28.2.23

Diário de Bordos - Comboio Porto-Lisboa, 28-02-2023

No comboio de regresso a Lisboa. Ao fim e ao cabo as greves acabaram por me correr bem, apesar de dois ou três incidentes menores. O sistema de transporte de bicicletas é repugnante, os revisores são uma simpatia, o comboio está a horas, o wifi continua a não funcionar. Tudo está bem quando acaba bem e se bem não possa dizer ainda que tudo acabou, posso pelo menos dizer como o outro: até aqui tudo bem.

O olho esquerdo vai precisar de outra intervenção. Tenho a impressão de que se instalou uma espécie de competição entre ele e o médico. Uma teima, género “O mar bate no olho e quem se fode é o Luisinho”. Consolo-me sabendo que dessa vez poderei ficar mais tempo no Porto, ver os amigos, passear.

Esta do passear merece um bemol: de Campanhã para a Foz o passeio é glorioso; da Foz para a Campanhã  é-o bastante menos. A questão não sendo as subidas – não são assim tantas nem tão íngremes – nem os pisos. O pior são as as ruas estreitas, os trajectos sinuosos (e incompreensíveis, acrescentaria se quisesse arreliar os meus amigos do Porto), o trânsito que vem de todo o lado menos de onde se espera. 

Fiz duas ou três fotografias mas acho que ficaram boas. 

E é tudo. A única coisa que faz falta é avisar o sono.


ADENDA - Seria injusto não acrescentar que tanto à ida como à vinda os wifi acabaram por funcionar. Bastou um pedido aos revisores para fazerem um reset.

Diário de Bordos - Comboio Lisboa-Porto, 28-02-2023

 Mais uma viagem-relâmpago ao Porto, ver se vejo. Isto é: ver se vejo bem. Depois das operações, há dois anos, tive uns valentes meses a sentir-me no paraíso: ver como deve ser e sem óculos. Mas depois o olho esquerdo começou a ageniar e agora juntou-se-lhe o direito. Isto é uma maçada porque já nem sequer posso acusar a esquerda de só fazer merda.  

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Graças às greves o comboio vai cheio. Não arranjei lugar numa mesa, o wifi não funciona – excesso de utilizadores, suponho – e a palavra “seca” é  insuficiente para descrever a viagem. Dantes tinha uma definição para estar teso: não poder comprar roupa nem durante os saldos. Posso agora acrescentar outra: não poder comprar um bilhete de primeira classe nem com o desconto “velhinho”.

Vá lá que ao menos o dia está bonito. O verde e o azul conjugam-se harmoniosamente, um terço da viagem já passou, a paisagem é bonita desde que não haja casario. Mal aparecem casas tudo se estraga. Que mau gosto, o dos portugueses. Não sei como são  - ou melhor, eram – as casas na Ucrânia. Aqui bem mereceriam um tratamento igual. Sem as mortes, claro. Só destruir este casario horroso, desgracioso, cúbico, todo igual, recente, sem ponta por onde se lhe pegue excepto a ideia de que alguém chama àquilo “a minha casinha” e se sente bem ali. Opinião essa que prevale sobre a minha e deixo de pensar em bombardeios.

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Cada vez que vou ao Porto assim, toca-e-foge, de raspão, tenho pena de não ter tempo para ver os meus amigos portuenses, para passear pela cidade ou ir almoçar ao Buraco. Há uma correlação positiva e causal entre tempo e dinheiro, sem dúvida. Ter um é ter o outro.

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Conversa com o jovem e prestável revisor. Diz-me que não é sindicalizado: "Não posso queixar-me do salário e dar quinze ou vinte euros por mês a esses gajos", explica. Digo-lhe que a CP devia ser privatizada. "Ninguém quer isto", replica. "É tudo sucata com rodas." Pedro Nuno, não te escondas, rapaz.

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Viajo com a pele à flor da emoção (e olhos postos no futuro, já que do presente vêem pouco).

Facto notável do dia que ainda agora começa

Fui da Alameda até à rotunda do Aeroporto e não ouvi uma única  buzinadela.  Os táxis passaram-me bem ao largo (ia no meio da faixa BUS) e o ou os autocarros também.  Ninguém buzinou. Isto é suficientemente notável para ser anotado.

