31.7.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2022

Abusei dos restos do indiano de ontem - sem frigorífico ficaram todo o dia ao calor - e agora sinto-me mal, claro. Enfim, não são apenas os restos do jantar de ontem que me põem neste estado. A Cantina está cheia de gente da Copa e como sempre estes gajos não sabem falar sem ser aos berros. (Em Portugal seria a mesma coisa. Acho que só na Suíça conseguiria estar agora, se não estiver muito calor lá também). Ao barulho e ao mau-estar junta-se o cheiro a fritos. Está na hora de embalar a trouxa e zarpar para outro lado. Há dias assim. Vá lá, pelo menos consegui ser produtivo, mesmo se não fiz tudo o que queria. O B. que faça, que é mais novo e mais bonito do que eu.

(Cont.)

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A solução é simples e está perto: bar Coto. Tem ar condicionado e gin tónico para matar as putas das bactérias do indiano. Das várias mudanças - evoluções, talvez, não? - que vejo em mim à medida que a antiguidade avança, a que mais me espanta é esta crescente intolerância ao calor. Como será com o frio - estará a ficar mais suportável?, como se a tolerância se movesse ao longo de uma régua, jogo de soma nula? Não sei. Tenho de esperar pelo inverno para ver. O mais provável é que não, que a intolerância ao frio aumente e que para a velhice tenha de me rodear de aparelhos de controle da temperatura, como os velhinhos, coitados.

O bar Coto é um bar metido a artistíco, «inspirado por Frida Kahlo» (aspas porque cito). Fica na praça Drassana, perto do insofrível e abominável Corner. De vez em quando venho cá, tenha ou não batérias para exterminar. Tanto a comida como os preços são decentes, a música é uma semi-merda mas pelo menos está baixinha. Decoração a condizer com o objectivo, empregado com duas queue-de-rat na barba (esta coisa de os empregados de bar pensarem que trabalham num circo é universal), mesa demasiado baixa. As sacanas das bactérias vão cedendo, lentamente. A carcaça é antiga mas sólida, graças a Deus. Mal passe o calor volto para o meu buraco no meu P. Amanhã vou dar uma volta pelas empresas, ver se encontro alguma coisa para Setembro - não sei como estará o P. e quero ter massa para passar um ou dois meses em Lisboa, em Genebra ou onde me der na gana. Umas coisas são certas: este Inverno vai ser passado em St. Martin ou na Martinica, vou aumentar a minha tarifa diária, ganhar ao totomilhões, aprender a gerir a massa, escrever um bestseller e transmitir tudo o que sei ao meu neto Leonardo, abençoado seja, coitado. (Enfim, algumas são mais certas do que outras.)

Pergunto ao rabicho de rato se o cozinheiro me pode fazer um spaghetti agliolio (as bactérias ainda não morreram todas). A resposta veio pouco depois. «Não: a comida aqui é toda congelada, não temos nada fresco.» Spaghetti, alho e azeite... Frida, cala-te.

É tempo de embalar a trouxa, etc.

(Cont.)

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Pareço um carteiro à frente de filas e filas de caixas do correio. Vai tirando as cartas do saco e atira-as ao acaso. Uma acaba por acertar: Casa Colombia, um restaurante perto do mercado, onde antigamente havia um indiano. Bom merengue, consegue o prodígio de me tirar desta modorra. Arepa con queso, um copo de vinho tinto fresco e hey, presto, as bactérias vão para o galheiro de vez.  Verdade seja dita: as caixas de correio não são apenas sítios onde comer hoje. Toda a minha vida é um conjunto delas, as cartas são as mais diversas possível. Algumas até vão vazias, aposto: as palavras não as encontraram a tempo. Buscam suportes, peles, desejos, planos, futuros. Andam por aí a esvoaçar como andorinhas tontas. Uma das cartas vai de certeza cair na caixa certa: a que vai dirigida ao beliche no meu P., não tarda. 

Esta cidade aos domingos é uma seca. Bom, não sei se é aos domingos ou se é quando um gajo está seco. A cidade não passa de um espelho; cheio de alemães, é certo e de suecas de mamas quase ao léu, afundadas em perfume, loiras de magoar a vista de quem as vê e vestidas de magoar o resto. Aqui nas imediações do mercado não há nem alemães nem suecas nem perfumes nem mamas: uma mesa com três latino-americanos, não oiço de onde e uma sujeita vestida «normalmente», cheio de aspas porque não sei o que quer (ou quero) dizer.

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O restaurante está praticamente vazio mas o homem deve estar sozinho e a merda da arepa demora uma eternidade. Há dias assim, parece que nos debatemos com um elástico que nos agarra à seca. Cada vez que nos afastamos dela, o elástico puxa-nos de volta.

30.7.22

Estou rijo

Em vez de dizer "estou velho" vou começar a dizer "estou antigo". Mais vale ser antigo do que ser velho.

Embala-me

Por vezes a água dá um empurrãozinho ao P. e ele responde com um suspiro. Há melhor canção de embalar? Talvez, mas eu não conheço.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-07-2022

O restaurante não é grande coisa e as doses são enormes. Levo para bordo o suficiente para um almoço, mas como não tenho fogão não sei se vou conseguir comer os restos. Amanhã verei, hoje tenho demasiado sono para sequer saber o significado de amanhã, restos e fogão. 

Adenda: também não tenho talheres. Vai ser uma refeição indiana à maneira.

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De manhã fui a Cala d'Or para o trabalho das duas próximas semanas e à tarde a Sa Calobra com a P., amiga da D. G. e o filho, doze anos. Num dia vi os dois lados da ilha, o plano e o outro. Em Sa Calobra comeram qualquer coisa, eu uma dose de melancia de que uma vespa apreciou o cheiro. O miúdo ficou paralisado de medo, a mãe levantou-se para lhe levar a pizza aonde ele se refugiou, foi um drama. Estamos a criar uma geração de totós, ainda mais totós do que os pais. (Espero que a minha filha leia isto.)

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Esta ilha podia ser a minha. 

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Tanto no lado da planície como no da Tramuntana as casas - de cor da paisagem, não contrastantes como no Alentejo - parece terem saído da terra. São casas orgânicas, por assim dizer. Isto dito, continuo a preferir o fascínio da serra. Não me canso daquela paisagem, daquela luz, do mar visto de cima, entre os ramos das árvores, perspectiva desassossegadora s'il en est.

A Tramuntana vai juntar-se a Bequia e à península de Burton na lista dos sítios onde quero morrer (e viver antes de tão funesta tragédia ocorrer).

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Entro no último ciclo da minha vida e pergunto-me quantas vidas conterá. Poucas, espero. Não quero viver de injecções e comprimidos. (Mas quero que o meu neto Leonardo me conheça, raio de contradição esta.)
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Hoje o P. deu-me uma má notícia, pela voz da sua proprietária e armadora. O Outro teve sorte: a Sua Via Crucis foi rápida.

29.7.22

Pensamento mágico

Já aqui contei esta história, provavelmente mais do que uma vez. Porém, não consigo deixar de pensar nela, nestes tempos de «pandemia»: no Zaire recebo a visita de dois manda-chuvas do CICR. Numa conversa qualquer menciono o pensamento mágico. 

- Não me estás a dizer que pensas que esta gente ainda está na fase do pensamento mágico, pois não?
- Porque não? Fala com qualquer socialista europeu e verás que eles também ainda ali estão.

Olé!

Os únicos países europeus que conheço nos quais a máscara ainda é obrigatória em alguns sítios são Portugal e Espanha. Temos tomates para lidar touros bravos, mas um vírus respiratório chega para nos aterrorizar.

Adenda: na Alemanha ainda são obrigatórias em alguns sítios, também.

Adenda: No aeroporto de Málaga. Um anúncio passa repetidamente nos altofalantes: «O uso de máscara não é obrigatório no aeroporto, mas é nos transportes - avião, autocarro e comboio.» E ainda há quem leve esta gente a sério. (No comboio para aqui aproximadamente metade dos passageiros não tinha máscara.)

Diário de Bordos - Málaga, Andaluzia, Espanha, 29-07-2022

As três semanas acabaram por ser só duas. Hallelujah. Aquele proprietário era intragável e o programa chato: trinta, quarenta milhas de navegação diária, noites nos portos. Felizmente o P. D. salvou o trabalho. Sem ele não sei se teria aguentado. Jantaradas e conversas interessantes com alguém que quer genuinamente aprender. Mais um cliente que se transforma em amigo. Espero sinceramente que a compra de um barco na Escandinávia se concretize e a viagem para Portugal idem.

