30.11.20

Conversa

Farrapos de luz penduravam-se-lhe no sorriso. Iluminava tudo o que tocava. Um dia, ganhou a sorte grande: amor.

Era o único prémio. Tudo o resto era conversa.

O que devia ser

Para além da criação / dilapidação de riqueza, há outro misterioso mecanismo no mundo. É difícil de compreender e portanto mais ainda de explicar. Criação de amor. Dilapidação de amor. Criação de beleza. De emoções. Um mecanismo que tornasse os sentimentos visíveis, palpáveis, distribuíveis. Outro que recuperasse os restos todos, os cacos que fomos deixando para trás e os transformasse numa máquina tão bem estudada como a riqueza e respectivos ciclos. Pegasse nos bocadinhos de amor que nos pendem da alma, nos silêncios bicudos e os arredondasse, nos gestos que um dia suspendemos a meio e nos permitisse acabá-los. 

Devia haver bancos, sociedades de capital de risco, empresas de factoring, investimentos, seguros, bolsas - de amor. Acções, obrigações - de ternura, tudo isto colado com afecto, com carinho, com meiguice. A doçura devia ser a língua franca. Falas doçura? Sim, mas a minha língua materna é a ternura. Que sorte! A minha é o amor. Eu prefiro a delicadeza. Já falei carícias, mas com a falta de prática esqueci quase tudo. Eu aprendi carinho logo em miúdo, a minha mãe queria que todos nós o percebêssemos. A minha também, mas o meu pai era mais sorrisos.

A torre Eiffel devia ser o A de Amo-te e o resto o mundo.

Sim, amo-te

O senhor está sentado numa cadeira ao sol, pensa no tempo que lhe resta, no que passou, conclui que nada daquilo lhe interessa. Tenta simplesmente não se transformar num camaleão, não ficar igual às paredes que o rodeiam, ao verde da erva na qual pousou a cadeira, ao copo de rum que trouxe da cozinha. Deixa-se aconchegar pelo calor, como se fizesse um cobertor de lã com os raios de luz que lhe chegam. Diz a si próprio que ainda tem coisas que fazer, ideias, projectos, objectivos: acabar o livro que há quarenta anos começou, explicar a meia dúzia de raparigas porque as magoou ou o magoaram, arrumar os molhos de fotografias de pelo menos cinco gavetas, dizer finalmente à mulher que ama que sim, ama-a. 

Sim, amo-te. 

Porque demorou tanto tempo a dizê-lo? Quantos continentes tiveram aquelas palavras de atravessar para lhe chegarem aos lábios? Quantos amores, como aqueles corações gravados nas árvores, atravessados por flechas? "Não iria longe, a minha flecha, com tanta carga. Por isso só agora chegou." 

Sim, amo-te.

Deviam ser estas as últimas palavras de toda a gente. Nada mais interessa, nada mais se pode esperar de alguém, nada mais se deve esperar de alguém. "Amei-te" não serve, não substitui correctamente esse verbo na primeira pessoa do presente do indicativo. O passado não é. Não vale. Não foi, sequer, como dizia já não sei quem. 

Sim, amo-te.

O vinho aquece nas mãos do senhor, que se esquece de o beber. Sente os raios de sol como se fossem dedos antigos, do passado e tenta identificá-los. Esta é a... esta é a... Depressa abandona o jogo. Não há dedos que valham os que sentirá quando a mulher a quem diz "Sim, amo-te" o ouvir.

Diário de Bordos - Lisboa, 30-11-2020

No curto espaço de um dia aprendi duas novas palavras. Kuchisabichii e hasselback. Têm uma relação longínqua - ambas têm a ver com comida - e outra mais próxima: chegam-me as duas via Facebook, de duas pessoas que não conheço pessoalmente mas de quem aprecio a companhia facebookiana (e a quem agradeço, claro, o ensino). Ambas são evidentes, aquela evidência que nos leva a exclamar «Como não pensei nisto antes?». A resposta é fácil: não pensaste nisso antes porque não és japonês (para uma) nem cozinheiro (a outra). E ambas têm um charme obscuro, quase imperceptível. Tão leve que não se pode exprimir e muito menos explicar. 

Kuchisabichii significa «Nâo ter fome, mas comer porque a tua boca se sente sozinha». Hasselback é uma receita de batatas no forno que está neste momento a ser posta em prática na cozinha: talhar as batatas em rodelas finas mas sem as cortar até ao fim (isto é, ficam mais ou menos como um acordeão), pincelá-las com manteiga de cebolinho, levá-las ao forno num prato adequado com um fundo de azeite, dois ou três dentes de alho, alecrim e sal. Ainda não as provei, mas aposto o meu próximo salário em como vão ficar boas (se perder, de qualquer foma só tenho de pagar a aposta daqui a cinquenta anos). 

As ditas batatas vão acompanhar uns escalopes que no momento da compra tinham uma vocação de saltimbocca alla romana, mas agora se transformaram simplesmente em escalopes mal passados. Tal é a força das coisas. 

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Aviso à navegação: encontrei fenogrego na casa Popat, ao centro comercial da Mouraria. Não hesitem em utilizá-lo para um bocadinho de vinho quente, não se perde nada. 

Antes pelo contrário.

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Fui buscar a bicicleta e no caminho para casa parei na Ginginha. Pela primeira vez em décadas era o único cliente. Único. Um. «Lisboa, cidade triste» daria um belíssimo título para um documentário que alegraria, sem dúvida, os que reclamavam contra os turistas. É tão melhor assim, não é? Desespero antes da miséria. 

Assim se compreende melhor o conceito de «inteligência concreta» dos psicólogos: a malta que defende estas «medidas», incapaz de pensamento abstracto, só reage perante os números que a comunicação social lhe fornece. Os números da miséria que aí vem, mas que as televisões e os jornais escondem, são demasiado etéreos, suponho.

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A música de Hildegarde von Bingen atravessou séculos intacta, poderosa como sempre foi, encantatória, abissal. As feministas modernas enganam-se: o feminismo existe há séculos. Só que antigamente chamava-se talento. A moderna voracidade lexical trocou-lhe o nome e rebaixou-lhe a exigência.

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Adenda: o meu próximo salário bem pode estar descansado. Ninguém lhe vai tocar. As batatas Hasselback são uma maravilha. Agora basta afinar um pouco as ervas, é tudo. Ou nada: nada há a mudar. 

29.11.20

Método, prospectiva

Apliquemos ao passado a metodologia da prospectiva.

É a vida, só

Esta coisa de andar à pancada com a vida tem que se lhe diga. Ela nunca cai. Nós sim. Depois levantamo-nos. Vencer é simplesmente estar de pé. Quando caímos, perdemos - até voltarmos a ganhar. Ela nunca cai, nunca se levanta. Nem quando morremos ela se mexe.

Não é uma luta, estúpido. É a vida, só. 

28.11.20

Irra!

«A única coisa de que tenho vontade é de não ter vontade de nada.»

O senhor sempre acreditou na ascenção social. Agora vê-se confrontado com uma descida. «Brilhante fim de vida», pensa. «Poucos se podem orgulhar de falhar tão espectacularmente a classe social na qual lhes foi dado nascer. É quase uma traição», diz às paredes que o rodeiam - que, apercebe-se subitamente, não podiam ser mais classe média. «Até a desclassificação falho. Irra!»

26.11.20

Reaccionários

Dois reaccionários reencontram-se ao fim de quarenta anos. "Reencontram-se" é inexacto: na verdade cruzaram-se, mas não se conheciam. E "reaccionários" também: pertencem a bordos políticos opostos. O que os une é serem decentes, crerem na essência das coisas. Vêem, é certo, essas coisas de forma diferente mas ambos acreditam no que as sustenta: nos valores, quaisquer que eles sejam. Nos sentimentos, nas emoções, nos sonhos, tão distintos da política. No trabalho. Na importância de se fazer bem o que se faz, incluindo rir-se de si próprios. Na nobreza que nasce e não na que vem de trás. A política é um epifenómeno do fenómeno que é Ser.

Panem et circenses

Morreu um futebolista qualquer. Enfim, qualquer não era decerto, pois até o senhor lhe conhecia o nome. Chamava-se Maradona. Parece que jogava muito bem. As sociedades sempre precisaram de heróis que não as pusessem em causa. Entretenimento puro, simples, directo, leve. Dar uns pontapés numa bola não ameaça ninguèm, não põe uma sociedade em causa - antes pelo contrário. Serve de escapatória, como as faixas para camiões nas descidas das autoestradas; com a diferença de que estas raramente são usadas e o futebol é todos os dias, pelo menos a julgar pelas televisões nos cafés. 