Será que a civilidade começa timidamente a insinuar-se nas mentes dos taxistas, motoristas de autocarros e condutores em geral ou isto foi apenas uma sequência feliz de acasos?

PS - De caminho, descobri onde me engano quando vou da gare do Oriente para o aeroporto. Aqui está um dia que começa bem.

26.2.23

Escolhas

Os americanos inventaram a slapstick comedy, a que Portugal replicou com a slapstick tragedy.

24.2.23

Diário de Bordos - Lisboa, 24-02-2023

As vanguardas ou morrem por falta de descendência ou sobrevivem e transformam-se em antecessores.

(A propósito de música letrista, trazida pelo Miguel Martins à sessão Long Play de hoje na Snob.)

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Fragmento 

- Que fazes na vida?
- Viajo. Sou nómada e contrabandista.
- E que contrabandeias?
- Às vezes levo medo para o lado de lá e trago alegria para cá. Outras, levo sonhos e trago sono. Também me acontece ouvir os cânticos da liturgia eslava, pelos monges de Chevetogne e ficar paralisado, um pé num lado o outro no outro, sem saber que levar ou trazer. 

20.2.23

Economia, sociologia, estrelas de David e dentes, tudo em meia dúzia de linhas e uma conclusão em forma de mea culpa

Partiu-se-me o que restava de um dente e penso no que me dizia uma dentista em Palma, há bem pouco tempo: "Pode estar contente, ainda tem todos os seus dentes". Aquilo não passava de uma mini-cratera da qual o chumbo interior (ou o que agora o substitui) já saltara há largos anos e nunca fora reposto por falta, precisamente, de chumbo. Da dentista em Palma a memória, qual tapete voador, traz-me a visão de uma dentista em Cascais, pequenina, com uma bonita e bem visível cruz de David pousada sobre os amplos peitos. A senhora era pequena, os coisos grandes e quando se debruçava sobre mim eu sentia-os na testa, leves como pombinhas amestradas.

Vai ser a senhora de Palma quem me dará o privilégio de andar por aí com um dente que não é meu. Se não for muito cara, claro. Isto vai ser tanto um exercício financeiro como dentário e de auto-imagem. O dente não sendo visível do exterior - excepto em caso de grande abertura de gueule, pouco provável - será preciso saber em quanto valorizo a minha imagem de mim vs. a massa que a dentista me vai pedir para me pôr massa na boca. (Imagem essa de mim que nem sequer é uma verdadeira imagem, pois a sua única fonte é a língua, mas passemos.)

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Os meus leitores habituais já terão percebido que este post não é sobre dentes ou dentistas. É sobre um facto singelo e triste da economia: os pobres pagam mais caro as coisas do que os ricos. Ou, dito de outro modo: a vida para os pobres custa mais, em termos tanto relativos - isto é óbvio - como absolutos do que custa aos ricos. Os pobres pagam mais as mesmas coisas do que quem tem guito. A pobreza é um imposto de que a malta endinheirada está isenta.

Se à pobreza se juntar a negligência nem se fala. A diferença fica estratosférica.

18.2.23

Diário de Bordos - Comboio Aveiro - Lisboa, 18-02-2023

Fui para o Porto a ver mal do olho esquerdo e pior do direito; regresso com o direito na mesma e o esquerdo ainda pior do que o direito. Isto seria a versão dramática, destinada a suscitar a adesão ou a compaixão dos leitores. A outra versão - a que prefiro chamar real - é que o olho esquerdo está inoperacional porque foi operado de novo, apreciem o subtil e duplo jogo de palavras, é desta que vai ficar como novo; e o direito trata-se com comprimidos que em breve comprarei. Reduzo-me portanto à habitual mistura, nestas circunstâncias, de anestésico para o olho e telefone (ou tablet) para a alma. Se a tivesse, mas isto agora não está para discussões teológicas.

Há pouco li um post de uma jovm senhora que me encheu de alegria, bem-estar e divindade. Tenho a minha dose quotidiana de coisas do outro mundo (ou do mundo superior, se preferirem).

