A questão que dias como estes (sim, no plural) me põem é: a paz é divisível? No sentido de compartimentável. Já não falo de felicidade, sequer. Não sou dado a esoterismos e não gosto de falar do que não sei. Mas a pergunta é pertinente. Tenho comido em casa, por razões facilmente quantificáveis. Sobretudo o jantar, que como no terraço, al fresco, depois de um dia (dias, já vai em muitos) a pedalar por essa cidade, a organizar a vida aqui, a fazer um portfolio fotográfico, a responder de vez em quando a um anúncio de trabalho, a procurar novos espaços de "trabalho", agora que os antigos fecham, mudam de mãos ou de alma. Volta e meia lá tenho um sobressalto: esta porra desta meia gripe / meia constipação / meia Covid que não há maneira de me deixar em paz (lá está, paz), uma proposta de trabalho que coincide com a única semana que tenho marcada, uma dúvida ou dúvida e meia. Mas tudo isso, todos esses soluços se dissolvem num magma pacificado, como quando se nada no mar num dia de calor e a água não está fria e não há vento nem vagas.
Por exemplo: o jantar de hoje não ficou muito bom. Carne picada cozida com pimentos brancos, cebola e um tomate em vinho tinto, temperada com aquela sublime pimenta verde fumada, esmagada no almofariz (foi um desperdício, entre nós fique dito).
Por exemplo: o vinho tinto que comprei ontem é uma merda sem nome e hoje fui comprar gasosa para o usar para tinto de verano. Enganei-me na gasosa, comprei uma sem açúcar e nem aquilo ficou potável.
Por exemplo, a porcaria do dentista, que por acaso é uma senhora e bastante competente e não tem fim. Ainda lá terei de voltar pelo menos mais uma vez. Será a quarta. Ou quinta? Teria de ir ver, escarafunchar como ela me faz na porcaria dos condutos. São três e um deles em mau estado. "Este dente não vai durar muitos anos."
Por exemplo... Sei lá, haveria tantos, se a paz fosse como um lego. Não é. É como uma nuvem, como o nevoeiro, como o mar ou como o azul do céu que se sente e se sabe que está lá mesmo quando não se vê.
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Ultimamente tenho vindo a desrespeitar uma norma de há muito: não comprar bilhetes de avião com mais de dois ou três dias de antecedência. Qualquer psicanalista de meia tigela perceberia porquê (isto é, porque desrespeito a norma) e não vale a pena alongar-me em palavrório inútil.
Mas a verdade é que comprei um bilhete para Lisboa para daqui a três semanas e agora estou em risco de não poder utilizá-lo ou de ter de pagar um balúrdio para o mudar.
Antigamente havia os open date. Hoje, o equivalente é uma fraude. Ou então sou eu que não descobri bem como é que aquilo funciona.
É o defeito das normas: desaprendem-nos. Impedem-nos de aprender. De explorar. É por isso que os exploradores de antanho eram ricos: explorar sai caro.
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No outro dia encontrei o François, ex-dono do Antiquari. Explicou-me que estava farto, farto até à ponta dos cabelos e que a Covid tinha sido a gota de água.
Percebo, claro e não pude impedir-me de pensar naqueles conservadores que são contra tudo o que mude. Esquecem-se de que por trás de "tudo" há pessoas e as pessoas não são máquinas. Fartam-se, cansam-se, morrem, apaixonam-se, desapaixonam-se, querem mudar. As coisas não mudam. O que muda são as pessoas que lhes dão vida.
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Isto dito, vou procurando sítios para escrever. Neste momento estou reduzido ao Mise en Place, que fecha âs quatro da tarde mas outros vão aparecendo, pouco a pouco.
A cidade muda? É uma ilusão de óptica. É como quando a miúda de quem gostamos põe um vestido horrível: basta lembrarmo-nos do que está por baixo da roupa. Ou por dentro, que ainda é melhor.
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Acordei com o Joan uma exposição no bar Rita em Outubro.