Veio trazer-me a Málaga e como o avião é só às onze e meia da noite fiquei pelo centro. Esta cidade é encantadora. Aluguei uma bicicleta numa loja de holandeses e tenho andado a passear pelos jardins e pela cidade velha, agora transformada em centro turístico, claro. Não encontrei os sítios que conhecia, mas encontrei outros. O passado é um lugar difícil de viver. Acabei no Café Aranda, «fundado em 1932». Se a tabuleta não o dissesse ver-se-ia imediatamente: colunas, candeeiros, paredes, chão, tudo transpira art déco. O café é pequeno, situado entre duas ruas pouco frequentadas - foi isso que me trouxe aqui, de resto - e vai já para o roteiro.

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Em princípio, segunda-feira começo um charter de duas semanas, numa lancha a motor. Não percebi bem a dimensão, mas parece-me que anda pelos cinquenta e qualquer coisa. Uma família, tão pouco sei de onde. Pormenores só amanhã à tarde. Penso no sacana do meu corpo, esse traidor e chego à conclusão de que no fundo não posso queixar-me. A verdade é que eu também o maltrato um bocadinho, por muito bons que sejam os vinhos, os vermutes, os runs, os whiskies e tutti quanti que bebo e ou bebi. Lembro-me da resposta que dei à nutricionista, quando me perguntou como era a minha dieta habitual: «Hidratos de carbono, gorduras animais e álcool».  É natural que a carcaça reaja e me obrigue a adicionar comprimidos e mais comprimidos a esse menu, não é? Não, não é. Quero que a carcaça se lixe. O nascimento do meu neto Leonardo abalou um bocadinho os meus planos para a reforma - um cancro, se possível rápido - mas não o suficiente para dar ouvidos a esta massa de músculos, gordura e orgãos diversos que não me larga, vai para onde eu vou e de vez em quando se manifesta, chateando-me. (Verdade seja dita: manifestações que não chateiem não o são.)

Adenda: isto é uma flagrante mentira.

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Daqui a três semanas vejo o abalador de planos para a reforma. Vem a Palma passar três dias. Viver no passado é difícil, mas o futuro é muito chato, nunca mais chega.

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Adenda: mais um para o roteiro - Antigua Casa de Guardia, Alameda Principal, Málaga.

27.7.22

Diário de Bordos - Barbate, Andaluzia, Espanha, 27-07-2022

A cidade (?) não é muito interessante. Com a excepção de um pequeno bairro no que deve ser o antigo centro, é feia e maltratada. A seu favor tem, como tudo o que conheço na Andaluzia, a simpatia das pessoas e a qualidade da comida.

Estou de dieta forçada: a auto-medicação não funciona bem  comigo. Felizmente já descobri a causa - tenho andado a tomar três comprimidos por dia quando a dose correcta é um. Foram precisos quase quinze dias de agonia para me fazer ler a receita do médico. 

Isto é assim há anos e nem a memória das gigantescas diarreias na Martinica, causadas por um remédio para a gota  - que eu não tinha -, me faz perder esta estúpida mania.

Em Barbate não há menus em inglês, os restaurantes não são gourmet, ninguém fala uma palavra da lingua franca da actualidade e raramente se ouve falá-la na rua. Tento gravar isto tudo na memória porque sexta-feira volto para Palma. A Finlândia fica pra Setembro,  se ficar: nestas coisas como em todas só conta quando está lá dentro. (O meu obrigado aos futebolistas pela elegante expressão.)

25.7.22

O «progresso» visto de dentro

Quando me falam em progresso e na evolução do homem manifesto algum cepticismo, explicando que se tivèssenos mudado tanto quanto os «progressistas» pretendem não perceberíamos nada das tragédias gregas ou dos textos do filósofos romanos.

Hoje fiquei a saber que posso basear o meu cepticismo numa teoria que pensava morta e enterrada, o geocentrismo. Aparentemente, para «provar» que a Terra é plena é preciso - ou pelo menos útil - recorrer à ideia de que ela é o centro do Universo (não perguntem, não tenho muito tempo para palermices). Como muito bem notou um dos comentários, até os geocentristas medievais sabiam que a Terra é redonda.

O que me inquieta neste «progresso» é que não tarda estamos a queimar bruxas outra vez.

Diário de Bordos - Olhão, Algarve, Portugal, 25-07-2022

«Um galão com leite frio e uma torrada aparada com muita manteiga, por favoir.»  Cafés abertos às oito e meia da manhã. Tomadas em tudo quanto é lado. O pão é alentejano e excelente, a manteiga generosa. Não chegava a Portugal de barco e a trabalhar há muito tempo. Que prazer! 
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No horizonte uma viagem rápida à Finlândia, com a subsequente possibilidade de no Outono trazer o bote para Cascais. A ver vamos.

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Estas viagens  de pequena cabotagem são cansativas e chatas, mas têm pelo menos a vantagem de me fazer conhecer portos onde nunca estive: Rota, Mazagón, agora Olhão. Ontem fomos jantar a um restaurante muito bom, chamado Mau Mau Maria, que recomendo com veemência: a comida é excepcionalmente boa e o serviço idem. Não me lembro, por mais longe que vá no passado, de ser atendido com tanto profissionalismo e simpatia. (Isto para não mencionar a beleza de uma das empregadas, daquelas que devia pagar imposto.)

20.7.22

Diário de Bordos- La Linea, Andaluzia, Espanha, 20-07-2022

Muitas das minhas estadias em La Linea prolongam-se para lá do esperado. Esta é mais uma. Ontem mal saímos vimos que o piloto não estava a funcionar bem. P. (M., o dono) resolveu mesmo assim continuar os «testes» até que na cardinal da Punta Carnero não havia volta a dar-lhe e demos meia-volta. O problema era simples de resolver - uma história de conexões - e hoje lá vamos para Barbate. Se nada acontecer entretanto, claro. P. (D., o gajo porreiro) está desesperado: passa o tempo todo no porto, porque o outro P. é medroso e arranja sempre desculpas para não sair.

Até agora a arrogância do senhor ainda não se manifestou muito comigo. «Questão de tempo», diz-me P. D. «Quando ele te conhecer melhor vais ver.» Vou ver. Ontem descobrimos mais um bar de tapas porreiro e passeámos um pouco pela cidade, que sem ser bonita tem mais graça do que a maioria das cidades-satélite que conheço.

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Olho para a miúda e não sei se é uma prancha de surf se uma SUP.

19.7.22

Diário de Bordos - La Linea, Andaluzia, Espanha, 19-07-2022 / 2

Ir a um restaurante e pedir salada é como ir a um bordel e olhar para as cortinas. Pois bem: foi isso mesmo que me aconteceu hoje (encomendar salada, não ir ao bordel). Devo dizer que não é frequente: lembro-me bem da outra vez que encomendei uma salada para o almoço, há quase trinta anos. A experiência marcou-me de tal forma que não voltei a repeti-la. Hoje, porém, havia uma circunstância atenuante: a salada continha bacon (e fiambre, mas isso é irrelevante). De maneira lá comi uma salada e como daqui a trinta anos já cá não estou o risco de repetir a experiência é bastante reduzido. O molho não era grande coisa - uma dessas mistelas de pacote - mas o bacon veio em quantidade satisfatória e suficiente para que o «almoço» (aspas porque ironizo) não tenha sido uma catástrofe.

Ignoro a razão de tão estranho pedido. Ou se deve ao calor (pouco provável: a temperatura é de trinta e dois graus centígrados) ou ao exercício de secar-adegas de ontem (igualmente pouco provável: não é a primeira vez que seco uma adega e não estou assim tão ressacado). Enfim, seja por que razão tenha sido, encomendei uma salada e comi-a quase toda. Fica o evento registado, para não dizerem que não trato de mim.

A saída hoje abortou. A meio da baía apercebemo-nos todos de que o piloto não estava a funcionar e voltámos para trás. Hoje à noite previa uma ida ao Tamid, o restaurante judeu de Gibraltar, mas infelizmente fechou. Deve ter sucumbido «à Covid». Os f.d.p. que «geriram» a pandemia deviam ser fuzilados.. Logo se vê. Esta salada deixou-me exausto e só me apetece ir para bordo dormir. Vou dar mais meia hora ao senhor da B&G (dormir no salão tem inconvenientes destes: um gajo não pode sequer deitar-se quando quer).

