9.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Mindelo, 09-11-2025

Números, adjectivos, vida.

Força quatro ou cinco pela alheta, amurado a bombordo, sete nós no fundo, frio por enquanto suportável (näo tenho termómetro, este vai de adjectivo), Lua em minguante quase a chegar ao quarto, visibilidade boa, nebulosidade cinco (em oito, para quem não sabe e quer saber) sobretudo cumulus ou já estratificados ou em vias disso, mar de pequena vaga, proa ligeramente a sul do rumo porque não posso ou näo quero arribar mais. Acabamos de fazer sete horas a motor porque não havia vento mas agora voltou, entrou norte como estava previsto. E entrei eu de quarto, igualmente previsto: esperam-me duas horas e meia disto (se o vento leu a previsão. Se näo leu, a noite muda e eu com ela). Não dormira praticamente nada desde a largada mas agora desforrei-me: quase sete horas de sono interrompidas apenas duas vezes para vir à ponte, ver como estava a primeira, apagar o motor e ajustar os trapos a segunda. Quando sair de quarto continuarei a desforra.

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O bote já de si é um tamanco e vai carregado, o que explica a pouca velocidade e a muita água que arrasto pela popa. E eu fui calçar um par de meias e vestir o casaco de mar. Há algumas dezenas de anos (poucas) tive aquilo a que em francês se chama veste de quart. É um casacão não necessariamente impermeável - a sua função é aquecer. Este que me vem à memória tinha uma folha de alumínio no meio das diferentes camadas de tecido. Dizer que era quente é dizer pouco. Foi a melhor coisinha que me passou pelo corpo e o aqueceu. Nunca mais encontrei nada parecido. Ainda durou uns bons anos. Penso nele cada vez que estou de quarto à noite e tenho frio.

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O quarto continua: fui lá abaixo fazer café, não encontrei e fiz cacau, que me deixou mal disposto. O vento rondou a nordeste e tive de cambar. Uma das poucas coisas de que gosto no Bali é o sistema de escotas da grande. Transforma qualquer cambadela qualquer que seja o vento numa cerimónia de chá das cinco para senhoras da alta sociedade. Continuo mal disposto. Ou o cacau é manhoso ou bebi-o demasiado depressa, a pensar que tinha de cambar e a perguntar-me se mo Mindelo encontrarei uma loja de café decente. Nunca se sabe. Em Barbate há uma. E em Arrecife há uma livraria. Tal como no Pico, Deus meu, quem pensaria encontrar uma livraria decente no Pico? Ainda por cima é também editora e vai publicar o meu próximo livro, Não Sei. Avenida da Liberdade, n° 1, De Passagem, Não Sei. A sequência soa bem, não soa?

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A má disposição não passa. Raio do quarto começou tão bem e agora isto. Orço um bocadinho, caço o estai e penso que quem olha para as derrotas dos veleiros deve achar que não sabemos para onde vamos. Sabemos e não é para onde nos leva o vento. É para onde queremos ir.

8.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Gran Canária rumo ao Mindelo, 08-11-2025

Arrecife, capital da ilha de Lanzarote, foi uma agradável surpresa. Ontem (enfim, anteontem, já passa da meia-noite) voltei lá. Tinha de deixar uma pessoa no aeroporto e recolher outra duas horas e meia mais tarde. Aproveitei para ir a um chandler - não tinha o que eu queria - comprei um livro  om textos sobre Calasso e passei duas deliciosas horas sozinho a ler. Tenho de recuperar a capacidade que dantes tinha de me isolar, de estar sozinho com um livro e uma cerveja ou um copo de vinho. Ando sempre cheio de gente à volta - näo é por acaso que escrevo cada vez mais no telefone, à noite na cama.

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Conseguí finalmente largar da marina Rubicon. Foi preciso dar um murro na mesa, dois gritos ao telefone e bater com o pé mas lá me pagaram o que tinham a pagar.

Esta empresa quer melhorar a horrível reputação que tem, mais do que justificadamente mas ainda não descobriu que pagar a tempo e horas seria uma estratégia eficaz. Acresce que nem sequer é por desonestidade. É simples desorganização - que de simples não tem nada, a falta de ordem, planeamento (e conhecimento, já agora) são alucinantes. Não há qualquer espécie de comunicação,  nem interior nem exterior. 

Têm uma qualidade - a senhora que (des)organiza isto tudo é bastante gira. Outra: e simpática.

