caixa de desordens, outra vez, tão pouco tempo depois de o ter feito.

Quando foi que o fiz? Em Palma? Nas primeiras semanas aqui, quando só tinha o curto prazo a tratar? (Pergunta: há quantas semanas chegaste? Resposta: duas e meia. Pergunta: não achas que devias dizer primeiros dias em vez de primeiras semanas? Resposta: acho. Pergunta: de onde vem essa tua relação toda torcida com o tempo? Resposta: torcida tens tu a cauda e bífida a língua e cheiras a enxofre que tresandas. Nem ao diabo se te pode mandar, porque já o és.)

Ou seja: isto ando tudo um caos outra vez. Comprometi-me com a casa por quatro meses, apesar das campainhas, dos alarmes e das luzes encarnadas a uivar. Agora vou ter de me desdizer, coisa que me desestabiliza mais do que estar de pé num eléctrico de Lisboa. (Pergunta: não te terás esquecido do advérbio "provavelmente"? Resposta: "sim. Fica: agora é provável que tenha de me desdizer." "E não é cedo para te preocupares com isso?" "É". "Então porque te preocupas?" "Vai para o diabo que te carregue." "Vem comigo.")

Está tudo um caos nesta pobre caixinha e não me vou dar ao trabalho de o decompor. Ela que se amanhe. "E te deixe em paz, não? Mas isso é pedir-lhe demais, bem o sabes. Bebe pão líquido, sonha com o cigarro que não tens, vai para casa beber rum que tens e não deixes a porra da caixa deitar por fora." Alguém devia um dia inventar umas comportas entre o cérebro e o resto do corpo. E compartimentos entre as diversas secções do cérebro. Racistas. Baseadas na cor: células cinzentas dum lado, as brancas do outro. As encarnadas no meio, as azuis lá para fora. ("Em português não funciona." "Diabo que te carregue.")

........
Vou morrer com os meus defeitos. ("Não te preocupes. Levas as qualidades também. Sem ti de pouco servem.")

.........
2024 chegou, finalmente e começa bem. Pode ser que seja um bom augúrio para o que aí vem. "Ainda só tem dois dias". "Sim, mas o estúpido do 2023 durou quase cinco anos a passar."


(Cont.?)