30.4.23

Diário de Bordos - Dublin, Irlanda, 30-04-2023

 Chuva, frio e pubs: a primeira imagem de Dublin não é propriamente uma surpresa. Já a sujidade das ruas (pelo menos das duas que até agora vi) é mais inesperada. Depois lembro-me da quantidade de pessoas que vi ontem à chegada (meia-noite) e a surpresa desvanece-se. Sábado à noite é sabado à noite e domingo de manhã a manhã seguinte, em todo o lado.

Saindo do centro as ruas compõem-se e a obesidade continua pervasiva. Compreende-se porquê: peço um café e uma bolacha e esta tem mais chocolate do que farinha. Provavelmente para justificar a obesidade do preço, vá saber-se. O B&B aonde ficarei estas duas noites é longe do centro, num daqueles quarteirões de casas matriciais de tijolo encarnado nas quais se imagina facilmente a burguesia que Beckett tanto desprezava. Hoje muitas estão convertidas em B&B (aposto que escolhi o pior deles...) bordejando uma rua larga cheia de automóveis  a toda a velocidade e de árvores enormes e paradas, a recuperar do inverno. O frio continua, o meu casaco de linho branco é notoriamente insuficiente e esqueci-me do computador na pensão. 

O pretexto para a vinda foi a apresentação do livro do V. V., em inglês e tudo. A verdadeira razão é que ando há anos para conhecer esta cidade e precisar de me afastar do P. e das suas rotinas. Eis-me portanto travestido de turista cultural (não há turismo existencial, pois não?)

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Qualquer pessoa medianamente culta conhece o Trinity College, mesmo sem nunca ter vindo a Dublin. Beckett deu lá uma aula que ficaria famosa nos anais da pedagogia moderna: uma hora a olhar para a janela, sem dizer uma palavra. (Essa ideia seria retomada mais tarde por Pirsig, no seminal Arte do Zen e da Manutenção de Motocicletas.) Hoje passei pelo Trinity, cheio de gente. Não sei qual a janela que Samuel usou para manifestar o seu profundo desinteresse pelos alunos, pelos dublinenses, pela Irlanda, pela profissão e a única coisa que retive foi a quantidade de pessoas. Não era propriamente um mar de gente mas andava lá perto.  Fica para outro dia. Por hoje fico com o tamanho daquilo: é enorme. Há muitos anos em Paris aconteceu-me o mesmo com a torre Eiffel, ou quase.

Conhecer a cidade fisicamente, passar da teoria à prática é isso: ser esmagado pela terceira dimensão. As duas primeiras só são apelativas intelectualmente. Passar para três faz entrar os sentidos na equação.

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Sou o pior turista do mundo e o pior é indiferença que isso suscita em mim: é total. Importo-me tanto com as minhas fracas qualidades de turista como com o que a minha avó fazia das fraldas dos quatro filhos que teve.

De modo que o dia de hoje acaba como começou: comigo cansado  a percorrer Dublin de autocarro no sentido N - S primeiro e depois no inverso.

Afinal o B&B é bastante agradável. Suponho que os pessimistas o são para poderem apreciar as inevitáveis boas surpresas. Talvez só diverjamos na quantidade destas.

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A Ryanair é a pior companhia do mundo. Não é só na categoria "companhias aéreas". É em todas. Hesitei antes de comprar o regresso com ela e vejo agora que devia ter hesitado mais. O sacana do irlandês percebe a potes de transporte aéreo mas o desprezo que tem por quem lhe pagou a fortuna só não é insuportável porque tem uma justificação: é mais do que merecido. Aceitar ser tratado como merda para poupar meia dúzia de euros é desprezível 

Enfim, de três em três ou quatro em quatro anos é necessário refrescar as alembraduras.

(Cont.)

29.4.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-04-2023

Que dia! Só me apetece beber rum e comprar roupa de linho, duas coisas que já fiz mas em quantidades notoriamente insuficientes. Além disso, esqueci-me de ir à Zara buscar a almofada que lá está reservada - mas não paga. Pode reservar-se mas não se pode pagar.

Palma está impossivel. É fim de semana e os city breakers inundam a San Miquel, a Sindicat e as outras todas por onde costumam andar. Ainda por cima, segunda é feriado. Penso como será isto no Verão, se agora já não se pode circular de bicicleta em metade das ruas.

Que se lixe. Vou passar o fim-de-semana a Dublin, ver o V. e conhecer a cidade. Com sorte, ainda irei buscar a almofada e beber mais um rum. Deixo a roupa de linho para depois. Comprei um casaco e um par de calças, deve ser suficiente até daqui a dez anos. Há demasiado barulho em todo o lado.

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Fui à Zara buscar a almofada,  tão miserável como confortável desculpa para beber mais um rum. Resta saber onde: na Cantina, no Antiquari, no Jaume? Um faz-me desconto, outro tem runs sublimes, outro  ainda nafa disso... Não sei.

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Estamos em dias de feira náutica e à habitual e inúmera quantidade de mulheres bonitas de Palma juntas-se a habitual e inúmera quantidade de mulheres bonitas dos boat shows. Sobretudo este, que é só de mega-iates para cima.

Um inferno, é o que é. 

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Há um exercício de malabarismo difícil mas que toda a gente devia conhecer: é o equilíbrio muito instável entre ser pobre e ser miserável. Aquele não tem nada de errado, este é um nojo desde a letra m até à letra l.

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Acabo no Atlantic, que de horrível só tem a música, a decoração e a barmaid (esta não tanto, mas enfim). É um clássico e por isso nunca cá ponho os cotos. Tem o Jaume de estar fechado e ser demasiado cedo para o Big Foot.