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Passo entre Lanzarote e Gran Canária. Estou com vontade de Las Palmas e pergunto-me se teria preferido a descoberta de Arrecife ou o reconhecimento da capital do arquipélago, cidade de que tanto gosto e aonde há tanto tempo não vou. A resposta é imediata: Las Palmas. Quanto mais não fosse porque ali a marina é na cidade e não como Rubicon, no meio de nada e ao lado de um buraco de turistas. Ou seja: seria preciso reformular a questão: se pudesse escolher, teria preferido ficar na marina de Arrecife ou na outra? Não sei. Teria de descobrir uma livraria em Las Palmas equivalente à El Puente. Vermuterias e restaurantes há a granel. Não seria preciso procurar muito.

De qualquer forma a questão é ociosa. Não podia escolher, não sei quando voltarei e menos ainda se serei eu a decidir a escala.

Será Las Palmas, claro.

6.11.25

Diário de bordos - Marina Rubicon, Playa Blanca, Lanzarote, Canárias

A livraria El Puente, em Arrecife, Lanzarote, Canárias é a versão local da livraria Snob em Lisboa: uma maravilhosa selecção de livros e um livreiro simpático, eficaz e conhecedor. Entra-se e em cinco minutos tem-se vontade de comprar os livros todos. Consegui limitar-me a três (o que me valeu ter recebido mais duas plaquetes, a escolher entre várias. Trouxe uma antologia de Nietzsche e outra de Cervantes). Encontrei finalmente a Cidade de Deus, de Santo Agostinho e descobri uma colectânea de cartas de Cioran. Resisti a uma série de textos em torno de Calasso, que é daquelas coisas que me enfurecem e enchem de orgulho simultaneamente.

(Sería injusto não incluir nesta comparação a livraria Palavra de Viajante, em Lisboa. Ao contrário do que se seria levado a pensar é uma livraria especializada em temas de viagem e também tem essa horrível qualidade de submeter quem lá entra a uma pressão enorme: como sair dali sem ter comprado tudo o que está exposto? Como não invejar a livreira, que deve ter lido pelo menos três quartos daqueles livros e sabe falar deles com propriedade? Como não agradecer a seja a quem for que manda nisto não ter acabado com livrarias maravilhosas, daquelas que tornam o acto de transferência de dinheiro do nosso bolso para o delas uma infinita fonte de prazer e esperança?)

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À frente da livraria há uma vermuteria  chamada Strava (ou coisa que o valha) cujo vermute de grifo é bastante aceitável; ao lado fica o restaurante uruguaio Barbacana, que recomendo vigorosamente.  Se eu tivesse de escolher um sítio para viver em Arrecife seria ali, naquela rua, naquele canto.

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Arrecife encantou-me tanto quanto Playa Blanca me repugnou. Não consigo perceber o que vêem naquilo os milhares de turistas que lhe pejam as ruas e de caminho enchem os ouvidos de quem calha passar-lhes perto com aquele horrível inglês do estuário, rasca, eles sem camisa, cobertos de tatuagens, acompanhados por mulheres gordas, feias e igualmente tatuadas (e felizmente com camisa). Às lojas de  bugigangas seguem-se bares feios e a estes lojas de roupa feia. Depois, o ciclo recomeça: bugigangas, bares, roupa. Tudo isto alheio ao mais pequeno toque de beleza ou sensibilidade. 

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Hoje vêm mergulhadores limpar-me o casco e amanhã largo para o Mindelo. Qualquer dia morro mas até lá ainda há muito que viver, muitas milhas por navegar e muitos livros para comprar e netos para ver crescer.

4.11.25

Diário de Bordos - No mar, ao largo de Lanzarote, 03 e 04-11-2025

03-11-2025

Estou quase a chegar; a Lua está quase cheia, o mar quase sem vagas, o vento quase a zeros, a noite quase sem frio. O CdC - uma mistura de camião TIR de quarenta toneladas (?) e uma residência de luxo - avança quase depressa. Para terminar esta série, eu estou quase ansioso por chegar, ver se ponho estas porcarias todas em ordem. Ou quase em ordem, vá lá. A única que não aceita quases é a parte da massa. É verdade que não é nenhuma fortuna mas o guito é meu e quero-o do meu lado. A perspectiva de ir para o Panamá parece-me cada vez mais longínqua - o que de resto calha bem porque a ideia que me levou a Caminha deu um ténue sinal de vida.

