12.10.24
Dissonâncias etárias
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-10-2024
(Uma das minhas canções favoritas de Paco Ibañez chama-se A Galopar. Vou mudar-lhe a letra para A Coxear e fazer disso o hino do P.)
8.10.24
Línguas
Na verdade uma lingua é muito mais do que a língua. Gosto de francês como gosto do português e já o falei como falo português, mas não poderia viver em França, por exemplo. Não quero viver em francês. Gosto da parte de Espanha aonde agora vivo - Palma - nas não falo espanhol como falo francês. E tão pouco poderia lá viver. Ibidem para um país anglófono. Não falo inglês tão bem como ainda falo francês, domino estas duas melhor do que o espanhol, conheço os países de onde são oriundas - mas nenhuma delas é a minha língua. Não tem nada a ver com o léxico, a sintaxe, com a morfologia. A gramática não passa de uma parte da língua. Uma língua é constituída pela gramática, pelo vocabulário e pelas memórias, assim mesmo no plural.
Não me refiro à nossa memória, a de cada um mas sim às memórias colectivas, as memórias todas que os falantes de um determinado idioma produziram ao longo dos séculos e que a cada momento histórico se agarram às palavras como o artista de circo ao trapézio. Um trapézio sem trapezista é como uma palavra sem memórias: fica ali a abanar, solitário, inútil, triste.
Diário de Bordos - Lisboa, 08-10-2024
Só falta o mais difícil: escrever. Ou: só falta tudo - escrever.
Claro que se tivesse juízo não daria nada a ninguém. Não tenho e pouco me importo com isso. Convivo bem comigo e com as minhas faltas - de juízo e as outras, que são muitas. Só não cohabito pacificamente com o resto de mim, a outra metade, a que não é uma falha.
6.10.24
Jazz, civilização
Diário de Bordos - Lisboa, 06-10-2024
Se eu tivesse dinheiro comeria todos os dias no Gambrinus e no Solar dos Presuntos, alternadamente. Com umas escapadelas ao Chiringuito, claro. Felizmente não tenho e isso permite-me poupar uma fortuna em restaurantes. Venho portanto comer ao Alga, uma casa da categoria "Resistentes": não é gourmet, não é fusion, não é bio, não é glutenfree, os empregados são senhores respeitáveis e correctamente vestidos. Os preços condizem com tudo isto. Ainda há quem pense que eu sou gastador?
O cozido à portuguesa do Alga estava uma maravilha. Um pináculo da cozinha tradicional nacional (refiro-me ao país, não à paisagem). Seguiu-se-lhe o competente caldo, para aconchego da alma e do estômago, por esta ordem.
Poder-se-ia talvez quiçá argumentar que quem teve na sua vida - e no seu palato - uma avó chamada Filipa e um cozinheiro Miguel (aquela em Portugal e em Moçambique, este em Cape Town e no mar ao largo da Namíbia - isto para não mencionar a Mãe Blá) é indiferente a clivagens país / paisagem. Seria eventualmente verdade se Lisboa não fosse Lisboa e não tivesse estas coisas todas - cozidos, amigos, restaurantes resistentes - mais bares e casas de jazz (ontem estava fechado, maldito seja o gás ou lá o que foi que provocou o fecho), táxis à la minute, livrarias como a Snob ou a Palavra de Viajante... paro aqui. A lista é demasiado longa.
Portugal é Lisboa porque só em Lisboa se encontram todas as qualidades e todos os defeitos do ser português. Na paisagem eles estão bastante desequilibrados (com um forte pendente para um dos lados da balança. Adivinhe-se qual).
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O calcanhar de Aquiles do restaurante Alga é o vinho da casa. Hoje perguntei ao senhor quanto me cobrariam se eu trouxesse o meu vinho de casa.
- Nada. Traga à vontade.
Alvorecer
Alvorecer é uma palavra amável, cheia de promessas. Tem alva na ascendência, é parecida com alvíssaras, é una palavra de passagem, traz luz e alegria (se o dia estiver para isso). Por exemplo: começou a alvorecer em mim a ideia de que não escrevo só disparates. (Agora é preciso ver quanto tempo dura o crepúsculo. Se for menos de trinta anos não conta.)
