29.9.19

Batota, roleta, vida

Talvez desassossego não seja o termo que procuras, o mais adequado. Inquietação? As palavras devem cair bem, como dizem os alfaiates do fato que provam. Não sabes o que te espera, mas sabes que ou é muito bom ou é muito mau: uma lotaria na qual só se ganha o primeiro prémio ou uma estadia no inferno, mais ou menos longa consoante o primeiro prémio é grande. Não é medo, seria demasiado vulgar para ti, não te cai bem. Tão pouco é incerteza: convives há tanto tempo com ela que receias mais a certeza do que a sua ausência.

Fosse eu a ti, encontraria uma palavra para "aldrabar a roleta por quem detesta jogar e nunca fez outra coisa na vida".

Uma noite assim

Toma uma noite, igual a todas as outras: calma, quente, solitária. Alguém te estende um arco e diz "toca-me". Tu não sabes se és a flecha se o alvo mas tocas. Desse arco nasce um vulcão silencioso, quente ele também, como a noite, como o arco, como a esfera alaranjada na qual te vês. És a flecha e o alvo. Alguém, o arco e o vulcão. Tentas nadar na torrente de lava que te submerge, manter pelo menos os olhos abertos. Não sentes os braços, estão perdidos algures nessa noite silenciosa, vulcânica, explosiva. "Um vulcão silencioso", pensas. "Que incongruência."

De repente, apercebes-te de que nunca mais haverá uma noite igual, nunca tiveste uma noite assim.

26.9.19

Dispersos do dia

Os aeroportos todos misturam-se num só. São iguais uns aos outros, não me lembro deste onde estou. Pelo menos até entrar. Agora vejo o bar Abades de Sevilla e lembro-me de já aqui ter comido. Também já vi as mamas da senhora que está à minha frente: estes decotes profundos roubam-nos o prazer de imaginar. Vistas, todas as mamas são iguais, pormenores postos de lado.

Os pormenores das mamas interessam pouco: são como os dos aeroportos (com a possível excepção do aeroporto de Lisboa, que já foi o mais bonito da Europa. Hoje é igual a todos. Também nas mamas há algumas que já foram menos iguais, mas isso não interessa: ao contrário dos aeroportos não corro o risco de lá voltar.)

........
"Pois, minha querida. Também eu tenho muita vontade de ir para a cama contigo. Mas sempre soube que estás fora dos meus limites. Não nos suportaríamos mais do que tempo de uma foda, por longa que fosse. Podia até demorar a vida toda, repara. Mal acabasse, fartarmo-nos-íamos um do outro.

É que isto da cama é coisa de iguais, percebes? E tu não és igual a ninguém senão a ti própria.

Mas lá que teria vontade teria. Oh lá se não. Já viste o que seria uma tourada com um touro inteligente como um toureiro e este forte como um touro? Pois assim seríamos nós."

"Onde os outros não estão"

Um dia o meu Pai foi buscar-me ao Marítimo, em Lourenço Marques. Eu ainda não tinha chegado e ele perguntou a um amigo meu do clube onde é que eu estava.

O J. apontou para um grupo de sete ou oito Vauriens que estavam num lado da baía (perto da árvore de Natal, a quem possa interessar) e disse-lhe: "O Sr. Comandante está a ver aquele grupo de barcos ali?" Depois apontou para um sozinho que estava mais para Sul: "E aquele ali sozinho, está a ver? É o Luís". E continuou: "É simples: se amanhã os barcos todos estiverem onde hoje está o Luís, o Sr. Comandante vai ver um barco sozinho para os lados da Árvore de Natal. O Luís é sempre o barco que está onde os outros não estão".

Não sei por que raio de carga de água penso nisto agora.

(Acresce que navegava a maior parte das vezes sozinho, sem proa.)

25.9.19

Diário de Bordos - Sevilla, Andaluzia, Espanha, 25-09-2019

É preciso começar por dizer. É sempre preciso começar. E dizer, sempre. Avisar: quando falo de Sevilha falo do único bairro que conheço, a Macarena. Conheço é um exagero: é como se espreitasse pelo buraco da fechadura uma senhora a tomar banho e dissesse que a conheço.

Deambulo pelo bairro da Macarena e hoje fui ficando - é o tempo adequado mas devia haver um super-gerúndio, um gerúndio extra-longo como aqueles cigarros, um gerúndio sem fim - num restaurante chamado Quilombo, Peris Mancheta 6, fui ficando e nunca mais deixo de ficar.