Na Roma antiga estes heróis eram os gladiadores. O senhor detesta violência - ainda hoje é incapaz de ver meio minuto de boxe - mas pergunta-se se não terá mais valor arriscar a vida para manter de pé a organização social. Meter uma bola numa baliza está a léguas de enfiar uma espada num corpo - ou arriscar-se a levar com uma.

Talvez seja a isso que se chama civilização: adoucissement des moeurs. Houve progresso? O senhor não sabe. Os princípios são os mesmos, o que mudou foram os recipientes.

25.11.20

Via Dolorosa

Podia começar por dizer. «hoje bebi o melhor Pisco sour da minha vida.» Seria absolutamente verdade, mas insuficiente: também bebi o melhor pisco da minha vida e - sobretudo - comi o melhor ceviche da minha vida. Três vidas, um restaurante: chama-se Qosco, fica em Lisboa na Rua dos Bacalhoeiros e, por Viracocha*, acorram, depressa, urgentemente. O tarifário é acessível - até para um marinheiro longe de casa e em maré baixa - e não exagero: o ceviche era bastante melhor do que o meu. Reconheço-o com orgulho. É como ser batido pelo Mike Tyson num combate de boxe: não é vergonha nenhuma. 

Os meus amigos brasileiros, sobretudo os baianos, que me perdoem mas a comida peruana é indubitavelmente a melhor da América do Sul. O Qosco é a prova disso.

*Viracocha, acabo de aprender, é o deus inca que criou o «o céu, a terra, o oceano, o sol, a lua e a primeira raça que habitou o lago Titicaca». Mama Kilya, a sua companheira deusa da Lua, também merece ser invocada: o nome bonito é sedutor para um selenita como eu.  

23.11.20

Intersecções, troco

Intersecções: se fores para a esquerda morres de uma coisa qualquer; se fores para a direita morres também, mas de outra coisa. Na dúvida, escolhes as duas. Vais primeiro para a esquerda, depois para a direita. Morres atropelado primeiro e do coração depois, por exemplo, um pouco à imagem do pão que se coze duas vezes para durar mais. A única morte que recusas é o afogamento: como morrer daquilo que te fez viver?

Estira-te nessa ideia de morte que te persegue. Não és viável, pelo menos para os padrões da modernidade. Pertences àquela raça de portugueses que ficou sem trabalho, uma vez descoberta a Índia, não é? Sem trabalho e sem vida, sem sono e sem sonhos. 

Ou seja: não morras nem na Índia nem dela a caminho. Morre nuns braços que te estreitem até te virarem do avesso. Morre enfiado no corpo que amas, numa floresta a meio da tarde. Morre num adeus mudo à cidade onde foste amado. Morre onde e quando quiseres, mas deixa a Índia em paz: devolveste-lhe a vida, ficaste sem trabalho: que esperavas?

Vive nas intersecções: é o único mundo que conheces, que te conhece. Morre devagar: nunca foste de pressas. Até nos abismos te precipitaste devagar.

Escolheste os dois lados da vida e ela agora limita-se a dar-te o troco.

22.11.20

Conjuntos indiscutíveis

As cores sofrem de uma terrível injustiça: é difícil dissociá-las do contexto. "Esse cor-de-rosa é horrível" significa na verdade "camisas (ou gravatas, ou meias) cor-de-rosa num homem ficam horríveis" - não menciono sequer casacos ou calças, isto não é um post de horror. "Não me digas que vais pintar a parede com esse verde?" O problema não é obviamente o verde, é a parede. Discutir cores é fútil porque raramente o que se discute são as cores e porque num conjunto que inclui o azul do mar num dia de sol, nas baixas latitudes, não há o que discutir.

Não estaríamos longe

Talvez se possa ver o tempo como uma piscina no meio da qual um tipo qualquer bóia - talvez até com a ajuda de uma bóia, é o mais provável. Uma ou mais, há quem recorra a várias. De vez em quando deixa o conforto das ajudas à flutuabilidade e mergulha. Vai sempre em apneia e volta para cima a cada vez sem reservas de oxigénio nos pulmões, roxo, sem ar. Outras vezes, atira-se ao ar, tenta apanhar as uvas da parreira que dá sombra à piscina - na verdade, um tanque de uma quinta. Nunca consegue apanhá-las, estão demasiado longe. Nem chegar ao fundo da piscina, afasta-se à medida que ele se aproxima.

Não estaríamos longe. 

Diário de Bordos - Em voo, Genebra - Porto, 22/11/2020

Deixo Genebra com esta indefinível tristeza que voltar ao passado me provoca. Ainda por cima, esqueci-me de pôr um livro no saco e recomeço, re-recomeço a ler cartas antigas. As da D., Ch. L.... Parei aí. As cartas eram-me dirigidas, mas sinto-me como se estivesse a devassar a correspondência de um estranho. Fui eu quem fez a D. sofrer daquela maneira? Às da Ch. não tentei sequer decifrar a caligrafia, apesar de não ser nada do outro mundo.

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No avião, a habitual palhaçada do tracing. Desta vez, preenchi o papel com uma mistura de L'art de la Joie e sistema solar. A única excepção foi a companhia aérea: Air Maybe. Não que não tenha confiança na EasyJet. Tenho bastante. Air Maybe refere-se a outra coisa: era o nome que dávamos às companhias aéreas do Zaire, quando tínhamos de voar numa delas. E não estarei eu num Zaire emocional? Num de-Zaire? Que resta do amor quando ele se transforma em afecto? Será que a única diferença entre um e outro é uma pila erecta? Até quando? Quanto tempo me resta para dizer «amo-te» a uma pequena?

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Cepticismo nestes tempos de fé: voltamos a ser proscritos. Continuo, porém, a invejar os cépticos de antanho: bastava-lhes duvidar de Deus. Hoje, temos de duvidar de uma infinda quantidade de igrejas, fés, capelas, seitas. Não são tempos para um preguiçoso como eu.

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Comprei três mini-garrafas de vinho para poder viajar sem máscara. Antes bêbedo que mascarado, apesar do preço estapafúrdio.

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Em vez de tentarem «controlar» o vírus, os governos bem podiam tentar mudar a aceleração da gravidade. Nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado é uma brutalidade. Reduzam isso para metade. Já pensaram na quantidade de vidas que salvam? E de copos que não se partem?

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Em Portugal tenho imensas probabilidades de ficar rico, porque compro o totómilhões quase todas as semanas. Pouco menos do que as de morrer de Covid.

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Aterragem dentro de quarenta e cinco minutos. Einstein tinha absolutamente razão: nos aviões, o tempo pára.

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Começámos a descida. Às vezes pergunto-me se a minha relação com Portugal não é semelhante à que tenho com o meu passado. Respondo de seguida: «Portugal é o teu passado, estúpido.»

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E agora, que tanto gosto do Porto, eis-me aqui nele fechado. Uma dúzia de imbecis e uns milhões de cobardolas hipocondríacos coligaram-se contra a vida. Querem salvá-la, dizem.

20.11.20

Pedras ao Diabo

"Eu avisei-te", disse-me ela no dia em que, sem me dizer mais nada, me deixou. Continuei sentado na sala, no cadeirão que herdei de um passeio qualquer. Relia uma história que devia ser enviada em breve para o editor e não dediquei muita atenção a uma coisa que estava para acontecer há meses. Gosto muito de O'Henry, mas prefiro histórias assim, que não terminam de repente nem com um sobressalto. Histórias que acabam como o rum na garrafa: previsivelmente, pouco a pouco, gole a gole. "Não me telefones, se precisares de mim", continuou. Amélia não me perdoava ser capaz de sofrer em silêncio. Era histriónica, teatral e exagerada. Não sei como nos demos tão bem tanto tempo. Um dia apareceu-nos uma rampa à frente, metemo-nos nela e agora chegamos ao fim. "Está bem", respondo. As letras à minha frente eram pedaços de carvão vindas com o vento e que aterraram na página. Não via patavina. "Liga-me tu, então."

Já estava no patamar quando me gritou: 

- Viver contigo é como atirar pedras ao Diabo. Voltam ainda mais quentes.