Um rum bebe-se depressa, os olhos fecham-se e a rapariga - magra, alta, espigada e loura, igual a cerca de quatro milhões de outras - mal se deixou ver.

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A única parte desagradável de uma viagem de avião ocorre entre a ida para o aeroporto de embarque e a saída do de desembarque. Antes disso e a partir daí é só prazer.

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Consegui finalmente comprar a BH ao Ivo. Dei-lhe a Órbita e um par de zeros. Ficámos os dois a ganhar. 

Gosto do Ivo. As suas actividades consistem em filosofar e reparar, alugar e vender bicicletas. Sob dois princípios de base: trabalhar o menos e o melhor possível, duas coisas geralmente antinómicas mas que ele concilia maravilhosamente. 

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Uma série de primeiras vezes: na parte alfandegada do aeroporto de Palma (felizmente o cartão de cidadão é suficiente), em Dublin, na Ryanair sem ser por razões profissionais (desta não estou seguro a cem por cento, mas não faz mal), primeiro voo na Aer Lingus (o voo está atrasado...)

Única surpresa: a dimensão desta área do aeroporto. Não é tão grande como a outra, mas é enorme.

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O restaurante onde dantes havia Warstein e wurst variadas acabou e foi substituído por uma merda sem nome que vende sandes de presunto manhoso e ovos estrelados com batatas fritas.

Acredito na entropia, mas bolas, não é preciso espetarem-me com ela a cada passo.

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A senhora do táxi que me trouxe ao aeroporto diz que vai votar Vox, por causa da gestão da pandemia. Há pelo menos um partido português que poderia pensar nisto, se não fosse tão tarde.


(Cont. - a sério?)

27.4.23

Iris, vidas

Quantas vidas tem um homem? A única maneira de responder é: tantas quantas as mulheres da vida dele. Eu tive três mulheres da minha vida. Ou seja, tive três vidas. Só? Tive mais. A minha teoria é falsa. Ou me faltam mulheres ou me faltam vidas. Ou então, uma das mulheres conta por várias vidas. Essa mulher chama-se Iris (pronuncia-se Áiris, a senhora é inglesa) e anda agora a passear o seu esplendor por Paris. Ou seja: anda a dar vida a Paris, que tão pouca tem. A questão é: de onde lhe vem essa vida, a que ela dá a Paris? Vem de mim? Não. Vem dela? Sim. A Iris tem mais vida do que um gato tem vidas e eu tenho eus. É de resto por isso que eu gosto dela: gosto da vida e a Iris tem muitas, vidas, vida.

Neste bar, cujo nome nunca recordo mas onde vejo a Iris a cada milímetro quadrado, bebo um rum como ela o beberia se aqui estivesse. Infelizmente não está: passeia-se por Paris (e a minha vida com ela).

O bar onde estou chama-se Big Foot, vi agora no menu. Pedi mais um rum e descobri que ainda amo a Iris, apesar de não a ver há anos. Deve ser a isso que se chama "a mulher da minha vida": amo-a de um amor que não dói, uma ligeira mas permanente dor de cabeça, tão ligeira que se toma uma aspirina e a dor não passa e pensa-se "Não faz mal. Posso viver com esta dor". Com este amor, que eu sei me vai acompanhar até ao fim dos meus dias, mesmo que nunca mais ponha os olhos (ou as mãos, sonhar não custa) na Iris.

Há amores inevitáveis, amores cuja força vem não da intensidade mas da permanência. Estão sempre lá, mesmo que a pessoa que caminhe ou durma ao nosso lado seja diferente. Eliot tem um verso sobre isso, aliás. 

"Who is the third who walks always beside you? 
... 
There is always another one walking beside you."

Invisível para os outros (e outras), a Iris está sempre ao meu lado. Eu é que não estou ao lado dela, mas isso é outra história. 

26.4.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-04-2023

Entro em Palma como me despedi de Lisboa: passo a passo, porta a porta. Xisco, Paz (não estava, mas comprei um monte de postais, tenho a escrita em atraso), Joan, Bradley (este é noventa por cento trabalho, de que gosto tanto como do que não o é), Joan outra vez, Plaza Mayor, François (outra vez, não estava em nenhuma das duas mas o Antiquari continua o Antiquari). Tal como, de resto, o bar Rita: um porto de abrigo ao qual só falta a Rita, a outra, apesar de a sua ausência - a da Rita - lhe dar mais densidade, mais peso, mais inevitabilidade. Como seria o bar Rita com a Rita, a outra? Seria possível? Podem não acreditar, mas sim, seria possível. É sempre possível mais Rita, mais paz, mais harmonia, mais beleza, mais solidão.

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Reencontro a alegria infantil de ser recebido em todo o lado de braços abertos, sorrisos de orelha a orelha, abraços apertados. É infantil? Sim, claro. Mas alguém tem alguma coisa contra a alegria das crianças?

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Continuo a desembaraçar novelos de linhas profissionais e pessoais, todas misturadas. É extenuante. 

O que eu gosto de situações extenuantes não tem descrição.

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Passei pela Babel mas estva fechada, tal como de resto a Paloma, que fica ao lado. Reservei uma mesa no Tom para amanhã. Regressar a Palma é como reatar com um velho amor: a palavra que mais se ouve é «lembras-te?»

