Demasiado ocupada com a viida, esquecia-se frequentemente de si própria. "Vivo do lado de fora de mim", explicava a quem a queria ouvir. "Felizmente são poucos os homens que se interessam pelo que eu digo; e desses, menos ainda os que o compreendem".
27.9.23
25.9.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-09-2023
Ponto ao meio-dia:
- Retranca: D. está na Suécia e de lá vai para a Alemanha. Levou uma das duas equipas que tem. Standby. (Nota bene: para a próxima escolher um fornecedor que não tenha trabalho.)
- Traveller: E. tem trabalho por três meses e não pode vir pintar a base do traveller. Encontrar outro pintor; Nota bene: ditto;
- Diversos: R. vai para a Alemanha resolver um problema da namorada. Regressa dia 5. Standby;
- Registo: O surveyor polaco respondeu à mensagem. Vai enviar um mail. Standby;
- Lavac: antes de mandar vir um tampo novo, certificar-me de que o problema está realmente ali. A única coisa que funcionou a cem por cento hoje: respostas imediatas, claras e precisas.
- Outros: Leroy Merlin não sabe dizer a que horas entrega o aspirador; pode ser até às duas da tarde. Standby;
- Carcaça: o triador do Egas Moniz continua a não dar notícias. Standby - dado que tenho outro pedido à espera de triagem há um ano temo que isto não seja tão rápido como esperava. Recrimino-me por não ter feito a operação na Alemanha, que seria no dia seguinte à da consulta.
Não posso reaver a massa que paguei adiantada à farmácia;
Não tenho notícias da operação ao olho esquerdo.
........
Capítulo boas notícias:
- (Não mencionado antes) - J. W. acedeu a não fazermos outro buraco naquele casco.
- O mergulhador do clube enganou-se e limpou o meu casco em vez do do vizinho;
- O problema do Lavac é efectivamente o tampo, mas por agora reparei-o com cola super-especial. Não vai durar muito tempo, mas para já fica assim. Um tampo novo custa trezentos euros. Trezentos euros por um bocado de plástico. J. W.: «we are loosing control.» (J. e eu partilhamos uma infinidade de pontos de vista, uma das poucas coisas na minha vida que me enchem de orgulho. Não é todos os dias que se ouve um surveyor criticar a multiplicação de regulações sem sentido. «Where's common sense going to?»)
24.9.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2023 / II
A calma regressou a Palma-a-calma, agora que o tsunami de turistas se foi e ficou só a vaga normal. A cidade vive, respira, vibra e se é verdade que por vezes alguns preços me provocam arrepios, sobressaltos e arrepanhar de cabelos é igualmente verdade que um Mount Gay - mesmo a onze euros! - é bem vindo, de vez em quando. Amanhã compro uma garrafa, custa pouco mais e fico com mais cabelos. Vá lá que pelo menos poupei no jantar, sempre equilibra as contas. Ai, P., P. os saltos sobre saltos que me fazes dar.
O dia acaba com o Köln Concert e um valente copo de hierbas secas a bordo, história de dissolver esta impaciência que me consome os dias. Sempre detestei os sábados e os domingos porque não vejo razão para o mundo parar quando eu preciso que ele avance mas pronto, está quase no fim e dá gozo ver a cidade assim e bebê-la, sobretudo, ao som desta música que tanto me fez amar. Dizem que tive uma vida do caraças e eu discordo (em primeiro lugar porque ainda não tive: tenho). Que sabem eles da D., que sabem eles das noites passadas a fazer amor a ouvir isto, que sabem eles daqueles meses em Dunkerque, que sabem eles da vida, da minha vida? O que lhes conto? Meu Deus, é tão pouco...