Não sei se danço pior do que turisto ou se sou ainda pior turista que dançarino. Não sei. Pode talvez afirmar-se sem grande receio de errar que sou igualmente mau nos dois. Ainda não fui àquele palácio circular com barquinhos a remos à frente. Lembro-me de Paris: só vi a torre Eiffel para aí à nona vez que a atravessei: decidi ir de autocarro de uma estação de caminhos de ferro para outra, em vez do metro que até àquele dia utilizara. Não sou um bom turista (mas aquando de uma visita em família fui lá acima e tudo). As coisas devem ver-se quando precisam de ser vistas. Antes disso estamos a fazê-las perder tempo.

Bom, está dito: de Sevilha só conheço o bairro da Macarena e mesmo assim mal. É um conhecimento absurdamente insuficiente, excepto para uma coisa: ter a certeza de que os meus dias em Palma estão a chegar ao fim. O P. que se atreva a fazer-me ficar lá mais tempo do que o necessário e vai ver. Levo-o a reboque para a China, ou para a Sibéria.

Há em Sevilha (isto é, na Macarena) aquela mistura de bom gosto e negligência, de história e de indiferença ao tempo, de beleza, decadência e sageza que é para mim a definição de Mediterrâneo.

Talvez se pudesse dizer "definição de vida", mas nesse caso seria preciso acrescentar "bem vivida", "vivida como deve ser" ou coisa que o valha.

Há em Sevilha esta indiferença pelo tempo (ainda não foste ver o Palácio? E eu ralada. Hei-de apanhar-te cá e duas vezes mais do que uma), charme supremo da idade: já se viu mais do que se há-de ver e o que já se viu chega e sobra.

Por agora, recomendo o café Quilombo. Provavelmente daqui a pouco recomendarei outro. E outro. E outro. Todos.

.........
El Rincon de Rosita, C/Béquer, 9.
Bar Arco e Bar Esperanza, C/S. Luis 138 e 140, respectivamente. 

23.9.19

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 23-09-2019

Este espesso silêncio. "Sóbrio e voluptuoso", chama-lhe D., que nunca aqui esteve e acerta baseada nas minha descrição. Não devo ser muito mau a descrever as coisas que me tocam, como este silêncio sólido, espesso, parece plasticina, pastilha elástica, qualquer coisa que se possa moldar com a boca e as mãos, os olhos e os sentidos todos, no fundo. Este silêncio com o qual se pode construir castelos no ar, no mar, no futuro, em conamair street, atrás do sol posto, na quinta puñeta, no cu de Judas.

Poder não é o verbo adequado; dever é. "Fica assim: este silêncio com o qual se deve construir castelos..."

.........
O P. re-arrancou, desencalhou, saiu das boxes onde tem estado este tempo todo. Chama por mim, precisa de mim.

E eu dele.

.........
Não sei se moldamos o silêncio se é ele que nos molda. Não há lugar nenhum no mundo em que tenha esta ausência total de ruídos: mesmo no café (onde, por sinal, se fazem as melhores caipirinhas que jamais bebi fora do Brasil) estamos rodeados de silêncio, porque a origem do barulho está ao nosso lado e é facilmente identificável. Penso que só Vergílio Ferreira descreveu algo de semelhante, não por acaso no Alentejo também. 

Silêncio "voluptuoso"? Talvez no fundo o silêncio seja o maior luxo e o barulho do mar uma aproximação.  Talvez. Preciso tanto de mar como de Mértola.

21.9.19

Caos, tu

A bomba explode em câmara lenta,  muito lenta. Observas atentamente o acontecimento, é como escrever um texto: tudo se desenrola em ti mas fora do teu alcance. Isto é, escreves um texto que se escreve e nem uma vírgula lá consegues meter se não tiver lugar. A bomba explode devagar mas tu não consegues tocar nos estilhaços que vês claramente.

De repente, apercebes-te de que a explosão é ao contrário: passas da desordem à ordem da bomba intacta. Com o texto passa-se o mesmo: anda do caos para a claridade. Nem uma vírgula lhe faz sombra, nem um ponto final o desequilibra.

Pensas nas mulheres todas que amaste,  nas que quiseste amar, nas que esqueceste ou - muito mais numerosas - te esqueceram. Perguntas: o que é que o sexo tem a ver com isto? A bomba reconstitui-se lentamente: uma vida dura uma vida a fazer sentido.

Sentes a pele que te espera, rugosa de desejo, coberta de vírgulas, pontos de exclamação, pontos de interrogação. Nela desenhas palavras roubadas, as palavras que roubaste à memória,  à esperança, à certeza. Nada é seguro excepto essa dúvida: onde estarás,  quando eu chegar? Onde terás posto esses olhos, essas mãos, esse olhar que tanto esperei?

Para onde foi o caos? Como o conseguiste modular tão bem, tão perfeitamente,  como se nada tivesse havido entre ele e hoje, entre ele e nós?