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Ontem foi noitada de raclette em casa do meu primo J., em Aveiro. Para além de uma quantidade de queijo digna de registo, quatro jovens machos (incluo-me, abusando um pouco dos dois conceitos) beberam uma garrafa inteirinha e por estrear de kirsch. Já para as inúmeras garrafas de vinho branco houve a colaboração das senhoras presentes. Pouco activa, verdade seja dita. As mulheres sacrificam-se por nós, homens, de uma forma que torna impossível a vida sem elas. O vinho era bom, o kirsch igualmente, o queijo fantástico (tenho pena de ter decidido não voltar à queijaria Dupasquier, rue de Cornavin em Genebra) a companhia agradável e a conversa viva. C., a jovem e bonita prima, faz parte daquele grupo de pessoas que acha a palavra maricas ofensiva e portanto pensa que deve ofender-s, como se houvesse uma relação de causa-efeito entre ofensivo e ofendido. Não há, querida C., muito menos quando o que tens pela frente é um troglodita, herdeiro directo do Humpty Gumpty aliciano, para quem as palavras significam o que ele quer que signifiquem (isto não é bem verdade, mas troquemos a exactidão pela retórica, entre duas gotas de anestésico ocular e dois mil solavancos do comboio).

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Tudo isto me recorda que se estiver numa cama com uma senhora e na fase das ternuras pós-coitais ela me disser «estou fodida» a expressão tem um significado e uma conotação diferentes da que teria se ela a utilizasse porque eu cheguei tardia e ebriamente  casa, por exemplo. Ou se me tiver esquecido do seu aniversário, não tiver reparado que vem do cabeleireiro ou me tiver esquecido de comprar manteiga no supermercado (nada de associações cinéfilas, por favor).

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Uma mente gasta, dois olhos a pedir reforma e um corpo cansado encontram-se num comboio...

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Tudo indica que a palhaçada camarária chegou ao fim. A ficha só cairá quando o guito cair no banco - não é amanhã a véspera desse dia - mas só de saber que o «meu» P. saíu das garras da burocracia fico com o depósito de alegria atestado. Agora justifica-se que o ateste com outras coisas - kirsch, por exemplo.

17.2.23

Diário de Bordos - Comboio Aveiro-Porto, 17-02-2023

No comboio para o Porto. Duas filas à minha frente um senhor fala ao telefone. Visivelmente não acredita na capacidade do aparelho transmitir aquilo que diz ao seu interlcutor e faz os possíveis para que este o oiça directamente, sem mediações suspeitas. Toda a carruagem fica a saber que o senhor tem problemas «dos joelhos para baixo». Perde a sensibilidade, ou coisa que o valha. Da sensibilidade do homem não sei, mas do seu bom senso e da sua educação sei: algo me diz que nunca os teve. Abandono o meu lugar e venho para o bar, vazio e silencioso. 

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De regresso ao Porto, infelizmente por muito pouco tempo. Não chega a meia dúzia de horas. Pergunto a mim mesmo se não teria feito melhor trocando de olhos. Talvez por um par deles vindos de um socialista, ver se começo a olhar para a merda de governo que temos com os olhos adequados. 

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Pelo menos o dia está lindo. O trajecto de bicicleta de S. Bento à Foz vai ser uma maravilha. (Pequena nota lateral: a CP bem podia encontrar outro sistema para levar bicicletas. Assim penduradas dá-me cabo do guarda-lamas traseiro. Para não mencionar a entrada e saída nas carruagens. Seria preferivel pagar-se o transporte das burras e ter um seriço melhor.)

13.2.23

Notas à solta

Três - dois - um

Três edredões, duas horas prévias de aquecimento a gás no máximo e uma botija de água quente. E ainda há quem pense que faz frio no Alentejo.

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Hipotenusa 

Durmo em diagonal na cama. Toda a gente sabe que pés desapoiados não produzem boas ideias, bons sonos e menos ainda bons sonhos.

Se por acaso houver uma senhora no horizonte, basta certificar-me de que a sua altura é inferior à hipotenusa do triângulo recto assim formado, não esquecendo de subtrair ao lado maior do polígono a largura das almofadas. 

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De boas intenções, etc.

Um prado com cem flores será sempre mais bonito do que um de uma só, mesmo que essa seja a minha.

Variação 

skippers totalitários, rígidos, para quem só há uma maneira de fazer as coisas. Eu não sou desses. Sou um tipo aberto e flexível e sei perfeitamente que há duas maneiras de fazer seja o que for: a minha e a errada.

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Vê-se mais longe no escuro porque só se pode olhar para dentro. Olhando para fora esbarra-se imediatamente no muro do real.