A saída foi breve mas curiosa. P. (M., o dono do bote) é daqueles senhores que gosta imenso de tornar tudo muito complicado.

Diário de Bordos - La Linea, Andaluzia, Espanha, 19-07-2022

O estúpido do meu chapéu insiste em ficar em todo o lado menos onde eu o quero - a minha cabeça ou ao meu lado. Ontem ficou na Bodeguiya. Isto no dia seguinte a tê-lo recuperado de uma estadia de uma semana em Sa Calobra. Com um pouco de sorte, desta vez vai ser menos. Estou furioso com ele (comigo não vale a pena, nada há a fazer).
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Na minha longuíssima carreira de skipper tenho passado por várias situações engraçadas ou chatas ou pouco habituais ou especiais ou pouco banais ou por aí fora. Esta é uma delas. Não tenho tempo agora para contar os pormenores, mas tudo indica que daqui vão sair umas semanas interessantes. Ou então não saem semanas nenhumas, que a paciência anda escassa por esta banda.

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A noite de ontem na Bodeguiya ia sendo épica. O P. D. e eu não acabámos com a reserva de vinho da casa mas deve ter faltado pouco. O P. D. é o bom do filme. É encantador. O outro é funcionário superior da Comissão Europeia, arrogante (passe o pleonasmo) e - aparentemente - malcriado. Deve sofrer de síndroma da húbris, infecção recorrente lá para os lados dos andares mais altos de Berlaymont. E se calhar nos mais baixos também.

(Cont.)

17.7.22

Vida, amor

Em inglês isto explica-se melhor: Could I have lived differently? Could I have loved [you] otherwise? A resposta às duas perguntas é a mesma pela razão simples e inatacável de que as duas perguntas são uma só: não, não podia ter vivido nem ter[-te] amado de outra forma. As vidas são a soma daquilo que somos, queremos e daquilo que a vida nos oferece. Ou melhor: vende, que a vida não dá nada a ninguém. Vende. Na melhor das hipóteses, empresta. 

Não saí vencedor desse jogo, mas tão pouco saio perdedor. Estou no meio do pelotão, por assim dizer. Fiz o que pude, o que sabia e ao resto adaptei-me.

Espera, estou a falar da vida ou do amor?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-07-2022 / 2 (Ironia e outras coisas)

Pergunto-me se a relação complicada e tortuosa que os portugueses mantêm com a ironia não será consequência de sermos um povo triste e teso (isto assumindo que há uma relação entre portugueses e ironia, coisa que é pelo menos incerta). Pode argumentar-se que a ironia serve precisamente para enfrentar com elegância a tristeza e a falta de chuva. Sem dúvida. Porém, também a elegância não é apanágio dos tristes, dos respeitosos e muito menos dos invejosos. QED. Um povo que num segundo mandato dá a maioria absoluta a António Costa não merece a ironia.

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Acabei finalmente por recuperar o chapéu. Não consigo perceber como consigo deixar em todo o lado coisas de que gosto tanto,  nem como me ligo a coisas que sei vou perder, mais cedo ou mais tarde; e muito menos como me desapego tão depressa delas, uma vez perdidas. Refiro-me às coisas.

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Reparei a fuga de água que me impefia de tomar duche a bordo do P., provando assim que a) continuo com a graça e a agilidade elefantescas que sempre foram as minhas, b) cada vez tenho menos idade para isto e c) o P. vai mesmo precisar de trabalho a sério, ainda. Ai contrário do que queria, as cavernas não estão todas ligadas por boeiros e vai ser preciso ligá-las. Sabia que faltariam talvez uma ou duas,  mas como sempre no embate entre a realidade e o meu optimismo esta sai perdedor. Vasos comunicantes, caro. Deixa só começar a chover. Acessoriamente: para quando a beatificação da marca Kärcher, senhor papa Franciscos?

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O Corte Inglês não tem a marca de óculos que quero. Como sou teimoso, vou esperar pela resposta ao e-mail que lhes enviei a perguntar se e onde têm lojas físicas. A única coisa que compro antes de ver são livros.

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Entre o RCNP, onde está o P. e a praça de Espanha, onde fui esperar o  chapéu, fiz uma espécie de via sacra e parei em muitas capelinhas. A última sendo o La Rosa. Não me lembro de quando aquilo deixou de ser uma vermuteria porreira e passou a ser um lugar onde para entrar há que fazer bicha, pedir a assistência do supra-mencionado papa e sei lá que mais. O remédio para evitar tudo isso sendo ir cedo. As bravas são uma simples maravilha. O resto todo também, mas hoje fiquei-me pelas batatas - e não consegui acabá-las, com grande pena minha.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-07-2022

São duas e meia da tarde e a respectiva térmica está a entrar. Esta combinação de calor, vento e serotonina pós-prandial, mai-lo um ou dois copos de vinho branco e a perna esquerda da loira da mesa ao lado enchem-me de paz e amor. O dia não começou muito bem - fui a Soller para fazer uma fotografia e comer um croissant: o chapéu que ia recuperar ainda está em Sa Calobra - mas a sesta que se seguiu ao regresso a Palma e antecedeu o almoço na Cantina salvou-o.

Pelo menos até ver. O aluguer de uma bicicleta até amanhã também não correu muito bem, mas enfim. É nela que vou afrontar os trinta e quatro graus para ir ao Corte Inglês ver se têm a marca de óculos que quero. Se não tiverem, lá terei de a comprar na internet, loja execrável, abominável e desprezível. 

"Onde é que compraste isso?"
"Comprei em linha". (Ninguém diz "em linha". Dizem "online", que é ainda mais feio e precisa de itálico.)
"Em linha? Como os anzóis?"
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A alemoa da mesa ao lado e perna ao léu está visivelmente à caça. É vulgar e fisgou agora um segurança bimbo, o mais bimbo de todos os da marina. Fala espanhol e tem o cabelo pintado: será mesmo alemoa?

Não sei. Uma das vantagens do vinho - agora - é que me torna mais selectivo. Sublinho agora, claro, que o "toiro enraivecido" (aspas porque cito) morre lentamente na arena. Digo morre, não digo agoniza. Vai-se em paz, lenta e dignamente.

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A espanhã ou alemola levantou-se para fumar. Espero a conta para montar a bicicleta - a cada um o seu destino - e ir para a porcaria do Corte Inglês. O almoço custou-me doze euros mais do que devia porque o criado se enganou no pedido e não reclamei.

Tudo isto se dissolve nesta tépida sopa (tépida está para aí uns dez graus centígrados ao lado do adequado). Paciência. As flores das árvores na rua, o vento, os barcos à minha frente compensam isto tudo.

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Até agora, atingi pelo menos um dos objectivos do dia: não pensar. Aposto que vai continuar assim.

16.7.22

Viver à margem

De novo em Palma, de novo no meu P., de novo em casa. É uma cascata da qual é difícil de definir cada andar. 

O charter acabou bem, mas sem gorja. Não é inesperado. É só chato.

Amanhã vou a Soller buscar o chapéu que deixei em Sa Calobra. É bom começar o dia com um objectivo,  não é? Depois, tenho de comprar creme pós-queimadelas e sentar-me a não pensar. Talvez ir ver óculos de sol: os que comprei na Decathlon não valem mais do que aquilo que dei por eles: pouco.

Viver à margem será uma definição correcta para isto que vivo? Espero que sim. Se não for, não sei qual será.

15.7.22

Diário de Bordos - Cabrera, Baleares, Espanha, 15-06-2022

Cabrera está a abarrotar. Não me lembro de alguma vez ter visto isto assim. Está de tal forma que o xiringuito chamou reforços, os empregados sorriem, correm, sorriem de novo. A música é horrorosa, claro, mas estou-me nas tintas. A mágica - e os tintos de verano - funcionam. É bom ver isto assim e vou tentar lembrar-me desta frase para sempre, porque o dia chegará em que, inevitavelmente, terei vontade de reclamar contra esta «multidão» (entre aspas porque é um manifesto exagero). Está cheio, é tudo. Ouve-se falar inglês, alemão, francês, espanhol e de vez em quando a música melhora. Reclamar o tempo todo é muito cansativo; opto pela magia, que se sobrepõe a isto tudo. Aproveito e juro voltar cá um dia na Primavera ou no Outono. O dia cai, de momento ainda em câmara lenta: falta mais de uma hora para o pôr-do-sol. A luz já começa a arredondar-se, a térmica esvai-se até à chegada da da noite, o xiringuito continua a expandir-se em mesas pela «rua» fora. Os confinamentos foram uma merda em todos os sentidos incluindo - provavelmente, não sei, ainda é muito cedo - isto de terem atenuado a minha misantropia. Agorafobia tavez seja mais correcto. Seja o que for: cada vez que estou em sítios assim e a tentação de reclamar aparece, lembro-me de quando não havia gente em lado nenhum, tinha de me chatear de dois em dois minutos com alguém por causa das máscaras e não havia nada para comer (as tapas aqui são inesperadamente boas).

