23.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 23-11-2015

A razão que tinha para ir a Lisboa antes de Atenas deixou de ser. O mais provável é ir de St. Maarten para a Grécia com uma escala em Amsterdam. Não sei. Ainda não saí de Porto Antonio.

Saio amanhã. Cada vez suporto pior esta palavra, amanhã. E noutras circunstâncias gosto tanto dela. Amanhã. A palavra não é particularmente bonita, mas o que representa é. Excepto quando se declina como consequência de adiar algo que já devia ter acontecido.

Amanhã largo. Talvez tenha de aportar na República Dominicana, porque a comida aqui é péssima e cara. Espero que não.

Se me apanho em St. Maarten não acredito.

Amanhã.

........
Matthew ainda não se decidiu. Está à espera de um mail da Alfândega a garantir-lhe que não vende o barco.

Quanto a mim bem podia esperar que a Marilyn Monroe ressuscitasse um dia na cama ao lado dele, vestida com Channel 5.

Teria mais sorte.

.........
As previsões continuam boas. A ver se se confirmam. Espero que sim. Estou com tanta vontade de me ir embora que só não sairia se me aparecesse um ciclone.

Porém não posso dizer que não gostei da Jamaica. Gostei. Mas enquanto me lembrar de tudo o que por aqui passei não terei muita vontade de voltar.

.........
Vou largar sem conhecer a decisão da Alfândega sobre a multa. Acho que me devia juntar ao Matthew na sua espera pela Marilyn, caso ele adira à minha sugestão. Se não aderir, lamento. Será para mim só.

22.11.15

Perspectivas

Hoje refiz as conexões eléctricas das bombas dos duches, baldeei o convés, limpei as ferramentas e arrumei o interior. O S. M. está pronto a largar, tão pronto como eu. Daqui a pouco o Bernard está aí. Amanhã compro os mantimentos, faço a clearance de saída e ou saio à tarde ou na terça de manhã cedo. As previsões meteorológicas são boas. O barco não está nas condições que eu gostaria mas não está muito longe. O capital de merdas não está gasto - nunca está - mas não anda muito longe do fim. Dia um ou dois de Dezembro estou no Lagoonies a beber um rum punch  e a comprar um bilhete para Lisboa.

Já tive piores perspectivas.

Diálogo curto

Um gajo rico diz a um teso Vou fazer de ti um homem rico. O teso ouve e responde delicadamente Eu já tentei e falhei.

Festa, vida

Penso: É tão bom estar vivo, não é? E logo a seguir: É tão bom viver, não é? Duas ideias diferentes num relâmpago. Dia de festa.

Qualidades breves

Estar bêbedo não é um defeito. É uma qualidade temporária.

Futuro, medo

Não ter medo do futuro será inconsciência, ingenuidade, arrogância ou simples e básico realismo?

Invariavelmente

Por vezes perguntam-me "Mas não tens medo do futuro?" Invariavelmente respondo "Não ".

Por que raio de carga de água invariavelmente tem razão?

21.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 21-11-2015

Os nimbus voltaram e com eles a chuva,  claro. Mas não são suficientes para me tirar o bom humor. A ideia de que largo segunda-feira paga um ciclone, longe vá o agoiro, quanto mais meia dúzia de nuvens baixas e cinzentas que além disso têm a vantagem de arrefecer a manhã.

É uma alegria injusta, eu sei. O país não tem culpa dos meus déboires. Mas a verdade é que estou ansioso por chegar a St. Maarten e ainda mais por a deixar e aterrar em Lisboa, ainda que por pouco tempo. Estranho nómada este, que tanto sonha com a sua terra que qualquer dia a faz sua de novo.

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Chegou um Outremer 55. Quem acha que não há catas bonitos devia olhar para este. No fundo é um Kelsall desenhado por um francês. O que sonhei com este barco raia o inconfessável.

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O Mathew ainda não me disse se vem ou não, mas com a confirmação do Bernard estou menos preocupado. Gostava que ele viesse porque é simpático e traz um monte de coisas de que preciso mas se não vier paciência.

Bernard tem sessenta e cinco anos. Mandou-me um CV mas não o li. No papel pode escrever-se o que se quiser. No mar não.