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Sou contra os colchões de água, a menos que sejam também eléctricos. Aquecer aquela água toda ao fogão levaria a noite toda. Um colchão aquático eléctrico é muito mais rápido. 

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Somos filhos

A vantagem de se escrever de madrugada é que se fica com o resto do dia para não fazer nada e o nada não é bom pai.

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Vírgula final

Não gosto de vírgulas. Só servem para atrasar a leitura.

12.2.23

Fim-de-semana, família

O melhor remédio para um dia sulfúrico é aquela parte do mundo a que o enxofre mais pena a chegar: a família. Sobretudo a parte dela que vive no campo, numa casa tão fria quanto bonita. Mentira: é muito mais bonita do que fria porque o frio resolve-se e desaparece, a beleza fica. (Espero que apreciem a subtileza da paráfrase.)

De modo que debaixo de uma pilha de edredões e deste silêncio alentejano dorme-se bem. Não há ácido sulfúrico que resista a um fim-de-semana no campo, embrulhado nos cobertores da família.

11.2.23

Lama, luz, rum e outras coisas

Tenho um acesso severo de qualquer coisa que me é habitual: mistura de um presente peganhento e um futuro luminoso. Complicado, claro pelo facto singelo e incontornável de que o lamaçal de hoje já foi o luminoso futuro de ontem. Esta mistura de lama e luz torna-se cansativa, a partir do quadringentésimo quinquagési terceiro episódio. Piora quando começo a pensar em quantos faltam ainda. É preciso encontrar um critério, baseado a) na esperança de vida e b) qual o período dessa vida que se deve considerar. Estatisticamente vivi oitenta e quatro por cento da vida que posso esperar viver. Ou seja, para saber quantos episódios lama/luz devo esperar, teria de multiplicar quatrocentos e cinquenta e três por dezasseis e dividir por oitenta e quatro. O resultado desta regra de três simples é oitenta e seis. Mas isso só é válido se considerarmos a totalidade dos anos que vivi até hoje e esse pressuposto parece-me errado. O primeiro episódio não ocorreu à nascença. Que idade teria, quando tão funesta situação me encontrou pela primeira vez? Seria preciso subtrair essa idade à minha idade, perspectiva nada animadora pois vai fazer aumentar a média anual e portanto o número de vezes que ainda posso esperar viver esta situação. É verdade que misturada com a luz a lama se torna mais leve, menos repelente. Mas enfim, é uma simples questão de grau, não de qualidade. Um pântano é um pântano, qualquer que seja o panorama que lhe sucede.

A parte interessante disto é que sendo a vida um fractal este lamacento e luminoso  ciclo se reproduz a todas as escalas - mais vidas houvera, mais ciclos viveria: esta vida está uma merda, mas a próxima, ah, a próxima. Um paraiso de rum e virgens...

(PS à atenção dos senhores que regulam estas coisas; em vez de virgens preferiria senhoras de idade superior a quarenta anos e já, por assim dizer, formadas. E o lugar do rum poderia ser ocupado por uma boa conta bancária, com muitos zeros à direita. Se não for muito transtorno, claro.)

9.2.23

Diário de Bordos - Lisboa, 09-02-2023

Mudo de Genebra para Lisboa e sinto-me como se tivesse mudado de divisão em casa. Da cozinha para a sala de jantar ou desta para o quarto. 

A divisão Lisboa é maior, mais populosa e mais barulhenta do que a divisão Genebra e tem outra luz, mais sólida. Não é leite diluído como a genebrina. Está mais perto do mel de Leonard Cohen, quando fala dos cabelos da sua amante.

Talvez seja esta a principal diferença: o meu amor por Genebra é racional. Pode explicar-se facilmente com razões tangíveis. Aquilo que sinto por Lisboa é o contrário, é da ordem do irracional.

Palma estará no meio? Será uma mistura dos dois? Não sei. O tempo o dirá. Só conheço - e me apaixonei por - Palma há dez anos. Demasiado novo. Não se deve acreditar muito em amores recentes. Há que deixá-los sedimentar para lhes aferir a solidez e a justeza.