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Amanhã acaba o charter. Não é tarde nem é cedo: na verdade, este não foi dos piores. Nem dos melhores, de resto. Foi assim assim. O que não implica que não esteja contente. Tenho a noite de sábado, o dia de domingo e a manhã de segunda-feira por minha conta. Um luxo.

Amores e mesas de bilhar

Certos amores são assim, parecem mesas de bilhar, imóveis e por cima deles desliza o resto da vida, entrechocam-se os outros amores, as amizades, tudo.

14.7.22

Diário de Bordos - Porto Colom, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2022

Não se pode dizer que o cliente seja chato, que não é. Nem antipático, tão pouco. É só frio e forreta. Trabalha num banco de investimento e atribuo essas características a um stress profissional ou pessoal. O homem chegou stressado, isso é seguro. Agora já vai rindo um pouco mais. Vem com as filhas - três miúdas adoráveis entre os dezassete e os vinte e dois anos, aquilo foi de rajada - e ainda não ouvi a menor referência à mulher, ex-mulher ou mãe. Até ver, estão a gostar mas para mim tem sido um aborrecimento total. Sobretudo porque ele quer navegar, fazer manobras, "praticar". Clientes desses dão-me duas vezes mais trabalho e quatro mais aborrecimento. 

O próximo trabalho é mais apelativo: dois senhores que querem adquirir prática - eu diria "à-vontade" - na embarcação de um deles. Contrataram-me por três semanas agora e mais umas quantas em Setembro. Só preciso de encher duas semanas em Agosto para ter a agenda composta - e mesmo essas tudo indica que já o estão. A ver vamos, como dizia o ceguinho.

A verdade é que esta semana fez-me claramente ver que não aguentaria um Verão inteiro de charters. Quando os clientes são porreiros ainda vá que não vá, mas com malta desta nem pensar. Até há meia dúzia de anos tirava o pólo e nadava nas escalas. Deixei de o fazer, pelo menos de motu proprio. Desde então só o faço quando os clientes mo autorizam, explícita e claramente. (É preciso dizer que a maioria o faz - não se deixa um homem derreter dentro de uma camiseta quando todos os outros estão de tronco nu). A este, a questão visivelmente não lhe passa sequer pela cabeça. Resultado: não trouxe pólos que cheguem e estou na lavandaria à espera que a roupa seque. Isto é, no restaurante ao lado da lavandaria. Por sorte é o do Club Náutico, aparentemente um excelente sítio para comida local. Vou experimentar, mal a roupa esteja seca. Lulas recheadas com carne. Até hoje não vi este prato em lado nenhum. Aposto que é bom.

É. Excelente. Não se compara às nossas lulas recheadas - nada se lhes compara - mas são boas. Este restaurante vai entrar para o rol. Ou melhor: já entrou.

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O cliente decidiu que sabe pilotar dinghies e agora é ele quem o comanda. Estou-me nas tintas, verdade seja dita: o homem tem bom senso e os riscos são limitados.

O problema desta malta é pensar que "adquirir prática" é estar na roda do leme ou na manette do motor fora de borda. Não é. Ninguém pode aprender a manobrar ao leme antes de aprender na proa ou na popa a manobra dos cabos e perceber bem o que ali se passa. Isto implica um grande número de manobras, umas falhadas outras não. Estes degraus não se sobem dois a dois. Um a um e dando tempo e atenção a cada um deles.

Assim, é um engano. Deixo-o acreditar porque não vou muito à bola com ele, é tudo. Se fosse, explicar-lhe-ia isto tintim por tintim. Se não fosse de todo, não o deixaria fazer as manobras ao leme. Como está algures no meio, deixo-o enganar-se.

Há enganos piores.

11.7.22

Diário de Bordos - Sant Elm, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-07-2022

Isto tem se ser recordado para os anais: a miúda é picada por uma alforreca, preparo-lhe um copo de água quente, do tanque, no qual ela molha um pano para aplicar sobre a inflamação. Tem dezoito anos, talvez. A certa altura pergunta-me se aquela água é potável e digo-lhe que sim, claro. A água do tanque é potável. Vou ao cockpit, volto para dentro e vejo um pacote de chá dentro da água.

A irmã (quinze, dezasseis anos) pergunta-me porque é que não há corrente nas tomadas. Explico-lhe que só há duzentos e vinte a bordo quando estamos numa marina. Salto pormenores, eu sei. As baterias domésticas do bote estão mortas e mesmo que tivéssemos inversor não o ligaria. Pergunto-lhe se quer que lhe empreste o power bank e responde-me que não, não precisa do telefone para nada.

Não há razão para se perder a esperança. 

O curioso é o pai delas ser um gajo superstressado, trabalha num banco privado ou de investimento ou qualquer coisa no género e não larga o telefone vírgula  ele.

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O Pedro - ou melhor, um dos Pedros - do Es Raor começou por me convidat para jantar. Disse-lhe que não, obrigado. Preferia que ele me fizesse um desconto, estaria mais à vontade. Demorou cinco micro-segundos a aceder. Paguei pouco mais de metade do que deveria ter pago.

O curioso nesta história é que simpatizo bastante com ele: tem cara de playboy, sempre deve ter sido o puto mais esperto do bairro, faz-me lembrar meia dúzia de bonitões bem sucedidos que conheço. 

(A minha filha é mais bonita do que a dele.)

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Aviso à navegação: o cafe Tigys em Sant Elm não sabe o que é um affogato, serve-me um ersatz da coisa, com chantilly e não sabe servir rum.

Posso estar enganado, estou muitas vezes, mas não devo cá voltar assim tão cedo. Só vim porque os gelados estão fechados, o que demonstra que nem tudo é perfeito. Os gelados de Sant Elm são quase tão bons como os do Claudio.

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Se quisesse exagerar, diria que Sant Elm tem duas ruas. Uma com restaurantes e outra com menos restaurantes. Estaria talvez a exagerar, mas a descrição seria bastante correcta.

10.7.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-07-2022 / 2

O restaurante Sabor Criollo fica no princípio da Joan Miró (o princípio do lado do centro, não de Porto Pi). Não venho frequentemente para estes lados, mas se por qualquer razão tenho de o fazer paro aqui para bebet uma Aguila e eventualmente comer uma arepa ou uma empanada. Ambas são  excelentes (se bem prefira a arepa venezuelana à colombiana) e nem sempre têm Aguila. ¡Qué vaya! Bebe-se Polar e ou Club Colombia enquanto se pensa que o P. devia ter ar condicionado para as setas do Patrão. Com este calor, a simples ideia de lá entrar dá-me vertigens. Nem com ventoinhas, que ainda falta instalar.

Espero com anseio a hora de o ver pronto e a navegar, o meu P., parece uma lapa agarrada a este porto.

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Não havia bicha para entrar no La Rosa, graças à hora prematura a que tive a ideia de me desviar para ir ver (agora já está a habitual e mais do que justificada fila de quilómetros).

É a melhor vermuteria de Palma, de longe. Tem tapas magníficas, uma escolha de vermutes bastante decente e aquele ambiente de correria dos empregados, parece um filme em acelerado, de que fanto gosto. Acresce que apesar de andarem sempre a correr, os empregados são simpáticos e sorridentes, uma raridade em Palma. 

Só tem o defeito da porcaria da espera, ritual a que não cedo nem com uma pistola apontada. E do excesso de turistas, mas isso fica-se pelo Verão. No resto do ano são poucos (e não há bichas).

(Cont.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-07-2022

Perdi os óculos escuros, que tanta falta me fazem. De resto, não perdi mais nada. Cheguei inteiro a Palma. Deixei os sacos (poucos e pequenos, até para a Ryanair) e fui jantar.  