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O Antiquari é o único bar que conheço que tem mais mulheres do que homens. Estou na sala da frente: dez pessoas e eu. (Depois não venham dizer-me que não sou feminista, por favor.) Das dez, pelo menos sete são bonitas (e ainda há quem pense que não sou um esteta). A escolha de runs é fraca, mas o Barceló salva tudo. A música continua excelente e num volume quase imperceptível, o que é só um nível acima do que devia ser.

O Antiquari é um cantinho de Paris em Palma e um cantinho de mim na vida.

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Aluguei a BH ao Ivo, que como de costume me fez um preço favorável. Se tivesse de fazer um pódio de bicicletas, ficaria assim: em cima a Alps, à direita a BH e à esquerda a Órbita (a única que é minha, o que é uma excelente metáfora da minha vida).

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Penso no peso da inevitabilidade de que acima falei. É o único peso suportável, não é?

É.

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Reencontro com alegria o meu uniforme: bermudas (hoje azuis) e pólo branco. Vai ser assim até Outubro, mutatis mutandi. (Em Setembro vou à Suécia buscar um barco. Duvido que este uniforme sirva.)

Resistência

A tecnologia deu voz à imbecilidade, à indigência intelectual, à incapacidade de dialogar (ou sequer de perceber raciocínios, mesmo simples). Essas coisas não são novas - basta ter frequentado tabernas e cafés para o saber - mas agora têm voz e a audiência excede largamente o balcão de mármore de antanho.

Isso é bom, sem dúvida; mas a inteligência, o bom-senso, a Razão não devem ceder às superioridades numérica e de volume da incultura. É preciso manter ilhas de resistência no meio dos oceanos da "indignação" (entre aspas porque é uma metáfora).

(Para o Miguel A. Baptista, uma dessas ilhas.)

25.4.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-04-2023

Regresso a Palma, regresso a casa. Às casas: Núria e Roberto, Cláudio, Gibson, Puente, Cantina, numa desordem total, tão cronológica como afectiva. Estou cansado, exausto, só me apetece beber mais um rum no Gibson mas nem a empregada acha necessário: não me liga nenhuma, não vem perguntar-me se quero mais um. Hesito. Penso nas casas que tenho para visitar nos próximos dias: Jaume, Joan, os dois do Gustar de cujo nome nunca me lembro (Tom e Fidel), François, a Insular para comprar postais e enviá-los às pessoas que não estão aqui e deviam estar,  porque contribuem tanto para fazer da cidade o que é como as que cá estão. 

(Da função social/essencial da ausência.)

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Estou-me tão nas tintas para o 25 de Abril como para o Natal, a Páscoa ou o aniversário da senhora Idalina da mercearia. 

Não sei se estou mais vezes sozinho do que acompanhado por ser assim ou se sou assim por.... etc. Venha o diabo e escolha.

Ou diaba, se preferir.

(As feministas deviam pensar nisto: referimo-nos sempre aos demónios, diabos e outros males no masculino. Cf. mal, mâle, males, mâles.)

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Não devia ter pedido o segundo rum no Gibsons, eu sei (ou melhor, sabia). Mas que é um regresso senão acumular arrependimentos? (Afogá-los?)

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A gravidez do P. está quase a acabar. Terá durado um pouco mais de cinco anos, quando finalmente eu pegar no bote para o levar para a Costa Brava.

Terá a montanha parido um rato? Ou um rato a montanha?

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É fácil viver sozinho: basta saber dançar com a solidão. Imagine-se uma longa valsa, maravilhosamente dançada nas maravilhosas ruas da cidade por um casal do qual só se vê uma das pessoas, seguido num travelling fluido, sinuoso e escuro. Uma valsa bonita, bem dançada. Viver sozinho é isso, se bem nem sempre a valsa venha bem dançada. 

Presentes, ausentes

Uma cidade é feita de pessoas, repito-me. Não é feita de pedras, monumentos, ruas bonitas ou prédios desenhados por arquitectos XL. É feita de e pelas pessoas que habitam esses prédios, povoam essas ruas, flirtam nos seus bares e cafés, comem gelados feitos por outras dessas pessoas, as presentes. 

Mas uma cidade é também feita de pessoas que não vivem lá e estão longe e nós gostaríamos de ter ao nosso lado quando passeamos nas ruas, olhamos para os prédios e comemos gelados numa esquina.

Uma cidade é tão feita de presentes como de ausentes. Uma cidade somos nós: tu, eles, eu. Nós.

24.4.23

Arcos-íris

Já percorri todos os arcos-íris do mundo... Enfim, todos não. Milhares deles. Nunca encontrei um pote de ouro. Talvez não os tenha percorrido até ao fim. Talvez eles tivessem o ouro mais profundamente enterrado do que eu cavei. Talvez não fossem arcos-íris auríferos. Talvez alguém la tivesse chegado antes de mim. Talvez - mais simplesmente - não haja ouro de todo no fim deles.

O ouro é difícil de encontrar. Ninguém vai usar um anúncio gigante para indicar onde está o tesouro. Os verdadeiros tesouros estão escondidos, não se vêem à vista desarmada. 

Apesar disso, os arcos-íris são belos. Apetece tocar-lhes, percorrê-los com a palma da mão até ao fim e por vezes, até, resistir à tentação de esgaravatar a terra em busca de mais um tesouro. O que temos na mão chega. Ou nos olhos.

