8.1.25

Aliteracôes e outras dúvidas

Uma mama numa mão e na outra a dúvida, enrolada junto à face: que fizeste dessa vasta estepe que passo a passo dia a dia atravessas a que outros chamam vida e tu eu, simplesmente? Pela pele te percorro pé ante pé e me pergunto que pele é esta que a noite me pôs nos dias? Avisa da vida a saída com a devida antecedência mas não faças da cedência a tua essência. Não entres na noite sem uma mão no mar e a amar ama a mama que tens na mão, o mar que ta trouxe e o olhar aonde ele e ela vivem.

7.1.25

Perspicácia, mitos e descrença

A desconfiança, o cepticismo bacoco, a descrença são actualmente a melhor prova de inteligência e de perspicácia. São por assim dizer o último refúgio dos vazios de espírito. Acreditar em alguma coisa, em alguém,  é prova evidente de ingenuidade, também conhecida por estupidez.

Porém, dada a necessidade inata de o homem acreditar em alguma coisa, constroem-se outros mitos, como salvar o planeta reduzindo os puns das vacas, circulando em carros eléctricos ou salvar a comunidade acreditando no poder benéfico da indignação e da censura.

3.1.25

(Cont.)

Envelhecer é destapar-nos das camadas de ignorância que nos têm coberto desde que nascemos, como placas geológicas mas com tempos mais breves. Ou dos cobertores de uma noite fria quando o dia nasce.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 03-01-2025

Não é bem uma questão de «só os imbecis não mudam de opinião». É mais «crescer e aprender». Ou «é muito difícil ser jovem e não ser ignorante». Ou, mais realisticamente: «em jovem eu era um palerma e à medida que fui crescendo fui sendo-o menos. Infelizmente ainda não cheguei ao nível zero da palermice mas lá chegarei. Basta morrer.»

Encontrei o canal Mezzo na televisão doméstica e oiço um programa dedicado ao trio Play Bach, coisa que há coisa de quarenta anos não apreciei. É preciso ser idiota, não é? Talvez não. A minha hipótese é: «Não. Basta ser jovem.» Essa hipótese é facilmente falsificável: milhares de jovens ouviam isto e gostavam e apreciavam conhecedoramente. Ou seja: a minha hipótese muda: «Basta ser ignorante.» A palermice e a ignorância andam sempre de mãos dadas, não é?

É.

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Inovação no glühwein: acrescentei feno-grego e as passas que comprámos na Cafélia. O feno-grego é o resultado de uma intensiva exploração de Lagos à procura de alcaravia. Encontrei os dois num minimercado chamado Go Minimarket, pertencente a senhoras holandesas, sul-africanas e não sei que mais.

Ainda há quem seja contra a presença de estrangeiros em Portugal? Acreditem se quiserem, mas antes do Go fui a três «gourmets» (Google dixit) e as pessoas não sabiam sequer o que era alcaravia. Não sabiam. Nunca tinham ouvido falar. Alcaravia.

Isto transporta-me aos meus anos de chegada a Portugal em dois mil e dois ou três: telefonava aos supermercados de Cascais para saber se tinham ervas frescas - como cebolinho, por exemplo. Acreditem se quiserem. Hoje não telefono. Ainda me lembro da reacção àqueles telefonemas. Visito-os e constato in persona a reacção. «Alcaravia? O que é?»

Lá encontrei. Go minimarket. Goed so, jonger. Dank u wel.

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Resumindo: duas rodelas de laranja, dois paus de canela, cardamomo, cravinho, açúcar mascavado, feno-grego, passas, alcaravia. Aquecer devagar. Devagar. No momento de servir acrescentar rum barato. Beber. 

Pensar na inabalável associação do calor e da sorte. Senti-la. Até à medula. Beber de novo. Repetir. Parar de pensar. Até à medula.

In Sónia?

Lá estás tu com a mania dos anglicismos. Não, não se chama Sónia.

Yin e Yang?

O belo e o feio, Deus e o Diabo, a ganância e a generosidade, o amor e o ódio... Os chineses têm razão quando representam o mundo aos pares interligados e perdem-na quando os pintam de preto e branco. A cor dominante da realidade é o cinzento, em todas as matizes possíveis. 

De vez em quando lá aparecem uns pingos de cor a alegrar o cinzento, é certo, mas isso são contas de outras metáforas.

Antares

Leio cada vez menos e mais dificilmente, por razões psicossomáticas. Isto é, psíquicas e somáticas. É por isso um prazer ler Antares, de Clara Pinto Correia, mesmo que ao ritmo de um caracol a atravessar um ringue de patinagem no gelo. Acabo de passar pela mais bela descrição de uma cena de amor que me foi dada ler por um autor português.

Pena é o trabalho de edição, que deixa passar uma virgulação anárquica e outros pecadilhos menores. 

A este ritmo espero terminar em dois mil e cem, o que me parece adequado para uma auto-exegese desta amplidão. E beleza.