20.9.19

A poncha e os elefantes

Estou aberto a opiniões diversas mas a música do Number 2 (ou será É prá poncha?) é abominável. Consolo-me dizendo que ninguém vem aqui por causa da música. É prá poncha, estúpido. Esta poncha é a melhor do mundo por uma razão simples e inatacável: é igual à melhor poncha da Madeira e não há melhor poncha no mundo do que a do É prá poncha de Câmara de Lobos.

Os donos são os mesmos, ceci explicant cela. CQFD.

Claro que daqui a pouco haverá uma multidão a dançar, desmentindo alegre e inconscientemente o que acabo de dizer: algumas pessoas vêm aqui dançar.

Acho bem.

As mulheres do Number 2 não são feias porque não são mulheres. São coisas com pernas, mamas e olhos. As pessoas do sexo feminino só começam a ser mulheres aos trinta e cinco anos. Antes disso, são seres humanos que se pintam e tentam reproduzir (ambas sendo aspirações legítimas, é preciso dizê-lo?). Uma mulher pinta-se quando quer e não quando sai à noite e não tenta reproduzir-se por uma de duas razões:
a) Já se reproduziu;
b) Não quer reproduzir-se, pensando - correctamente- que o rebento pode sair igual a ela ou - pior - ao pai.

As mulheres que vêm ao Number Two não respeitam nenhuma destas considerações: são jovens e querem reproduzir-se. Não as aprecio muito, mas gosto desmesuradamente da poncha. É a melhor do mundo.

Uma boa poncha é como aquele elefante dos hindus: suporta um mundo.

[Isto dito, ver hormonas a trabalhar é bonito. Não sabem que estão pintadaa e estão-se nas tintas para determinadas partes do cérebro.]

19.9.19

Contradições e fugas

O Ocidente está enredado numa horrível teia de contradições: entre Rousseau e a realidade, entre os princípios humanitários e igualitários e a realidade, entre os seus próprios avanços civilizacionais, sociais, politicos e a realidade.

Infelizmente, em vez de agir sobr os primeiros termos dessas equações preferiu negar o segundo.

Depois espanta-se, coitado.

(Realidade aqui sendo uma mistura de biologia, práticas sociais, história, situações financeiras dos diferentes grupos envolvidos, práticas políticas, religiões, organizações e tradições diferentes, et muitos coetera.)

17.9.19

Cuidado

Perdidos numa piscina cujo nome ignoramos. Há quem lhe chame "amor", "esperança", "felicidade", "irresponsabilidade", "desconhecido", "loucura"...  Prefiro chamar-lhe "?", mais simples e apropriadamente.

- Vamos nadar?
- Onde?
- ?
- Não. Prefiro uma certeza.
- Nas certezas não se nada. Anda-se. Patina-se, quando tudo corre mal.
- E na ?
- Ou nadas, ou afogas-te, ou és feliz, ou escolhes no momento, quando lá estás dentro até aos cabelos e já não podes sair incólume. ? marca muito mais do que qualquer certeza. Tens duas portas. Uma diz "Felicidade". A outra: "Nada. Vazio", Qual abres?
- A da felicidade, claro.
- Enganas-te. Isso é o que dizes agora. Um dia chegarás às portas e dir-me-ás qual escolheste.

...
- Nada. Vazio.
- Vês, eu não te dizia?

...
- Amo-te.
- Cuidado. Continuas assim e acabamos os dois na outra porta.

16.9.19

De Gould até à vida vai uma noite

Termino a noite a ouvir Gould. Não tenho a certeza de que uma noite com Gould termine um dia, mas um dia verei. Por enquanto, a noite não passa de um monte de cabelos loiros que se agarra a mim como se eu não o quisesse, enquanto no YouTube Gould toca como se fosse para mim.

Este espaço entre mim e a noite é assim: poucos objectos o mobilam. Por isso demora tanto tempo a atravessar.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-09-2019 (Um deus inseguro)

É preciso começar por dizer que não sei por onde começar. Por onde se começam as histórias? Pelo princípio, dizem os entendidos. Bom, para começar isto não é uma história, é um relato. São coisas diferentes. Além disso, eu não sou um entendido (em nenhum dos sentidos do termo: ninguém me entende e eu não entendo nada de nada).

Bom, voltemos então ao princípio: um gajo entra num café banal de Calatrava (um bairro de Palma, para quem não sabe), pede um vermute e de repente aparece-lhe uma espécie de Keith Jarrett para melhor a tocar um piano absolutamente horrível. Passados os primeiros cinco compassos um gajo esquece o piano e começa a chorar. Meia hora depois o pianista pára de tocar e o gajo continua a chorar por mais dez minutos, pelo menos.