Fragmento

«...      Uma coisa é certa: aquilo a que assistimos hoje [da parte da imprensa] é o corolário de um processo que começou há mais de cinquenta anos.
          Isto dito, convém não esquecer que a imprensa nasceu, no séc. XVII, com a função de anunciar os incêndios, as invasões, as infecções, as guerras, etc. Anunciar tragédias faz portanto parte do DNA do jornalismo - a tal ponto que em Veneza, aqueles a quem hoje chamamos jornalistas eram conhecidos por «menanti», os ameaçadores.
         Não só do DNA, mas também do prato - eram as tragédias que lhes punham o pão no prato; quanto mais tragédias, mais pão e manteiga. Não havia muitas mais fontes de informação credíveis.
         Lá para a segunda metade do séc. XX aconteceu uma mudança no modelo de negócios da imprensa. Atribuo essa mudança à televisão, mas não tenho a certeza. Pode tratar-se de simples coincidência cronológica. Ainda não estudei suficientemente o assunto paraa formar uma opinião: a partir dos anos 60, 70, a imprensa deixou de vender informação e começou a vender emoções. Já não chega dizer «há fome na Etiópia». É preciso mostrar fotografias das vítimas, de preferância crianças de barriga inchada e olhar vazio. Os factos já não chegam. É preciso impressionar, comover. Finalmente: a função da comunicação social mudou. Deixou de ser um contra-poder (o quarto poder) para começar a ser defensora do bem e inimiga do mal. (Tudo isto, claro, auto-decidido. Quem define o que é mal e o que é bem é a comunicação social.) Se necessário for, o quarto poder muda-se para o quarto do poder - desde que este esteja do lado do bem, claro. Se estiver do lado do mal, é alvo da fúria dos justos. Os factos passam para segundo plano, face à investida da moral. ...»

19.11.20

O volume das palavras

Despeço-me de um céu que de repente se põe cinzento. Cor de rato, de burro, de baba de caracol, de odioso. Céu mimético, plagiador, que nem de melancólico merece ser chamado por ser palavra demasiado bonita para o que descreve. As palavras devem adequar-se ao que vêem com os seus olhos escondidos na pele. Devem tomar a forma do que cobrem, como o chapéu do outro: deixou de ser chapéu quando engoliu um elefante e passou a ser cobra. Devem moldar-se como a vista se molda à paisagem, lhe adapta as curvas das colinas, os picos das montanhas, as vagas no mar ou num lago, o verde da planície. E devem ter volume, também. Não gosto de palavras planas como não gosto de céus que de repente se acinzentam, enegrecendo assim os passados que da varanda se avistam. 

Não me perguntes, aliás, de que gosto. Não saberia responder-te. Ultimamente, Deus tem andado a jogar aos dados com o universo e deve ter perdido uma fortuna. 

Não gosto de dados, por exemplo. Não me perguntes, por favor. Suplico-te. Detesto pedir. Detesto detestar. Este céu cinzento (interior, vê-se imediatamente, não é preciso estenderes-te num sofá) corta-te as asas, não te deixa voar, nem ver nem nada. 

A solução seria talvez vestires-te com um fato amarelo, comprares um estojo para violino e desembarcares de um paquete noutro planeta. Alguém te esperaria certamente, se o fizesses. Mas primeiro tens de aprender a dar volume às palavras. Sem elas não há nada que valha a pena fazer ou ver. Nem céu de outra cor.

Distinguo, metamorfose

Sou um nómada, não um viajante. Isto só serei quando  - e enquanto - fizer a circumnavegação a bordo do meu bem amado P. Ninguém imagina o que preciso desta metamorfose.

Epifenómenos, sinédoques

Ao fim destes séculos todos - séculos? Milénios - a humanidade ainda não aprendeu a distinguir os fenómenos dos epifenómenos. Aquilo a que um anónimo inglês do séc. XIV chamava «a nuvem do não-saber» refere-se a essa cortina de epifenómenos com os quais rodeamos, escondemos, envolvemos, disfarçamos o cerne das coisas (para ele Deus, para mim outra coisa qualquer à qual agora não sei dar nome. Talvez «os cernes» resolva a questão, pelo menos temporariamente).

Os epifenómenos têm um papel central na organizção social: desviam as atenções. «Humankind cannot bear very much reality»? Não só. Humankind doesn't want to bear very much reality. A parte pelo todo.

18.11.20

Depressão, camas

A depressão tem poucas vantagens. Talvez nenhuma mesmo. Ou uma: torna atractiva uma cama vazia.

Mulheres fictícias

Não gosto nadinha da palavra gaja, mas gosto do conceito que acabo de ler num comentário: "gaja fictícia é uma redundância" (mais coisa menos coisa). Ainda por cima foi escrito por uma senhora. Sabe do que fala, imagino. 

A razão pela qual gosto da ideia é da ordem do sonho: nunca até hoje tive uma mulher fictícia. Só mulheres verdadeiras - devem ser as excepções à regra de redundância - e essas são muito cansativas, muito exigentes, uma espécie de ninfomaníacas do espírito. Gostaria tanto de encontrar uma ficção com mamas... Alguém que não estivesse onde eu pensasse que está, se construísse todos os dias, não fosse o que visse quando a olhasse, um fantasma etéreo que me poupasse o trabalho de a decifrar, que sem maquilhagem fosse uma pessoa e com outra, não só diferente mas irreconhecível. Uma vez tentei engatar uma miúda muito estúpida e não consegui (isto é, abandonei a tarefa precocemente, antes de ela se lembrar de não me dar tampa). Apercebo-me agora de que me enganei no ponto de vista: devia tê-la considerado fictícia em vez de burra. Dou-me muito melhor com a ficção do que com a estupidez.

Enfim, não sei como seria a relação de um tipo que não é mais do que o que é por falta de imaginação com uma mulher que só é o que não é, talvez por a ter em excesso. 

Ou, mais provavelmente, por simples e lhana falta de paciência. 

Passos de mim

Estou aqui, estou ali; estou ali, estou acolá. Salto daqui para acolá, de mim para ti, dali para lá. 

Passos sem distância: nunca saio de mim.

17.11.20

Ingenuidade, gentileza

Uma das formas da maldade - não sei se a pior, mas de certeza uma das piores - consiste em levar alguém a crer que somos tolos (não o sendo, claro. De qualquer forma, sendo-o não se leva a crer, mostra-se. É diferente). Por isso, devemos resistir  à ingenuidade alheia até se ter a certeza de que é genuína - e depois não nos deixar levar por ela. Questão de desconfiança, primeiro; e de gentileza, depois.

Auto-google

Hoje pela primeira vez em muitos anos, quase séculos, googlei o meu nome. Dei com isto:

Les marins, disent les Français, "savent tout faire, virgule, mal". Dans ce sens je suis un marin né: j'aime faire beaucoup de choses, et je les fais toutes mal. J'aime écrire - et quelques-uns uns parmi vous insistent pour que je le fasse un peu plus souvent. Hélas, on est forcé de reconnaître que je suis loin de la perfection; j'aime boire, et je ne suis pas le pire dans ces arts - mais je supporte de moins en moins l'alcool, et je m'aime de moins en moins sous lui; j'aime la photo - et les meilleures photos que j'ai prises ont été perdues quelque part dans le Jura neuchâtelois; j'aime faire l'amour - qui ne l'aime pas? C'est la seule chose qui mieux vaut être mal faite que de ne pas être faite du tout…

J'aime photographier comme j'aime aimer: les gestes s'arrêtent, les regards s'interrogent, l'autre corps se laisse caresser par le temps et par les yeux, comme la vie. Mais je n'ai plus tellement envie d'en convaincre les filles, et je ne marche plus tout le temps avec l'appareil à l'épaule. (L'appareil que j'ai maintenant est, d'ailleurs, un parfait réflexe de ma situation financière, une m…). Mais enfin, je m'amuse: je prends des photos démagogiques de girafes, lions ou rhinocéros, toujours faciles et impressionnantes. Ce que je ne fais plus sont les photos de corps, faciles ou pas: j'ai besoin d'assurance pour les uns -et j'e n'en ai pas - et de sens pour les autres - et ils n'en ont pas.

Il me manque la patience pour l'amour car l'amour me manque tout court: pour aimer un corps féminin il faut d'abord s'aimer soi-même, tournant un peu la tête à la vérité. Je continue de rêver avec ces deux oiseaux trop souvent en cage, ce maquis, ces ventres comme des plages ensoleillées et salées - mais ce ne sont que des rêves, car je ne m'aime pas, je me déteste.

Je pense souvent à toutes ces femmes pour qui j'ai échoué, pour qui je me suis perdu et que j'ai perdues. Chaque corps est, ou peut être, un abîme, un récif, un port après une nuit de tempête, un phare après le brouillard - je n'ai jamais eu une femme à chaque port, mais chaque femme a été un port pour moi.

