14.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2025

A questão que dias como estes (sim, no plural) me põem é: a paz é divisível? No sentido de compartimentável. Já não falo de felicidade, sequer. Não sou dado a esoterismos e não gosto de falar do que não sei. Mas a pergunta é pertinente. Tenho comido em casa, por razões facilmente quantificáveis. Sobretudo o jantar, que como no terraço, al fresco, depois de um dia (dias, já vai em muitos) a pedalar por essa cidade, a organizar a vida aqui, a fazer um portfolio fotográfico, a responder de vez em quando a um anúncio de trabalho, a procurar novos espaços de "trabalho", agora que os antigos fecham, mudam de mãos ou de alma. Volta e meia lá tenho um sobressalto: esta porra desta meia gripe / meia constipação / meia Covid que não há maneira de me deixar em paz (lá está, paz), uma proposta de trabalho que coincide com a única semana que tenho marcada, uma dúvida ou dúvida e meia. Mas tudo isso, todos esses soluços se dissolvem num magma pacificado, como quando se nada no mar num dia de calor e a água não está fria e não há vento nem vagas.

Por exemplo: o jantar de hoje não ficou muito bom. Carne picada cozida com pimentos brancos, cebola e um tomate em vinho tinto, temperada com aquela sublime pimenta verde fumada, esmagada no almofariz (foi um desperdício, entre nós fique dito).

Por exemplo: o vinho tinto que comprei ontem é uma merda sem nome e hoje fui comprar gasosa para o usar para tinto de verano. Enganei-me na gasosa, comprei uma sem açúcar e nem aquilo ficou potável.

Por exemplo, a porcaria do dentista, que por acaso é uma senhora e bastante competente e não tem fim. Ainda lá terei de voltar pelo menos mais uma vez. Será a quarta. Ou quinta? Teria de ir ver, escarafunchar como ela me faz na porcaria dos condutos. São três e um deles em mau estado. "Este dente não vai durar muitos anos."

Por exemplo... Sei lá, haveria tantos, se a paz fosse como um lego. Não é. É como uma nuvem, como o nevoeiro, como o mar ou como o azul do céu que se sente e se sabe que está lá mesmo quando não se vê.

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Ultimamente tenho vindo a desrespeitar uma norma de há muito: não comprar bilhetes de avião com mais de dois ou três dias de antecedência. Qualquer psicanalista de meia tigela perceberia porquê (isto é, porque desrespeito a norma) e não vale a pena alongar-me em palavrório inútil.

Mas a verdade é que comprei um bilhete para Lisboa para daqui a três semanas e agora estou em risco de não poder utilizá-lo ou de ter de pagar um balúrdio para o mudar.

Antigamente havia os open date. Hoje, o equivalente é uma fraude. Ou então sou eu que não descobri bem como é que aquilo funciona.

É o defeito das normas: desaprendem-nos. Impedem-nos de aprender. De explorar.  É por isso que os exploradores de antanho eram ricos: explorar sai caro.

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No outro dia encontrei o François, ex-dono do Antiquari. Explicou-me que estava farto, farto até à ponta dos cabelos e que a Covid tinha sido a gota de água.

Percebo, claro e não pude impedir-me de pensar naqueles conservadores que são contra tudo o que mude. Esquecem-se de que por trás de "tudo" há pessoas e as pessoas não são máquinas. Fartam-se, cansam-se, morrem, apaixonam-se, desapaixonam-se, querem mudar. As coisas não mudam. O que muda são as pessoas que lhes dão vida.

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Isto dito, vou procurando sítios para escrever. Neste momento estou reduzido ao Mise en Place, que fecha âs quatro da tarde mas outros vão aparecendo, pouco a pouco.

A cidade muda? É uma ilusão de óptica. É como quando a miúda de quem gostamos põe um vestido horrível: basta lembrarmo-nos do que está por baixo da roupa. Ou por dentro, que ainda é melhor.

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Acordei com o Joan uma exposição no bar Rita em Outubro. 

12.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-07-2025

«Vamos a um bar para esquecer», responde-me uma jovem senhora - por quem de resto tenho uma vasta admiração. Poderia passar horas a explicar-lhe que isso não é verdade.