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As coisas para a saída do De Passagem precisam-se e devo deixar aqui um gigantesco obrigado ao J. O., que se ocupa da parte fotográfica da coisa. «Quatro coisas o interessavam: o mar, a luz, as palavras e as pessoas. O resto não passava de epifenómenos. Durante uma vida - ou várias - tentou misturar isto tudo», escrevi um dia. Pouco a pouco o puzzle completa-se, a mistura faz-se. (Devo aqui deixar também um agradecimento a uma senhora chamada Rita, cujo apelido não recordo, que foi a primeira a propor-me transvazar o DV para livro, usando essa frase como epígrafe. Disse-lhe que não, decisão que ainda hoje não sei se foi ou não correcta. Penso que sim, mas não tenho a certeza.)
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Keith Jarrett continua aos gritos, as hierbas vão baixando de nível, o domingo escoa-se tranquilamente. Amanhã o «meu» P. pega ao trabalho: os díodos do painel não estão bem, é preciso acabar a casa-de-banho e o traveller, maldito traveller, falar com o surveyor polaco, ir buscar a retranca, relançar o D. para que ele não adormeça noutro mega-iate qualquer, chatear o X. até ele me mudar a merda do Actisense, telefonar ao J. para o convencer de que não é preciso fazer mais buracos neste casco, telefonar à Blake & Sons a reforçar o e-mail... Este mês e meio de mar fez-me um bem inimaginável, mesmo que tenha tido custos inesperados no P., que gosta de me ter por perto. Olho para trás e pergunto-me como consegui passar aqueles anos todos longe do mar - e, sobretudo, o preço que paguei por eles. Sempre vivi do lado de fora de mim, é o que é.
E agora pareço um comboio a chegar a uma estação que não estava no programa, não é?
Agora?
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De Passagem vai ter um prefácio do António Cabrita, um posfácio do Manuel Monteiro e a crítica do João Rodrigues (se ele autorizar, ainda não lhe perguntei) na contracapa. Pense eu o que pensar de mim e do que escrevo, uma coisa é certa: nem toda a genta pensa o mesmo. Hallelujah.
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Quinta-feira estarei de novo em Genebra, ver os netos e passar o aniversário. O meu solipsismo parece uma câmara-de-ar furada.
Retratos possíveis
Ingeria, ingeria, ingeria. Comer, beber e fazer amor eram a maneira dela absorver a cidade na qual por acaso se encontrava.
- Como fazes para não engordar? - perguntei-lhe um dia.
- É fácil, - respondeu. - Cago tudo o que como e obrigo-os a usar camisa. Não fica nada cá dentro.
(Ela queria dizer "cago em tudo", provavelmente. Não falava português suficiente para isso.)
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2023
Acabo no francês da calle Socorro. O caril é uma merda, mas isso já o sabia quando o encomendei e o vinho está quente, o que não deixa de ser uma surpresa mesmo sabendo que o homem está completamente aculturado. O caril não me ocupa muito tempo. Penso mais na idade. Isto é, nas mudanças que pouco a pouco vou apercebendo em mim e que atribuo aos quase (piada privada) sessenta e seis anos: esta falta de paciência para procurar sítios decentes para comer (decentes sendo: baratos, bons, simpáticos, bonitos, não muito longe de onde me encontro e que não exijam reserva), esta cada vez maior intolerância ao vinho tinto quente, a tolerância à comida medíocre. Uma parte é sem dúvida devido aos sessenta e seis; outra a não poder cozinhar há não sei quanto tempo (no A. S. cozinhei, mas não é a isso que me refiro). [O francês tem vinho fresco mas não tem mousse de chocolate. Nós, os pesquisadores da perfeição perdida temos cem por cento de êxito nas nossas pesquisas.]
Adolescência
Dizem os homens do marketing - ou pelo menos alguns deles - que as lojas devem ter a música da adolescência do seu mercado-alvo. É possível. Não sei.
Mas sei que os blogues devem ter a poesia da adolescência do seu autor e que desse ponto de vista o DV tem andado relapso.