Chega amanhã à noite. A ver, como dizia o ceguinho. Este pelo menos sabe o que o espera e não é nenhuma criança à cata de experiências para vivenciar.

Ou experienciar, não sei. Sou parco de vivências e de experiências no plural.

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Parece-me que o inchaço no ombro esquerdo está a diminuir. Um dia crio uma farmacêutica e chamo-lhe Indiferença, Placebos e Outros Remédios.

Não lhe auguro grande sucesso. Fica melhor como título de um livro.

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E. quer contratar-me para levar o cata da Sunsail para Fort Lauderdale.

Aí está um projecto apaixonante. Depois de reparado a ideia é fazer charters em Cuba, ou entre Cuba e os Estados Unidos.

Muito provavelmente não dará em nada,  mas que é um nómada sem um sonho? Um refugiado, talvez.

20.11.15

Porquê?

Felizmente não tenho. Mas se tivesse de escolher uma e uma só razão para manter o Don Vivo essa razão seria a absurda quantidade de horas que passei agarrado a esta e a outras merdas de telefones portáteis para escrever uma linha.

Vírgulas, rodriguinhos

Os portugueses gostam demasiado de vírgulas.

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 20-11-2015 / II

O Labest Sports Bar tem sobre o outro bar que conheço em Porto Antonio várias vantagens. Desordenadamente: está mais perto da marina, é mais barato e a barmaid mais bonita. Acessoriamente hoje, sexta-feira, a grosso modo metade feminina da clientela é bastante agradável. Tenho pena de não poder ficar mais um bocadinho. O volume e qualidade da música impedem-mo.

O Labest Sports Bar fica no primeiro andar de uma esquina na praça à frente do mercado. Tem uma varanda onde me refugio e de onde observo a vida da cidade  (ou vila ou seja o que for. Porto Antonio tem vinte mil habitantes).

A confusão no tráfego é a habitual em qualquer cidade pequena fora da Europa e provavelmente dos Estados Unidos. Não é isso que me chama a atenção. É a quantidade de mulheres que andam sozinhas na rua, o meu indicador favorito de segurança. Rua ou quarteirão onde não veja mulheres sozinhas é rua que evito ou pelo menos onde presto mais atenção ao que me rodeia.

Gosto de ver o trânsito fluir sem regras, sem sinais,  sem polícias, traços nas ruas. Assim devia ser em todo o lado. Os acidentes ocorrem porque se desrespeitam as regras de trânsito. Se não houver regras não há acidentes.

Gosto da calma, da ausência de agressividade com que todos os tipos de veículos partilham a rua. Bicicletas,  automóveis, carrinhos de mão,  camionetas, motas  (poucas), peões... A rua é de todos igualmente.

Que país estranho este, encantador e odioso, amical e inimistoso, hospitaleiro e agressivo.

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Domingo à noite chega um tripulante do Canadá e hoje o José anunciou-me que a partir de amanhã os meus runs têm um desconto  (vinte e cinco por cento, não é despiciendo). Ao contrário do que possa parecer há uma relação entre os dois factos: posso largar segunda-feira e José quer que os últimos dias sejam agradáveis.

Se fosse dado a contas calcularia quanto me custou esta generosidade do José. Mas não sou. Estou mais para o lado das tintas.

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Falta-me resolver o problema da multa e já sei que não será antes de largar, a menos que Deus exista - o que já de si é mais do que duvidoso - e goste de mim,  coisa de que tenho bastas provas não é verdade.

Mas vou lutar até ao fim. Continuo a não perceber como é que há gente que acha o Estado bondoso, e de qualquer forma lutar contra o "bem" é uma causa nobre.

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 20-11-2015

A história é simples, triste e conta-se depressa.

Há uns dias chegou um cata da Sunsail. Vinha de Tortola e ia para Belize. Antipatizei com o skipper mal o vi. Foi uma daquelas antipatias imediatas e inexplicáveis. O rapaz nem sequer era agreste ou malcriado, mas pronto, não me passou pelo estreito. Anteontem vi-o fazer uma coisa com a qual não concordo muito e confirmei o meu sentimento.