.........
As pessoas falam do ego desmesurado dos músicos, mas à minha frente tenho um gajo que se expõe como se estivesse numa praia de nudistas existencialistas. Fala durante meia hora, durante a qual me diz que a) é descendente de Bergson e b) tem trinta e nove anos e leu ao todo três livros, porque não quer receber informação de terceiros. Disse mais coisas, não levou meia hora a dizer-me isto, mas foi o que retive, aproximadamente.

Depois começa a tocar. E de repente tenho um Keith Jarrett em plena ebulição à minha frente. Um Keith Jarret, juro que não exagero. Uma Maria João Pires. Uma Marta Agerich. Um Glenn Gould.

........
É um deus inseguro, um deus que precisa de te mostrar que é deus. Penso em Slocum. "São os capitães demasiado seguros de si que perdem os seus navios". Confirmo: são os deuses inseguros que fazem a melhor música.

........
Choro há meia hora, desde que ele começou a tocar. Parou há pouco menos de dez minutos e continuo a chorar, coisa que acho profundamente injusta. Ele disse que ia tocar para "quebrar as más energias do sítio" (aspas porque cito). Não as partiu: rebentou-as, explodiu-as, dinamitou-as. Mas agora, dez minutos depois, o lugar está cheio de energias - a dele, a minha, a da mulher que ele ama e não o ama e se agarra a mim como se eu fosse um lago no deserto.

15.9.19

Rui Knopfli

Memória Consentida

Neste lugar sem tempo nem memória,
nesta luz absoluta ou absurda,
ou só escuridão total, relances há
em que creio, ou se me afigura,
ter tido, alguma vez, passado

com biografia, onde se misturam
datas, nomes, caras, paisagens
que, de tão rápidas, me deixam
apenas a lembrança agoniada
de não mais poder lembrá-las.

Sobra, por vezes, um estilhaço
ou fragmento, como o latido
de um cão na tarde dolente
e comprida de uma remota infância.
Ou o indistinto murmúrio de vozes

junto de um rio que, como as vozes,
não existe já quando para ele
volvo, surpreso, o olhar cansado.
Insidiosas, rangem tábuas no soalho,
ou é o sussurro brando do vento

no zinco ondulado, na fronde umbrosa
dos eucaliptos de perfil no horizonte,
com o mar ao fundo. Que soalho,
de que casa, que vento em que paragens,
onde o mar ao longe que, entrevistos,

os não vejo já ou, sequer, recordo
na brevidade do instante cruel?
De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem
provêm tais sombras melancólicas,
ferindo de indecifráveis avisos

este lugar em que, não sendo consentido
o coração, se não consentem tempo e memória?
Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de
sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia
desta luz absurda, ou só escuridão total.

Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

Só porque li um poema dele no Ma-schamba e me lembrei de que os dias que se passam sem ler Knopfli não contam como dias vividos.

14.9.19

Shiu

É uma imagem obsessiva, recorrente, compulsiva: a cada instante a paisagem derruba-se e outra reergue-se, totalmente diferente. Dás um passo e as palmeiras são substituídas por carvalhos, por exemplo; a areia da praia por montanhas verdejantes; o mar por uma floresta virgem. Cada novo cenário dura meia dúzia de passos, talvez uma, vá. Poder-se-ia pensar que tudo acontece no meio de estrondos, sismos, nuvens negras de poeira. Não, antes pelo contrário: sentes-te num filme mudo. Não há um ruído, um sinal do que está a acontecer.

Tu continuas o caminho, mas não é a curiosidade que te puxa. É outra coisa, outra força.

Sabes qual é, mas não a queres nomear: se lhe disseres o nome ela esvai-se.

13.9.19

Le vol d'une angoisse / O roubo de uma angústia

Escrever sobre fundações que tremem, como se escrevesses durante um tremor de terra, um longo tremor de terra. Escreves e tudo treme: a mesa, a mão que escreve, o papel sobre o qual a caneta tenta penosamente avançar. Escreves e o mundo à tua volta treme. Escreves sobre um mundo que treme enquanto ele treme, porque ele treme.

Os teus medos mudaram de casa, de sítio, tens de mudar-lhes o alvo. Eram tão confortáveis, as tuas angústias, tu conhecia-las tão bem. Coabitaram muito tempo juntos, tu e elas e agora, subitamente, ei-las mudadas.

Não se muda de medos como se muda de camisa. Criamos laços com as angústias, meu amor. Sentimo-nos órfãos, se de repente elas se vão embora.

Quem me roubou esses queridos medos? Eram tão confortáveis, tão hospitaleiros, simpáticos. Convivíamos bem juntos, as minhas angústias e eu. Roubaste-mas e agora devo substituí-las por outras novas, desconhecidas.

É tarde, os medos saem. Durante o dia dormem, escondem-se, os cobardolas. De noite saem, vão para os bares escrever-te. Olham-te nos olhos e perguntam-te: "Vieste para ficar?"