"Há que morrer no convés
Há que morrer no convés Do seu previsto naufrágio. Tremem-lhe as tábuas aos pés, Cheira a presságio. Negros augúrios com asas Cruzam agoiros nos mastros. Os ventos sabem a brasas. Recusam-se astros. Já o Piloto que ruma A proa dos embaraços, Pressentiu que além da bruma Esperam sargaços. A agulha mentiu o norte, Mas o Piloto sabia. Quem busca as rotas da Morte Não de desvia! Não de desvia!"Reinaldo Ferreira
Preciosas, palavras Ou: violento protesto contra tantas coisas que se lêem por aí
Todas as palavras são precisas
É mais ou menos essencial resistir à tentação de proscrever palavras. Todas são precisas (em todos os sentidos do termo, porque as palavras, como as pessoas, têm sentidos).
Aventuremo-nos, mon amour, pelos sentidos com palavras e gestos, com toques e carícias, com olhares e reservas. Sem reservas nada é possível. Nada se nos dá sem reservas, nem mesmo o vinho que quando é bom é "reserva" (mais ou menos. Isto não é uma aula de enologia).
Regressemos ao real, essa armadilha de onde pensámos que saímos na adolescência e na qual nos atascamos involuntariamente, no segundo grau por assim dizer, quando crescemos: eu gosto do real. A realidade fascina-me, intriga-me, inquieta-me e assusta-me. Não há forma humana de não gostar dela, de não ser atraído para aquele buraco de contradições e espinhos.
As palavras descrevem o real e imaginam o irreal? Isto discute-se - com palavras, não a murro. Acredito que elas fazem o futuro. Isto é: antes de ser, o futuro é palavras. Palavreado. Trinta e um de boca.
Interditar palavras - quase, por exemplo. Esperança. Solidão. Sofrimento. Sozinho - é uma forma injusta de amputar a realidade. E de seguida o futuro, que não sai incólume desta cirurgia. Omitir palavras é como impedir um dedo de fazer qualquer coisa.
Proscrever palavras é como dizer "dessa água não beberei". Fatuidade, claro. Cada palavra é uma gota de água e todas são precisas.
Leituras ocasionais
«L'A prise dans ses mains
La belle
L'a prise dans ses mains
La bite
L'a mise entre ses seins
La belle
L'a mise entre ses seins
La bite
Quand elle fut bien rouge
La bite
L'a plongée dans sa bouche
La belle
L'a plongée en sa bouche
La bite
Et bouge bouge bouge
La belle
La belle et la bite
Habille habille habille
La bête, la grosse bête
La bite et la belle
Dit bite ah bite habite
Moi vite»
Louis Aragon, in 1929, Ed. Allia, Paris 2018 (Plaquette de 1929 com poemas de Benjamin Péret e Louis Aragon e com fotografias de Man Ray).
23.9.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-09-2023
As minhas incursões pelo ecossistema continuam mas apercebo-me de que agora têm um duplo sabor, como um gelado com duas bolas, uma amarga e doce a outra, uma quente e outra fria: reencontro e despedida, simultaneamente. Olá adeus, desta sim, estou de passagem. "Não és homem não és nada", repito-me sem parar, "se até ao fim de Novembro não estiveres fora daqui". É batota: quero ir-me embora amanhã de manhã cedo, antes de o Outono chegar em força, antes de o P. explodir em mil pedaços e cobrir esta cidade com um vasto manto de impaciência em micro-bocados de kevlar-carbono. Falta-me a retranca e o registo, convencer o J. W. de que não é preciso fazer um segundo buraco no meu casco adorado, teste de mar e ala, larga tudo. O resto é amendoins. Preciso de um quarto. Hoje comprei um aspirador Nilfisk, quero mudar da Kärcher, só para ver. Quero um quarto até a porra do P. deixar de ser um estaleiro. E até ter a casa de banho a funcionar, ou muito me engano ou vou precisar de uma tampa nova para a retrete, quem é que falou em carrocel? Porque é que não compraste uma tampa nova há cinco amos, quando mandaste vir as juntas? Porque estava boa. Quem é que disse que adora refits? Eu. Come e cala-te. Como e não me calo, esta merda tem de sair, atenuada é certo pelos mexilhões do Dino e pelo vinho branco e pela ideia de que podia estar noutro sítio qualquer. Mal por mal, antes Palma-a-calma, Palma acalma, como quando hoje vinha na BH Glasgow do Leroy Merlin e vi quanto me apazigua esta burra gigante que parece um cavalo a rolar suavemente pelas ruas bem pavimentadas.