Nos livros de bordo de antigamente (e hoje também, se calhar. Não sei) havia uma entrada chamada "primeiros alvores". Eu fazia o quarto das quatro às oito (também conhecido por "segundo quarto", por ser o do imediato) e achava aquilo muito estúpido. Que raio de informação se obtinha a partir da hora dos primeiros alvores? Ainda não estava familiarizado com o conceito de meta-informação.
Alvorecer. Primeiros alvores. Alvíssaras.
4.10.24
Cães, donos
Cães, cães, cães. Um gajo não pode dar dois passos na rua sem ver um cão com o dono pela trela.
Aonde estão os cães vadios da minha infância? Cães sem dono, donos sem cão.
Diário de Bordos - Sesimbra, Portugal, 04-10-2024
Hoje foi a Tasca do Isaías em Sesimbra, ontem O Castelo em Sines, anteontem o Reis em Lagos. Quem tem recomendações tem tudo. A paisagem tem decididamente bons sítios para se comer. Agora só falta chegar a Portugal, ver se finalmente como não só bem mas como deve ser, com civilização nas imediações. Chego amanhã, se nada mudar até lá.
(Pequeno elogio de passagem ao camarote da proa do M. A. Parece que estou num hotel de cinco estrelas. E só parece por causa da ,localização do maldito interruptor. Não fosse isso e estaria mesmo melhor do que no quarto de um hotel de luxo.)
PS - Quando cheguei sentei-me numa mesa que tinha à frente uma televisão - é uma praga - e pouco depois de me sentar começou a falar o senhor do PS. O homem dá-me urticária só de o ver (é tudo o que ele tem para dar, coitado) mas felizmente o bar é grande e o senhor (do bar) acedeu a desligar a outra televisão, a meu pedido, com o argumento indesmontável de que estou sozinho naquele lado e fui para uma mesa sem televisão.
PPS - Peço um rum, para acabar. Vem num balão. Lisboa, mundo, where art thou?
3.10.24
Diário de Bordos - Sines, Alentejo, Portugal, 03-10-24
A passagem do cabo foi movimentada, como sempre. Agora é só subir esta longa, interminável costa que as putas das orcas tornam ainda mais longa: há que ir o mais perto possível de terra, tentar seguir a batimétrica dos vinte metros. As cabras não gostam de águas baixinhas. Eu tão pouco gosto.
Às segundas, quartas e sextas agradeço à carcaça. Às terças, quintas e sábados apetece-me enforcá-la. Aos domingos paro para pensar e beber. É o seu dia favorito.
Sim, continua. Os melhores irish coffees em muito tempo: cervejaria Murta, Sines. Morte aos preconceitos. Viva os preconceitos. A próxima vez que vier a Sines venho aqui jantar. É uma promessa.
Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-10-2024
Mexo-me com notória dificuldade, o que de certa forma é injusto porque à minha volta tudo mexe. Tudo e todos: mesas, cadeiras, paredes, chão, pessoas, empregados (pessoas sendo para este efeito clientes, claro). Tudo mexe menos eu. As minhas costas parecem uma barra de aço inoxidável submetida a pressões do outro mundo.
Tive sorte: a barra acabou por ceder e lá consegui levantar-me da cadeira, ir buscar o bloco-notas e as canetas e voltar a sentar-me, tudo isto sem alertar e muito menos alarmar os restantes frequentadores do sítio. Estas costas são como a muralha de aço do camarada Vasco: uma fantasia.
Tem uma parte das costas à vista, o que a faz perder pontos; e poignées d'amour correctamente dimensionadas, o que a faz recuperá-los ainda antes de os ter perdido.
A noite acaba com um cocktail qualquer no bar Peppers. A música é óptima: Doors, Led Zeppelin, etc. O cocktail dá vontade de me teletransportar para o Procópio. Há pessoas que não gostam de Lisboa. Sugiro-lhes vivamente que venham visitar a pré-história. Não percebo o que vêem nessas expedições etnográficas quando não muito longe têm uma cidade.
1.10.24
Modo largada. Ou: Tudo e o seu contrário
Fragmento, quase
Retirei-me do tempo, por assim dizer, como dantes os eremitas se retiravam do mundo.
Cidades, oxímoros
As palavras nascem nas cidades e nelas se perdem. Antes das cidades não havia palavras. Havia grunhidos e talvez alguns sons organizados em sílabas. Duas, não mais. Por exemplo: Amo-te. Tem três sílabas. Existiria antes de as cidades terem sido inventadas? Por exemplo: esquinas? Avenidas? Jardins? Por exemplo: coração? Vinho existia, decerto. Tem apenas duas sílabas e apesar de serem suaves, doces, é bastante provável que os povos pré-citadinos a conhecessem.