Vieste para ficar?

.........
Sou fiel às minhas angústias, percebes? Não gosto quando elas me deixam e menos ainda quando são substituídas por olhos azuis como os teus, pelos teus cabelos loiros, pela tua beleza. Os medos querem-se feios.

Um medo bonito assusta, muito mais do que um medo simples, banal, como o medo da solidão, por exemplo.

Pesada responsabilidade a tua, ladra de angústias.

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Écrire sur des fondations tremblantes, comme si tu écrivais pendant un tremblement de terre, un long tremblement de terre. Tu écris et tout tremble : la table, la main qui écrit,  le papier sur lequel la plume essaye péniblement de glisser. Tu écris et le monde autour de toi tremble. Tu écris sur un monde qui tremble pendant qu'il tremble, parce qu'il tremble.

Tes peurs ont déménagé, changé de place, tu dois leur changer la cible; elles étaient tellement confortables, tes angoisses. Tu les connaissais tellement bien. Vous cohabitiez depuis si longtemps. Et tout d'un coup, les voilà changées.

L'on ne change pas de peurs comme l'on change de chemise, figure-toi. On s'attache à ses angoisses,  mon amour. L'on se sent orphelin si soudainement elles partent.

Qui me les a volées, ces chères peurs? Elles étaient si confortables, si accueillantes, si sympathiques. On faisait bon ménage, mes angoisses et moi. Tu me les as volées et je dois les remplacer par des nouvelles, que je ne connais pas encore. Il est tard, les peurs sortent. Pendant la journée elles dorment, vois-tu? Elles se cachent, lâches.

La nuit elles sortent, vont dans les bars, t'écrivent, te regardent dans les yeux et te demandent "es-tu là pour rester?"

Es-tu là pour rester?

.........
Je suis fidèle à mes angoisses,  vois-tu? Je n'aime pas quand elles me quittent et encore moins quand elles sont remplacées par des yeux bleus comme les tiens, par tes cheveux blonds, par  ta beauté. Les peurs se veulent laides.

Une peur belle est effrayante,  beaucoup plus qu'une peur simple, banale, comme celle de la solitude, par exemple.

Lourde responsabilité que la tienne, voleuse d'angoisses...

Diário

É um diário, querida, nada mais do que um diário. Às vezes falo do presente, outras do futuro e outras ainda do passado.

Mas garanto-te: só falo de hoje.

Puzzle, perfeições

Isto é um puzzle nas mãos de um gajo que às vezes está bêbedo, outras sóbrio. Quando está bêbedo delira e sonha; quando está sóbrio, organiza o que sonhou.

Tanto os sonhos como as organizações são perfeitos.

Tremido

Está tudo tão tremido, ainda. Contudo, não tão tremido como quando não estava tremido de todo.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-09-2019

São onze da manhã, o Aurélio já está cheio, não pára este homem, mesmo quando está vazio parece um trinta e três a tocar em setenta e oito, mas sem distorção de som. A analogia não ê correcta, o homem não perde a elegância,  imagino que já nasceu assim, deve ter dado o primejro grito mal a boca chegou à luz do dia, nem antes nem depois, tudo ao minuto, ao segundo, é bonito de ver.

Eu sou lento, prefiro a lentidão, já assim sou suficientemente desajeitado, passeio pelo mercado com o braço hidráulico do piloto num saco, bebo um café, a rapariga do Arabay pede-me para lhe tirar o saco do caminho e tenho vontade de tirar o braço do saco e mostrar-lho, está tão bonito, tão bem lixado, o I. fez um trabalho de jóia, primeiro vamos beneficiá-lo depois pintamo-lo, à primeira vista não precisa de muitas peças mas nisto a primeira vista vale nada. É doloroso vê-lo, apesar de tudo, um braço hidráulico é uma peça caríssima e que dura para sempre, só precisa é de amor e ternura, não muito sequer, um bocadinho de atenção, enfim, veremos como estão as juntas e o piston, espero que estejam bem, um braço hidráulico é uma maravilha tão bela como a Vénus de Milo ou mais ainda, a Vénus não se mexe.

Não sei, não percebo nada de Vénus, de Milo ou de braços hidráulicos, acabei no Aurélio a beber um vermute, já são horas, a junta rotatória [??? - tradução do Google, alguém me ajuda? Em inglês é um swivel e em francês um pivot] está completamente corroída, que porra, um bocado de massa de tempos a tempos não custa nada, como é que se deixa o material chegar a este ponto, alguém me diz?

Passou a hora da merenda e ainda é cedo para o almoço, o Aurélio está vazio (isto é, tem pouca gente, isto só se esvazia quando fecha) lá fora chove - o badanal veio, desta vez, é meio-dia e parece meia-noite - e eu penso no braço, no tanque de fuel, na electricidade,  na marina, no Mauro, no Inverno,  tomara a minha mente tivesse a agilidade do Aurélio.