A cidade está cheia mas não a abarrotar. Está viva, como devem ser as cidades, as pessoas e o mar, de vez em quando. Fui à Bodega Belver e disse ao homem: «Há muitos anos que não via estaca casa tão cheia». Quase lhe arranquei um esboço, uma pálida sombra de sorriso. Quase.
A Lua está em quarto crescente. Para um selenita exilado (ou será explanetado?) é a fase favorita: tudo cresce, no crescente. Até o optimismo (não digo esperança: é palavra quase proscrita, como quase).
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-09-2023 / II
O Outono está aí à porta e fui ao Google ver quando começa. Amanhã às oito e quarenta e nove suponho que da manhã e hora portuguesa (UTC menos um, ou seja às zero sete e quarenta e nove Greenwich, não percebo por que raio mudaram GMT para UTC ou melhor: percebo mas acho uma estupidez, se bem seja pequena e mais ou menos irrelevante). Ou às zero seis e cinquenta, segundo outra página. Já nem na Internet se pode ter confiança, isto é dramático. Felizmente estou-me relativamente nas tintas para a hora do equinócio e posso viver bem com esta ambivalência. Sete e quarenta e nove, seis e cinquenta, mais minuto menos minuto não tarda vou a uma página astronómica - zero seis e quarenta e três. O mistério adensa-se. Já nem sequer é uma ambiguidade. É uma triguidade. Deixo a pesquisa por aqui e continuo o que ia dizer: este fresco é agradável e agora tive de fechar o albói, qualquer dia vence um cobertor e depois dois e eu aqui nesta angustiante incerteza: a que horas é o raio do equinócio amanhã? Quando começarei a ter de usar as camisas de manga comprida? Valerá a pena aderir ao bónus da 5 à Sec? A quem devo pedir uma indemnização pelas alterações climáticas? À Ford? À China? Aos farmeiros do mundo desenvolvido? Eles é que deviam pagar o cartão Privilégio da lavandaria, não eu, aonde (ou melhor, quando) é que já se viu ter de usar mangas compridas em Setembro, mesmo admitindo que estamos quase no fim dele, ou seja: mais um aniversário para mim, sessenta e seis, mais um seis e seria um número diabólico. Assim é bonzinho.
Lá me perdi outra vez. Amanhã arrumo o bote pela trigésima milésima ducentésima quarta vez, está quase vazio, este raio desta palavra (quase) pôr-me-ia os nervos em franja se os tivesse, por acaso não tenho graças aos meus pais que proibiam a palavra "nervos" e derivados em casa excepto se usada num contexto médico. Quase vazio. Estou farto de viver num estaleiro, mas vou aguentando.
Aonde é que eu ia? Equinócio, incerteza, quase, nervos, pais, vazio, estaleiro, ROC... Deriva, é o que é. Uma deriva completa. Resumindo: amanhã de manhã cedo o Sol passa para o outro lado do Equador e eu continuarei a viver num estaleiro pelo menos mais uma semana. Antevejo com luxúria o dia em que nada haverá a fazer no interior e mais ainda no exterior. Isto é, mais luxúria. Testes de mar. Luz verde. Vamos. Larga tudo. Primeira escala: La Linea. Depois Las Palmas de Gran Canária. Chegada: Le Marin. O P. no Marin. Credo, senhores, preparai as garrafas de rum e as travessas de boudin e de accras. Mango Bay, j'arrive. E se não for preciso parar na Linea não se pára. Tudo em cima.