Je suis arrivé pour la première fois à Dunkerque dans un petit canot, un Rush. On venait de Guernesey et les propriétaires m'ont laissé rester à bord après le convoyage. Ce furent quelques mois divins: j'ai trouvé un job au club Nautique, j'ai trouvé des copains, et je vivais comme un Dieu, apaisé. J'avais alors beaucoup de patience et très envie de me procurer des copines, comme de danser, boire, me battre dans les bars - enfin, je me suis battu une fois, seulement, à "La Pilotine", le seul bar que nous fréquentions. Le barman s'appelait Jean-Paul. Je l'appelais Johannus Paulus, car il était pédant, et moi aussi, un peu, des fois. Quand j'ouvrais la porte du bistrot une main se levait et disait "Jean-Paul, la première bière de Luis est pour moi", suivie d'une deuxième, troisième, quatrième. Je n'avais pas encore commencé à boire et j'étais déjà saoul, de cette atmosphère chaleureuse, excitante, sauvage. J'aime Dunkerque comme si j'y étais né.

Mon amour pour ces régions venait déjà de Guernesey: Nous y étions arrivés avec un force 6 dans le c… et entrâmes dans le port le spi en haut car les pubs allaient bientôt fermer. On a fait une manœuvre parfaite: le spi en bas et nous à quai, le bateau arrêté, aussières passées. Comme toujours dans les ports anglais un douanier nous attendait. Il nous a insulté pendant cinq interminables minutes - on ne pouvait pas entrer dans le port à cette vitesse, on ne pouvait pas naviguer dans le port avec le spi en haut, et ci et ça. Il a terminé, très britanniquement, en nous disant que nous avions fait une manœuvre parfaite et que la meilleure Guinness était dans le je ne sais quoi pub. On y a couru et je suis tombé amoureux de Guernesey à tout jamais, au contraire de la Guinness, d'ailleurs, de laquelle je n’aime pas trop le côté sirupeux.

Ce fût mon premier contact avec la bière et les civilisations que la boivent. Les moines allemands appelaient la bière "le pain liquide" et Dieu sait combien, oh combien, ils avaient raison. C'était ma nourriture de base, ces temps, et encore aujourd'hui je regarde mon irréductible ventre et je pense aux jours où les bières étaient bues, urinées, éjaculées, battues à coups de poings, transpirées en musiques hawaïennes et converties en interminables mais généralement récompensés dialogues sur les plages de la Mer du Nord.

A Dunkerque j'avais le bateau à quelques minutes de la Pilotine et j'étais heureux, omnipuissant, invincible. Et un jour je suis finalement tombé amoureux: d'une fille belle et douce, avec qui je vendais les livres pro-indépendence de la Flandres Française et faisais l'amour aux bords des canaux couverts de brume. Des fois on s'arrêtait pour boire un verre dans les moulins transformés en bistrots et je regardais ses cheveux, qui avaient la couleur de la bière, et ses yeux, bleus foncés comme la mer par un jour de vent et je l'aimais encore plus car j'avais mauvaise conscience et je voulais qu'elle me pardonne toutes les choses que je lui ferais un jour. J'ai failli mourir pour elle, à la plage près de Sintra et elle se demandait pourquoi, pourquoi veut-il se tuer, maintenant que je suis là - et je me battais contre un courant insensé et quelques litres de vin et d'eau-de-vie et contre mes peurs et mes doutes et ma couardise.

Même quand je suis bien je ne suis pas bien. Et maintenant j'écris ces choses en écoutant Willie Nelson qui a de belles chansons sur la solitude et personne n'imagine la solitude et l'horreur que je vis. Et la peur. Je dis toujours à mon fils qu'il n'y a que les idiots qui n'ont pas peur, que le vrai courage consiste à vaincre sa peur, et non pas à ne pas avoir peur. Mais j'ai peur. Et je me rappelle que je n'ai pas de peurs synchroniques, toutes mes peurs viennent avant ou après les choses. Je ne suis donc même pas en train de vivre le pire, pas encore.

Il n'y a qu'amant que l'on peut être mauvais, car il vaut mieux que de ne pas l'être du tout.

Satie-sfação

Cada vez que oiço Satie tenho vontade de me ciliciar: cem vergastadas por cada ano em que dizia «a música acabou com Beethoven e renasceu com os Pink Floyd, Deep Purple, Miles Davis, Cecil Taylor, Sonny Rolins, Coltrane, Jeanne Lee..." (há aqui uma ligeira assincronia, mas não faz mal. De qualquer forma, Satie deixou de ser o único).

Dependências

Compreendo bem os covido-dependentes: nunca fui de grupos, rebanhos, clubes, manadas ou gregarismos; mas entendo-lhes a utilidade, o seio doce que provêem a quem sozinho não respira.

16.11.20

Não-Mónica

Procuro uma palavra que rime contigo e encontro "tectónica". É uma palavra bonita e adequada. Bem sei que não te chamas Mónica, mas isso é irrelevante. A rima é perfeita.

Moldes

Como se tivéssemos sido o molde um do outro: assim nascemos para o mundo, tu feita por mim e eu por ti e assim olhamos hoje um para o outro e os dois para fora. Nunca ninguém nos mudou: estávamos feitos de carne viva. Quem chegava depois ou cabia no molde ou não entrava. Não passámos juntos a primeira noite que podíamos ter passado um no outro para "não seres igual às outras", disse-te. E tu a mim: "para não seres igual aos outros". Desculpas esfarrapadas. Estávamos simplesmente a brincar com o tempo, a levá-lo à última trincheira, a dizer-lhe: "o primeiro que piscar os olhos perde".  Ele perdeu; nós ganhámo-nos quando quisemos e não quando ele nos propôs um ao outro. Jogar com o inevitável e ganhar porque o que não podia deixar de ser foi, mas foi quando nós deixámos, soberanos. 

Nunca nos perdemos. Outros e outras foram e vieram, iguais a si próprios: nada mais do que outros. Nós ficámos, moldes de nós. 

15.11.20

Vinho quente

 O Haut Médoc que comprei ontem na Placette é uma merda, passe o galicismo. Há sítios onde não se pode comprar vinhos baratos, ponto. Vai para vinho quente:

Um pau desta maravilhosa canela,
Gengibre em pó,
Cardamoma,
Um cravinho ou dois,
Feno-grego,
Um nadinha de noz-moscada em pó,
Açúcar bruto,
Um quarto de laranja.

Et vogue la galère! Vai o vinho ao lume com isto tudo, aquece devagarinho, já no copo junto umas gotas do Mount Gay que comprei ontem. Assim, sou pelo Outono, pelo Inverno e pelas Primveras frias.

Ambiguidade

Sem ela, a casa - um pequeno apartamento de cinquenta metros quadrados - parecia-me enorme. Um dia disse-lho.

- Porquê? Ocupo muito espaço, ou falto-te? - respondeu.

Maldita, enraivecedora ambiguidade.


14.11.20

Descida, luz

Escorregas dia e noite, às vezes mais depressa, outras quase parado. Tentas olhar para trás: não sabes para onde vais e pensas que saber de onde vens talvez ajude. O escorrega é branco, gigante, cheio de curvas. Até subidas tem e tu deves passá-las com a inércia. Olhar para trás não ajuda. Concentras-te no que te está à frente, sabendo que pouco podes fazer para o alterar. Talvez encolher-te, proteger a cabeça com os braços cruzados por cima, fechar os olhos quando a luz é intensa de mais. Vais descendo, cada vez mais vulnerável, cada vez mais fraco. Ao fundo vês um clarão muito forte, luz branca que te encandeia, não te deixa ver nada. "É melhor fechar os olhos", pensas. "Não. De pouco me servirão, depois de isto passar". 

A descida acabou. Entraste na luz de olhos abertos, como um homem.

(Para a A. I., com um beijo.)

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 14-11-2020

O aquecimento global é bom, sobretudo quando calha estar onde eu  estou. Fui à Placette (actualmente Manor, mas só mudou há coisa de vinte anos, ninguém fixou o novo nome) e no regresso tinha de passar pela casa Trancosense e pela Coop. Enganei-me algumas cinquenta vezes, entre eléctricos errados, paragens adiadas, trajectos a pé mais longos do que o necessário. A única coisa que me aborreceu foi ter gostado dos enganos e do passeio, que me fez chegar a casa exausto. A Placette não tinha amêijoas, de maneira amanhã vamos ter caldo verde e moules marinière, em vez do caldo verde e amêijoas à Bulhão Pato que me tinha sido pedido pela jovem e adorada H. 

Penso na conversa de ontem com P. M., um daqueles armadores que passaram a amigos: "quanto mais envelheço", diz, "menos gosto de Genebra". Comigo passa-se exactamente o contrário, mas pergunto-me "por quanto tempo?" A cidade é linda, calma, tem as mulheres mais bonitas do mundo, é cosmopolita e internacional e tudo mas há sempre um mas no fim. Às vezes esconde-se, outras aparece. Mas nunca se vai embora. 