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A verdade é que Palma está cada vez mais presente e cada vez mais longe, como aquelas miragens no deserto ou uma montanha muito alta quando dela nos aproximamos vindos do mar. O asco está a atingir niveis inimagináveis, sobretudo porque eu pensava que isto tinha acabado. Não só não acabou como não está perto de acabar. Não é de hoje para amanhã que este povo se vai revoltar contra quem o "administra", com aspas porque se isto é administração pública eu sou a mulher do Papa.

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Já aqui o disse uma vez, mas posso repetir-me, este blogue já tem idade para isso. Não sou pessoa de muitos amigos mas sou-o de amizades. Poucas mas boas. 

Lamentavelmente o mesmo não se passa com os amores. Também são poucos, note-se.

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O processo cujo fim meia dúzia de pessoas esperam faz-me lembrar um concurso de salto a cavalo no qual o cavaleiro derruba cada um dos obstáculos.  Em vez de continuar e tentar recuperar desmonta do cavalo e compõe o obstáculo. Uma espécie de comédia so que em câmara demasiado lenta, o que lhe tira qualquer restea de comicidade que pudesse ter. Uma comédia ao ritmo de uma tragédia. Uma tragédia,  tout court.

7.2.23

Mortos, memória

"Aos domingos, iremos ao jardim. Entediados, em grupos familiares, 
Aos pares, 
Dando-nos ares 
De pessoas invulgares, 
Aos domingos iremos ao jardim
..." (Reinaldo Ferreira)

É domingo, mas não vamos ao jardim. Vamos ao museu, ver os mortos todos que tens na memória, tão mortos que nem de formol precisam. Basta-lhes uma ligeira brisa para os conservar. Por vezes agitam-se, tanto tanto que até ressuscitam. Depois acalmam e voltam para os seus lugares. Tão invulgares que eles são, esses teus mortos. Sempre a pisar o risco. Nunca sabes quando despertará um - o de Coimbra, por exemplo, que é o mais irrequieto de todos. Mas olha que o de Lagos ainda se mexe muito, para um morto. O de Paris também. Vamos olhar para esses mortos todos, se tiveres a gentileza de nos franquear as portas da tua memória. Podemos até convocá-los para uma sessão conjunta, não achas? Pô-los a conversar uns com os outros,  calmamente, sem grandes parangonas. Ainda saberão falar? Talvez agora só murmúrios, olhares arrependidos, quase dizer como o outro "Confesso que morri" e acrescentar "por ti, por nós".

Não sei. Os mortos são tímidos, recatados, não gostam de muita exibição, mesmo se de vez em quando se esquecem do que são. Deixemo-los cada um no seu canto: Lisboa, Coimbra, Porto, Paris, Caraíbas, Burundi, Filipinas... Essa memória parece um atlas de geografia. Se fosse comida derramar-se-ia pelo globo e cobri-lo-ia de um líquido viscoso a pingar gota a gota no vazio. Como iogurte grego. (Chiu, cuidado, não despertes o morto de Atenas.) Aos domingos iremos à memória, dando-nos ares de pessoas amnésicas.

5.2.23

Lagos, Lua, linhas de nodos

«Assim em cada lago a Lua toda 
Brilha, porque alta vive.» (F. Pessoa / R. Reis, Odes)

Em cada pedaço de mim estou todo. Em cada célula minha há uma dupla hélice com os códigos todos para me refazer. Sou o lago de mim mesmo.

Profecias de balcão, dúvidas inconstantes, flutuantes, pedaços de madeira provenientes de cada naufrágio, cada mão, cada copo. Rodas em torno de ti num movimento eclíptico. Muitas órbitas, vários nodos e as linhas que os unem, planetas que se julgam livres. Pedaços de mundos, lixo espacial. A cada passagem pelo antinodo ressuscitas, suspiras e recomeças. Estás inteiro em cada pedaço de ti. As linhas de nodos das tuas vidas formam uma teia da qual não sabes, não queres, não sonhas escapar. 

Um planeta conseguiu enganar a lei da gravidade, libertar-se das teias, desaparecer no lago escuro que nos espera a todos? Um planeta a cavalo no tempo fugiu da estrebaria. Traz a Lua a reboque. Vai cair num lago. 

Esse lago és tu.

4.2.23

Idade Média, hoje

Ao contrário do que frequentemente se pensa, a Idade Média foi uma época de aprendizagem, debates, dúvidas, descobertas. Tudo isto debaixo da capa da religião, que era muito mais flexível do que se pensa.