A Botegga Bolognese multiplicou os preços por dois e diminuiu as quantidades na mesma proporção. Ao todo, quase quatro vezes mais caro. Fizeram bem. Quase (outra vez?) tinha vergonha de lá ir, quando uma pratalhada custava quatro euros e setenta ou noventa. Agora um mini-prato custa quase dez euros. Só a qualidade se mantém. E a simpatia do Hugo e da Silvia, claro. Para a semana vou lá comer uma carbonara, que tanto me falta. O Antiquari também subiu, parece-me. Não tenho a certeza. A seguir fui ao Eroski comprar manteiga - Primor, era o que havia de potável - e vim para bordo: pão com manteiga, fouet, queijo Gouda velho, vinho tinto, Eleni Karaindrou e Angelique Ionatos. O polaco já respondeu e já lhe enviei os papéis todos. Agora só falta esperar. Esperar. Estou tão farto de esperar como da palavra quase.
Vou entrar devagar nesta noite mas não te preocupes, Dylan: não é a do teu pai. A minha é passageira. Só dura até chegar o Outono.
22.9.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-09-2023
Notícias do ecossistema
A manhã foi passada a esvaziar o P. (outra, outra, outra vez), levar tudo para o armazém, fazer mais uma mini-triagem, trazer a BH Glasgow para Palma e reatar com o ecossistema. Mercat de l'Olivar. Desde uma recente troca no FB sonhava com uma carbonara como deve ser mas ainda não foi desta: o Hugo só recomeça com a melhor carbonara da galáxia (exagerando um pouco) na terça-feira. Refugio-me na lasagna e como as doses agora são pequeníssimas reforço com um ragu bolognese que ele faz como ninguém. Tudo isto acompanhado por um Chianti levezinho, fresco, bendito. Infelizmente ainda não há o limoncello da Silvia, isto sim uma profunda injustiça. Como no Arabay, o stand em frente: o Hugo não pode pôr cadeiras no balcão. A mulher do Arabay tem uma voz de furar os tímpanos a um crocodilo surdo, avisa-me de que à uma e meia fecha - ela fecha antes de abrir, diga-se de passagem - e deixa-me comer tranquilo. Já não há café de filtro, já começou a recolher bancos e mesas, o Cristian está com a loja vazia pela primeira vez desde que me sentei e eu estou em casa.
Aonde, se não?
ADENDA - O almoço acaba na Cati Xis (é o nome do stand, não da piquena, que desconheço) com três euros de tâmaras medjoul e gengibre seco sem açúcar - ela ainda se lembra desta mistura ambígua, doce e picante, qual deles o melhor - e com duas hierbas secas no Morey - "só faltava que tivesses vindo cá para isso [pagar o vermute de ontem]". "Vim, mas já que estou aqui..."
Se isto não é a minha casa (e se eu não sou a versão nómada do filho pródigo) eu não sei o que é.
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Tudo isto rodeado de enxames de mulheres belas (das quais não sou a rainha-mãe ou abelha-rainha ou seja o que for). Palma-a-calma é um desafio para os sentidos.
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Diferença entre Palma e Lisboa: amo as duas mas só uma retribui.
21.9.23
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-09-2023
Notícias do ecossistema
A manhã foi passada a trabalhar, se tanto é que se pode chamar trabalhar a esta espécie de tango que consiste em avançar dois passos milimétricos, recuar um quilométrico e dar três de dimensões variáveis para cada lado. Talvez possa, por ausência de outra denominação possível. «Bater punhetas a grilos» seria injusto e «pedalar na maionese» insuficiente. Talvez «um cântico à fé», como o cântico para Leibowitz da minha adolescência, que tanto me marcou. Ou «um cântico à teimosia». Mas enfim, sejamos justos: dei dois milimétricos passos na direcção do registo. Vamos ver quantos andarei para trás amanhã.