Culpa, clima

Todas as religiões pensam que o Homem é culpado de tudo, se bem sóo cristianismotenha o conceito de pecado original. O catolicismo inventou a fórmula "Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa" (a dizer batendo no peito) que tem por função exorcizar essa culpa. A religião ambientalista encontrou o CO2 como bode expiatório - é a função do demo no catolicismo - e portanto atribui à humanidade a culpa de fenómenos que ela não pode de todo controlar. O clima anda a mudar há milhares de anos - graças à paleoclimatologia já se tem uma visão relativamente clara dessas "alterações climáticas" - mas a necessidade de se bater no peito é transversal a todas as religiões. O ambientalismo consegue, contudo, o prodígio de ser mais nocivo do que o catolicismo: o Armaggedon climático é para amanhã e se não nos arrependermos o Apocalipse seguir-se-lhe-á inevitavelmente. Infelizmente, para os crentes ambientalistas, para salvar a humanidade não basta bater no peito e dizer mea culpa: é preciso levar a civilização ocidental à miséria para nos salvarmos todos - ao contrario do cristianismo, que é uma religião individualista (a salvação é individual) - o ambientalismo é uma religião colectivista (ou nos salvamos todos ou morremos todos. Não é por acaso que os ambientalistas atribuem ao capitalismo, a que eles chamam neoliberalismo, o papel do Demónio). 

É curioso ver que as outras grandes religiões - o Islão e o Budismo - não produzem outras sub-religiões laicas. Nos paises budistas e muçulmanos os movimentos ambientalistas são inexpressivos.  

O ambientalismo devia criar um mecanismo individual de expiação da culpa e deixar de acreditar que o homem tem poder sobre mecanismos que claramente o excedem. A hubris ambientalista vai dar mau resultado, como todas as hubris.

22.4.23

Diário de Bordos - Lisboa, 22-04-2023

«Silêncio orgânico», Vai entre aspas mas não me lembro a quem ouvi esta noção fundamental. Creio que foi na apresentação do livro da Rita Tormenta, O Pequeníssimo livro de ti, mas não tenho a certeza. Não tenho a certeza de nada, já aqui o disse tantas vezes que lhes perdi a conta. Não tarda começam a chamar-me Luís Não Sei, em vez de Luís Miguel (já ninguém me chama assim...) Silêncio orgânico é melhor do que silêncio telúrico, por exemplo, que é uma contradição nos termos. A Terra fala, diz hoje a D. G. num post. 0 - 23 Hz, diz ela, se bem eu não perceba nada disso. Lá está - mais um «não sei» a juntar-se aos outros. A D. é tão pouco tonta quanto é bonita e inteligente: isto é, bastante; por isso tendo a acreditar no que ela diz, se bem não acredite em esoterices. Não si como se pode medir uma frequência de zero Hz, por exemplo. Ou pode? Não sei.

Ainda da apresentação: «um bolo de chocolate denso e pesado». Não me lembro a que se referia. Não gosto de bolos densos e pesados. Aliás, não gosto de nada que seja denso e pesado. Gosto mais de coisas etéreas e leves, como todas as coisas são quando somos felizes. Só quando não o somos elas são densas e pesadas. Vamos a ver e a leveza ou a densidade estão em nós e não nas coisas ou nos bolos de chocolate.

Tão pouco gosto de chapéus espalhafatosos. Chapéus ou outra coisa qualquer cuja função seja dizer aos outros «Olhem para mim, vejam quão original sou». Os meus chapéus são clássicos, escolhidos a dedo. Infelizmente é muito raro os panamás durarem-me mais do que um Verão. Já os de Inverno duram mais. Decidi começar a diversificar o meu guarda-chapéus. Mas só com formas clássicas. Não sou um tipo muito original e dou-me bem com isso. 

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Ando a dar voltas ao penico para não falar do essencial: o terceiro livro e a exposição de fotografia, ambos a caminho. Verão o dia juntos, se tudo correr de acordo com o plano. Lá para Outubro, Novembro. Inch'Allah.

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Amanhã vou a Torres Novas, passar o domingo. Volto na segunda, com uma imensa lista de coisas a fazer antes de ir para Palma, para o P. Ninguém saberá definir  impaciência se não souber por que estou a passar: é como se estivesse a nadar numa piscina de impaciência.

Torres Novas é a terra de origem da família da minha Mãe, mas não terei muito tempo para fazer genealogia no terreno. Teria vontade, se o tivesse? Duvido. 

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Um dos piores períodos da minha vida está a chegar ao fim mas vai ser preciso esperar antes de o ver: talvez a D. G. saiba explicar-me quanto tempo levam Hertz negativos a desvanecer-se. E que marcas deixam, como cicatrizam.

PS - Com a chuva regressa um velho dilema: é melhor regar pouco muitos jardins ou regar poucos correctamente?

21.4.23

Gastar dinheiro

Há uma maneira de gastar dinheiro digna, apaixonante, dionisíaca, catártica, ritualística, exorcizante, simultaneamente profilática e terapêutica, sacrificial: gastar dinheiro como um marinheiro bêbedo. E há a outra, desinteressante, estúpida, desgraciosa: gastar dinheiro como um marinheiro sóbrio.

Um bom marinheiro tenta gastar dinheiro apenas quando está bêbedo. Sóbrio, só compra coisas de que realmente necessita, como chapéus,  canetas de tinta permanente e vinho tinto.

ADENDA: um marinheiro bêbedo gasta dinheiro para provar que sobreviveu. Está vivo e pronto para a próxima. Venham mais cinco, qu'ainda não foi desta que fui desta para melhor. Nada a ver com a sobre(sub)vida e respectivos gastos mais planos do que o tampo desta mesa onde o copo de vinho espera, paciente, a minha atenção. 