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Em números bastante redondos estou a cinquenta milhas do waypoint (cabo Ancones, se por acaso) e a setenta da marina Rubicon, aonde conto chegar por volta das oito ou nove da manhã. Três dias de motor e um de vela, mas este valeu por todos os outros: vinte nós pela popa quase arrasada, umas dezenas de milhas a mais porque não dava para ir em rumo directo, duas ou três refeições memoráveis - quem tem um bom deckhand tem tudo. Até os passageiros ficaram suportáveis (ele sempre foi, verdade seja dita).

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04-11-2025

Venho à ponte para a passagem do waypont e consequente mudança de rumo. É o género de coisas que gosto de ser eu a fazer. O deckhand é bom mas não está muito familiarizado com o Raymarine. Que estivesse...

Passamos à frente de Arrecife, a capital da ilha. É bom ver as luzes de terra mas uma boa aterragem já não tem o sabor que tinha dantes, quando se navegava com sextante e com estima. Então sim, chegar aonde queríamos era emocionante. Agora basta carregar em meia dúzia de botões e pronto, signore. Salvo avaria que nos devolva ao lugar de condutor (vade retro, Satanás) somos tanto passageiros como chauffeurs.

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O vento vem de terra e traz-lhe o cheiro. Cada uma tem o seu. Para mim, só há um: o do cabo da Roca quando se vem de norte e se guina para o Raso. Enfim, dois: o do Algarve. Os outros são ersatz de cheiro a terra. Com a possível excepção do da Córsega, anisado e limpo, à força de bombas nas construções que eles não querem. O método deixa a desejar mas resulta. Não é só o cheiro que delas beneficia. A vista também. 

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O vento caiu completamente. Dois nós, diz-me o simpático Ray. E dizem-me os olhos e a pele e as orelhas, talvez menos precisos e menos confortáveis do que aquela mistura de cabos eléctricos e processadores mas suficientes para o efeito. Continuo a navegar à antiga: a electrónica serve para confirmar o que os sentidos e o corpo me dizem. Excepto obviamente o GPS. Quem mo tira tira-me tudo. Saber instantânea, precisa e permanentemente aonde estou, a que velocidade e rumo vou e a que distância estou do porto ou do waypoint não tem preço. 

2.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre La Linea de la Concepción e Lanzarote, 02-11-2025

Estava uma vaga larga, alta e regular de oeste que agora foi substituída por um mar desordenado, desconchavado. O vento vai mudar. Vai entrar norte, diziam-me antes o ECMWF e o GFS e diz agora o mar. Só que a acreditar neste será mais cedo do que os modelos predizem. Acordo a meio da noite de um sono igual ao mar: agitado, chato e sobretudo frustante. É chato reconhecer que dormia melhor quando dormia no salão, vestido e encolhido para caber no sofá. Pego ao acaso um dos livros que comprei em La Linea, uma compilação de artigos e textos de Pasolini. O primeiro acaba assim: "A grandeza mas também as limitações da palavra é tornar serenos os sentimentos." (Traduzo à letra do espanhol e não gosto nada do resultado mas agora fica assim). Depois pego no telefone - obrigado, senhor Musk, já nem o mar me tira o FB - e vejo um texto de A. C. Z., uma senhora que não conheço senão do que dela leio - e de um almoço, há muito tempo - no qual fala de uma coisa que me interessa bastante, as diferentes personagens e inteligências que coabitam em nós (e de caminho me confirma que a senhora tem um tocante sentido de humor, qualidade sine qua non). Vai tudo para o mesmo caldeirão, a serenidade dos sentimentos - a frase é verdadeira mas em duas metades, como uma laranja cortada ao meio - o cérebro compartimentado que só o humor e às vezes o amor tornam compreensíveis, o mar aos bocados que agita esta cancela do céu na qual navego para Lanzarote (é o nome do bote), o sono, a inquietação de saber os clientes na ponte de quarto, a Lua em Crescente que não tarda está cheia, falta menos de meia dúzia de dias, o frio que não há maneira de se ir embora mas já começa a dar sinais. 

Sentimentos serenos? Sim, mas só pela palavra.

(Para o V. P., com um abraço de iguais nas diferenças.)

1.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Gibraltar e Lanzarote, 01-11-2025

Duzentos e quinze = BTW = COG. Tenho finalmente sul no meu rumo. Amanhã a noite estará menos fria, aposto; e a Lua um bocadinho maior (este não aposto porque sei de ciência certa que ganho). O mar continuará tão sem vento como hoje, que se não fosse a ondulação pareceria uma banheira (também não aposto porque não sei).  