Almocei na Cantina, que só não está pior porque pior é impossível. Mas acolhem-me generosamente toda a manhã e acho que lhes devo um sacrifício de vez em quando. O Alberto continua a máquina de trabalho que conheço há cinco anos, quase seis; o outro imbecil continua o outro imbecil (não lhe recordo o nome, mas imbecil chega perfeitamente. Aposto que os pais não lhe deram esse nome mas fizeram mal). Depois seguiu-se o Correo - é uma dessas instituições que não muda, graças a Deus - a adega Morey, que confirmou a sua entrada no meu universo (prefere que lhe pague amanhã em dinheiro a hoje em plástico e tem palos Garrott), o Claudio - nada a dizer senão que consegue fazer da canela um sabor de que eu gosto, coisa que devia ir directamente para o livro Guinness dos Recordes, cum lauda. Seguiu-se o resto da cidade, passo a passo - ainda não tenho a bicicleta. O elevador da Plaza Mayor já está a funcionar, consegui entrar no La Rosa sem esperar, vim ao Jaume, fui comer um cachorro quente ao gajo da plaça Drassana (primeira e de longe não a última vez) e agora regresso à Cantina, onde o único inconveniente é a voz invasiva e imparável do imbecil. O vinho tinto está à boa temperatura e a um preço mais do que correcto. O vento caiu, amanhã tenho de novo Radu, o day worker que hoje deu uma limpeza notável ao P. (e de caminho me encharcou os lençóis, mas isso trata-se) e amanhã vai comigo deixar coisas ao Ben (isto de ir levar e trazer coisas a este armazém ficará para sempre na minha memória como o meu momento Charlie Chaplin). Apetece-me um banho de imersão de vermute e as vinte e uma propostas do La Rosa (literalmente) não me seduzem: ou são baratas e medíocres ou caras e não as conheço. O Jaume é um refúgio seguro: começo com um Rumbo e acabo com um Las Copas, sequência mais do que perfeita quando o rumo é justamente um ou dois copos.
Apercebo-me agora de que hoje faltou o outro imbecil, coisa que acho injusta: ficou este com a carga toda do dia.
Ou seja: a cidade está no seu lugar. Penso no P. e digo-me que está na altura de ter saudades dela, não de me regozijar porque estou de regresso.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-09-2023
Regresso a Palma, ao meu labirinto, após mais de um mês de ausência. Não se deve escrever sobre o vulcão durante a erupção nem sobre tsunami quando a vaga rebenta na praia. Vá lá: chamar tsunami ou erupção a esta catadupa de emoções é claramente um exagero. É uma cascata, digamos assim. Ou melhor: um remoinho. Uma das cruzes está resolvida, falta outra mais uma dezena de pequenos crucifixos, de tamanho variável. Juntando estes aos da carcaça não se pode dizer que o quadro seja muito animador. Mas olhando para trás, para as paredes do labirinto, tão pouco se pode desanimar. Isto vai passo a passo, esquina a esquina, beco sem saída a beco com saida. Depende apenas da quantidade de curvas a dar e paredes a abater.
O traveller está resolvido, a casa de banho e o esgoto do poço da roda de leme também, amanhã falo com o engenheiro por causa do registo... Não sei se labirinto é a melhor analogia. Às vezes sinto-me num carrocel.
É preciso força para provar que este sentimento está errado e que a analogia está correcta.
ADENDA
Força - e luz do dia. É preciso acrescentar «quase» a quase tudo. Juro que quando o carrocel parar deixo de utilizar a palavra «quase» para sempre (sem aspas ficaria «deixo de utilizar a palavra quase para sempre», o que seria manifestamente impossível).
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P., BP., carcaça: devia acrescentar um vértice, prefiro quadrados a triângulos (e na volta estaria mais perto da verdade, vá lá saber-se). Ou cubos a pirâmides, qu'isto 'tá tudo ligado, óviste ó manguelas? Andas práqui com palavras de dois e quinhentos o quilo. Vai mazé vergar a mola, pá.