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Acordei sem dores de cabeça, o que prova ter o álcool sido consumido em doses razoáveis. Em contrapartida, a perda dos óculos aborrece-me mortalmente. Do vasto conjunto de defeitos que me definem, a distracção é um dos que mais detesto. Herdei-a do meu querido Pai, é certo; mas é igualmente certo de que a multipliquei e elevei a píncaros nunca antes vistos. Faço parte do grupo de pessoas que se não tivesse pescoço deixaria a cabeça em todo o lado.

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Ou seja: o dia em Palma ainda agora começou e já está bem cheio: pequeno-almoço na cantina (feito), fecho de contas do S. R. (feito), alugar uma bicicleta (a minha está longe de mais para um dia de uso), procurar uma WU, ir a bordo da mina para amanhã (chama-se NATHALIE, , é um nome bonito), procurar óculos escuros, encontrar-me com o B. R., do Passage Weather, um encontro há muito planeado e que o confinamento foi adiando.

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Reflexão do dia: se a humanidade fosse tão boa como queremos que seja, «populista» não seria usado pejorativamente. 

A vida, o ouro e os bitcoins

Pessoas que prescindem de viver para viver mais tempo estão a trocar ouro em barra por bitcoins: hoje parece muito, amanhã valerá nada.

9.7.22

Diário de Bordos - Málaga, Andaluzia, Espanha, 09-07-2022

Só há uma maneira decente de se estar num aeroporto: bêbedo. Isto é,  decentemente bêbedo, não a cair e menos ainda imperceptivelmente. Nada disso: correctamente bêbedo. Sabendo que se o está, mas capaz de o esconder aos outros.

(Nisto, tenho de agradecer ao meu querido Pai, que desde os catorze ou quinze anos me dizia: "Quem não sabe beber vinho bebe mijo" e de caminho me estragou todas as bebedeiras até aos trinta anos  no mínimo. Ainda por cima, citava mal: é água e não mijo, Pai.)

Ou seja: estou no aeroporto de Málaga, decentemente bêbedo (creio), à espera do avião que me levará para Palma, para o meu P., para um dia de folga.

Segunda recomeça o circo. Que sorte a minha! Sou palhaço no mais belo circo da galáxia. 

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Isto dito, o aeroporto de Málaga é bastante agradável. Tem luz, comida e bebida aos preços habituais dos aeroportos e não é grande.

(Ainda bem que gosto, daqui a uma semana cá estarei de novo.)

Pornografia praística

Não sei onde classificar as pessoas que vão à praia porque gostam do mar.

Haverá por aí um pornógrafo que me ajude?

Vasos comunicantes

No afã de transformar em líquido o líquido que ganhei. É aqui que a teoria dos vasos comunicantes intervém, não é?

Vagabundagem

Tenho mais horas em táxis do que em carros meus.

Alquimia líquida

Uma parte do salário foi-me paga em líquido e agora tenho uma dúvida fundamental, alquimica: como transformar líquido em líquido?

Bodeguita

Memorandum: o restaurante da malta em Puerto Banús chama-se Bodeguita. Como o de la Linea, com uma grafia diferente. 

PS - O que não impede um rum Barceló de custar sete euros, o que é um monte de líquido por pouco líquido. 

8.7.22

Diário de Bordos - Almerimar, Andaluzia, Espanha, 08-07-2022

Almerimar é uma marina de que um dos objectivos é fazer Vilamoura passar por um lugar sofisticado. Quando penso que há pessoas que pagam para vir aqui de férias a minha já reduzida fé no género humano encolhe ainda mais. Note-se: pensei o mesmo em Aguadulce, aqui ao lado. É porém forçoso reconhecer que isto é pior. Ando demasiado cansado para procurar sítios para comer. Hoje jantei numa esplanada cujo menu tenta reproduzir o dos pubs ingleses. Consegue, brilhantemente. A única diferença está nos preços: em Londres teria pago o triplo pelo ersatz de caril de Madras e pelas imperiais. O aspecto do proprietário - entre o horrível e o escabroso - seria idêntico e a empregada tão bonita como esta.

A certa altura do jantar perdi a noção de onde estava. Felizmente recuperei-a depressa. Deve ser influência do GPS do S. R., que por vezes também se esvai. Perde o sinal, diz. Ao princípio ainda me excitava um bocadinho, mas agora não: se perdeu o sinal, que o reencontre. Limito-me a reajustar o piloto e a esperar. Não tarda estamos sinalizados, ele e eu. No tal restaurante / pub inglês / tasca merdosa de hoje fiz a mesma coisa: esperei que a memória voltasse. Foi rápido: estás em Almerimar, o motor foi reparado (não era do motor, mas já lá vamos) e amanhã de manhã cedo largas para Banús, à noite apanhas um avião para Palma e segunda começas um charter. Mal esse serviço termine voltas para Málaga e vais navegar três semanas com dois senhores ingleses que precisam de um coach. (Repito isto para interiorizar a agenda que aí vem. Auto-informação, se quiserem.)

O motor de estibordo hoje resolveu pregar-me uma partida e não arrancou. É preciso dizer que até agora tudo tem corrido de uma forma extremamente pouco habitual: com a excepção dos apagões do GPS e do plástico na admissão de água de refrigeração do motor de bombordo não tenho tido o mais pequeno, minúsculo problema ou sintoma de. O que tão pouco é de espantar, de resto: os motores têm sessenta horas cada.

Quando se recusou a pegar, a minha primeira reacção foi pensar «pois, isto tem corrido bem de mais e agora pagas.» No fim, quem pagou foi o armador, não fui eu: o mecânico da Volvo - que não é mecânico, é engenheiro, fez questão de precisar - resolveu o assunto num par de horas: a bateria daquele motor está morta. Morreu jovem, coitada. Vou assim até Banús. O J. tem pessoal que chegue para tratar daquilo e muito mais.

Ou seja, se a Ryanair não anular o voo, amanhã está tudo bem no melhor dos mundos. (Por princípio não voo Ryanair, mas abro excepções. Esta justifica-se em cheio.)

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Encontrei um sítio porreiro para escrever: uma geladaria chamada Tentaciones, decorada ao estilo dos equivalentes norte-americanos e com música a condizer. Tem a enorme vantagem de estar vazia e de ter um café muito decentíssimo. Boa maneira de dizer adeus ao dia, não é?

7.7.22

Diário de Bordos - Cartagena, Comunidad Autónoma de Múrcia, Espanha, 07-07-2022

Se fosse preciso começar por dizer qualquer coisa, começaria por dizer que não é preciso dizer nada. Cheguei à praça de San Francisco mais morto do que vivo e não precisei sequer de beber muito para chegar a esse lamentável ponto. Nove horas de mar numa lancha de nove metros (é coincidência) derreiam qualquer um. Ainda por cima esfomeado e cheio de água - comprei seis garrafas de litro e meio em Palma e já só restam três, isto quantificado tem outra graça. O Yacht Port, de que tanto gosto, foi uma desilusão: os trâmites têm de ser feitos no exterior para «evitar contágios», as pessoas do escritório, normalmente tão simpáticas, todas de trombas, eu idem ibidem. Deixo as bancas para amanhã, não preciso de largar muito cedo, tenho seis horas de caminho até Almerimar. O objectivo sendo estar dia nove em Banús a tempo de apanhar um avião para Palma. 

Sonhar é permitido. Já desviar-me do rota inicial - o estado em que cheguei à praça de San Francisco em demanda da Vermuteria de la Charito - deve ser punido com a perda de pelo menos duzentos leitores. Pois bem, fui jantar ao Skillets, que fazia as melhores lulas à andaluza do Universo e arredores (não sei se ainda faz) - e pus-me a caminho para aqui (escrevo na dita vermuteria). Tem uma colecção de vermutes absolutamente inacreditável: não conheço um. Isto de se sair da «zona de conforto» (aspas porque troço) tem que se lhe diga. 

E não é só por causa dos vermutes. Os preços, para quem vem de Ibiza, deixam um homem honesto boquiaberto, a pensar «Mas estes gajos enganaram-se?» Aparentemente não: os preços são metade dos de Ibiza e setenta e cinco por cento dos de Palma, que já de si são setenta e cinco por cento, etc. No (longuíssimo) caminho para aqui precisei de combustível, entrei num bar bem apessoado porque anunciavam tinto de verano e hey, presto: dois euros, dois. Acho que as proporções acima estão erradas, mas pouco importa. O grande problema agora é acabar de beber o quase litro de água que inconscientemente encomendei, sem pensar na asneira que é misturar bebidas, como este excelente vermute que agora bebo ao mesmo tempo que bebo água, ínsipida por natureza. Ainda vejo, de vez em quando, a terra mexer - insisto, não é por causa do pouco que até agora bebi. É mesmo porque nove horas naquilo não lembra ao diabo e este vinga-se.