Enfim, não sei. Em breve estarei de regresso a Palma e verei melhor. Há coisas que só se vêem bem ao longe. 

Terça ou quarta tenho uma reunião de trabalho, para uma ideia que me foi passada pela S. Se der resultado, vai permitir-me conciliar tudo: o P., Genebra, Portugal... (reticências porque sonho). O que não sonho é o gozo que antevejo em trabalhar de novo com pessoas para quem o tempo conta, que não deixam os outros pendurados em decisões que nunca mais vêm, para quem sim é sim e não é não. 

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Dia lindo. Não estava tão quente quanto pensei - doze graus - mas permitiu-me ver o parque Bertrand cheio de gente, sentar-me à beira-rio com meia-garrafa de vinho e encher-me de sol. Os cafés estão fechados, as lojas "não essenciais" idem. A asneira é universal. Aqui na Suíça composta pelos idiotas que reclamam contra o federalismo (só há dois cantões fechados, os outros estão abertos e como é óbvio as pessoas deslocam-se para onde podem fazer o que querem. Outra vantagem deste sistema político, que reforça e muito o seu lugar de melhor do mundo. Pelo menos para mim (não sou o único). António Costa, aqui, nem para porteiro de um ministério seria admitido. Galamba andaria a conduzir autocarros, se tivesse sorte. O Pedro dos comboios e da TAP estaria preso, ao lado do César dos Açores. Ou então venderiam chouriços e caldo verde numa mercearia portuguesa, como a casa Trancosense, que recomendo (excepto se os contratar, claro). 

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Encontrei Mount Gay na Placette, a um preço mais do que decente (para aqui). Antigamente era lá que a S. e eu fazíamos compras. Mudem os nomes, mas não mudem o resto. 

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Dia 29 vão a votos duas iniciativas que têm de perder. A luta está renhida. Uma visa incluir as filiais estrangeiras das multinacionais suíças no quadro jurídico helvético; a outra, proibir os financiadores institucionais de investir em empresas que realizem mais de cinco por cento do seu volume de negócios com armamento. São problemas de quem tem a barriga cheia e não sabe que de boas intenções está o inferno cheio. O governo federal está contra, claro. À primeira apresentou uma contra-iniciativa; à outra creio que não. Porcaria da Covid afastou-me da televisão e o esquerdismo do Temps dos jornais. Só me chegam farrapos de informação. Verdade seja dita que é de costas e ao empurrão que me interesso por isto. Os "miúdos" saberão lidar com estas coisas, seja qual for o resultado.

Destas e de outras. A Suíça da planície, urbana e de esquerda ganha terreno demográfico à da montanha, mais sensata e pés na terra. Coisas vão de certeza mudar. Resta esperar que a mudança a) seja lenta e b) não chegue ao essencial.

Protestar é preciso

Estamos em Genebra, a meio de Novembro e alguém se devia queixar veementemente do aquecimnto globl. Isto de se ser obrigado a pôr óculos escuros para ir à rua e não se precisar de casaco é um violênci jamais vista.

PS - Isto faz-me lembrar a história dos eléctricos em Genebra. Os antigos eram muito brulhetos e a população protestava. Que era um brulho insano e por aí fora. Chegaram os novos, modernos, lindos, suaves como óleo de amêndoa na pele recém-duchada  - e silenciosos. Os gemebrinos protestaram - eram perigosos porque não se os ouvia chegar.

Protestar é preciso!

PPS - Vou levar o anorak. Nunca se sabe, Pode aandar por aí um vírus à espreita de um excesso de optimismo, desatento à realidade. Barrigudo, para compõr a narrativa.

13.11.20

Sem anestesia

Faz uma operação à alma, pede ao médico que dela te extraia a pedra do amor e a substitua por uma taça de café bem quente e preto, ou por um dia na praia. Ele que a faça sem anestesia, para ser mais rápido. 

Sentidos, perguntas

Peço a uma fisga que me atire para os braços acolhedores das noites que passámos juntos. Um dia perceberemos de que foram essas noites feitas. Hoje não: ainda é muito cedo. Ainda o dia está aqui ao lado a olhar-nos e a perguntar-se o que fazer de nós, da noite que aí vem, dessa fisga a que alguns, inevitavelmente, chamarão amor. Não tu nem eu: não gostamos de responder a silêncios com vazios, com imagens de uma crianca na praia a esvaziar o mar para a cova que acabou se cavar, ou a fazer um castelo de areia para impedir a maré de chegar aos pés das famílias nos toldos.

As perguntas que fazemos - ou faremos, quem sabe? - só têm resposta à noite e não será com palavras que lhes encontraremos o sentido.

Fenda, luz

Ouve-me. É de luz que te falo, dessa sua estranha propriedade de esconder o que torna visível, como se as coisas fossem muito mais do que a sua superfície. Se calhar são. Se calhar não apagas a luz porque não tens a certeza de morrer. Vives no espaço  que está por baixo da luz, o espaço de que te lembras por baixo do prédio da tua infância, por baixo daquilo que és hoje: um fenda à procura da luz.

Sem resposta

Desafiam-me: escreve sobre gatas. Não percebo nada de gatas, não sei de animais que caçam de noite, pela calada do silêncio, mal se lhes ouvem os passos, elásticos e flexíveis como a fisga com que te olham. Não percebo nada de nada, aliás, seja noite seja dia; com a possível excepção de silêncios. Desses percebo. Silêncios flexíveis, fluidos,  extensíveis, mantos sobre um corpo que à frente da lareira lhe absorve o calor. A lenha crepita, algures na sala uma gata olha para o fogo. Não sei o que nele vê. Do corpo sabe que pode esperar a mão que tantas vezes a acaricia. Mas do fogo? Da noite que ele apaga, do silêncio que fala com o crepitar da lenha e com a respiração compassada que do manto exala? 

Uma gata, uma lareira, um corpo vivo debaixo de um cobertor. Talvez perceba de paz, também. Talvez perceba de fogos contidos numa lareira, de corpos contidos no silêncio, de olhares mudos de tanto interrogarem o que não percebem. 

Talvez perceba de tempo: quanto mais vai durar aquele fogo? Há quanto tempo desafia o olhar da gata,  aquece o corpo que no chão respira solidão e paz, tranquilidade, noite habitada pelas chamas, por um olhar mudo que nelas embate, pela mão que espera - oy procura - uma carícia?

Não sei. Não percebo nada de perguntas sem resposta. 

11.11.20

Autocarro, espera

Vivemos todos na intersecção. Alguns olham para todos os lados, outros só em frente e são atropelados pelos automóveis que vêm do passado, ou de um dos lados. Outros embarcam no primeiro táxi que lhes pára à frente e vão para o destino errado.

Outros ainda aterram no teu ventre. Sorte a deles, tanto quanto a tua. Um dia chegará a minha vez, mas vou traficar o bilhete: vou dizer-te que os dias param comigo, numa misteriosa paragem ao lado do fim da linha. Não precisarás mais de correr para apanhar o autocarro: é ele que te recolhe, sozinha na paragem, à minha espera. 

Vidas, sapatos

Fui a uma loja de vidas usadas e comprei uma. A mais barata, claro, nunca gostei de desperdiçar dinheiro em vidas. Já lá vão mais de quarenta anos, quase cinquenta. De vez em quando troco-a por uma nova (isto é, diferente. Não compro vidas novas, só em segunda mão.) Agora não sei o que fazer. Esta que vivo presentemente está quase nas lonas, mas a verdade é que gosto dela e não me apetece nada trocá-la.

E depois, vejamos: quem é que me garante que a próxima seria melhor? A minha experiência na área da troca de vidas diz-me que ora saem melhores, ora piores. A diferença é que até agora só as tenho trocado quando as que usava já não tinham futuro. Esta ainda talvez tenha. Eu gostaria que tivesse, pelo menos.

Comprar vidas é complicado. Não é como comprar café na casa Flor de Chaimite, em Lisboa, onde o senhor Tavares, tão circunspecto como competente, nos aconselha. Não há muitas lojas de vidas, novas ou em segunda mão. São poucas. Os católicos prometem-nos uma para depois desta, mas é preciso morrer primeiro. Não estou para isso. Os comunistas falavam no homem novo, mas já devem ter visto que é treta, porque nunca mais os ouvi sobre o tema (também já não peroram sobre os futuros radiosos, de passagem seja dito). Tão pouco me apetece entrar agora nessa igreja. Quando comprei a primeira vida vinha sem religiões e mantive esse princípio. As vidas sem fé são mais leves, apesar de depois se  tornarem mais complicadas. Ou seja: estamos sozinhos, cada vez que se trata de comprar uma vida.