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«Labirinto» e «nómada» são duas palavras facilmente conciliáveis, não são? São.
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20.9.23
"Sobre o amor marinho"
17.9.23
O velho problema da assimetria dos referenciais
Uma frase que tinha permanentemente presente era aquela velha história do "amar alguém é amar os seus defeitos". Por isso, quando conhecia uma mulher que lhe parecia interessante mostrava logo o seu pior lado. "Assim", acrescentava para si próprio "os próximos encontros só podem ser melhores".
Infelizmente as raparigas não conheciam a máxima dos defeitos e a estratégia não funcionava: nunca havia "próximos encontros".
Simbiose, vida
Às vezes penso na vida. Depois penso nela - andem sempre juntas, a vida e ela, numa relação simbiótica, quase siamesa. A cada vez apetece-me mandar a vida para o raio que a parta, como se fosse possível separá-las, como se pudesse ficar com uma sem a outra, como se sem a outra uma pudesse sequer existir.
Imposto, idade
A idade é um imposto progressivo que a vida nos cobra quando passamos um determinado limite, que só ela sabe qual é. Ou quando passamos determinados limites, que sabemos perfeitamente quais são.
16.9.23
Diário de Bordos - Lisboa, 16-09-2023
É andar que me põe em contacto com o mundo. Na minha bicicleta pedalo de um lado para o outro e só vejo os pontos de partida e de chegada. O que lhes fica entre continua-me opaco, quase inacessível. De carro nem quase é.
Hoje vinha a pé pela avenida da Liberdade (sem relação com uma certa obra literária) e vi uma marca que só conhecia de nome: Max Mara. Casacos a mil e quinhentos, mil e setecentos euros. Pus imediatamente a Max Mara na lista das marcas a esquecer, pensei "Haja quem" e continuei a minha caminhada. Um pouco mais abaixo vejo a Zegna*. "Sobrecamisas" a dois mil duzentos e cinquenta. Entusiasmo-me com o termo sobrecamisas, que não conhecia e deixo a Zegna onde sempre esteve: marca para "eles". Doismilduzentosecinquentaeuros por uma camisa. Digam outra vez, de um só fôlego.
E ainda há quem não goste de caminhar pelas ruas de uma cidade!
* - A Zegna conheço. Um dia em Genebra vi ali uma gravata que achei bonita. Nessa altura usava gravatas bonitas. Entrei e perguntei o preço. O senhor que me atendeu respondeu e quando eu recuperei do choque disse-lhe "A Zegna mudou de segmento de mercado? Isto era uma marca tão barata..." "Isto [em itálico acentuado] nunca foi uma marca barata, Monsieur."
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O Cascais Remo está cheio e tenho de esperar cá fora, apoiado em Favaios sucessivos. Comigo espera um grupo de oito bimbos. A cada duas palavras dizem três palavrões. Falam, surpreendentemente, de futebol. Aposto que se eu vivesse na Idade Média teria pela igreja católica o ódio que hoje tenho pela porra da bola.
(Cont., se Deus quiser.)
Dispersas ressacado-matinais
A coisa piora: já não basta a televisão, ainda tem de ser CMTV e audível. Esse canal não é aconselhável a quem está de ressaca. Tremores de terra, prisões, crime e julgamentos... Porra, comparada a isto tudo, a ressaca perde a importância que inegavelmente tem.
O que levará um homem adulto (velhote, mesmo) a vestir-se com roupa de futebolista?
Torto, Cockpit, Procópio (o Alexander estava fracote e os Irish Coffees sublimes), Snob: Lisboa é uma cidade eminentemente amável, sublime de generosidade, correctamente dimensionada. Tudo isto vai desaparecer um dia (ou nós, depende). É como as conquilhas: melhor aproveitá-las hoje, que amanhã não sabemos.
Um cântico a Lisboa, minha terra madre.
Não fui fazer as análises. O médico pensaria que se enganou e passou as receitas a uma destilaria.