Povos pré-citadinos? Andas a dar-lhe nos oxímoros?
Diário de Bordos - Vila Real de Santo António. Algarve, Portugal, 01-10-2024
Nunca liguei muito ao dia dos meus anos. Antes do Facebook esquecia-me frequentemente dele. Agora é impossível - e embaraçoso: sou notoriamente relapso a enviar parabéns e quando recebo avalanches deles não sei bem como reagir, para além do obrigatório e gigantesco Obrigado a todos!
(Para quem não sabe: põe-se um ovo cru entre o casco da embarcação e o cais. Se ao atracar o ovo se partir a pessoa que manobra não é aceite no clube. A prova deve ser repetida dez vezes com zero falhanços para que a admissão seja definitiva. É independente da dimensão da embarcação - aplica-se a graneleiros, supertanques, navios de pesca e embarcações de recreio.
Desde Maio que não estou sozinho a bordo de uma embarcação e muito menos a navegar. Ontem pareceu-me uma viagem ao paraíso, apesar de as putas das orcas estragarem um pouco o prato. Fico doido quando vejo idiotas louvar-lhes a beleza. Pata que as pôs mais a beleza. Elas que vão atacar a vagina da mãe e nos deixem navegar por onde queremos e precisamos de passar.
Escrevo ao som dos Steeley Span, um grupo que me foi dado a conhecer por um soldado inglês num infame, sórdido, bar de Gibraltar quando Gibraltar ainda não era o nojento buraco de turistas em que se metamorfoseou.
Três da tarde. Não vai dar tempo para uma sesta como deve ser. Mais uma vantagem do rum: equilibra a ausência de sesta. PS - O terceiro vem ainda maior. Este sim, foi o almoço do meu dia de anos.
29.9.24
Diário de Bordos - Cádiz, Andaluzia, Espanha, 29-09-2024
Vou para terra vazio e de táxi, regresso cheio e a pé. A lógica das coisas é diferente das coisas da lógica: quando fui de cheio só tinha a fome e o cansaço e não podia com uma gata pelo rabo; voltei depois de um jantar no restaurante Cumbres Mayores (o nome é um understatement) e o cesto das compras não estava assim tão pesado. Pesado estou eu agora, apesar de o jantar ter sido, no fundo, frugal: salmorejo, cinquenta gramas de presunto de belota, um coulant de chocolate com gelado de banana que podia ter sido feito pelo Claudio, vinho e vermute A Copa, um dos grandes aqui no espaço qualificativo do tio Luís. Resultado do exercício: ainda estou cheio de comida e de cansaço mas consegui trazer o cesto que comprei em Vila Real pendurado no ombro; tudo isto no prazo que o Google Maps impartiu: vinte e cinco minutos. Ou pouco mais, provavelmente.
Cádiz é uma cidade maravilhosa e só tenho pena de não vir aqui mais vezes. Parece que tem mar em todas as ruas.
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Contrariamente ao que é habitual, desta vez queria fazer uma festarola para o meu aniversário. Tudo indica que vai ser uma festa com um convidado só.
Diário de Bordos - Vila Real de Santo António, Algarve, Portugal, 29-09-2024
De saída para Cádiz, para um pequeno transporte que vem mesmo a calhar, qualquer que seja o ponto de vista a partir do qual se o observe. Com um bónus: vou sozinho. Nem tripulantes nem proprietários. Só há uma palavra: hallelujah!
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A carcaça vai colaborando. A pé-coxinho, mas colabora. Nada que três ou quatro días de mar não curem definitivamente. Herpes, alergia, constipação de saison (desta vez não chegou a gripe) vão a caminho do passado, todas juntas. Os médicos bem podiam chamam a isto convalescença activa (se calhar chamam).
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Vila Real de Santo António é um porto agradável, daqueles que nos dão vontade de os referimos com montes de diminutivos.
Resta saber se são todos afectuosos. Não são.
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Blablacar para Sevilha. O homem chegou com dez minutos de atraso, o que sendo pouco habitual não é grave; e vamos três atrás num Golf, o que é chato, no mínimo. De Sevilha para Cádiz parece que sou o único passageiro e o carro é maior. Grande ideia, esta da Blablacar, se bem como sempre a coisa tenha um pouco degenerado, inevitavelmente. Aqui em Espanha há gente a fazer vida disto. Ou pelo menos complemento de vida, o que leva a estas situações. Por enquanto tenho apanhado poucas.