E se for, não funciona. Talvez uma hora por cada ano de idade que nos separa?

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A noite acaba no meu quarto, com Leonard Cohen no telefone (sim, às vezes cometo pecados) e Legendario 7 Años no copo (ditto). Há muitos anos li uma porcaria qualquer segudo a qual as pessoas criativas não têm práticas muito repetitivas. Não são de se deitar cedo, por exemplo. Têm períodos de  ir para a cama com as galinhas intercalados com outros mais tardios; ou de beber rum de que não gostam; ou de ouvir música no telefone portátil. Se isso fosse verdade eu seria um tipo bastante criativo. Como não sou, não é.

Limito-me a pensar que há um fosso entre a monotonia e a vida; ou entre a repetição e a vida; «Où les routes sont tracées, je perds mon chemin.» (R. Tagore); «Rien n'est plus lent que la véritable naissance d'un homme.» (M. Yourcenar) Poder-se-ia quase mudar para: rien n'est plus lent que la naissance d'un homme véritable, não? Ou: rien n'est plus lent que la construction d'une vrai vie par un homme.» As variações são infinitas.

Como as horas, de resto. Pensamos que só há vinte e quatro delas em cada dia? Enganamo-nos, claro. Não sabemos sequer quantas vidas há em cada hora, em cada dia. Melhor limitar-nos a vivê-las, a fazê-la, tijolo a tijolo, hora a hora. Se são sempre iguais ou não pouco importa. «A repetição é um recurso do estilo», escreveu Nuno Júdice (aposto).

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Ou seja: oiço L. Cohen pela quinquagésima milésima terceira vez, bebo um copo de rum que não acho grande coisa e retardo o momento de me ir deitar porque não quero que se pense que vou sempre cedo para a cama. Às vezes vou tarde.

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Comprei um bilhete de avião para Lisboa. Isto é importante: é para daqui a três semanas, ou coisa que o valha. Para quem não comprava viagens com mais de três dias de antecedência não está mal. Deve ser essa treta da criatividade. Não se repetir. Mudar as rotinas. Etc.  

Mudar as rotinas de tal forma que essa mudança seja uma rotina.

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Ouvir música no telefone é muito cansativo. Espero conseguir resistir à tentação de comprar mais um par de colunas. 

Há quem deixe pedrinhas brancas para encontrar o caminho de volta. Eu deixo colunas, sempre se vêem melhor. Não tenho é caminho de volta, mas isso é outra história.

(Vindo de quem está a ouvir a música da sua adolescência.)

Joan Baez: Balada de Sacco e Vanzetti. Não tarda estou a ouvir o Geraldo Vandré. No tablet, tem melhor som.

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Pus um peito de frango a marinar: sumo de um limão, rosmaninho, sumac, pimenta verde fumada e sal. Amanhã veremos, como dizia o ceguinho à mulher - que não tinha papilas gustativas.

11.7.25

Elaborar é preciso

Escrevi há pouco que se vai a um bar para reflectir. Não é inteiramente verdade. Vai-se a um bar, também, para orar. Para rezar, se quiserem quebrar a cacofonia. 

Um bar é um templo cujo sacerdote, ministro ou cura (o termo mais adequado, provavelmente) é o barman, profissão nobre s'il en est.

Vai-se a um bar rezar e essa reza pode ser solitária, a dois ou três ou muitos. Pouco importa o  número, desde que haja comunhão. Vai-se a um bar para pensar, para se beber (se tendo aqui duas funções gramaticais), vai-se a um bar para celebrar, explicar-se ou tentar compreender-se. Vai-se a um bar para fechar um dia, um ciclo, uma época ou começá-los - dia, ciclo, tempos.

Só não se vai a um bar para gritar, ouvir música ou falar da espuma dos dias. Para isso fica-se em casa ou vai-se ao café da esquina.

10.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-07-2025

O dia começou tarde - estou engripado / constipado / covidado (riscar o que não interessa) - e com uma comedia dell'arte que já comecei a descrever mas que agora me parece demasiado sem interesse para transcrever. Gritos, uma casal de maricas e eu completamente ao lado, como de costume. É aflitivo, o que as coisas conseguem passar-me ao lado.