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ADENDA menos matinal e menos ressacada
Regresso à pastelaria Monte Rei, sita na rua (ou avenida) Pascoal de Melo para almoçar. A Monte Rei é a melhor pastelaria de Lisboa. Não fosse o raio da televisão seria a melhor do planeta, ex-aequo com a Versailles (que não tem televisão, louvada seja).
Aconselho especialmente os rissóis de camarão, receita da Mãe do senhor que os fez e mos serve com o sorriso mais encantador de toda a hotelaria nacional e internacional e a sopa do dia (enfim: de hoje. Mas aposto que as dos outros dias são igualmente boas).
Reitero o cântico a Lisboa.
15.9.23
Diário de Bordos - Lisboa, 15-09-2023
Vou cortar o cabelo a uma dessas «barbearias» hindus, paquistanesas ou afegãs, não sei bem. Ponho aspas a barbearia não porque não o sejam - são-no e boas (pelo menos as duas que frequento) - mas porque suspeito fortemente que aquelas lojas têm mais funções do que cortar cortar cabelos e fazer barbas. Gosto de tudo, a começar pelo preço, pelo silêncio dos barbeiros, pelas ajudas que dão ao meu sistema imunitário (cada vez que vou a uma coisa daquelas toma conhecimento com alguns milhões de bactérias, das quais muitas serão uma novidade). Hoje olhava-me para e pelo espelho e lembrei-me de quando era raro ver-me reflectido noutros vidros que não a ocasional montra. Nessa altura cortava o cabelo uma, duas vezes por ano e só nessas ocasiões me via durante algum tempo. Ou seja: uma ou duas vezes por ano era uma novidade para mim próprio. Agora, que aumentei drasticamente o ritmo das idas ao baieta e mudei outras coisas, vejo-me todos os dias. Sinceramente, não sei se fiquei a ganhar com a mudança.
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Andava há que tempos à procura da palavra e só agora a encontrei: labirinto. Que farei com este labirinto, podes explicar-mo em meia dúzia de palavras? Como entrar nele? Construí laboriosa, metódica, cuidadosamente um labirinto mas fi-lo a partir do lado de fora. Agora quero visitá-lo, percorrê-lo, desafiá-lo, corrigir o que fiz mal e estou fechado no exterior.
Só temos uma oportunidade, não é? É. Consolo-me dizendo que antes um labirinto do que um corredor a direito ou um quarto sem janelas.
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Luta contra a burocracia portuguesa «electrónica». Acabam por me dizer que tenho de ir à Loja do Cidadão mais próxima. As minhas experiências nesses lugares não são propriamente muito encorajadores, mas como é um passeio de vinte minutos a pé vale a pena arriscar. Andar por esta cidade é sempre um prazer.
O grande problema, no fundo, é viver num país do terceiro mundo, ter aspirações a serviços do primeiro e haver cada vez menos corrupção de baixo nível. «Eles» reservaram-na para eles e não deixam o peixe miúdo comer também. Recordo com saudade o tempo em que ia uma vez por mês a uma conservatória qualquer de Ponta Delgada com uma nota de cinco contos metida entre duas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas.
[ADENDA: Loas são devidas a quem loas merece. A minha visita à Loja do Cidadão correu maravilhosamente bem. A pequena corrupção desapareceu (ou talvez seja eu que não sei fazê-la funcionar), mas a tradicional afabilidade portuguesa mantém-se. Bem hajam os funcionários das três instituições - três - que me atenderam e resolveram tudo o que havia a resolver.]
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Somos todos iguais, excepto nas bactérias: as minhas são boazinhas, as dos outros fazem-me mal.
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"Sem advogados não há justiça", diz um painel gigante na parede da corporação dos ditos. Contribuindo assim para reforçar a ubíqua confusão entre justiça e direito, duas coisas diferentes. Se o não fossem, os advogados seriam dispensáveis.
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(Cont.?)