Escolher uma nova para substituir a actual é outra das dificuldades. Por mim, uma vida com absinto, coelho de quinta e vinho tinto de Neuchâtel (quem diria...) serviria,  mas sei de antemão que não seria sustentável. Uma vida deve durar um mínimo de dez anos, extensíveis a quinze. Nunca mais, mas não menos. Ao fim de quinze anos vêem-se-lhes os fios, como jeans Levi's usadas. Nestas ainda vá que não vá, mas nas vidas não. Ficam a parecer-se com hábitos. Uma vida vivida menos tempo do que o que deve... Não sei. Nunca experimentei. sempre as usei até ao fio.

Uma vida dura o mesmo que um par de calças e menos do que um bom par de sapatos.

10.11.20

Netflix, D. Matilde. Ou : pequena, ligeira e passageira irritação do dia, isto amanhã passa, é só uma brisa

Vai ser giro, fazer o balanço desta porcaria toda. Pergunto-me que pedra ficará sobre pedra, que esperança sobre que esperança, que passados? 

Um grupo de betos (com algumas raras e notórias excepções) bem pensantes resolve fazer um comunicado para se distanciar do Chega (ou do acordo PSD / Chega, não percebi bem, aquilo é uma salganhada de ir ao cu sem dizer nem ir, nem ao, nem cu. Atribuo a coisa à Covid. Andamos todos transtornados). Teve imensas assinaturas, ficaram bonitas, por ordem alfabética como deve ser. Quase se viam os pullovers Burberrys de lã com cotoveleiras de pele, uns encarnados, outros cor-de-rosa, outros verdes ou azuis ou assim. Uma peça de equipamento que todos (ditto) dispensavam eram coquilles. Quando eu era adolescente (tardio, o 25 de Abril chegou-me aos dezassete anos) o referencial da vida política era o PC. Ou se era comunista ou se era anti-comunista (primário, escusado é dizer). Hoje ou se é do Chega ou se é contra. É preciso é dizer. É preciso estar do lado bom da barricada.

Desses tempos ficaram-me alguns vícios. Um deles - o que muitas vezes mais lamento - é este desprezo pela burguesia. É tanto que se não me conhecesse diria que é inveja. E então quando se mascaram de burgueses ainda é pior. Sejam revolucionários sejam anti-Chega, verdes, encarnados Burberry a nadar todos no mesmo caldo ou na mesma chavena de Nespresso, essa abominação. 

Não tenho nada contra a burguesia, note-se. Trouxe grandes vantagens ao mundo, como as canções de Jacques Brel, os Alexanders do Procópio e as estantes Ikea, tão práticas. Só que às vezes irritam-me, depois irrito-me comigo por estar irritado com eles e isto enrola-se tudo numa girândola sem fim. 

Vá lá que encontrei café como deve ser, o molho hoje estava bom e o tempo tem ajudado. Os meninos podem voltar à Netflix, o Trump é mau, o Ventura cheira mal dos pés e a sopa da D. Matilde é boa que se farta, trabalha para nós há cinquenta anos, manda-me o texto por e-mail que eu assino já. 

Exageros, divagações e mistificações do dia - Genebra, 10-11-2020.

Preparo uma panela de vinho quente: fenugrec (feno-grego, diz-me um tradutor em linha), cravinho, gengibre (em pó, infelizmente), canela (uma canela esplêndida, directa da Martinica, tal como o feno-grego), cardamoma, um bocadinho de açúcar mascavado, algum tempo ao lume fracote. A ver como fica.

Hoje de manhã foi a vez do coelho à caçador para amanhã. A cozinha liga-me ao mundo, à essência, aos fundamentos, tanto como a palavra, o mar ou a fotografia. Nada a fazer, nada que precise de ser feito ou deva. 

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Plano para a reforma: cancro fulminante.

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Molho improvisado: cebola, alho e alecrim a refogar em manteiga. Aonde é que isto me levará, a que abismo, a que Tártaro? Fogão = Circe? Fogão = Hades? Não inteiramente. Fogão = Cronos.

Exageros.

Adenda: ao refogado inicial veio juntar-se um bocadinho de pasta de tomate, um frasco pequeno de Confettura extra di Cipolle Rosse vindo do Val d'Aosta, meia cerveja Super Bock, um monte de piment d'Espelette, algumas alcaparras e montes de tempo ao lume fraco. É a definição perfeita de improviso. A alegria que se sente quando uma coisa destas fica boa é indescrítivel. Ficou melhor que boa. É quase como fazer amor com uma miúda que não se conhece e sair bem.

Infelizmente, deu-me uma horrível vontade de voltar ao Val d'Aosta, mangiare una fonduta di fontina. O passado é o pior inimigo do presente. Quanto mais passado um gajo tem, mais difícil é o presente, mais é preciso lutar.

9.11.20

Horizonte, liberdade

Questão de transcendência, sem dúvida. Tudo o que está para além de. Como se a vida fosse um filme de Tarkovski: anda-se, não se sabe porquê, para quê, por onde, para onde mas sabe-se que andar é preciso, não se pode parar, o horizonte não espera por ti. Espreme-o: sai liberdade. É o sangue, o combustível, o que o faz respirar. 

Talvez seja ao contrário: o horizonte move-se e tu vais atrás. Tu imagina-lo fixo, entre o mar e o céu mas ele move-se, puxa por ti, leva-te atrás dele. Ele é a tua liberdade. Espreme-o: saem sonhos, sombras passadas, futuros multicromáticos com a forma de um ponto de interrogação desenhado por uma criança de seis anos. 

Pregaram-te a uma cruz. Avança, desprega-te, escolhe outra, avança, sobe, desce, avança com a mão sobre os olhos, os ouvidos, a boca. Não fales, não oiças, não vejas. Liberdade, horizonte, um grande terreno juncado de destroços, ruínas, desolação, raios de sol, flores, frágeis e enganadores eflúvios, beleza. A mistura surpreende-te?

Claro que não. Avança. O filme está quase a acabar.

8.11.20

Só experimentando

- Às vezes gostaria de pensar que as coisas podiam estar piores.
- Então porque é que não pensas?
- Porque pior do que isto só morto e não estou certo de que seja pior.
- Pois. Só experimentando.

On bitches and bad luck

- Life's a bitch, and then you die. 
- Luckily. It'd be worse if you didn't. 

Idade, bio

Uma das coisas chatas aqui em Genebra (na minha opinião, claro. Não falo pelos outros) é que não se pode entrar num supermercado sem se ser assaltado por produtos «bio», «sem gluten», «sem lactose», sem mamas e sem ventre. Um gajo quer produtos normais, com gorduras e todos os componentes e tem de os procurar. À vista só estão os da categoria zeitgeist - o que se compreende, porque  normalmente custam o dobro do preço (e não se compreende porque têm metade do sabor, mas isso é outra história).

Contudo, isto dá origem a situações giras. Ontem na Coop um casal de idade fazia compras à minha frente, nos legumes. A certa altura o senhor apercebe-se de que ali tudo é "bio" e diz à mulher: "Sabes, com a nossa idade já não ganhamos muito com isto do bio" e arrasta-a para os legumes cibernéticos (que de resto era o meu destino, também).

7.11.20

Nunca mais

Sabes que estás ziguezagueando no labirinto, mas não sabes qual é o labirinto. Tempo e memória são dois enigmas diferentes, dois caminhos distintos. Perdes-te, saltas paredes, passas de um para o outro como se jogasses à macaca. Boa analogia, a sorte é macaca, deixa-te pendurado nas áleas do acaso, não sabes se estás hoje ou a reviver qualquer coisa de que te lembras tão fortemente que te parece que é agora, esta bolha é mesmo uma bolha ou é um quisto, posso rebentá-la ou preciso de o extrair, extrair-me dele, dela, de tudo o que me ficou do que me lembro, não sei se me lembro do que foi se do que é, será, era tão bom quando não tinhas memória, nem tempo, só futuro, compartimento especial do passado, queres dizer comportamento?, não, sim, não sei, não me lembro, amanhã a macaca muda de solo e eu de tempo. Sinto-me como um relógio de sol em dia de mudança de hora. Deixa-me lembrar-te que os teus labirintos não são feitos de horas, mas sim de vidas. Qual a relação de causalidade entre elas? Entre a de agora e a próxima? Uma gesta a seguinte, como se de um feto ainda não sabes a cor dos olhos? Labirintos. Foi lá que tudo começou: tu imóvel e os "muros" faziam-se e desfaziam-se à tua volta. Assim aprendeste a deslocar-te no tempo. Abúlico. És um abúlico equivocado, enganaste-te de pele e vês-te hiper-activo. És tudo e o seu contrário. Tudo se desloca à tua volta e um estranho mecanismo faz-te pensar que és tu a causa desse movimento. Movimento peristáltico? Quem, tu ou o que te envolve? O quisto ou a bolha? Sais de uma e entras no outro, o outro evolui para bolha, perdes-te, não sabes onde estás, sentes-te como aqueles aviadores que sem horizonte não sabem se têm a cabeça para baixo ou para cima. Como os mergulhadores, de resto, às vezes não sabem se descem se sobem. Com oxigénio não se pode descer a mais de oito metros, conhecimento este que te parece bastante útil, cultura geral, far-te-ia sem dúvida ganhar um queijo no próximo natal familiar, caso ainda tivesses natais, jantares, família. Não tens nada disso: tens um deserto no qual entrevês sombras que se aproximam e te acolhem, te recebem, te dizem: estás sozinho mas não te enganes, estamos ao teu lado, do teu lado, sombras familiares, temporais, sombras do passado mas amanhã ainda cá estaremos, basta fechares os olhos para não nos veres mais, nunca mais e nesse dia não te deixaremos, nunca mais.