Cenas da vida quotidiana na Volta Dos. Não tarda tê-las-ei esquecido. O que não falta na minha vida são cenas da vida quotidiana.

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Fui jantar a um italiano indiferente porque o Gigi's está fechado. Chama-se Amayó. Já ali tinha estado. Deve ser o restaurante mais central de Palma - não é bom nem é mau, não é caro nem barato, não é longe nem é perto, o serviço não é bom nem é mau (isto é mentira. Retórica. Apreciei bastante. Simpático, eficaz e rápido). A grappa não era nada de especial e resolvi vir ao Gibson's, na esperança de que a «minha» mesa estivesse vazia. Está. 

Pára de viver no passado, porra!

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A mesa é num canto, em baixo, no caminho para a casa de banho, num sítio aonde raramente há alguém (hoje há. Há sempre que lá em cima está cheio). A vida passa por mim e não pára. E eu estacionado ao lado dela.

Há porém razões objectivas para gostar desta mesa: parece uma área de repouso na autostrada da vida. Enfim, do bar. Ouve-se o barulho mas não se é parte dele.

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Esta constipação / gripe / covid aborrece-me. Um homem só deve adoecer se tiver alguém para cuidar dele. Sozinho não chega sequer a ser doença. É como aquela história do barulho na floresta: se ninguém ouvir, é barulho?

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Razões para gostar do Gibson's: as doses são grandes, comparativamente baratas e está perto.

E tem uma mesa para mim quando eu preciso.

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Cedo piaste: o meu canto encheu-se de gente ruidosa e que ainda por cima me pediu a cadeira aonde tinha o saco e o chapéu.

Tudo isto antes de o Baileys acabar.

É impossível explicar a um espanhol que um bar é um lugar aonde se vem para reflectir, não para gritar. Infelizmente não são os únicos.

8.7.25

Cemitério

São onze da noite. Desço para beber um sake no Otaku (a razão oficial sendo que tenho de pôr a burra no prédio) e está fechado. Tudo está fechado aqui à volta. Acabo na mini-pizzeria da Plaza Mayor, que já mudou de nome, de dono e de empregados algumas vinte vezes desde que comecei a frequentá-la. A porra das leis anti-ruído deu isto: preferem dormir num cemitério a viver numa cidade.

7.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-07-2025

A ideia de que posso entrar na Babel e não comprar um livro - tendo para isso dinheiro suficiente no banco - é infantil, claro. Risível, diria quem melhor me conhece. Patética, digo eu, que por vezes me descubro e outras me cubro. À saída estava o novo livro de Nazareth Castellano. Chama-se El Puente donde habitan las mariposas - Biosofía de la respiración. Nazareth Castellanos, que o José Luis prometeu apresentar-me porque é amiga da casa, está para a neurologia como Pizarnik para a poesia: faz-me descobrir a face oculta, o outro lado - não o avesso, note-se, a poesia de Pizarnik não tem nada de avesso, é mais com um holofote que de repente se acende no outro lado da cena. Um livro de Nazareth Castellanos mudou a minha maneira de ver o mundo. Já aqui falei dele: chama-se La Neurociencia del cuerpo. Aposto que este vai confirmar essa mudança, aprofundá-la e consolidá-la.

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A fraqueza da minha força de vontade - a minha fraqueza de vontade, por assim dizer - manifestou-se uma vez mais. Vim ao Johnny's Dhaba para lanchar e fiquei para jantar. Não que a comida seja excelente. Não é. Mas a simpatia do homem, o espaço praticamente vazio e a falta de vontade de ir para casa conjugaram-se com a vontade de escrever e de falar deste dia.

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Porque a verdade, a verdadeira verdade é que os dias de repouso em Genebra foram necessários mas não suficientes. O rendimento da carcaça diminuiu um bocadinho. O que aumentou exponencialmente foi o tempo necessário para recuperar. Coisa que aqui faço, temperando com umas preocupaçõezitas e umas imersões na cultura local: comprei uma saco de ir às compras, alpergatas, continuo a minha peregrinação aos locais que fazem de Palma a minha casa. Hoje foi o Johnny agora ao jantar, um hamburguer no Igor ao almoço, a visita quotidiana ao Olivar, os passeios por estas ruas que me permitem descobrir novidades a cada esquina e confirmar que os meus amores têm uma base concreta, tangível. Não caem do céu. 