20.4.23

Ir a bancas

Acontece muitas vezes: a fome da alma e a do corpo confundem-se, manifestam-se uma na outra. "Estou a morrer de fome", pensas-te e vais ao Roda Viva, comes metade do prato que o Chamba tão amorosamente preparou e está bom de morrer e chegas a meio e não consegues comer mais, porque quem estava com fome era a alma e não o corpo e ir ao Chamba é como ir a bancas (1) para a alma.

(1) - Ir a bancas: (náutico) meter combustível.

Harmonia

A parte boa do cansaço é um tipo chegar à cama e sentir que está a dissolver-se. Essa é a verdadeira harmonia: a do corpo com um bom colchão.

Nuvens, contornos

Os ingleses dizem que não há nuvem negra que não tenha um contorno a prata. Confirmo e acrescento: não há nuvem de prata que não tenha um contorno preto.

17.4.23

Diário de Bordos - Lisboa, 17-04-2023

No dia seguinte à noite em que tomo Flexiban para dormir fico mole, molengão, preguiçoso. Hoje foi um desses dias. O que me chateia mais é ter tomado a porcaria do comprimido por preguiça, simples preguiça: de suportar as dores do ombro direito (mas ao Flexiban acrescentei um Tramadol, maldita mandriice), preguiça de pensar na R., de pensar no P., de pensar tout court, preguiça de tudo. Depois de um dia extenuante a não fazer nada, quase nada - dois ou três telefonemas, um e-mail, duas micro-compras - peguei na bicicleta e vim por aí abaixo a pedalar o mais devagar possível, o estrictamente necessário para a manter na vertical, até ao Señor Ibérico, o meu espanhol favorito de Lisboa e de algumas partes de Espanha. Esta tortilha bate-se de igual para igual com as melhores de Palma, apesar de levar cebola, coisa que acho prescindível numa tortilha. É onde agora bebo um copo de tinto enquanto espero pelo M. e oiço dois gajos insuportáveis na mesa ao lado. Não sei se são brasileiros, portugueses ou espanhóis - o espanhol deles é fluente, isento de sotaque e quando falam português por vezes descambam para o brasileiro. Porém, seja qual for a língua que falam só dizem disparates. Dois machos alfa nos trinta e muitos, quarenta e poucos que me fazem sentir um esboço de uma sombra de um princípio de simpatia pelo feminismo. Felizmente foram-se embora pouco depois do M. chegar. 

Está calor, uma temperatura que acompanha bem a gentileza das pessoas (em geral, não especificamente dos dois primatas da mesa ao lado) e a moderação dos preços. Que mais há a prender-me em Lisboa? Os amigos, a cultura, as livrarias (estas são parte do item anterior), os sítios como o Señor Ibérico, as coisas que aqui vivi. Nada que não se encontre noutro lado qualquer? Há mais uma: olho para os prédios à minha volta e sei como são por dentro, apesar de nunca neles ter entrado.

Não sei. Esta é a expressão que mais me vem à mente nestes últimos tempos. Espero que ceda rapidamente o lugar a outra. Qual outra? Não sei.

15.4.23

Estultícias

Há pessoas com quem discutir (no sentido de conversar, debater ideias) é a mesma coisa do que explicar a um louco no manicómio que um funil na cabeça não faz dele um Napoleão. Começa por nos retorquir que não percebemos nada de funis e menos ainda de napoleões, continua a revelar-nos que na verdade há uma cabala escondida para descredibilizar os portadores de funis na cabeça e promover os que vêem nos regadores de plantas um meio de controlar a humanidade e submeter o mundo vegetal à escravidão e acabamos a ser acusados de estultofobia pela turba à volta.

14.4.23

O velho que escrevia cartas (a si próprio)

O homem escrevia cartas a si próprio, de tão só. Aplicava-se meticulosamente, com a língua ligeiramente mordida num canto da boca, caneta de tinta permanente já velhinha, mata-borrão no lado direito da escrivaninha, dicionário à esquerda. Detestava dar erros e não era adepto dos dicionários publicados na Internet. Contava-se tudo, o dia todo desde manhã à noite, incluindo as intermináveis insónias. Enfim, não tudo: não mencionava as idas à casa de banho, por exemplo; omitia igualmente os pensamentos concupiscentes que regularmente o assaltavam - e respectivas consequências -, o nome da mulher por quem estava apaixonado, se houvesse uma. Nem sempre era o caso. Todos os dias de manhã, logo a seguir ao pequeno-almoço, ia ao correio, comprava um selo e punha a carta da véspera no marco. Quando a recebia deixava-a fechada durante um ano. Só a abria na data do carimbo. Era fácil porque as tinha arrumadas por ordem de chegada. De vez em quando faltava uma: ou chegavam fora de ordem, ou as de sábado e domingo chegavam tarde, porque nem todos os fins-de-semana tinha paciência ou saúde para ir a estação de correios do aeroporto,  a única que permanecia aberta aos sábados e domingos. Os funcionários dos correios já o conheciam e sabiam que o destinatário das cartas era ele.