........
Venho para casa meio almoçado, deixo a carne para o jantar, oiço música da Renascença pelo Jordi Savall mas não é nada disto que interessa. O que interessa é que pela primeira vez em muito tempo tenho balizas temporais no meu pensamento (se é que se pode chamar a isto pensamento, talvez chorrilho seja mais adequado, admito).

Está na hora do almoço. ¡Qué vaya! ¡Comida!

11.9.19

Louvor do nomadismo

O prazer da viagem não está nas paisagens: a Terra toda é bela, mesmo quando não o é. Viajar é uma alternância entre nós e o outro. Estranha alternância: descobrimo-nos quando descobrimos o outro, descobrimos o outro porque nos conhecemos, conhecemo-nos porque viajamos. Nós viajantes somos moldados pelos riscos e não pelos momentos de beatitude. Estas não passam da sobremesa de uma refeição lauta, tão lauta quanto incerta.

O que nos une, viajantes, nómadas, marinheiros é esta estranha contradição de viver imóveis no nosso local de trabalho, que se move sem parar. Na verdade, não somos nós que nos movemos: é o mundo que passa por nós. Encontramos o outro porque o esperamos estranhamente parados, improvavelmente em movimento.

Pequenas reflexões quase extemporâneas

As raízes nunca viram as folhas e não é por isso que deixam de as alimentar.

.........
Conhecer-te até que amar-te se torne inevitável parece-me um bom objectivo, não?

........
A vida não é um comboio descontrolado. É um comboio perfeitamente controlado que às vezes descarrila, muda de direcção, volta para trás. Mas só às vezes, não a cada nuvem que passa.

.........
As viagens têm princípio mas não têm fim? Então onde começa a próxima, se a anterior não acabou? Há um princípio, só um e o mesmo para todas. Descobre-o e talvez, com sorte, um dia lhes descubras também o fim.

Até lá? Olha, viaja, vive e procura.

........
Gosto mais de amar do que de ser amado.

Excepto quando sou amado, claro.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-09-2019

Uma vez fui a um médico desses meio alternativos. Não me recordo de tudo, mas era um acupunctor. Tão pouco me lembro do que me levou lá, sei apenas que gostei das agulhas, do cuidado que o senhor punha na procura do sítio onde espetá-las,  Lembro-me também de que não serviu de nada, excepto para me fazer descobrir a acupunctura e - isto sim, uma descoberta importante - de o homem me ter perguntado, logo a seguir à minha chegada ao consultório:
- Para si, tomar uma decisão é difícil, não é?
- Depende da decisão. Mas as importantes sim, é.
- Vê-se logo. Você tem os dois braços exactamente do mesmo tamanho.

Não costumo tomar decisões com os braços mas não contestei a sageza do senhor. Acredito piamente que isto está tudo ligado - ao contrário da Simone, ela pensava que só se é homem ou mulher da pele para fora. Não acredito nisso, nunca acreditei. Acho que os cérebros têm pilas e vaginas, mamas e barba tanto quanto o fenótipo e portanto nada impede o tamanho dos braços de ser um indicador da facilidade ou dificuldade na tomada de decisões.

(Provavelmente disse ao médico que os meus bem podem ser iguais em tamanho, mas em destreza são completamente assimétricos. Com o direito sou desajeitado; com o esquerdo nem num copo consigo tocar, a menos que tenha vinho, rum ou um whisky decente.)

Que se lixe. Penso que os dois braços servem sobretudo para se poder ser estirado como na Idade Média, só que deste vez sem instrumentos de tortura, pelo menos visíveis. Há uma injustiça fundamental nisto de um gajo ter que tomar decisões cujas consequências só se farão sentir daqui a dez anos. E não vale a pena dizer que nessa altura estaremos todos mortos - há que chegar lá.

.........
Vou falar na rádio. Terça-feira que vem o programa é gravado e vai para o ar na quinta. É uma rádio local, um programa de gente da Faculdade de Antropologia. Tive hoje a reunião preparatória. Palma começa a entrar-me pele adentro, mesmo em vésperas da minha saída daqui. É tão frequente que me pergunto se é verdadeiramente obra do acaso. (Neste caso da Blablacar, mas isso fica para depois.)

.........
Vésperas de Rachmaninov, outra vez. Há muito que não as ouvia e a minha versão favorita, do Paul Hillier, não apareceu no Youtube. Não sou vingativo, mas se alguém estirasse o gajo que me ficou com os discos não me oporia por aí além.