Bom, resumindo: estou na praça de San Francisco em Cartagena, cidade que adoro e na qual me sinto em casa, na vermuteria de la Charito a beber um vermute marca Povarelo e a pensar nas pessoas que não gostam do Verão, não conhecem Cartagena e pensam que vermute é Martini e vice-versa. E a perguntar-me se chamo um táxi ou vou a pé, questão existencial apesar de não parecer. Beber água dá-me cabo dos diferentes sistemas de que este meu corpo reticente e ingrato é composto.

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A travessia foi longa, chata, ruidosa mas incluiu um pouco de adrenalina: foi a maior distância que fiz até hoje no S. R.. Tinha, naturalmente, portos de refúgio para bancas se fosse preciso, mas cheguei aqui sem parar. Cento e cinquenta e quatro milhas, admitidamente a duas mil e novecentas rotações em vez das habituais três mil (o mar não dava para mais). Cheguei com o tanque a catorze por cento. Só não percebi ainda se estes catorze por cento são contados acima da margem da reserva ou se já estão incluídos nela.

A questão é puramente académica e releva dos meus esforços permanentes para entender a modernidade. O Raymarine dá um monte de informação. Agora, trata-se de a descodificar, desconstruir, dizia o outro. Compreender, digo eu.  Não tenciono repetir tal façanha (é nestas coisas que façanha e estupidez se cruzam, não é? Não, não é. Tenho de chegar rapidamente a Banús, ponto).

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Há duas coisas para as quais não tenho jeito: procurar trabalho e seduzir senhoras. Felizmente, os primeiros caem-me nos braços sem grandes esforços meus (duzentos e cinquenta anos a trabalhar nisto não conta como esforço). Já as segundas são mais renitentes e quando calha cairem fogem a sete pés.

Isto nada diz das virtudes relativas de uns e de outras. Diz apenas que a vida não é um tabuleiro de xadrez, é tudo.

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Mais tarde ou mais cedo vais ter de ir para bordo, Luís. Não vale a pena esconderes-te atrás de um copo de água, rapaz. Nem de uma garrafa, sequer. A água é viciante. Larga-a de mão. Acaba o vermute, paga e vai a pé para a marina. Assim diluis essa mistura de oxigénio e hidrogénio que há não sei quanto tempo te anda a envenenar.

Uma bebedeira de cansaço e água vale tanto como as outras. É mais cansativa, simplesmente.

6.7.22

Diário de Bordos - Santa Eulalia, Ibiza, Baleares, Espanha, 06-07-2022

A mulher tem uns setenta anos, não nasceu de certeza na valeta e grita que nem uma desalmada, não sei se por estar grossa se por ter snifado demasiado, hipótese que em Ibiza não deve ser descartada. Chateia-me um bocado porque me corta a concentração. Estou parado aqui por causa do vento, outra vez - creio que nunca mais direi na vida que no Verão o Mediterrâneo só tem térmicas. Estivesse eu à vela e força quatro a cinco na popa seria uma bonança, mas numa trotinete a motor nem pensar. Paciência. Talvez consiga largar amanhã à tarde. O lugar é detestável, não tem ponta de interesse e tem o raio da velha aos gritos, coisa que seria suficiente para defender a pena de morte, o aborto e a eutanásia tudo ao mesmo tempo.

Cancelo-a com McTyner, Freddie Hubbard, Joe Henderson et al. Nem tudo é mau, nesta cultura do cancelamento. 

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Entretanto as possibilidades de trabalho aparecem em catadupa - já vão em St. Martin no Inverno. Vou dizendo que sim a todas. Depois logo se vê. A taxa de sobrevivência destas coisas é sempre bastante baixa. É como nos hotéis e nos aviões: mais vale reservas a mais do que a menos. Dedicarei a próxima vida à leitura e à escrita, está decidido. O mundo não tem sítios detestáveis em quantidade suficiente para me fazer querer deixar esta vida e velhas aos gritos podem sempre ser canceladas com boa música e um par de auscultadores.

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A vista está uma merda, mas não o suficiente para perder uma semana de trabalho; a diabetes idem, mas não o suficiente para me pôr a beber menos; das dores nem falo porque me estou na stintas para elas. Passam com um comprimido de vez em quando. No fundo, só há uma coisa chata: é não estar no mar. O resto é conversa de encher blogues.

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Já aqui deixei duas palavras sobre a nota de Nuno Costa Santos ao RIO CUANZA, mas duas não chegam. Na verdade nem todo o léxico da alegria chega. Não escrevo para mim, apesar de não escrever porque quero. Cada palavra sai a ferros e dá-me tanto trabalho escrevê-las como depois cortar as que estão a mais. Ver esses dois esforços antagónicos reconhecidos enche-me de uma comoção difícil de explicar: continuo a não gostar do que escrevo e a ter vontade de mudar tudo, mas sou o pior auto-crítico do mundo e não me ligo muita importância. Daí talvez a que dou à opinião de outros. Sobretudo quando «outros» são o Nuno Costa Santos.

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A chefe da recepção da marina de Santa Eulalia é uma alemoa gorda, feia e com a flexibilidade de uma barra de aço inox de doze (centímetros). Hoje tive mais uma manifestação desse lendária capacidade de adaptação. A história é irrelevante, semelhante a tantas outras. O que me espanta é outra coisa: como é que uma pessoa para quem a expressão psico-rígida foi criada trabalha numa marina, cuja essência é justamente a mudança? Alguém com cabeça me contrataria para conduzir autocarros?

«Sem palha»

Nuno Costa Santos escreveu no Observador uma pequena nota sobre o M/V RIO CUANZA na qual diz, a certa altura, que eu escrevo «sem palha». É das coisas que mais gostei de ler sobre a minha escrita: «sem palha». É das coisas que mais me encoraja a continuar. 

5.7.22

Diário de Bordos - Santa Eulalia, Ibiza, Baleares, Espanha, 05-07-2022

É prerciso começar por dizer que tenho uma embirração de estima com Ibiza. É uma ilha linda, estragada pelas linhas que não são de comboio que por aqui se consomem e com preços aberrantes porque as pessoas que cá vêm gostam de pagar preços elevados. Eu não gosto e acho que nove euros por um affogato al amaretto só não é roubo porque ninguém me obriga a encomendá-lo. Nem eu, sequer. Mas o sacana do bife com pimenta verde estava tão bom, o vinho tinto é tão «acessível» (aspas porque relativizo) que decido ceder à chantagem.

Percebo porque custa nove euros: o gelado - podre de bom, ma parole - vem numa taça, o café numa cafeteira à parte (já com o amaretto) e a argentina que me tem desenrascado o jantar serve-o sobre a mistura de baunilha e chocolate. Estou para sempre grato ao Claudio, que me ensinou o que é um affogato e à pizzaria Amore, na marina de Santa Eulalia, por me mostrar como se pode sofisticar uma coisa que começa por ter um nome horrível e não passa de uma bola de gelado afogada em café. O facto de a dita argentina ser um monumento à evolução - para além de ser a única empregada eficaz, o que não estraga nada - é irrelevante, claro.

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A viagem foi chata. Perdi três defensas, por culpa irrevigável e indiscutivelmente minha e tive um sobreaquecimento no motor de bombordo. Plástico na admissão de água de arrefecimento. Onde anda o Miguel Lacerda quando precisamos dele? (Isto é só para dar graxa, Miguel. Tirei o plástico em cinco minutos, sem óculos nem barbatans. Só um cabo amarrado à cintura, não fosse o bote dar-me uma marretada na cabeça.)

A minha embirração com Ibiza tem agora uma excelente oportunidade de crescer um bocadinho, porque antes de quinta à tarde não saio nem a ferros.

A menos que haja um milagre, claro. Ou que as alterações climáticas façam uma pausa. De tanto mudarem devem estar tão exaustas como eu.