António - é este o nome por que o autor designa as personagens masculinas a quem não sabe que outro nome dar - não tem pretensões literárias. Limita-se a escrever factualmente: "hoje o meu dia começou com cereais, como quase todos ". "A senhora dos correios olhou para mim com um olhar que me pareceu de comiseração, mas não tenho a certeza se era ou não". "A seguir ao correio fui ao jardim olhar para o chafariz. A câmara reparou-o, finalmente. Não choveu, ao contrário da previsão. Saí com a gabardina beige e o chapéu castanho, o que aguenta melhor a água. Precauções inúteis: não caiu uma gota." "Para o almoço fiz frango com natas, o prato favorito da A. M. Depois fui dormir a sesta." Dias factuais, por assim dizer. Nada de «sonhos», entre aspas para mostrar o desprezo que os votava. Nada de divagações metafísicas sobre o sentido da vida, da morte ou do bife com batatas fritas que de vez em quando se oferecia, acompanhado por um bom tinto do Tua. Tão pouco expunha a si próprio as «opiniões», mas isso é porque não as tinha sobre quase nada. António pensava que só se deve formular uma opinião - um julgamento, que é a mesma coisa - sobre matérias que se conhecem bem.Como considerava que não sabia nada de quase tudo e pouco do resto, abstinha-se. De as exprimir, quero dizer. Fazê-las, fazia: tentativas de opinião, degraus de uma escada que sabia longa, escada sinuosa e ziguezagueante. As ideias, opiniões, «julgamentos» eram provisórios, sujeitos a retornos e mudanças de direcção, consoante a evolução dos seus conhecimentos. A certeza é uma padrão óptimo para medir a ignorância: quanto mais de uma, mais da outra.

Por isso as suas cartas eram factuais, descritivas: «hoje comi um ovo estrelado. Fi-lo como gosto quando tenho tempo, separando a clara da gema.»   

António tem setenta anos, vive de um pequeno pecúlio que foi juntando ao longo da sua vida, enquanto trabalhava como maquinista de comboios. Já teve um cão, mas agora vive sozinho. Não quer contactos nenhuns com o governo - excepto na área da saúde. Continua a usar o serviço público porque, diz, «é a única área da minha relação com o Estado em que fico a ganhar. Ao fim de uma vida de perdas, não faz mal a balança inclinar-se para o meu lado, por pouco que seja.»

........
Aldeia do Frados, 10/10/1995

«Caro António, 

Hoje tive ecos longínquos da B. e suas grilas histéricas. Parece-me tão longe, tudo isso. É como aqueles filmes que vimos há muito tempo, de que recordamos o título e alguns dos actores, o tema geral e mais nada. Como Providence ou Dersou Ouzala, lembras-te?» 

António começou a dirigir-se a si próprio, a nomear-se como se escrevesse a um amigo. Não o fez com propósito ou vontade explícita. Apareceu, simplesmente. Aliás, sentia que ao contrário de toda a gente que lia, ouvia ou via a maioria das coisas que lhe aconteciam eram fruto de uma falta de vontade mais do que do excesso dela.


 (Cont.)

13.4.23

Saloiices angélicas

A saloiice nacional é inextinguível. Vem de cima, como a chuva ou os anjos.

Pergunta

Será que esta mania de corrigirem livros se vai estender a quadros, esculturas (cf. David), filmes, etc.? 

Repugnâncias, coerências, certezas

Tudo começa com Cioran, claro: "Rien ne dessèche tant un esprit que sa répugnance à concevoir des idées obscures". Em lugar de "ideias obscuras" pôr "ideias incoerentes": Nada seca tanto um espírito como a sua repugnância em conceber ideias incoerentes. Ou incertezas: a desonestidade de um pensador mede-se pela quantidade de certezas que produz. ("La malhonnêteté d'un penseur se mesure à la somme d'idées précises qu'il avance".)

É preciso voltar às origens: Beckett e Cioran. Ambos nos dizem o mesmo: nada é seguro. Usa as ideias como um cachorro um osso de borracha. Duvida de tudo com a inevitabilidade de uma queda de água. Avança pelas ideias como os heróis de Beckett nas suas paisagens desoladas: devagar, coxeando, usando como bengala as incertezas. Mas avança. 

Je ne sais pas où je suis, je ne le saurai jamais, dans le silence on ne peut savoir, on doit juste avancer.” (Samuel Beckett, in L'Innomable)

12.4.23

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 12-04-2023

O meu café favorito em Genebra é o da livraria Payot nas Rues Basses. O café propriamente dito não é grande coisa. Mudaram dos cafés Carasso para uma coisa chamada Brew Society e saiu porcaria, claro: demasiado torrado, amargo, feito numa máquina de expresso perde-se toda a fineza e subtileza do café "betula bourbon" (entre aspas porque nunca tinha ouvido falar) colombiano. Mas... ainda não chegou o tempo em que se vai a um café para beber café. Vai-se para beber café, o que é diferente. 

Há outro café assim, o Chez Slatkine, na Vieille Ville. Mas o Slatkine é um editor, não é uma livraria e a maioria dos livros nas estantes são naturalmente os seus. Aqui há mais, muitas vezes mais. E a clientela é mais variada.

Escrevo, portanto e bebo café, leio o jornal, oiço meio distraído meio involuntária meio inevitavelmente a conversa das duas jovens senhoras à minha esquerda, ambas no início da trintena, uma com a filha de quatro cinco anos ao colo. Os diálogos entre as três desenrolam-se em francês mas quando se cingem à mãe - filha passam para o inglês. Na mesa a seguir dois senhores discutem um livro, mas estão demasiado longe para que eu possa perceber mais do que alguns farrapos de frases.

À minha direita está outra jovem mãe, esta com duas filhas. Uma mesa mais longe outro conjunto mãe/filha discute a compra de varios livros pela miúda (às quartas-feiras não há escola, donde tantos miúdos em idade escolar). O futuro da livraria Payot - e por extensão, das outras - parece promissor. Mesmo que um dos clientes seja um velho teso que olha para os livros como um eunuco para as mulheres nas montras de Amsterdão. 