Ontem ia-se embora. Os dois tripulantes que trazia desembarcaram (quando lhe perguntei porquê - vinham mesmo a calhar - respondeu-me evasiva e inverosivelmente que "tinham gostado muito da Jamaica e vão ficar aqui") e ele ia seguir viagem sozinho. Achei estranho porque as empresas não costumam autorizar transportes em solitário. Perguntei-lhe se a Sunsail o permitia disse-me com um sorriso entendido que sim e depois acrescentou "de qualquer forma não vou dizer-lhes". Pensei, mas não lhe disse, que o problema não era a sunsail, era a companhia de seguros.

Antes de largar passou por mim e despediu-se, simpaticamente.

Hoje quando acordei vi o cata na área técnica, mastro inclinado. Adomeceu e bateu num recife. Fui com o E. ver o barco (E. quer começar uma empresa de charter e está à procura de pechinchas). O rapaz não se calava "Não posso acreditar", dizia. Depois E. e eu fomos beber uma cerveja ao Peter (o daqui, infelizmente). Ficámos a saber que quando saiu de lá ontem à tarde - isto é, pouco antes de ter passado por mim para se despedir - estava tão bêbedo que o Peter lhe recusou mais cerveja.

Goste ou não do rapaz não deixo de lhe lamentar a sorte. Tem a carreira destruída - e isto sem ser preciso que se saiba quão bêbedo estava -.Também eu fiz muitas asneiras, felizmente nenhuma com consequências tão graves. Só com uma coisa me alegro: verificar o que aprendi e, dadas as circunstâncias que me fizeram parar na Jamaica, que ainda sou capaz de aprender.

19.11.15

Vim deitar-me  no cockpit como se estivesse no camarote. Os pontões não têm luz e tenho uma toalha para me cobrir se for preciso.

Daqui a pouco vem I Cover the Waterfront, o melhor slow de todos os tempos. Amanhã vou a Kingston. Talvez. Não tenho a certeza. Ter sono é tão bom como dormir: o que aí vem vale o que aí está.

Começou o Waterfront. Esta música faz-me pensar no Barco Negro  cantado pela Amália. É a minha música favorita dela.

Acontece-me muitas vezes adormecer cá fora.

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 19-11-2015 / II

"China, se não mudas a música já tenho um ataque cardíaco, morro e fico aí estendido no chão para todos verem. E morro antes de te pagar a conta!"

O China mudou logo a música, não sei se devido à primeira parte da ameaça se à segunda. Pôs reggae. Este magnífico fim de tarde merece muito mais, mas apesar disso é bastante melhor do que a merda anterior.

(Deve ter sido pela primeira. O dinheiro que tenho a pagar não justifica tanta prestabilidade).

.........
Não há pingo de vento. Se isto continuasse assim mais uma semanita eu chegaria num instante a St. Maarten. Não vai continuar, claro.

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De repente o S. M. parece de novo uma embarcação de recreio. Estes últimos dias parecia um estaleiro flutuante.

Um dia terei um barco e farei estas coisas todas para mim. Versão alternativa: um dia não terei barcos nenhuns e não farei mais estas coisas.

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Hoje tomei três banhos na piscina. O que as coisas mudam!

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M. adiou para amanhã a sua decisão. Compreendo-o. Não é fácil deixar um barco e muito menos a um bando de macacos uniformizados. E ainda há pessoas que acreditam no Estado. As únicas coisas que os Estados fazem melhor do que os privados são a guerra e a polícia e a isso deviam estar limitados. Já é muito, de passagem seja dito.

Bom ou mau

Quem me conhece sabe que o meu corpo deixa muito a desejar. Insatisfatório esteticamente, um falhanço total do ponto de vista mecânico, intelectualmente medíocre, míope, desmiolado, meio surdo, sem memória, incapaz de correr os cem metros em menos de uma hora - e não menciono sequer os cem metros barreiras - não sei que fazer dele.

Agora deu-lhe para me doer com dores que sobrevivem à indiferença com que sempre o tratei. Às vezes penso em mandá-lo dar uma volta ao bilhar grande, mas tenho medo que ele não volte. Bom ou mau é o único que tenho, e quem fez este já cá não está para fazer outro melhor.

Menos um

O Ma-schamba vai acabar. Bolas.