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Fui contratado para trabalhar (creio que) duas semanas num veleiro baseado em Gibraltar. Ainda não tenho pormenores: sei a data de começo e quanto serei pago por dia. O resto ficou para amanhã, por comum acordo entre mim e o senhor que me contratou. Ele porque está num jantar com amigos e eu porque estou exausto e não me apetece falar de trabalho depois de um bife de meio metro de altura com pimenta verde e de um affogato al amaretto com classe. Cheio de classe, diria mesmo, se isso fossem coisas das quais um cavalheiro pode falar sozinho.

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A conta vai chegar e vou como sempre torcer-me para saber se corto algo e se sim, quanto. É sempre a mesma coisa. De um lado um gajo a dizer-me para não abusar, do outro uma gaja (suponho) a perguntar-me porque hei-de fazer favores a gajos que ganham numa semana o que eu ganho em dez anos. (O debate é académico. Acaba sempre com o gajo a ganhar e a gaja a ser mandada calar com um «shiu!» irrebatível.) Nasci D. Quixote sem Sancho, só com pança e assim continuarei.

A conta chegou e enganei-me nos cálculos: trinta euros menos do que esperava. Perguntei a um gajo da marina onde comer, ele indicou-me isto e pronto, engano-me. O Rocinante vai dar saltos de contente, imagino. Já eu vou dormir, não sei se antes se depois de um duche. Amanhã tenho o dia todo, com um raio. E ainda tenho a cama por fazer, exercício não despiciendo.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-07-2022

Bom, apaga-se tudo e recomeça-se. Fui jantar ao bar Cuba por uma razão simples: a bicicleta recusou-se terminantemente a levar-me mais longe. A refeição começou bem e wu lancei-me em altos voos teóricos sobte istr de ontem ter jantado numa tasca, estes dois dias ter almoçado em dois dos melhores restaurantes da ilha, hoje estar a habituar-me a um sítio bom como me habituo rapidamente a automóveis automáticos.  Tudo isto enquanto discutia dois trabalhos que à partida me parecem impecáveis.

Depois chegou a entropia. Chega sempre, eu sei, só que aqui foi rápido de mais. Comecei a rever todas as elaborações teoricas da fase anterior e a tecer considerações sobre a influência do contexto:  um momento estava num restaurante porreiro,no momento seguinte numa espelunca pedante, pretensiosa, barulhenta e tasca.

Chego cá  fora e descubro que me esqueci da chave do cadeado. Se tivesse ido ao Antiquari, hipótese 

Pedi a conta e pus-me na alheta, apenas

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Adormeci a meio. Não é coisa que aconteça ou tenha acontecido frequentemente, mas mentiria se dissesse que foi a primeira vez. 

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Última saída com Y. e S. Se todos os clientes fossem assim, não haveria forma alguma de chamar trabalho a isto. Nem com cinquenta dias seguidos a treze horas cada. Deixou-me uma gorja cujo valor ainda não calculei mas já sei que ou vai para o pódio ou andará lá perto. É a minha forma favorita de avaliar o apreço dos clientes (excepto quando estes são franceses, claro. Aí há que acreditar no que dizem e não no que fazem).

Venho gastar uma parte dela numa pequena dose de ibérico no Xisco e num orujo na Patrícia, que substituiu o Aurélio no lugar de encarregada do Maños. Enfim, resumo. Comi umas amêijoas, etc. A cozinheira é a mesma. 

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Daqui a uma hora largo para Ibiza. Tenho finalmente aquilo a que há tanto tempo aspiro : três ou quatro dias sozinho no mar (paro à noite, é certo, mas isso não conta).

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Pequena história para explicar como são os maiorquinos.

Venho ao Xisco, explico-lhe que me vou embora daqui a uma hora e quero o melhor presunto que ele tem (é para isso que servem as gorjas). Acompanho com um excelente vinho local, encontro um senhor que gosta de touradas e conhece o Alentejo melhor do que eu, bebo um café, peço a conta.

Adivinhem quanto foi.

3.7.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-07-2022

O dia começou às oito e quarenta e cinco da manhã e terminou às nove e quarenta e cinco da noite. (Gosto desta coincidência dos minutos, facilita as contas a quem as quiser fazer.) Terminou não é bem o verbo: foi deixado, abandonado, fugido. Amanhã ainda tenho de fazer a limpeza do interior. Graças a Deus o bote é minúsculo, aquilo faz-se num instante. Fico sempre comovido com as pessoas que ao ver as fotografias dos barcos ou dos sítios por onde passo me invejam o trabalho. Se soubessem o que vem depois ou atrás dessas fotografias pensariam decerto duas vezes.

Fico comovido e ao mesmo tempo reconheço-lhes a razão: até eu invejo o meu trabalho e conheço-o do direito e do avesso.

Começámos por fundear em Es Trenc, dali fomos almoçar ao Playa, en Colonia de San Jordi - para mim um dos melhores restaurantes da ilha - e depois a senhora (jovem e mais bonita do que devia ser permitido na embarcação de um pobre capitão solitário e longe de casa) qui ir ver as calas da costa leste. Parámos em Cala Figueras, que é um simples encanto. O regresso foi feito sem paragens nem desvios: duas horas. 

Amanhã o programa é Sant Elm, Es Raor e um jantar a bordo feito pela supra mencionada jovem. Que além de ser bela e jovem - duas coisas de que não é culpada - é adorável, simpática, nada a ver com a trophy wife habitual. Como não invejar-me o labor?

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Como não invejar-me, sobretudo, um dia em que almoço peixe-galo grelhado e uma paella num restaurante clássico, sólido, onde não preciso sequer de pedir talheres de peixe e janto no Cric & Croc (designação espanhola do Bucha e Estica) uma tasca cujos dois principais atractivos são as arepas e os preços, por ordem inversa. 

Vim muitas vezes aqui, durante o confinamento, o homem deixava-me comer cá dentro, escondido num canto. Tenho uma indescritível raiva aos filhos da mãe do futuro que se vão fartar de rir à custa das «medidas». Se tivessem sido obrigados a vivê-las rir-se-iam menos. 

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E por hoje é tudo, parece-me. Não é muito, mas é o que há. Dias e famílias felizes têm isto em comum. Não é só às famílias que a felicidade limita a narrativa.

2.7.22

Outra vez? Diário de Bordos, etc.

Pouco passa das dez da noite e o 7 Machos está a rebentar. A Lina e o Johnson saúdam-me efusiva e rapidamente: têm demasiado trabalho. Já eu, como sempre, estendo-me. Mais olhos do que barriga. Não consigo acabar os nachos que o Johnson fez picantes, como sabe que eu gosto; nem sequer a margarita. Isto inquieta-me: já me aconteceu não acabar a segunda ou terceira. Mas a primeira? A primeira? Corpo estúpido e ingrato. Deixaste de me acompanhar? 

Cont.

A Lina fez-me um desconto. Disse que é "o desconto da família". Já hoje à tarde o Xisco não me cobrou as hierbas que lá bebi depois do absurdo almoço no Daruma. Estou exausto: a ausência de sesta faz-se sentir. Cada vez suporto menos este corpo idiota que responde com cansaço a estímulos destes.

O P. geme por todas ss amarras. Estão mais secas do que as partes íntimas de uma bruxa. Ele que não pense que vou sair do beliche e regá-las ou enchê-las de detergente. A única coisa que me apetece agora é dormir e mesmo isso não sei se conseguirei. O meu corpo é um parvalhão. Um eufemismo para "nuvem de fumo".

A dor no ombro direito voltou ao ataque, com energia redobrada. Ainda bem que não me chamo Van Gogh. Ou será antes: por que raio de carga de água não me chamo Van Gogh? Um ombro - direito, ainda por cima - e uma orelha (diteita também,  se não me engano) não se equivalem.

Amanhã bebo água outra vez. Parece que faz bem e tudo. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-07-2022 / 2

A hora da sesta aproxima-se como o exército romano no Jesus Christ Superstar. Avassaladora. Uma avalanche de sono induzido. Os clientes hoje já não aparecem de certeza e Palma desvanece-se neste ar condicionado, nesta ausência de ruído - enquanto me lembrar da Cantina ontem à tarde escolherei muito atentamente as mesas para escrever - e na pouca distância que me separa do bote. Agora estará decerto mais fresco. Acho indecente o que me apaixonei por aquele monte de kevlar e carbono.

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Às vezes penso nos empregos normais, aqueles que têm chefes, horários, um lugar fixo para se trabalhar. É o equivalente em mim de um xuto de heroína num toxicómano, suponho.