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Lidar com os nossos preconceitos não é difícil: basta mantermos com eles um diálogo permanente. 

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Chemiserie Centrale: uma camisa - linda, por sinal - a duzentos e cinquenta francos suíços (um pouco mais em euros). Que tipo de trabalho é preciso ter para poder pagar isto? Conheço gente para quem este montante representa menos de um quarto de dia de trabalho - um sexto, para ser preciso. Mas pergunto-me se na verdade a única forma decente de pagar duzentos e cinquenta francos por uma camisa não será com dinheiro ou herdado ou roubado.  

Neologismos e cães de caça

No seu afã de lutar contra as discriminações e pela inclusão - também conhecido por palermice - o PS de uma pequena comuna de Genebra (o cantão, não a cidade) quer lutar contra a «glotofobia». Traduzo directamente de «glottophobie», que é, segundo a wikipédia, um neologismo. Significa discriminação baseada nos sotaques. O PS de Vernier teve de ir buscar um neologismo para juntar uma causa à sua longa lista delas (fui ver o site. É ilegível por causa da escrita inclusiva, outra aberração mas mais antiga). Nada disto seria muito importante: os PS de todo o mundo são feitos de moinhos de vento contra os quais lutam os valentes D. Quixotes que os compõem - pelo menos aqueles que mantêm a honestidade primeva. Nos outros, mais actualizados, são verbos de encher os bolsos, mas isso é outra história. 

Nada disso seria muito importante, dizia, se não ocorresse num país pequeno composto por vinte e seis países minúsculos que partilham três idiomas (de facto. Na propaganda oficial são quatro). Cada uma dessas línguas tem um sotaque diferente em cada vale (tão identitários que por vezes têm nomes: baseldeutsch ou züritüütsch, por exemplo, são duas das inúmeras variantes do schwizertütsh (ou switzerdeutsch). O alemão dos Appenzell Rhodes-Intérieures é diferente do dos Appenzell Rhodes-Extérieurs e por aí fora.

Acresce que não há provavelmente no mundo país no qual seja melhor, mais confortável, mais indiferente ser-se estrangeiro do que na Suíça. Pelo menos no meu mundo não há de certeza. Que o PS de uma aldeola do cantão de Genebra precise de levantar lebres (virtuais) com a sofreguidão de um cão de caça (real) demonstra simplesmente que não têm mais nada que fazer. O que é, reconheça-se, bom sinal. 

9.4.23

Preferências

As minhas estações do ano favoritas são quatro: a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno (por ordem cronológica).

8.4.23

Querido diário (Genebra, 08-04-2023)

Querido diário:

Aqui entre nós que ninguém nos ouve, deixa-me dizer-te que és um chato. É verdade que hoje me deste um dia porreiro e relativamente bem comportado (se não fosse o jantar teria sido perfeito); isso, porém, não chega. Por favor trata-me da porra da artrose no ombro direito e da dor de cabeça. Impede-me de passar na cozinha o tempo que hoje lá passei. E, sobretudo, deixa de me chatear com a confusão que te espera em Lisboa. Não há nada que por enquanto eu possa fazer e quando puder farei o que puder, nem mais nem menos.

Notações

Mau, medíocre, suficiente, bom, muito bom. Com excepção dos dois extremos, podia acrescentar-se a cada nota um mais ou um menos: medíocre mais, bom menos. Esta classificação era muito mais exacta e é de longe preferível à quantitativa. 

7.4.23

Como um paquete

Atravessar a noite como se atravessa uma rua muito movimentada. No meio há uma ilha para que os peões não tenham de correr toda a largura da via. Questão de segurança, dizem. Não sei quem regula os sinais, quando os há. Está verde: avança, dorme. Encarnado: pára. O sono abandonou-te. Tens de esperar na tal ilha, parada a meio da noite como um paquete encalhado numa praia.

Depois a maré sobe, tudo se repõe em movimento e o sono volta, abençoado seja.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 07-04-2023

Vim à estação fazer umas compras pequenas, nada de muito urgente. Muito provavelmente, "compras" não passa de um pretexto mal enjorcado para sair de casa, passear, andar a pé, ver gente, fazer uma fotografia ou duas. Acertei em todas, com uma pequena excepção: a Migros estava a abarrotar, de tal forma que me vim embora a meio. O que falta fica para amanhã, haverá menos gente de certeza e ao pé de casa.

Os genebrinos continuam a recusar a abertura de supermercados com horários alargados. Safam-se os do aeroporto e os da estação, que são território federal e por isso escapam à legislação cantonal. Mas como não proibiram as pessoas de fazer compras aos domingos, feriados, cedo de manhã ou tarde à noite (enfim, até às dez da noite) e ainda por cima os espaços são pequenos, e ainda por cima é dia de partida de férias, as lojas ficam rapidamente a parecer aquelas molhadas do rugby, com gente a empurrar em todas as direcções. 

Despachei-me e vim ao La Petite Reine beber um copo e acalmar as pulsações. É uma dessas tascas alternativas-ecolo-bobo-baba-cool (se ainda houvesse baba-cool, a espécie desapareceu do léxico e suspeito que não só) das Grottes, mesmo por trás da estação. A música é irritante, a decoração condizente, o vinho uma merda mas enfim, pelo menos está vazia. Além de que o nome é atraente: petite reine é uma das designações de bicicleta (num dos lados há um estacionamento com capacidade para meia dúzia de milhões delas e no outro uma loja de aluguer e reparação de burras, para além de «integração», outro «grottismo». Daí o nome, aposto).