..........
Faz hoje dezoito anos que o nosso mundo mudou, para pior. Nunca me esquecerei de ver árabes a manifestarem-se de alegria nas ruas. Nunca lhes perdoarei. Não é racismo, é bom senso, auto-defesa, realismo: a questão não é nós e eles, é civilização e barbárie.

10.9.19

Sono, futebol

Quando era miúdo ouviam-se relatos de futebol. Nunca liguei muito à bola, mas desse tempo ficou-me uma expressão: "Fulano de tal concretizou o golo".

Não sei o que pensava na altura, mas hoje faço uma comparação com o sono: está à porta da baliza mas não há quem o concretize.

9.9.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-09-2019

Deslizo velozmente na minha bicicleta de cidade - tenho outra, para ir à marina - na descida para os Correos; o ar está fresco mas ainda quente. Amanhã entra badanal, mais vale aproveitar, penso. Vou enviar meia dúzia de postais. Comprei-os na Babel, onde fui beber um vermute. Aproveitei e comprei um livro, claro, isto é uma estupidez mas o livro pareceu-me irresistível, é o relato de uma infância em Marrocos. Li algumas passagens e pensei que todas as colónias eram iguais, aquilo podia ter sido escrito por mim sobre Moçambique (se eu escrevesse tão bem como o autor, um senhor chamado Miguel Sáenz). A miúda que me atendeu no Correio era nova, gira e simpática, sorridente. Nunca a vi lá, deve ser aquisição recente. Afinal o badanal vai ser menos do que previsto. No Mediterrâneo as previsões de tempo bem podiam ser feitas por economistas (é mentira, mas não faz mal. Fica sempre bem falar da imprevisibilidade do tempo no Med).

Babel, voltemos à Babel onde isto tudo começou. Aquela praça parece um canto de Paris em Palma: o Antiquari, a Babel e a boutique onde às vezes compro presentes lembram-me a Rue Daguerre em ponto pequeno, claro. Ia comprar livros à livraria L'Arbre à Lettres, este nome é um programa e depois lia-os no café Perret, comprava queijo na queijaria Daguerre e jantava no Vin des Rues, bebia copos no Bar du Voyage... O carrer d'Arabi é mais pequeno, muito mais pequeno, mas na livraria posso beber vermute, escrever postais e pensar que tenho menos saudades de Paris do que do Marin, por exemplo, o que até calha bem porque em Paris não tarda está um frio de rachar e no Marin não tarda estará uma temperatura porreira, além de que no Marin poderei navegar e em Paris não. E no Antiquari posso comer, ler os livros que comprei na Babel, beber copos ou, como faço tantas vezes, simplesmente trabalhar, quando o sinal na casa se torna insuportável de fraqueza.

Diz que vai chover a semana toda. Felizmente o convés está praticamente pronto de pintura, amanhã continua-se com o interior, se na primeira metade de Novembro não tiver o bote pronto corto os dois pulsos, os dois tornozelos e em seguida a cabeça. (Talvez só metaforicamente, mas será isso).

Gosto dos postais que escrevi, é tão raro gostar daquilo que escrevo no momento em que o faço... Normalmente preciso de esperar uns dez anos para pensar que não escrevi só merda e é sempre agradével ter essa sensação imediatamente (se bem depois acabe ao contrário: daqui a dez anos vou pensar que é uma merda). Não importa, que se lixe, daqui a dez anos terei outras coisas em que pensar e de qualquer forma os postais já não existirão.

Enfim, depois disto tudo acabo no Divino, que é o meu escritório da tarde, têm uns Mojitos óptimos por quatro euros e cinquenta cêntimos e além disso é aqui que vou fazer o primeiro jantar literário, Zen y el Arte del Mantenimiento de la Motocicleta. Encontrei hoje o músico que me faltava, já tenho leitor, o menu vai ser o que sempre pensei: hamburgers (de qualidade, claro).

Qualquer dia vou-me embora e ficarei cheio de saudades de Palma.

8.9.19

Sentido, sentidos e outras coisas, igualmente importantes

Nada faz muito sentido, seja como for. Não percas muito tempo a procurá-lo, é como procurar uma meia desemparelhada: desapareceu para sempre e é impossível descobrir como ou porquê. Deixa o sentido em paz, não lhe toques, não penses sequer nele. Limita-te aos sentidos, todos eles. São o que te liga ao mundo. Vê o mar, toca as nuvens, cheira a paisagem, ouve a Lua, saboreia cada instante como se o sentido disso tudo te cortasse a língua logo a seguir.

A vida é uma manta de retalhos cosida por um cego e vendida por um bêbedo. Compra-a sem a ver, prova-a sem prestar atenção ao que o vendedor te conta. Aproveita a sorte que tens, pensa em todas as asneiras que fizeste como se fossem pilares do edifício que hoje és. Instável, é certo. Frágil. Hesitante...: os erros todos não chegaram para te dar certezas, ainda tens muitos de uns e poucas das outras pela proa.