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 19-11-2015

Ontem à noite:

Vamos pôr ordem nisto tudo:

- Ainda não parou de chover;
- As bombas não estão prontas;
- O Matthew ainda não disse se vem;
- Não é amanhã que terei dinheiro;
- A Alfândega ainda não decidiu;
- As dores no ombro esquerdo ainda cá estão.

Mas:
- O Miles Davis está a tocar;
- Fui outra vez jantar ao Piggy's, ao que parece a melhor Jerk Chicken de Porto Antonio;
- As previsões meteorológicas para a viagem são soberbas.

Se fôssemos pela quantidade diríamos que está tudo na mesma. Felizmente prefiro a qualidade. E ou muito me engano ou domingo estou fora daqui.


Hoje de manhã:

- Parou de chover. As montanhas são verdes outra vez, o céu azul e a água da baía algures entre os dois. Pode ser que os meus sapatos sequem, as toalhas, as almofadas e eu também, que bem preciso.

- Reparei a bomba de água doce, marimbei na de fundo e os rizos estão quase prontos. Domingo ou segunda estou fora daqui.

Gosto da Jamaica, mas Porto Antonio é realmente demasiado miserável para mim. Há quem goste, mas nem sempre percebo porquê. E quando percebo acho horrível.

........
A baía é muito bonita, mas estou cansado e só lhe aprecio a beleza nos intervalos.

E as ruas estão surpreendentemente limpas. Não consigo impedir-me de pensar no Brasil, uma vez mais, e na imundície que se vê em todo o lado. Da sujidade passo ao barulho. Ou melhor, à sua ausência. Está-se e anda-se tranquilamente na rua, sem as agressões sonoras  das ruas brasileiras.

A Jamaica parece-me definitivamente mais um caso triste de país que não merece o governo que tem. São tantos...

18.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Porto Antonio, Jamaica, 18-11-2015

É sempre assim: a grande vantagem de tudo estar mal é que tudo fica bem de repente e ao mesmo tempo.

Ou pelo menos tudo de repente parece poder correr bem. Como quando o sono chega subitamente no meio de uma insónia, ou uma mão que julgávamos presa nos toca e nos diz sim.

M. é um jovem russo que está em Porto Antonio com o barco arrestado por causa de uma tonteria qualquer da Alfândega jamaicana, a mesma que me impôs uma multa absurda de oitocentos e trinta e quatro dólares. A dele é de cinco mil. O rapaz (tem vinte e quatro anos) é de uma educação irreprensível, simpático, prestável (é no computador dele que tenho escrito quase todas estas crónicas, procurado tripulantes, vagueado pelo Facebook).

Nunca lhe falei em vir comigo para St. Maarten porque sabia que ele estava a tentar resolver o problema do barco dele e parecia-me injusto pôr-lhe o meu em cima. Mas ontem fi-lo, de passagem e como quem não espera nada. "Devias era vir comigo para St. Martin". Sorrimos e continuámos uma daquelas conversas sobre nada que são o apanágio de marinheiros presos ao bar de uma marina por causa das autoridades, das avarias, de tripulantes, do tempo ou do que quer que seja.

Hoje veio ter comigo: está a pensar seriamente tirar do barco tudo o que pode e deixá-lo aqui. Vai dar-me uma resposta definitiva amanhã. Eu tenho de esperar até sexta pela decisão das autoridades e de qualquer forma quero estar cá no fim-de-semana porque há um mercado com comida boa e fresca (as lojas de porto António são fracas, para ser simpático).

Entretanto hoje avancei com as bombas. Amanhã devem estar funcionais. Os rizos são coisa para uma hora. Nas coisas que o M. traz do barco estão as que eu precisava de comprar.

Ainda é cedo para cantar vitória e estas linhas não são uma celebração precoce: são a manifestação de como me sentirei quando puder sair daqui. Vai ser de repente, vai ser assim.

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A Jamaica é muito mais pobre do que eu pensava. Tem um PIB per capita de cinco mil e poucos dólares. O de Antigua, para comparação é de treze mil e o do Brasil doze mil.

O país está bastante endividado e o Governo encontrou a solução mágica: aumentou os impostos. Aí reside a resposta à minha pergunta do outro dia. O país é pobre, as pessoas miseráveis e o governo aumenta os impostos. José, o dono do bar está a pensar ir-se embora. Ele é cubano, pode ir. E quem não pode?