2.1.25

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-01-2025

Construir casas quentes e mantê-las aquecidas requer energia anímica. Tanta quanto aquela que se estuda nos manuais de termodinâmica. Requer também um Estado menos predador - ou, na sua ausência, um povo que se revolte contra os impostos com que o albardam. Não temos nem um nem outro. Aceitamos como fatalismo o que não passa de resignação, outra palavra para cobardia. Inevitavelmente, penso naquela revolucionária alemã que a seguir ao vinte e cinco de Abril veio para Portugal acompanhar a gloriosa revolução. Pouco tempo depois foi-se embora. "Um povo que não consegue ter pressão na água do duche nunca será revolucionário" terá a senhora explicado, cheia de bom-senso. Suspeito que  regressou à sua terra antes do Inverno: depois, teria certamente acrescentado à pressão da água nas torneiras a incapacidade de se aquecer devidamente. Felizmente temos baratos e bons os vinhos e as aguardentes.

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Dias de televisão, frio e discussões inter sororibus. Felizmente, tudo isto compensado com um saldo bastante positivo por excelentes vinhos, lautas refeições e acolhedoras aguardentes  num cenário digno do Charme Discreto da Burguesia.

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Lagos - almoço na Adega da Marina, cheia como sempre. Este "restaurante" é um mistério: como é que uma cantina com capacidade para acolher os espectadores de um "derby" (aspas porque é irónico) consegue fazer comida tão boa?

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O T. está com um cancro na próstata e eu fiquei devastado um bom par de horas. Depois aterrou em mim a noção de que os tratamentos evoluíram e aquele casal é capaz de enfrentar isso e muito mais.

E ainda há quem seja contra o optimismo. De devastado passei a simplesmente preocupado e assim ficarei até ver. É o meu melhor e mais antigo amigo.

Chegámos a uma idade em que temos de nos ver mais vezes, é o que é.

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Viemos passar uns dias a Lagos, a L. e eu. É sempre com um indescritível prazer que revejo esta cidade. Para completar o ramalhete só me falta um par de boas notícias. Enquanto não chegam, vou trabalhar para fazer outras.

30.12.24

Casamento

O casamento é um acto social mas ao contrário: é uma despedida. É os noivos a dizer à sociedade que a trocam por um novo domus. "A partir de agora já não somos só vossos. Somos um do outro e da família que aí vem."

28.12.24

Taxonomia das Luas

A única visão mais bonita do que uma lua cheia no céu são duas luas cheias entre ti e o tecto.

Esboço de uma teoria das relações afectivas

Os três ingredientes fundamentais de uma relação amorosa são o amor (ou amizade), a paciência e a surdez, quanto mais não seja parcial. São como as três bolas de um malabarista principiante.  A perenidade da relação depende de quanto tempo levam duas das bolas a cair.

27.12.24

Foz, nascente

Não percebo de casas. Não percebo nada de coisas sólidas, com tijolos, janelas, portas e telhados. Tão pouco me peças para marcar datas num calendário: o tempo é demasiado sólido. 

Fala-me de ventos e mar, correntes e barras, de agendas feitas de água. Fala-me de peles, de cabelos, de olhares, da solidão,  esse "pecado capital" (CPC, tão lindamente). Fala-me de amor, a mais fugitiva das coisas sólidas. Fala-me da fugaz e falaz felicidade, como um tremor de terra. Fala-me de tudo, de placas tectónicas, de vulcões, tsunamis, do vento nas palmeiras, da areia que no deserto cobre os trilhos.

Fala-me de ti, desse teu sorriso que ilumina o mais negro dos passados, o mais luminoso dos futuros.

Fala-me das fluidas formas do amor, cristalizadas em ti. Fala-me das fluidas formas da vida, que nascem e desaguam em ti, foz e nascente.

26.12.24

Diário de Bordos - Comboio Lisboa Viana do Castelo, Portugal, 26-12-2024

Mais uma viagem na CP, comboios de Portugal para quem não sabe. Desta vez a revisora recusou-me o acréscimo para primeira classe e infelizmente ouviu-me comentar o facto com o  senhor do bar (estava num sítio aonde eu não a podia ver e saiu de lá a dizer - cito verbatim - que eu não sabia o que ela "tinha entre as pernas". A questão sendo que até agora os revisores sempre o fizeram e uma mulher não.)

Respondi-lhe que ela tinha razão,  mas na verdade eu não queria saber e resigno-me a viajar no bar, de resto mais confortável do que a primeira classe.

E mais barato, claro.

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É fácil suportar melhor a loucura do que a estupidez. As coisas só se complicam quando as duas se misturam.

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A minha Coluer vai carregada como se de um sem abrigo se tratasse. Um dia terei uma bicicleta de carga e nela passearei os netos. Por agora: sacos de supermercado e esta ideia de que sou um sem abrigo com mais sorte do que muitos com abrigo.

Coisa que de resto este Natal demonstrou à saciedade. 