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Nachos no 7 Machos. Às vezes, descobrir onde se vai jantar é como descobrir o caminho maritímo para a Índia.

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O meu corpo é um permantente campo de batalha entre a vida e a diabetes. De certa forma compreendo: o espaço daquela é bem mais agradável. Só não percebo porque quer destruí-lo. É como a Rússia e a Ucrânia ou aqueles homesn que se casam com uma mulher para a mudar. Tanto eu como esse corpo campo de batalha ficaríamos bastante satisfeitos se diabetes e vida fossem cada uma para o seu lado do ringue e nos deixassem em paz.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-07-2022

Por favor: não digam a ninguém que em vez de ir dormir a sesta vim beber gins tónicos ao bar Cuba. É um triplo pecado mortal, um triplo salto mortal: não dormi a sesta, vim beber gins tónicos bem feitos e - este sim, é o umbigo do inferno - parei aqui para ter ar condicionado, bom serviço e um bar quase vazio.  Estas três condições encontram-se facilmente em combinações de duas. Juntas são poucos os sítios e a verdade é que estava a passar-lhe à frente (o guiador da bicicleta desviou-se um bocadinho para a direita, mas isso foi ele, não eu) e a ideia de me meter no forno que é o meu P. à tarde tirou-me o sono pelas próximas quarenta sestas. O bar Cuba é um sítio de yachties, um patamar acima dos yachties do Corner Bar. Aqui só vêm os que não precisam de procurar trabalhos e já gastaram o que tinham a gastar em cocaína. É raríssimo cá vir. Espero vivamente que o preconceito que tenho contra este lugar não se deixe vencer pelo bem que agora aqui me sinto.
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Os clientes são simpatiquíssimos, como o J. me havia dito. Um casal de marroquinos penso que relativamente jovem (pelo menos ela. Deve ser mais nova do que a minha filha). Mandei-os passear para a Tramuntana, isto hoje não estava para saídas. Amanhã levo-os a Es Trenc, segunda a San Telmo, terça de manhã ficamo-nos por Ses Isletes e terça à tarde vão-se embora. Acredito piamente que há trabalhos melhores do que o meu, mas que assim de repente me ocorra, só num bordel, onde eu não trabalharia nem por metade do ouro do mundo. Querem discutir? Dêem-me a outra metade e discutimos. 

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Almocei no Daruma, no mercado. O gajo antecipou a inflação que está para vir. Enquanto me lembrar disto, fico-me pelos vermutes, que aumentaram pouco. Verdade que o polvo à galega continua um dos melhores de Palma. Infelizmente, tenho horror a oportunistas, mesmo que depois me suscitem vontade de vir ao bar Cuba beber gins tónicos como se não houvesse amanhã ou clientes (esperemos que sejam a mesma coisa).

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Enfim, seja como for já é hora de enfrentar o mundo exterior. Um gin para o caminho e vamos, a burra e eu nela montado. A bordo do meu P. tenho algum trabalho (arrumação, nada de sério), o que justifica um gin para o caminho. Saideira, chama-lhe no Brasil. Doula, chamar-lhe-ia eu aqui, se pudesse. Uma coisa é certa: aprendi a beber um número ímpar de bebidas, desobedecendo assim aos conselhos do meu Pai. Emancipação, é o que é. 

Como será esta vida, quando já não tiver esta vida?

1.7.22

Livros, beijos

Não comprar livros com o pretexto de que ainda se tem muitos para ler é como não dar um beijo à mulhet que se ama porque já se deram bastantes. 

Um livro é um beijo que se dá à vida, lido ou por ler.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2022

Venho à Bodega Belver beber um palo. Garrot, claro. É o mais suave deles todos. Não sei o nome do dono. Nunca (salvo uma vez) o vi sequer sorrir. A Bodega Belver é um dos locais que resiste tenazmente ao cilindro igualador e esmagador da modernidade. Na porta tinha um aviso: "Não há tapas". Agora tiraram-no, mas suponho que continua a não haver. Só fazem pa amb oli (pronuncia-se pamboli, uma espécie de semi-sanduíche de que não sou grande adepto). O Garrot sabe-me bem, o sítio está praticamente vazio, mas vou-me embora rapidamente: tanto o dono como o empregado estão de máscara. Nenhum deles sorri, é verdade, são maiorquinos até à décima geração antes deles, mas já não aguento a estupidez.  

Refiro-me a esta estupidez, note-se. Deve haver talhões ou divisões no cérebro das pessoas, uma espécie de tabuleiro de xadrez mas mais irregular, com quadrados inteligentes e quadrados estúpidos. A Covid não é um teste de inteligência «geral», por assim dizer. Aquilo escolhe uns talhões na massa cinzenta, engole sinapses, neurónios, neuro-transmissores, receptores e tudo aquilo que sustenta o raciocínio e pronto. Como não há incentivos para não expor esta forma particular de estupidez, ela anda aí pelas ruas, sem vergonha. 

Questão de tempo, eu sei. Contudo, agora com o número de «casos» e (sem aspas) de hospitalizações a aumentar vertiginosa (mas não «exponencialmente», palavra que estranhamente desapareceu do léxico mediático), duvido muito que os quadrados com máscara cedam terreno aos outros.

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Os casos e as hospitalizações aumentam e o governo balear (presidido por uma senhora do clube Sanchéz & Costa) reage louvavelmente. É estranho e contraditório, eu sei, mas é assim. Em primeiro lugar, a senhora recusa novas «medidas», com o argumento de que «a epidemia está controlada e as pessoas têm direito à normalidade"; em segundo, aconselha - com uma timidez digna de nota - «quem só teve duas doses de vacina a tomar a terceira». Como se ela própria não acreditasse muito naquilo.

Claro que para chegar aqui provocou dois anos de miséria. Como diz o meu cliente (que afinal só verei amanhã, porque perdeu o avião em Barcelona e devem estar cansados, ele e a mulher): restons positifs.

Se até uma socialista (de quem as más línguas não dizem coisas muito boas, ao contrário do que é habitual) reconhece, mais coisa menos coisa, que se enganou, há lugar para dar uma cadeira à esperança. Confortável, não vá o diabo tecê-las.

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Esta cidade enche-me de uma emoção que por vezes sente necessidade de extravasar, como se a solidão fosse um génio numa lâmpada que Palma esfregou.

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Música no Divino, onde desaguei - ou a burra me descarregou, farta de indecisões, vá lá saber-se. Blues com um desses orgãos eléctricos e um sax. Pouco a oiço, verdade seja dita. Concentro-me na escrita e no vinho, agora branco - acabei o jantar com uns boquerones fritos que o Roberto faz maravilhosamente, deve fritá-los com um cronómetro numa mão e um termómetro na outra. Aprecio muito esta forma de comer: um pouco disto, outro daquilo, «um bom marinheiro toca em todos os portos», dizia o meu Pai com um duplo sentido que quase toda a gente percebia. A minha Mãe estava incluída nesse quase, mas já estava habituada. Se há coisa que aprendi com os meus pais - não há coisa, há milhares de coisas - ... Não interessa.

Passemos ao presente: a música é excelente, o jantar também (arancini, carpaccio de bresaola, boquerones fritos), os vinhos não ficam atrás de nada disto. Esta mania que a memória tem de que é a água tónica no gin do presente deve acabar.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-07-2022

Paciente, a Órbita espera-me no interior do Es 20 de Bonaire enquanto bebo um vermute e como umas almôndegas. O Es 20 vende produtos caseiros, artesanais, "ecológicos" (aspas porque troço) e oferece simpatia, sorrisos e competência. Estes três ultimos são raros nestas bandas. Os primeiros não, mas em lado nenhum atingem o elevado nível de qualidade deste local.

Que a bicicleta entre - e espere - na loja não tem nada de raro. Raro é o contrário,  não poder entrar nas lojas. Exceptuando os supermercados e os cafés, entram em todo o lado.

Palma-a-suave gosta de mim e eu dela. Fomos feitos para nos entender.

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Os clientes chegam às quatro da tarde. Ainda não decidiram se vão a bordo ou se vão directamente para o hotel. Estará definitivamente na altura de trocar a energia eólica pelos combustíveis fósseis? Cada vez mais me parece que sim.

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Hoje foi de novo dia de mudanças. Enquanto não me vir livre destas caixas - mais de metade das quais só merece ir para o lixo - não acredito que o meu P. do meu coração esteja pronto.