Nunca mais. O labirinto é bonito, pensas antes de fechar os olhos.

Fácil, lamento

Deito-me no tempo como numa espreguiçadeira, no convés de um paquete, à beira da piscina da primeira classe. Olho para as senhoras que se zangam com os maridos porque eles olham para a concorrência. Se estivesse de pé veria bem a esteira, aqueles remoinhos brancos que desinquietam o azul do mar. Mas não estou. Só te vejo a ti, penso no esforço que fiz para deixar de te amar, no frágil e vacilante resultado ao qual cheguei: o mais pequeno fósforo, daqueles de cera, tão dificeis de acender, chegaria para me fazer dar quinhentos passos atrás e voltar à cama onde pela primeira vez nos amámos. Onde foi, lembras-te? Eu não. Sei que foi numa aldeia, ou numa vila do centro da ilha. Foste tu que me levaste lá, de carro. Nessa altura ainda não tinha carta e ainda não te amava como mais tarde viria a amar-te, como mais tarde viria a lutar para não te amar.  A nossa história de amor foi isso: uma luta contra a vida que te retinha na tua vida, contra o amor que me puxava para o amor. Amor contra vida. Quem ganha? Fácil de adivinhar, não é?

Só uma coisa te posso dizer hoje: lamento ter deixado a vida ganhar.

6.11.20

A cor do verniz e o zeitgeist

Quando estava no Burundi e alguém me vinha com «reflexões» sobre a «selvajaria dos pretos» (aspas porque cito) limitava-me a apontar as ignomínias que se cometiam na então Jugoslávia e a perguntar onde estavam os pretos. Hoje, face ao que se passa nos EUA (e, numa escala infinitamente mais pequena, num cantão suíço onde decorre uma luta - eleitoral, mas com contornos iguais aos dos Estados Unidos - para que uma vila de sete mil habitantes passe de um cantão para outro), não consigo deixar de pensar na «civilização».

«Chassez le naturel, il revient au galop» bem podia ser «escorraçai a biologia...» ou «envernizai a biologia...». «Tentai expulsar um vírus...» inscreve-se na mesma linha: a da obnubilação deste facto singelo: o homem é um produto da natureza e a civilização uma capa de verniz que se lhe põe por cima, um adereço mais ou menos espesso, pronto a saltar à menor oportunidade. A modernidade esquece-o frequentemente e engana-se nas lutas - na cor do verniz. Algumas valem a pena, resistem melhor ao tempo. Outras não. 

Eliminar a natureza da equação, querer mudá-la, torcê-la, moldá-la ao zeitgeist está votado ao fracasso.

5.11.20

Promoção - marinheiro em casa

Forçoso é reconhecer que um marinheiro em casa fica muito caro. Mas vale cada cêntimo que custa. Hoje está em promoção e vem com auto-retrato, jantar de luxo e dúvidas existenciais. Não hesitem, minhas senhoras. Comprem já. Vem com facilidades de pagamento e pode ser devolvido em caso de doença, disfuncionamento ou aquisição - pouco provável - de certezas irrevogáveis.

Reedição - Dias (13-06-2008)

«Todos os dias que Deus fez» não são todos os dias: alguns são feitos pelo Diabo.

Reedição - Acreditar (25/05/2008)

A quem não acredita nem em teorias da conspiração, nem na estupidez (ou incompetência) generalizadas, resta acreditar em quê? Na fatalidade? No acaso? Numa mistura de todos estes ingredientes (receita à qual seria necessário acrescentar um pouco de voluntarismo - tanto altruísta como egoísta, claro - para que a fotografia ficasse completa)? E que fazer? Resignar-se? Indignar-se? Resistir? Lutar? Um pouco de cada, também, suponho. Talvez não sirva de muito, mas tudo o que seja acima de zero vale a pena.

(Cada vez mais actual.)

1.11.20

Gás que se poupa

Para Roger Vailland era o jogo da cabra-cega. Para Goliarda Sapienza - assim chamada no seguimento da morte de um irmão chamado Goliardo - era a Arte da Alegria. Para Yourcenar, García Márquez, Beckett, Tomasi de Lampedusa, eram outros tantos: a vida está ali, num milhão de páginas da literatura. Ou de música, pintura, escultura, fotografia, cinema, teatro. Não é a arte que é a vida, mas esta que é aquela, plasmada como num ecrã de televisão acendida vinte e quatro horas por dia.

Hoje fui visitar a catedral, onde há alguns anos (pouco menos de vinte?) ouvi as Vésperas de Rachmaninov dirigidas por Michel Corboz. Para quem acaba de passar dois anos em Espanha é uma experiência (eufemismo para «um choque»). Gosto tanto dos templos protestantes, nus até à confrangência como gosto dos excessos das igrejas católicas. Não tem nada a ver com a coerência, coisa que me interessa pouco. Tem a ver com o ser. Com a assumpção do que se é. Não sei bem como explicar isto: prefiro um verdadeiro filho da puta a um falso beato; não me peçam é para definir agora «verdadeiro» e «falso». Não saberia fazê-lo (e se soubesse provavelmente não quereria, mas isso são contas de outro rosário).

É contudo verdade: o que aprecio nas pessoas, nas entidades, nas crenças, superstições, igrejas, orgnizações é a consistência. A envergadura. Ser-se o que se é, seja esse ser complexo ou simples, visível ou invisível. «Sou o que sou e é tudo o que sou», dizia a personagem de uma banda de publicidade de espinafres. Não sei bem o que é «tudo o que sou», mas sei perfeitamente o que é «sou o que sou».

Sou o que fui, sou o que serei: tudo isto sou eu, misturado mil vezes em mil vidas e mil eus, vida a mil vozes, mil vidas e uma voz: a minha. Tudo isto se unifica, tal como a chama se afunila quando sobe. Talvez o tempo seja isso: um funil invertido que nos concentra, destila e liberta, concentrados de nós. Acabamos essência e depois fumo: resta esperar que não haja muito tempo entre um e outro.

Viver aspirando a ser nada, mistura de gás e cinzas que se espalham numa planície, numa falésia, no mar, seja onde for. Rica aspiração, sem ironia e sem duplo sentido: as alternativas são escassas. Se não for essa, a que a substituirá é igualmente fútil, garanto. Antes a que alguém nos predestinou, sempre dá menos trabalho. Gás que se poupa no fim. 

O mesmo, en français

Madame, Monsieur.

Nous sommes deux téléspectateurs attentifs et intéressés par l’actualité. Nous suivons bien entendu avec la plus grande attention  les nouvelles concernant  le COViD, la crise que cette pandémie provoque, les mesures en Suisse des différents cantons et du Conseil Fédéral ainsi que les nouvelles des pays voisins.

Nous tenons par la présente à vous faire partager notre constat. Nous trouvons en effet que l’information que la TSR fournit actuellement à son public est partielle, tronquée et insiste en permanence sur le côté catastrophiste de la question. Nous sommes choqués de l’attitude systématiquement agressive des journalistes animant le journal télévisé quand ils se réfèrent aux mesures du Conseil Fédéral de manière général et quand ils interpellent le Ministre de la Santé en particulier. Pourquoi ce positionnement affiché d’emblée face à un gouvernement fédéral qui précisément tente de maintenir la barre intelligemment, en prenant en compte un maximum de facteurs et d’avis et ceci sans céder à la peur et perdre tout recul et esprit critique ? Le contenu de vos informations manque à notre avis cruellement d’outils d’analyse permettant à la population de garder un maximum de lucidité et de bon sens et de se construire une opinion bien fondée. Ceci bien entendu sans minimiser ni banaliser la situation actuelle.