Por isso nunca acabam.

Pizarnik, Estar

Venho à Babel, não para comprar um livro mas para beber uma cerveja. A minha condição de sem abrigo piorou com o fim do Antiquari.

Para resistir mais facilmente à tentação escolho um livro que já tenho: Poesía Completa, de Pizarnik. (Como desculpa, já vi nelhor: esta edição é diferente da que eu tenho. Não faz mal. Fica assim.)

ESTAR

Vigilas desde este cuarto
donde la sombra temible es la tuya.

No hay silencio aquí 
sino frases que evitas oír. 

Signos en los muros
narran la bella lejanía. 

(Haz que no muera
sin volver a verte.)

6.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-07-2025

Prequela:

Ou seja, consegui jantar por menos de quarenta euros. A questão que esta inusitada situação põe é: aonde vou gastar os dez euros que poupei?

(Assinado: escola LMS de gestão de finanças pessoais. Uma escola que eu sugiro fortemente a quem queira empobrecer com estilo ou enriquecer sem classe.)

Resposta: quase metade já o foi na gorja. A beleza, a simpatia, esta singular conjução de rabos, a energia, a juventude, o sorriso, o quadro e a quantidade de serotonina que este jantar provocou mais do que legitimam a decisão. 

(Assinado: escola LMS de saber viver, sobretudo quando não se tem aonde cair morto.)

(Continua, por definição.)

(Cont. 1)

Resposta: em lado nenhum. Vim para casa. a) Sou um homem responsável, b) tenho rum em casa, c) não pensei que o quarto estava tão quente, d) o Antiquari fechou, e) não dormi à tarde e f) o Gibson's obrigaria a uma subida da Costa de sa Pols. Por muito boa que seja a burra - é - não é eléctrica. É muscular. Funciona a açúcar.

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Pós-quela:

O restaurante El Mariscal del Jamón é uma casa clássica com uma «decoração» que me faz pensar nos refeitórios das fábricas de produtos de «luxo» (tudo isto entre aspas porque sim). Já cá tentei vir uma vez mas estava cheio. Hoje consegui mesa, «no interior, señor, si está solo». Estou e agradeço. Prefiro de longe o ar condicionado ao ar desregulado das alterações climáticas, aquecimentos globais e outros sinónimos de Verão em Maiorca.

A simpatia dos empregados é contagiosa; sendo que desta vez me sinto obrigado a separar os géneros: lá fora foi um, cá dentro são duas ou três, que parecem estar num concurso de sorrisos e simpatia.

Os preços são os habituais neste tipo de sítios mas há dois pratos a menos de dez euros (cinco cêntimos menos). Escolho um desses: deixar por deixar prefiro que o que sobra seja barato. A miúda que me serve tem vinte e alguns anos, um rabo de cavalo e um rabo tout court bastante bonitos, a energia de um puro-sangue e um sorriso de me fazer querer voltar quarenta e muitos ans atrás*. Quel bonheur!

Bebo Lopez de Haro a três e cinquenta o copo, consegui comer a carne (toucinho na chapa, delicioso) quase toda, pergunto-me se é hoje que vou ao Gibson's e se amanhã esta sorte continuará. A pergunta é retórica. 

* - Dos quais seria injusto queixar-me. Passei muitos deles sozinho e outros tantos acompanhado. Querer melhor seria irrealista.

No restaurante só se ouve espanhol e maiorquin. Não vou esperar quarenta e tantos anos para cá voltar.

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Sequela:

O rum Legendario 7 anos que comprei em Gibraltar confirma a péssima opinião que tinha deste rum. Espero que o El Dorado 12 anos que me aguarda no armário faça a mesma coisa. Isto é: confirme a maravilhosa opinião, etc.

5.7.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-07-2025

O tema do dia é a morte de um jogador de futebol e a ida ou não ida de outro ao funeral do primeiro. E ainda há quem me critique por eu viver à côté de la plaque. (Isto dito, tenho imensa pena do senhor e da família. Dos fãs do homem também tenho, mas pouca. Ganhem juízo ou pelo menos não desperdicem o pouco que têm.)