Somos cinco, incluindo o condutor. Ninguém fala. Parece um avião - nem um Hola antes de entrarmos no carro. ¡Qué vaya! Algumas das melhores viagens de carro da minha vida foram na Blablacar. Tenho margem para uma ou outra piorzita.
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Desta vez não paro em Sevilha. Saio de um carro e entro noutro (com um táxi de permeio, provavelmente). É uma tortura. Pequena, mas tortura. Vá lá que tenho uma parte da tarde em Cádiz, outra cidade que o meu coração acolhe com todo o entusiasmo de que é capaz. Isto é: muito.
28.9.24
Equação
Procuro um lugar na vida, se possível em part-time. Estou farto de viver a tempo completo. Alternativamente, um lugar temporário. Meia dúzia de meses, talvez um ano. Viver muito ou é chato ou é cansativo. Ou os dois, a pior mistura. Procuro uma meia-vida, ver se descanso. Viver a tempo completo farta.
O problema é saber se meia-vida não será igual a uma morte completa, como sempre pensei.
26.9.24
Diário de Bordos - Vila Real de Santo António, Algarve, Portugal, 26-09-2024
Vila Real de Santo António. A ideia era passar aqui uns dias valentes a fazer trabalho intelectual mas já se me meteu um pequeno transporte pela proa este domingo. Pequeno ou grande não posso dizer que não, apesar da vontade. Ou melhor, apesar do cansaço. Por outro lado, a perspectiva de ir sozinho para Lisboa entusiasma-me e faz-me esquecer o cansaço e a falta de vontade. Há muito tempo que não faço uma viagem sozinho e este mês em constante companhia faz-me ansiar por uns dias comigo.
Estes dois dias com a S. (Olá, S.!) deixam-me prever uma boa colaboração para o nosso projecto. A ideia é chegar a Lisboa e voltar para aqui antes de ir para Palma, ver se ponho aquela porra daquele P. a funcionar. Hoje [amanhã] acabam de lhe pintar o convés, falta demasiado pouco para sequer usar a palavra quase. É doentio, de pouco. É doentio, de tanto.
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Compras, lavandaria, almoço, Western Union, rever um amigo - por sinal o mais antigo que tenho ainda em actividade, conhecemo-nos em Quelimane -: a logística do descanso é mais complicada do que o que parece à primeira vista. E de fora ficou o duche, adiado para amanhã sem grande prejuízo da minha higiene ou do olfacto alheio. As temperaturas não querem saber do «Verão mais quente de sempre» e estão como andam (pelo menos para mim) há semanas: demasiado baixas.
Não me posso porém queixar. A roupa está lavada e os dias vão aquecer. Não preciso de ir a Caminha, contrariamente ao que pensava. Agora, o próximo rendez-vous certo seria no dia quatro em Setúbal mas é pouco provável que possa ir, de maneira vou concentrar-me no plano original até ter a confirmação do transporte para Lisboa: descanço, vinho tinto e medronho.
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Reencontro Portugal com a atitude ambivalente de sempre. Pelo menos até chegar a hora de pagar a conta: aí a ambivalência desaparece e é substituída por um grande, grato sorriso.
24.9.24
Diário de Bordos - Comboio Portimão - Olhão, 24-09-2024
O mundo encantado de Luís Serpa: um bilhete que devia ter-me custado três euros e setenta acabou por custar-me treze e setenta, com o bónus de chegar uma hora mais tarde ao destino, que não é bem um destino mas uma etapa.
Ninguém imagina o que eu compreendo quem não me grama. Aliás, candidato-me já ao lugar de presidente do Clube do gajos que não me gramam, se vier a ser formado. Do que duvido, apesar de ser mais fácil criar um grupo de anti-fãs do que de fãs. Mereço o posto mais do que ninguém porque poucas são as pessoas que me conhecem tão bem como eu.
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O transporte de Holanda acabou. Vou ver se se confirma um para Lisboa no domingo e tentar pôr a cabeça no lugar, tarefa que me parece ciclópica. Não porque a dita mente seja grande, mas porque está a milhas do resto do corpo - a distinguir de carcaça, que é outra coisa.
(Cont.)