Hoje vivemos uma espécie de Idade Média do avesso: tentamos cobrir a Razão com a capa das crenças.  

Definição - solidão

Convivo bem comigo. Não preciso de muita companhia. Sinto-me bem sozinho. Já as minhas palavras não sabem o que fazer, quando não tenho a quem as enviar. Solidão é não ter a quem escrever. 

(Por isso estou tão bem sozinho: tenho-me sempre a quem escrever.)

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 04-02-2023

Hoje fui finalmente ver o Geneva Lux, um festival de luz que há em Genebra desde 2014. Como raramente as minhas datas coincidem com as da luz esta foi a terceira ou quarta vez que o vi. Foi também a pior: Genebra está em contenção energética, as alterações climáticas ameaçam-nos de morte certa se não nos portarmos bem e formos todos à igreja de Santa Salvadora do Clima e portanto as obras são «económicas em energia». É uma lástima, porque as edições anteriores eram verdadeiramente fantásticas. Este ano vi uma ou duas interessantes e o resto era de uma «sobriedade» confrangedora.

Como não tinha tripé só consegui fotografar duas das obras; e como achei o cojunto pouco interessante só vi a metade da margem esquerda. Aquilo acaba amanhã - contention énergétique oblige: normalmente durava três semanas ou um mês. Agora dura semana e meia. Ou seja: se de um certo ponto de vista a expedição fotográfica que tinha planeado foi um fiasco, doutro não foi. (Pequena nota informativa: o nome do festival remete para a divisa de Genebra: Post tenebras lux.) Quem quiser mais informações pode pesquisar «Geneva lux» no Google. Ou então ir directamente aqui (tem uma versão em inglês): https://evenements.geneve.ch/genevalux-oeuvres/list

O pensamento primitivo teria decerto dificuldade em compreender os séculos XIX e XX mas não teria nenhuma em perceber o XXI, com a possível excepção de dois ou três temas mais «modernos». Voltamos aos mitos, às crenças, ao pensamento mágico, à autoflagelação. A religião regressou em força, agora dividida em múltiplas pequenas capelas laicas

Para um velho reaccionário e ateu isto é mais do que pode aguentar.

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Entretanto dia oito volto para Lisboa. «Vastas emoções e pensamentos imperfeitos.»

Vitória, virtude

Podem estabelecer-se várias relações directas entre a vitória e a virtude: esta é normalmente definida por aquela; o vitorioso necessita de se sentir virtuoso para validar a sua vitória. 

Os perdedores são o pau na engrenagem. Sem derrota, a vitória seria uma ditadura imparável.

3.2.23

Miopia

Descalço, nu, sem os óculos de que os olhos míopes tanto necessitam e ele acabou por deitar fora avança tacteando na luz escassa da madrugada. Prepara-se para um novo dia - que nada de novo lhe trará, isso ele sabe já mesmo antes de o dia começar. É míope para fora, mas para dentro vê bem.

2.2.23

Medo, razão e zeitgeist

Pergunto-me frequentemente se fomos nós - a minha geração - que deixámos à nova este mundo que já deixou de se antever porque está presente, ou se foi a geração que se segue quem construiu o horroroso mundo que aí vem - que aí está - com o que nós lhe deixámos. Deve ser  a primeira vez na história da humanidade que uma nova geração escolhe ter menos liberdade e menos humanidade do que a precedente. Não nos iludamos: o wokismo é o pior ataque ao humanismo de que há memória desde que o conceito foi inventado na Itália do séc. XV.

Não é só o wokismo. É também esta cultura do medo, da redução do outro ao estatuto de perigo potencial. A alteridade - que nós, hippies, soixante-huitards, víamos como uma riqueza é agora um risco que deve ser categorizada, classificada, enfiada em compartimentos estanques em nome, doce ironia, da inclusão. 

A histeria securitária tomou conta da vida quotidiana. Defender-se é a atitude correcta (e exige que se inventem riscos em quantidade). Segurança acima de tudo - inclusivé acima da liberdade, da individualidade - que desapareceu, trocada pela identidade - do futuro, esse risco insondável.

A minha geração pode limpar as mãos à parede? Ainda não sei. Mas já sei que o que aí vem não é bonito, nem humano. O medo tomou conta do mundo e onde há medo não há Razão.