O céu estava cinzento de feio. Um nimbus daqueles a poucos tons pantone do negro absoluto cobria-lhe um quarto. Entretanto choveu e a nuvem afastou-se, de maneira o caminho de regresso está mais ou menos aberto.

Tenho pela proa uma semana sozinho em casa, provavelmente com algumas ocasionais visitas de amigos que tenham ficado por cá durante as férias. Não sou crente nem praticante mas há dias em que me apetece cantar laudas a quem determina estes feriados e férias.

6.4.23

Bis repetita

Não gosto de me meter na vida dos outros. Nem na minha me meto.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 06-04-2023

Querido diário:

Ando a comer demasiados chocolates e doces. É como se quisesse compensar as dezenas de anos que passei sem tocar numa doçaria. Vou cortar e conto contigo para me ajudar. Como sabes, és o meu confidente para estas coisas importantes. Só a ti oiço, mais ninguém. Já agora, seria bom que me ajudasses a pôr ordem na carcaça, se não te custar muito. Hoje portou-se mal, logo desde manhã cedo. Conto contigo, querido diário. 

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Hoje vi o meu neto e dormi muito, duas coisas boas. Fiz as mesmas sestas que ele. Vi também como funciona o «teletrabalho» para uma jovem mãe com uma cria em casa. Posso estar enganado, mas não auguro muito futuro ao método. O mais provável é acontecer a mesma coisa que aconteceu nos anos noventa: meio mundo entusiasmado com a perspectiva de poder trabalhar em casa e em menos de dois anos ninguém falava no assunto.

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O suplício está quase a acabar. Quase? Esta maldita palavra não me larga. Devia ser banida, como fazem aqueles ingénuos que acreditam que mudando as palavras mudam o que lhes está subjacente.  Deixa de se dizer preto, ou maricas e o racismo desaparece e nunca mais ninguém goza com um gay. Deixa de se dizer quase e tudo acontecerá nos prazos. Eu, por exemplo, estou quase a ser feliz.

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Em Prangins fiz mais uma recolha de livros gratuitos: três na mercearia - aonde há sempre livros espantosamente bons - e um num «abrigo para livros» num jardim. Este último foi o La Cité de la Joie, de Dominique Lapierre. Lembro-me mal do livro, que li há muitos anos, mas achoque vai emparelhar bem com o Londres de Céline que comprei ontem na Recyclables. Quando conseguir ler de novo vai acontecer o mesmo que com os chocolates...

À atenção dos acordados

"Ao princípio era o Verbo e o Verbo era Deus".

Sem dúvida. Mas depois Deus apercebeu-se de que a palavra não era suficiente e criou o resto.

Sem o qual resto a palavra em breve se esgotaria e não serviria para nada. As palavras por si só não fazem nem mudam o mundo. 

4.4.23

Enter, fogueiras

Não sou historiador e posso estar enganado. Estou muitas vezes, felizmente. Mas assim que de repente me lembre, creio que nunca na história da humanidade teve a doxa tanta força, esteve tão imiscuída nos mais pequenos interstícios e recantos da sociedade como hoje. As labaredas não são físicas, é certo. São virtuais e fugazes, duram o tempo que um átomo leva a dar a volta à notícia. Em contrapartida, são aos milhares. Não há computador ou telefone no qual não se queime um pecador por dia, pelo menos. 

A Idade Média (a da mitologia, não a real. Essa foi muito diferente daquilo que se pensa) está de regresso. Espero que os meus netos revivam uma Renascença ou um novo século das luzes.  No nosso, há uma que se apaga cada vez que a tecla enter é premida num teclado.

3.4.23

Talvez bis

O post ia chamar-se Talvez e era um diálogo entre um esperançado e um céptico. Abria com uma referência a Eliot ("Talvez Abril deixe de ser o mês mais cruel") e fechava com uma dupla acusação:

"- Talvez te enganes.
- Talvez te enganes."

Apaguei-o por engano e não tenho vontade de o reconstituir. Penso no Herberto Hélder de Os comboios que vão para Antuérpia: "Já me disseram que a gente que nasce e vive ao pé do mar é mais pura. Penso que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confiança. É uma propriedade misteriosa do espírito, e por ela se aprende a nada esperar, a não desesperar de nada. Talvez seja isso a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode." Estou em terra e por isso não posso morrer verdadeiramente. Só me é permitida esta espécie de semi-morte (nos dias bons, que são poucos) ou semi-vida (nos outros, maus e muitos). Uma coisa, contudo, é certa: aprendi a não esperar e a não desesperar. Qualquer uma das duas personagens dialogantes do meu post (verdadeiramente morto, ele, pelo menos na sua forma escrita) pode ter razão e pode estar enganado. Talvez.

- Talvez Abril deixe de ser o mês mais cruel e passe a ser o da ressurreição.
- Há mais de um ano que vives de talvez e de quase, duas palavras que enganam muito.
- Sem talvez não encontrarias o caminho nem numa floresta que conheces bem.
- Talvez não põe comida na mesa, não paga rendas e não repara embarcações.

...

- Talvez te enganes.
- Talvez te enganes. 

"April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire ..."

(T. S. Eliot, The Waste Land)

(Dedico este post à MdP, uma daquelas pessoas perto de quem o desespero não passa de uma fingimento. )

2.4.23

Poupança

As pessoas que têm um mundo interior muito rico e variado poupam uma data de massa em aviões e hotéis, não e?

Outra vez

O meu corpo muda. Trai-me. Não o reconheço de uma semana para a seguinte. É como se estivesse a passar por uma segunda adolescência.