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Leio Antares, de Clara Pinto Correia. Não é exactamente uma autobiografia; tão pouco é uma auto-hagiografia; não sei como qualificar a coisa. Sei que está bem escrito, apesar de precisar de um bom trabalho de edição. Que ao lê-la me parece ouvi-la (é um elogio) e que a revisora do comboio aparenta ter-se esquecido da nossa inicial troca de palavras. Um casal tem o som do telefone demasiado alto e eu respondo com Mingus e Dolphy. Estou na mesa grande do bar e ninguém se senta ao meu lado. O casal reagiu positivamente à minha insinuação e desligou a música. Faço o mesmo, lamentando que a dupla Mingus & Dolphy não sejo do seu (deles) agrado.

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Abro o Antares ao acaso e vejo uma frase sobre a solidão, que devia ser um pecado mortal. Toda a sequência é linda de morrer. Só a força é capaz de expor as suas fragilidades.

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Porto - Campanhã. Daqui a uma hora chego a Viana do Castelo, destino intermédio. A vantagem do comboio é que um gajo vai sentado, não faz nada para se mover mas isto mexe-se como um barco e exige o mesmo equilíbrio  do que uma bicicleta. 

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A natureza não gosta de números ímpares. O meu Pai dizia que não se deve beber uma quantidade ímpar de bebidas. As relações amorosas tão pouco suportam uma terceira participante. (Isto ninguém me ensinou. Aprendi.)

Acima de três a relação deixa de ser amorosa, de qualquer forma.

Isto é: a dois, a relação é amorosa. A três é relação. A mais não é uma coisa nem outra.

25.12.24

A problemática da lavagem da loiça vista pelo prisma da Razão e da música sacra - e da poupança de água doce, acrescento eu agora porque é impossível enfatizar-lhe a importância

Em todas as refeições, por muito formais que sejam, há um pouco de caos. Caos é um termo demasiado forte. Desordem. Incerteza. Dúvida.

Lavar a loiça é a reposição da ordem, do método, a vitória do outro lado da entropia. Lavar a loiça é uma operação com várias etapas e cada uma delas deve ser levada a sério, reflectida, estudada e planeada. Começa-se por arrumar a loiça suja em categorias: talheres, copos, pratos, os utensílios que se usaram e por qualquer razão não foram lavados durante a cozinha. Depois, começa-se a lavagem pelos menos sujos, com excepção dos talheres, que devem ficar para o fim. Por ordem: copos, chávenas, pratos de sobremesa, pratos da sopa, pratos grandes, travessas, panelas, frigideiras. É possível que a meio se tenha de mudar a água do lava-loiças. Normalmente faço-o depois dos pratos grandes, porque é uma bifurcação. Quando o lava-loiças só tem uma bacia: passa-se o que se acabou de lavar por água e põe-se a secar; caso tenha duas bacias: tira-se a que lá está e muda-se-lhe a água. A seguir vem a parte mais suja: panelas, frigideiras, pirex, etc.. A ordem é importante: deve guardar-se a água menos suja para a loiça menos suja. Entretanto mudam-se os restos da comida para recipientes mais pequenos - o espaço no frigorífico é limitado - bebe-se um rum Mount Gay (há Pais Natal compreensivos e amáveis) e continua-se. É preciso secar a loiça e arrumá-la. Dantes costumava deixar a natureza fazer o seu trabalho, mas agora penso que a natureza é uma chata e nunca mais se despacha. 

Uma refeição só termina quando toda a loiça está seca e arrumada no seu lugar. Isto poderia ser usado para provar que o mar me está a invadir a terra, mas eu penso que não. É a idade que me entra pela Razão dentro, cada vez mais fundo. A ordem é relaxante, tanto quanto a música sacra da Idade Média, ao som da qual lavar a loiça equivale provavelmente a uma ou mais horas de reflexão sobre o sentido da vida - e é mais eficaz. 

24.12.24

Círculo, vida

Nascemos na família, crescemos e afastamo-nos dela e crescemos mais e voltamos a ela, que entretanto jâ aumentou e nos dá a ver não só o passado - era o que detestávamos - mas o futuro também. 

A vida é um arco de círculo que só quando se fecha nos pode dizer: conseguiste.

Tão leve

Tenho uma tonelada de cobertores em cima de mim e mesmo assim a noite entra-me pela pele adentro e dá-me vontade de me mudar para outra noite, uma noite da qual tu faças parte, uma noite na qual tu estejas e me protejas da noite sem precisar de uma tonelada de cobertores dispostos em camadas geológicas, cronológicas, a começar na manta de retalhos da avó e a acabar no cobertor mais recente de todos, tão recente que não sei sequer de onde vem. Tu és a única noite que merece ser vivida, dormida, pesada e lembrada um dia quando do peso nada restar senão esta memória que agora me percorre a pele e nela me pesa, como se aqui estivesses.

Não estás e de peso só tenho os cobertores e a memória de ti, tão leve.