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Porque é que a direita perdeu a batalha da comunicação? Não sei. José diz-me, a respeito do aumento de impostos: é isto que está errado no capitalismo.

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De repente vejo-me em modo largada, o meu favorito. Já só falta a chuva parar.

17.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Porto Antonio, Jamaica, 17-11-2015

Numa carrinha desenhada para transportar menos de trinta pessoas somos quarenta, quarenta e poucos.

O chauffeur sabe conduzir e conhece o caminho. As curvas e contra-curvas sucedem-se com suavidade e elegância; o motor dá o que pode e, suspeito, um bocadinho mais do que deve. A suspensão aguenta estoicamente.

"Vais chegar cansado" prevenira-me M. na marina. Estava podre de razão: estou nisto há meia hora e sinto-me comprimido num torno gigante que um louco qualquer agita como se tivesse acabado de fumar uma pipa de crack.

O condutor engrena reduzidas e duplas embraiagens magistralmente, num timing perfeito. Lembro-me dos water taxis em Bocas, os que faziam a linha de Almirante: a mesma competência, o mesmo brio, uma igual necessidade de extirpar a monotia de um trabalho essencialmente monótono, a ganância. E penso nos autocarros de S. Luís, tão diferentes: bruscos, agressivos, zangados. Aqui não. O condutor e a estrada são um só, como nos livros zen e nas conversas das cabeleireiras.

Alguns pormenores são tocantes: o cobrador que põe uma almofada nas costas de um dos passageiros, o meu vizinho a queixar-se de que estou a apoiar-me demasiado nele ("you are leaning too much on me"), como se eu tivesse alternativa. Nem às costas do strapontin que partilho com uma senhora gorda chego, quanto mais a ele. Estou sentado à beira do banco, pernas encolhidas e dormentes. Mal consigo mexer o polegar com que digito no telefone.

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Das cinco coisas que tinha de fazer em Kingston consegui fazer três e meia. Dadas as circunstâncias não me parece mal.

Claro que ao chegar a bordo tudo mudou - a correia da bomba de fundo que tão facilmente encontrei e pensava ser difícil afinal não é a única avaria da bomba, esqueci-me dos [cones de madeira] (isto tem um nome) e gastei uma pipa de massa em táxis - são um absurdo de caro, aqui.

Tudo é caro na Jamaica. Acabam de me propor uma garrafa de rum por oitenta dólares, no bar da marina. Felizmente reagi a tempo. Oitenta dólares uma garrafa de rum? St. Maarten, ainda estás longe?

(Por que raio de carga de água quanto mais pobre é um país mais caras são as coisas?)

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Passei o dia em Kingston e fiz setenta por cento do que queria. Já só me faltam duas contigências a resolver: a multa e a tripulação (e os rizos e as malditas bombas, claro). Podia ser pior.

Kingston está dividida em duas: uptown e downtown. Não percebi se geograficamente há uma correspondência tão perfeita entre a realidade e as designações como a que há socialmente. Parecem dois mundos diferentes.

Mais uma vez penso no Brasil, onde as partes pobres e ricas de uma cidade são  duas galáxias diversas, divididas por linhas visiveis, palpáveis. Aqui não: a transição faz-se suave, gradualmente. Do Yacht Club para o shipchandler apanhei boleia do estafeta do clube, numa Honda 125 (creio, não garanto). Dei as voltas que ele tinha de fazer antes de me deixar: banco, assinar um cheque, procurar uma pessoa.

O resto fiz de táxi ou a pé. A boleia foi bem vinda, e não apenas do ponto de vista financeiro. As pessoas são adoráveis, simpáticas. E não é preciso usar capacete - nos táxis tão pouco é preciso cinto, mesmo no lugar da frente. Nem tudo é mau-.

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A viagem de regresso foi melhor ainda. Apanhei a mesma carrinha, por acaso. O cobrador prometeu-me que iria menos cheia e tinha marginalmente razão: não havia ninguém de pé. De resto, continuávamos a ser cinco por fila - na minha só havia uma senhora gorda - mas consegui apanhar o lugar ao lado do que queria: última fila, num dos cantos. Esse estava ocupado por uma rapariga magrinha que mal se mexeu quando me sentei.