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Cantinho vaidoso: fui à Tipika - na vedade fui ao Morey beber um vermute e como a Tipika fica em frente fui lá, aquela loja é uma maravilha. A Petra disse-me que uma senhora alemã dona de uma galeria de arte que expõe muita fotografia adorou as minhas.

É preciso acreditar nas virtudes do abulismo. Dito de outra forma: acredito nas virtudes do tempo.

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Cantinho do vaidoso II

Ontem, a senhora do filtro de segurança do aeroporto de Genebra elogiou o meu chapéu. «Muito bonito», disse ela (em francês, claro). Hoje o Ivo disse o mesmo da minha mochila de couro (em espanhol).

Gosto muito destes elogios, mas prefiro o das fotografias. E os que me fazem aos livros, mais raros mas mais comoventes - escrever é mais custoso do que fotografar, por uma razão que não percebo e talvez por isso acho injusta.

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Venho ao Café Verde beber um tinto de verano. «Más tinto que verano», explico ao senhor que me serve. Ele ri-se e faz o que lhe peço. Está calor mas há uma brisa leve, restos da térmica da tarde. Em breve desvanecer-se-á. O café Verde fica na praça de la Mercê, a dois minutos de casa. Há muito pouco trânsito porque a zona é acire (acesso restrito). Vai calma a tarde: Palma entra-me pelos poros, também; e não só pela boca ou pelos olhos. Pergunto-me aonde ir jantar, penso na senhora alemã dona de uma galeria de arte - vai abrir uma em Palma e talvez me contacte, penso no transporte para o Panamá que muito provavelmente não terei e tanto gostaria de ter, mesmo sendo só da República Dominicana, penso no que devia escrever e não escrevo e no que escrevo, penso nas virtudes da espera e de como não me tornar a personagem da Fera na Selva, que morreu de esperar. Ou melhor: não viveu, de tanto esperar. Há um equilíbrio a encontrar, uma linha muito fina, uma indecisão... Uma força vital, diria Nietzsche. Um pêndulo titubeante, indiferente, resistente à gravidade. Respirar sem querer. Introduzir Beckett na equação.

Ir a casa deixar as compras e ir jantar.

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ADENDA 

A ideia original era jantar num sítio novo mas acabei no Jaume e num polvo à galega que é, continua a ser, o melhor de Palma. Juntai-lhe música mais do que decente, um quadro lindo, o melhor vermute de sempre, a habitual recepção reservada do Jaume (o outro) e calorosa da mulher do Jaume (o dono, que hoje não está), a sequência de mulheres bonitas que desfilam à minha frente, juntai tudo isso, agitai devagarinho, docemente, como quem faz uma festa a um bebé que está a dormir e a pergunta é óbvia: ir aonde? Estás louco?

O vermute, já aqui o disse e repito, chama-se Luis XIV. Não venham a Palma não que não é preciso. Não amem Palma. Não mergulhem nesta cidade como no corpo de uma mulher amada. Não façam nada disso que não é preciso. Não respirem.

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Já aqui expliquei a diferença entre pairar e derivar: esta é involuntária, aquela não. Estou a pairar. Máquinas paradas, panos arreados, ansiedade em suspensão. Tenho uma vaga ideia de para onde a corrente me leva mas não quero pensar muito nisso. Não quero pensar muito, aliás. Quero beber vermute, pedalar para casa e dormir. É um programa que preenche o espaço todo entre mim e o horizonte. Os horizontes: são muitos.

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Tratar da vista, por exemplo. E comer uma sobremesa aqui em vez de ir ao Gibson beber um rum.

4.7.25

(Cont.)

O marinheiro sensato não sai do 7 Machos com o objectivo de ir ao Moltabarra, o que só demonstra que não sou uma coisa nem outra.

O "marinheiro bêbado" da mitologia tão pouco. Ficaria aonde estava, a beber mezcal como se o mundo acabasse amanhã (acaba, qualquer marinheiro sabe).

Ou seja: não sou sensato nem bêbado. Sou um simples marinheiro, sem qualificativos nem apodos. E sim, vou ao Moltabarra porque Palma celebra-se, ama-se, vive-se e bebe-se.