A Lua foi para casa e as estrelas vêem-se claramente. Orion, Sirius, Gémeos com Júpiter ao lado por bombordo; as luzes de Tânger e dos seus arredores pela popa. À proa um buraco negro: há nebulosidade e restos de luar. O meu CdC lá vai avançando a pouco mais de seis nós, ver se consigo chegar a Lanzarote sem usar os duzentos litros de gasóleo que tenho nos jerrycans

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O quarto chega ao fim. Oríon quase no meu zénite, Júpiter resplandecente e feliz ao lado dos Gémeos, a Ursa Maior na popa, meia dúzia de navios a oeste, todos claros, um sopro de vento a entrar, uma noite movimentada a terminar. Pescadores numa patera vieram ter connosco para nos avisar de uma rede que estava no nosso caminho. Um outro veleiro ja lá tinha ficado (mas depois safou-se - isto fiquei a saber pelo VHF, não pelos pescadores). Meia hora de emoções. Os passageiros vão ter histórias para contar. 

Por mim, apenas penso no sono que me espera. Vou dormir no camarote, pela primeira vez nesta viagem no mar. Até aqui tenho dormido no salão. 

(Cont.)

31.10.25

Depois

Olha: e se depois do amor fizéssemos amor? Como seria? Isto é, fazer amor depois de fazer amor é a mesma coisa ou é diferente? Porra, não consigo explicar isto como deve ser. Fazer amor e fazer amor. Não sei são a mesma coisa, percebes? Há um antes e um depois. Antes do depois. Depois do antes.

Raio de confusão que para aqui vai. Que mesclas, estas mariquices. Comes a gaja e acabou-se. 

Talvez seja ao contrário: comes a gaja e tudo começa. Enfim, vamos a ver e nem sequer foi ela que tu comeste. Não comeste ninguém. Foste comido, na melhor das hipóteses e não foste nada, caso contrário. 

30.10.25

Andaluzia, meu amor / II

Por razões demasiado longas para serem expostas aqui, hoje saí da parte de La Linea que conheço. 

Confirmei outra vez (como se fosse preciso) que não gostamos do que não conhecemos. Basta dar meia dúzia de passos fora da linha e La Linea torna-se agradabilíssima. E faz sentido enquanto entidade autónoma. Não precisa de Gibraltar para nada.

Amo-te, Andaluzia. 

Andaluzia, meu amor

Se por um lado é verdade que nem tudo o que anda luz, é igualmente vero que tudo o que luz anda. O que, de certa forma, explica porque gosto tanto da Andaluzia.

29.10.25

Diário de Bordos - La Linea de la Concepción, Andaluzia, Espanha, 29-10-2025

A minha experiência de karaoke é muito reduzida. A única coisa que sei daquilo é que detesto, com cada um dos neurónios que processam o som no meu pobre e martirizado cérebro. Hoje, como não podia deixar de ser, vim cair num. A maldita lei do ruído - ou seja lá o que for - fecha tudo menos a merda.

E logo depois de um jantar porreiro, porra!

Não sou homem de ódios. Sou mais de amores. Suponho que o asco que sinto por esses pobres desgraçados que se exibem sem qualquer espécie de vergonha ou de auto-análise tem mais de inveja do que de espírito crítico. 

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De um ponto de vista arquitectónico, La Linea não tem muito interesse. Duas ou três praças quase bonitas, um monte de ruas pedestres, uma ou outra casa que resistiu à necessidade gibraltenha de mão d'obra.

O que me faz gostar desta cidade é outra coisa e essa coisa tem dois nomes: Andaluzia e Gibraltar. 

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Almoço no La Casita, uma churrasqueira argentina bastante decente e jantar no La Chimenea, que é igual ao Bodeguiya nas em tons escuros.

Estou cheio de comida, a abarrotar. E cheio de gratidão, também. É que impede-me, é certo, de ter uma casa. Mas em troca dá-me dezenas de outras.

(Cont., prometo)

26.10.25

Louvor do restaurante S'Albacora, em Valencia

Fui jantar ao restaurante S'Albacora. Já lá tinha ido almoçar. É preciso dizer que está quase ao nível do Gustar, em Palma? É. O Gustar é um restaurante pequeno  e o S'Albacora é muito maior. Mesmo que eu habitasse em Valencia nunca atingiria o grau de amizade, ou cumplicidade que tebho com o Fidel e com o Tom. Além disso, não têm uma loja de gelados como o Claudio a cinco minutos. 

Afora estas diferenças,  o S'Albacora é uma casa soberba, aonde sugiro fortemente aos meus leitores que venham comer. Fica um bocadinho fora de mão mas isso não conta como defeito, antes pelo contrário.