Era noite. Ao princípio havia uma grande fila de automóveis à nossa frente e vínhamos devagar. Mas mal o chauffeur se apanhou com a estrada livre deu largas à sua habilidade. Que bonito é ver alguém fazer bem o que faz.

Eric, o meu vizinho e C., a Consulesa de Espanha acham perigoso andar nestes autocarros. Eu não acho. Talvez seja, mas as vantagens são tantas que compensam largamente o risco. Qual o chauffeur privado que conduziria tão bem como este? Onde veria as pessoas de pé dar a quem está sentado os seus sacos e estes serem aceites sem um murmúrio? O senhor que ia sentado na fila à minha frente, perto da porta, levava três volumes no colo: uma carteira de senhora, um saco de alguém que não vi quem era e o dele, grande. Entrou uma mulher para a secção "de pé" e depositou-lhe a carteira no colo com um pequeno aceno da cabeça, correspondido por um igualmente minúsculo consentimento.

A viagem custa quatro dólares por trajecto. Não sei se ou outros condutores são tão bons como este. Se forem, posso garantir que é de borla.

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Hoje o dia está pior. Nada avança e chove. Tudo chove em cima de mim.

Amanhã será melhor.

14.11.15

Diário de Bordos - Errol Flynn Marina, Port Antonio, Jamaica, 14-11-2015 / II

A vantagem que nós, homens feios temos sobre os bonitos é que quando recebemos um beijo de uma miúda gira sabemos que não é por causa das aparências.

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A piscina é minúscula e a miúda que está sentada no bar tem daqueles olhos enormes, globulares, protuberantes, saem-lhe da face como melancias mas brancas em vez de verdes. A música do bar não é reggae e hoje negociei com José, o cubano dono disto as condições de crédito. Isto é, disse-lhe que não corria risco nenhum de eu fugir sem pagar, o que é verdade. Acreditou, felizmente. Também não admira,  é um gajo inteligente. Só os estúpidos não sabem ver quando um homem diz a verdade ou está a mentir e para se defenderem pensam que os outros estão sempre a mentir. A estupidez é uma das formas da preguiça. O barman chama-se China mas deve ser alcunha porque é uma mistura visível à légua de preto e chinês; mais visível não podia ser. Faz uns rum punch sofríveis mas é simpático como o diabo quando está de bom humor (o diabo. China está sempre,  um bom humor delicado, discreto). O bar não é grande coisa e a piscina minúscula, estou a repetir-me, mas gosto do lugar. As pessoas são fantásticas. Paul, o director da marina pagou - ou melhor, avancou a massa - para a multa, se não teria de ir com o barco para o cais da policia "para eu não ficar com má impressão da ilha". Junior levou-me ao hospital em Kingston. Estava perdido de bêbedo, o hálito dele daria para fazer explodir um estádio (talvez os filhos da puta dos terroristas muçulmanos pudessem começar a adoptar esta técnica. Já não digo comer porco porque isso seria canibalismo ), íamos tres no carro - ele, a "bela namorada" e eu, ela comprimida entre mim e ele, só tinha dois lugares e a meio caminho ele parou para me oferecer uma Red Stripe que é uma cerveja do camandro e provavelmente para se oferecer um rum ou dois "sou mais um tipo de álcoois fortes". Fartámo-nos de rir, ele e eu, porque ele fez uma piada do género "querida, ele está a mexer-te?" e eu entrei no jogo e fomos assim até ao hospital. A miúda ia meio encavacada, só sorriu quando eu disse "se um dia estiveres farta do Junior telefona-me" e o Junior respondeu "pode ser já". "Ainda é demasiado cedo" retorqui e aí sim, ela sorriu. O médico tambem era curtido. Levou seiscentos dólares por uma hora ou duas de trabalho, mas no dia seguinte reduziu o preço para metade e quando acabou o tratamento ficámos ali na conversa, a Consulesa de Espanha ele e eu, a falar de vinhos portugueses e de viagens na Europa e ele fez uns desenhos muito bonitos a explicar o que tinha acontecido à V. Foi uma boa conversa e rimo-nos bastante apesar das circunstâncias, mas eu acho que é nessas situações que se deve rir.