En effet, et à titre d’exemple :

-   Vous mentionnez souvent le nombre de « cas » mais vous n’abordez jamais la question des faux positifs. Nous ne vous demandons pas d’expliquer le théorème de Bayes dans un journal télévisé, mais une simple mention aux possibilités de cas faux positifs pourrait s’avérer utile ;

-   Autre mention régulière : les cas en USI. Comment évolue le taux d’occupation des lits en USI et qu’en était-il les autres années ? Si l’on prend la moyenne des dix dernières années ? De combien est-on loin de cette moyenne ?

-   Les décès : vous nous dites combien de personnes sont mortes de (ou avec) Covid, mais nous n’avons aucune information sur les co-morbidités de ses personnes. Sont-elles mortes du Covid ou d’autres maladies dont elles souffraient ?

-   Concernant les autres pays :  vous nous informez tous les jours des pays qui appliquent des mesures de lutte anti-Covid, comme la France et l’Allemagne, ce qui est compréhensible. Mais que savons-nous d’autres pays qui ont des approches différentes ? Que font la Norvège, la Suède, les Pays Bas ? Quels sont précisément et chiffres à l’appui les résultats de leurs stratégies sanitaires ? La Suède surtout, qui est un peu le groupe de contrôle de cette expérience gigantesque que les gouvernements nos imposent. La Norvège, qui apparemment l’a suivie lors de cette seconde vague ? Nous n’en savons rien et nous pensons que la RTS rendrait un fier service à ses spectateurs en nous en informant ;

-   Les masques : sont-ils vraiment efficaces ? L’Italie, l’Espagne les ont imposé très tôt, déjà en été. Est-ce que ces mesures ont eu des résultats positifs ?

-   Le rôle de la science : est-il unanime ? Y a-t-il des scientifiques qui ont un discours différent du discours dominant ? 

Il est un vaste champ d’informations que vous ne défrichez pas et nous nous demandons pourquoi.

Nous pensons surtout que plus complète est l’information, plus bénéfique elle est pour tous. Il ne s’agit pas de transformer les journaux télévisés en cours de statistiques médicales, mais tout simplement de nous fournir à nous, téléspectateurs, des outils de réflexion. Le meilleur desquels est, sans doute, une bonne information la plus complète et différenciée possible.

En vous remerciant de votre écoute et bien entendu de votre travail au quotidien, nous vous adressons nos cordiaux messages.

Carta aos media

Exmos senhores,

Somos dois telespectadores atentos e interessados pela actualidade. Sobretudo, naturalmente, a parte desta que respeita ao vírus Sars-CoV-2, à Covid, à crise que esta provocou, às respostas dos diferentes governos.

Infelizmente, sentimos que a comunicação social fornece aos seus clientes – leitores, ouvintes, espectadores – uma informação parcial, insuficiente, enviesada e insiste demasiado sobre o discurso catastrofista da questão, sem lhes dar ferramentas que lhes permitam construir uma opinião fundada.

Com efeito e a título de exemplo:

- Mencionam frequentemente o número de «casos» sem nunca dizer quantos desses «casos» podem ser falsos positivos. Não lhes pedimos que expliquem o teorema de Bayes nos telejornais, mas uma menção simples às probabilidades de que nem todos os casos positivos o sejam realmente não seria despicienda;

- Outra menção frequente: os casos em UCI. Isto deveria ser alvo de informação mais elaborada. Qual a percentagem de leitos UCI que está ocupada? Como tem variado essa percentagem ao longo dos anos? Estamos muito longe dessa média? 

- Os óbitos: indicam o número de óbitos, mas nada dizem sobre as idades e as co-morbilidades dos defuntos. Pensamos que essa informação é relevante, tanto mais que se sabe que a atribuição de «Covid» à causa do óbito releva de umaa decisão administrativa e não clínica;

- E alhures? Sentimos que só há informação sobre um número limitado de países, mas nada nos é dito sobre países que tentaram uma abordagem diferente. Uma informação mais vasta geograficamente e profunda de um ponto de vista do tratamento dos dados seria, pensamos, extremamente útil ao vosso mercado (que talvez retribuísse  o serviço comprando, consumindo e respeitando mais a comunicação social);

- As máscaras são verdadeiramente úteis? Há consenso na comunidade científica a esse respeito? Como variam os «casos» e os óbitos nos países menos estritos na imposição do uso de mascaras? Como variaram os casos naqueles que as impuseram bastante cedo?

- Por fim: há cientistas que têm um discurso diferente? Ioannidis, Wittkowsky, Levitt, Gupta e tantos outros nunca são mencionados nas vossas peças. Mais um vez, os V. clientes apreciariam decerto ter uma panorâmica mais ampla do tema.

Há todo um vastíssimo campo de informações que os órgãos de comunicação social não laboram. Perguntamo-nos porquê e – sobretudo – se não seria uma questão de responsabilidade social, tema tão querido dos media – fazê-lo.

Quanto mais completa for a informação mais benéfica ela será, para todos. Não se trata de transformar as notícias em aulas de estatística médica, mas simplesmente de nos fornecer, a nós consumidores de notícias, ferramentas para reflexão e para podermos construir as nossas opiniões.

Esperando uma resposta, atentamente,

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 01-11-2020

Com a Renascença, o homem libertou-se de Deus. Mas só com o Barroco aprendeu a brincar sem Ele. Galileo, o «pai da ciência moderna» nasceu em 1564 e morreu em 1642 - os últimos decénios de uma e os primeiros do outro. Aonde nos leva o Sars-CoV-2... 

Leva-me longe. Neste meio de cientistas, investigadores, professores universitários, psiquiatras, todos de alto coturno, em postos de responsabilidade, pessoas cultas, inteligentes, competentes nas suas áreas vejo quão longe estamos de uma saída para a histeria ambiente. Do fóbico que não sai de casa, anda de máscara vinte e quatro horas por dia, não deixa ninguém aproximar-se a menos de dois metros até à médica sintomática que vai jantar com a amiga, o leque de atitudes é vasto. Infelizmente, o «lado bom» do espectro (o que termina na tal médica, que estava com sintomas ligeiros - tanto podiam de ser de uma constipação como de uma gripe como de Covid - e achou que não ia fazer mal a ninguém, como de resto não fez) está em minoria. No dia seguinte telefonou à S. a dizer-lhe que tinha testado positivo e se queria que a incluísse nos seus contactos recentes. S. disse que não, claro. A última coisa que quer é ficar dez dias fechada em casa para nada. Como é que se consegue transformar uma doença que tem 99,98% de sobrevivência na maior crise desde a Segunda Guerra Mundial é intrigante e assustador. Não acredito em teorias da conspiração, em complots, no impacto dos raios gama na beleza das Margaridas, mas penso seriamente que há um motivo qualquer por detrás do chefe da OMS. Não sei se é a ideologia, se a massa (antes fosse), se é a incompetência (pouco provável, mas nunca se sabe). Sei que à comunicação social e governos há que juntar a OMS - enfim, o Tedros. Não é a agência toda. 

Claro que o primeiro lugar do pódio da desgraça é dos media. S. pediu-me para escrever uma carta à RTS, a televisão da Suíça-francesa. Enviamo-la amanhã. Vou fazer uma versão em português. Não sei se o Facebook conta como meio de luta, mas como forma de expressão conta de certeza (vai num post separado). 

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Ontem quando saímos de Genebra a caminho do Jura estava nevoeiro. Não era um nevoeiro muito denso, ainda havia alguma visibilidade, mas os objectos - árvores, casas - os veículos que nos chegava de um acesso à autoestrada pareciam diluídos. Lembrei-me das sopas de leite, pedaços de pão a flutuar numa taça de leite. Depois subimos - as Rasses ficam a mil e tal metros (mil cento e cinquenta, diz-me o Google, prestimoso como sempre) - a névoa desapareceu e foi substituída por esta luz cinzento clara do Outono que dá às cores um tom acinzentado mas simultaneamente as realça, não sei porque estranho fenómeno físico. Talvez seja só psíquico, mas seja o que for é bonito, sereno, relaxante e diabolicamente sedutor. O Jura é um senhora madura, reservada, que quer ser seduzida; os Alpes, uma jovem excitada cujo objectivo é mostrar as pernas e as mamas a todos os que lhe passam à frente. 

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Um dos meus desejos mais antigos está a concretizar-se: um pé em Portugal, outro na Suíça, outro no mar. Alma tripartida, vida inteira.