PS - O Moltabarra está fechado:  "evento privado"; o Flexas está fechado: é o Flexas. Acabo no Jugueteria, depois de uma conversa com o Claudio, que está fechado. Palma vive-se, percorre-se, sonha-se e ao fim e ao cabo a Jugueteria não me parece assim tão mal.

Não se deve julgar um livro pela capa nem um bar pelo nome.

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Palma percorre-se, respira-se, palmeia-se. Ama-se com os pés, os olhos, os ouvidos, o olfacto e - para marinheiros sem casa longe de casa - com aquilo a que quem não sabe chama alma e quem sabe também. 

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Palma é uma cidade cara, sem dúvida.

Mas as notas aqui duram mais tempo do que em Genebra. Questão de latitude, suponho. 

Diário de Bordos - Aeroporto de Genebra, Suíça, 04-07-2025

Quatro dias em Genebra a fazer praticamente nada passam depressa, demasiado depressa. Espero que o Verão passe igualmente depressa, para poder cá voltar antes de uma séria crise de saudades.

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Até ao embarque tudo parecía normal. É verdade que se sabía da greve dos controladores aéreos franceses mas a Easyjet não anunciara nenhum atraso. Embarcámos a tempo, esperámos meia hora por três passageiros e só depois vem a bomba. "O slot para a descolagem está comprometido, irregular e de momento o que sabemos é que só sairemos daqui a duas horas". Segue-se uma explicação razoável de porque temos de esperar dentro do avião - parabéns ao piloto, que nos mantém informados - e aqui estamos.

Tenho um asco particular pelos controladores aéreos franceses - bastante atenuado, de passagem se diga, porque durante ano e meio namorei uma senhora que fazia parte do grupo de organizadores destas greves (desta já não deve ser. Deve estar reformada). Era de extrema-esquerda, tinha um salário elevado, trabalhava dois ou três dias por semana e poucas horas - ainda bem - era muito bonita e ainda mais inteligente, o que não estraga nada. Para preservar a paz do ménage tínhamos decidido que não se falava de política quando estávamos juntos.

Ou seja: o meu asco por este grupo de abusadores privilegiados é tingido por alembranças pessoais, uma mistura de sensualidades e sentidos e conversas e risos - a senhora tinha um sentido de humor devastador -, pelo que me deu a conhecer de Paris, que é muito. Temos mais uma hora e meia de espera e a tripulação decidiu oferecer-nos um snack. O voo é de uma hora e meia e o atraso será de duas e meia ou três horas. 

Para a senhora, a greve era a única forma de diálogo laboral possível. Para mim não é. Prefiro a solução Reagan.(Agora posso dizê-lo sem arriscar represálias.)

Os passageiros estão calmos. A língua predominante é o francês com sotaque genebrino e talvez estes dois factos estejam unidos por uma relação de causalidade. Não sei. Não sei sequer se a língua predominante é o francês. É-o na minha entourage, mas não sei o que se fala para lá dela. Como amostra não chega mas há que acolher um preconceito ou dois. Estão para a vida como a beleza e a inteligência das senhoras para os amores.

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Oiço português, duas ou três filas atrás de mim. «Estão a foder-me as férias, caralho», alto e bom som. E pensava eu que o nível da nosso emigração tinha subido...

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(Cont.)

30.6.25

Fim do dia à beira lago

A bise caiu, o crepúsculo vai longo, o lago anoitece lentamente. Tudo é lento neste país. O quadro é inexcedível de bonito: uma propriedade na margem sul a apontar directamente para Oeste. O Sol ainda está por cima do Jura. Em breve os seus cumes recortar-se-ão contra o céu cada vez menos azul e mais violeta. Tudo isto encharcado em calma, em tempo, em devagar. Em saber. A conversa flui, o jantar é excelente - o anfitrião cozinha bem, a S. já me tinha prevenido - o Sol desce, as nuvens estão imóveis. Amanhã não haverá vento.

- Amanhã serei quem sou hoje?
- Não sei.
- Não sabes?
- Não. Nada sabemos de nós senão a posteriori. O presente só serve para nos enganar e o passado para nos dar um pouco de esperança: piores do que já fomos não seremos.