Isto é, se formos ver um espectáculo do Raymond Devos, por exemplo, é impossível não nos rirmos, é normal, inevitável. Mas num hospital com uma conta de seiscentos dólares e uma miúda que quase perdeu dois dedos e um gajo com vinte dólares no bolso e sem saber como ou quando vai sair da ilha é muito mais dificil.

E melhor.

Não tenho má impressão da ilha, não tinha e assim continuo depois desta merda toda, cinco horas de papelada e telefonemas e argumentos e o caraças. Quando tiver dinheiro vou comprar os discos todos do Bob Marley e comer um bom jerk de galinha. O China já me disse onde ir e se o dele não é mau imagino como será um que ele diz ser "o verdadeiro". (Estou a marimbar-me para a verdade na cozinha, mas isso é outra história. Tudo o que é bom é uma construção, uma mentira).

Depois vou-me embora, só preciso de encontrar um tripulante ou dois.

Diário de Bordos - Errol Flyn Marina, Port Antonio, Jamaica, 14-11-2015

A chegada à Jamaica foi pouco auspiciosa. Não estava previsto pararmos aqui, mas a V. teve um acidente grave e foi preciso repatriá-la. A única coisa que vi de Kingston foi o hospital. À nossa espera estava a habitual corte de agentes da autoridade (Imigração, Alfândega, Polícia Marítima, cada entidade representada por duas pessoas não vá uma perder-se) e a consulesa de Espanha que tinha sido chamada pelo namorado da V. para nos ajudar.

Ajudou, e muito. V. foi dormir a casa dela, eu voltei para bordo e no dia seguinte, de manhã cedo como de costume acordei, vi que a quilha ainda estava enterrada no lodo e resolvi ir-me embora, apesar de saber que devia fazer primeiro a clearance. Não fiz: a ideia de esperar ali quase 3 horas que o escritório abrisse e depois mais não sei quantas pela chegada de suas excelências pareceu-me insuportável. Parecença essa que me custou oitocentos e trinta e quatro dólares americanos.

Segunda-feira vou a Kingston tentar reduzir esta absurdidade.

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Resumo da viagem: o meu rumo e o vento na mesma linha, eu para lá e ele para cá.

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O vento chegou às três da madrugada, com o ímpeto e as hesitações dos ventos novos. O S. M. comporta-se às mil maravilhas. São sete da manhã e já rizei, desrizei e voltei a rizar. Mas oito nós de VMG compensam tudo e mais alguma coisa.

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Não há melhor revelador de carácter, personalidade, feitios, defeitos e qualidades do que o mar.  Se eu fossse psicólogo, psiquiatra, coach ou afim abriria um consultório num barco e promovê-lo-ia dizendo "quer saber quem é realmente e o que vale? Venha bolinar connosco".

Infelizmente não auguro grande sorte à iniciativa: ninguém gosta de pagar para descobrir que não vale uma merda.

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Suporto mal a estupidez, mas de certa forma perdoo-a (não só por simples mecanismo de auto-defesa mas também porque é involuntária). Já ser banal é uma escolha e imperdoável.

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Pela primeira vez na vida tive de desembarcar um tripulante por causa de um acidente. Recebi simultaneamente uma vasta e caríssima lição. Quem não fica estupefacto com a quantidade de coisas que aprende todos os dias? Eu fico.

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É paradoxal que apesar de tudo a Jamaica me pareça um país simpático e me dê vontade de a conhecer melhor.

A chegada a Porto Antonio é de tirar a respiração.

6.11.15

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 05-11-2015

Quando cheguei a Red Frog Marina a estação de fuel já estava fechada. Tive de passar a noite aqui. Azar? Não sei. Um copo no Palmar ao fim do dia é uma estranha e injusta manifestação de azar.

Tal como acordar nesta paz, a água espelho do céu e da selva que a rodeia. Às seis da manhã só se ouvem os pássaros, os animais na floresta e uma solitária panga, que de tão solitária não choca. É parte da paisagem, como os pássaros e as nuvens cujo reflexo na água em breve - assim que a esteira chegar ao pontão - se romperá em mil pequenoa reflexos.

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Ontem recuperei os meus discos. V. pediu-me música africana. Pus as Mandé Variations. Toumani Diabaté toca Kora como se tocasse coração. Não é um jogo de palavras - seria péssimo se fosse.

A comoção é um delta ao contrário,  um delta  com muitos braços pelos quais os sentimentos entram antes de chegar a este rio que eu sou.

2.11.15

Diário de Bordos - Colon, Panamá, 02-11-2015 / II

Em Colon há um louco no céu com umas tampas enormes que ele mexe de forma aleatória. Excepto talvez a da manhã e a da noite: está escuro, escuro de breu. Qualquer coisa se passa lá em cima e está dia. Como o vento é nulo e a humidade altíssima a luz é ainda mais densa e alaranjada de que a de Lisboa. Tudo fica com um relevo muito marcado, quase surpreendente, como quando estamos a ver um filme em três D sem os óculos e depois os pomos. Ou então ao contrário: é dia, alguém mexe uma tampa e fica noite.

De súbito uma outra tampa mexe-se e desata a chover. A tampa volta e com ela o sol. E assim de seguida.

Hoje o senhor das tampas do céu (são as minhas favoritas; das terrenas já tenho que chegue) estava particularmente animado: num quarteirão chovia a rodos e três ruas ao lado estava um sol de verão algarvio; mais quatro ruas e chovia; mais duas e o sol ficava insuportável de quente. Foi assim até às eclusas, momento em que tudo ficou solenemente cinzento.

Agora chove a potes. O barbecue do Joachim vai ser adiado de novo, aposto.

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"A susceptibilidade é a saudade daquela batalha que ainda não ganhámos", diz-me T. Que descrição tão perfeita da susceptibilidade, tão peganhenta como a saudade e tão estúpida (às vezes) como as derrotas (algumas).

Ontem tive um acesso dela. Espero que a saudade se vá e a batalha não termine por uma derrota.

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Com um bocadinho de sorte largo amanhã. Com a habitual largo quarta. Primeiro vou a Bocas buscar as coisas que ainda lá tenho e depois rumo a St. Maarten. Vai ser bom. Quinze dias de mar numa embarcação soberba com uma boa, se bem inexperiente tripulante.

As qualidades humanas são mais importantes do que a experiência: esta adquire-se; aquelas não, a partir de certa altura.

Diário de Bordos - Colon, Panamá, 02-11-2015

A Marina de Shelter Bay continua a borrada que sempre foi; está só ligeiramente pior. Surpreendente, quando se pensa na pouca entropia de que aquilo precisa para ficar muito pior.

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Mil e cem milhas num X-50 com dez anos e super bem mantido (à bolina, é certo. Mas não se pode ter tudo), com uma tripulante que até agora tem superado todas as minhas expectativas, trabalho em perspectiva logo a seguir.

Se há dois anos alguém me dissesse que um dia estaria nesta situação tê-lo-ia mandado dar uma volta ao bilhar grande, pentear macacos ou pelo menos não gozar com a miséria alheia.

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Novembro é o mês das independências do Panamá. "Temos três", diz o senhor do hostel a uma jovem francesa, num inglês impecável. "Uma de Espanha, outra da Colômbia..." Olho para ele. Sei que vai dizer "e outra dos Estados Unidos" mas pára a tempo. "Enfim,  duas".

As independências do Panamá  (e a dos outros países latino-americanos, de resto) não é tema que se possa tratar pelas teclas virtuais do meu telefone, muito menos inteligente do que a maioria das pessoas diz.

Mas é um tema interessante e já aqui aconselhei duas leituras particularmente úteis: o Manual do perfeito imbecil sul-americano e Do bom selvagem ao bom revolucionário.

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Despedi-me de Lisboa em grande: desci a avenida da Liberdade a toda a liberdade, fui ao Chiado, ao Rossio, almocei na Merendinha do Arco, louvado seja Deus. Não há ateísmo que resista àquela feijoada, àqueles torresmos, àquela aguardente. Fui ao Terreiro do Paço, tirei fotografias com o telefone no Cais das Colunas, voltei para casa pela Almirante Reis. Jantei no Tambarina e bebi um copo no Viagem.

Uma minúscula fracção de Lisboa e já a alma se satisfaz.

Reverência (ou inveja?)

Há uma quantidade admirável de pessoas a querer escrever livros em vez de os ler.