Há pouco sonhavas com uma vida em terra; hoje sonhas com o mar; e amanhã? A Lua, claro. O deserto de Gobi. A Namíbia, onde fizeste um dos maiores erros da tua vida. O lago Titicaca, por causa do nome.

O Norte da tua agulha muda todos os dias. Aproveita, canta laudas e dá graças. Não tentes percebê-la, limita-te a amá-la.

Um dia serás correspondido.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-09-2019

Acabei o charter, bebo duas cervejas numa esplanada, deixo o dia escoar-se, lentamente. Há uma troca pacífica: vai-se o que foi e vem o que vai ser.

Quando comecei a fazer day charter sistematicamente, todos os dias, trabalhava doze, treze horas por dia, sem parar. Começava às seis da manhã e acabava as sete da noite (admitida e inegavelmente, este horário incluía uma pausa de uma hora, das cinco às seis, o tempo que demorava a percorrer os setenta metros de cais. Mas isso fica para depois). Hoje já não é assim: os clientes trazem a sua comida, os barcos estão muito mais bem apetrechados e - sobretudo - não são meus. Dou-lhes uma mangueirada quando chego mas nem a isso sou obrigado. É mais vício, puro e simples vício. Custa-me deixar um bote sem lhe dar um banho de água doce, por rápido que seja.

Não lamento aqueles tempos: eram excitantes, a mistura de adrenalina e álcool (das cinco às seis e das sete em diante) irresistível, mas a verdade é que hoje não teria energia para aquilo. Só passaram quarenta anos, eu sei; mas foram quarenta anos preenchidos.

Vim à praça Drassana beber uma cerveja, tranquilo e sozinho. Vou comer qualquer coisa pouca e vou para casa. Tenho sorte: ao contrário de Rimbaud, bebo a minha cerveja no céu. 

7.9.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-08-2019

Costumo dizer que não sou grande apreciador de clubes náuticos mas é mentira. Do que não gosto é dos navegadores de clube, aquela malta que sabe tudo e um dia esteve numa tempestade. Pelo contrário, as instalações são regra geral óptimas e fora das regatas estão vazias. A estas, o RCNP - Real Club Náutico de Palma - junta outra qualidade, nada despicienda: o gin tónico custa cinco euros.

Às vezes venho cá, ao fim do dia. Além  de ser mais barato, o gin dura mais tempo do que nos outros sítios, a sala é bonita e está quase sempre vazia. Sento-me na mesa do fundo, que tem os sofás com orelhões. Não vejo ninguém e quase ninguém me vê.  A bebida escoa-se lentamente, como se estivesse numa ampulheta a substituir a areia. Os raros clientes não falam; ou lêem o jornal ou... não sei, não vejo o outro senhor e pouco me apetece levantar-me para espreitar.

Vou levantar-me, sim, mas para encomendar o gin par. "Nunca se deve beber um número ímpar de bebidas", dizia o meu Pai, "sob pena de se voltar para casa a coxear".

Não sei quantas bebidas ingeri ontem. A certa altura perdi-lhes a conta. Sei que a dor de cabeça com que acordei hoje e debelei com dois Paracetemol voltou. Se eu dissesse a um médico que esta dor se deve à venda de um apartamento nos arredores de Lisboa ele não acreditaria. É porém a mais pura e virginal das verdades.

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Amanhã tenho um day charter. A cefalgia terá passado, a massa será bem vinda, o mundo recompor-se-á. As relações causais dúbias passarão para o campo da memória, que as espera de braços abertos.

Até lá, vou explicar ao tempo que os gin tónicos do RCNP se escoam delicada e tranquilamente e que apressá-los - ainda que seja para tomar mais dois Paracetemol - é um erro.

Nada substitui com vantagem o fim de um dia, o fim de uma fase, o começo de um novo período.

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As pessoas sentem-se culpadas de tudo e de nada: as alterações climáticas, a discriminação dos maricas, o mal-estar dos touros, ter-se apreciado os livros dos Cinco, rido com o rato Mickey e o cão Pateta. Não sei de onde vem tanta culpabilidade; creio que é simplesmente consequência de não terem verdadeiros problemas a resolver.

Tivessem a dor de cabeça que tenho e veriam se se preocupavam com os touros ou a dor das algas quando são arrancadas do fundo do mar.

6.9.19

Estrela ascendente

Lembro-me de ti deitada no sofá do terraço, o teu corpo com a forma da trajectória de uma estrela cadente.

Porém, eras uma estrela ascendente: subias, não caías. 

Nada mais?

Façamos então outra tentativa, já que as cinquenta primeiras falharam: dizer-te "eu amo-te" significa simplesmente que te amo, nada mais.

Enfim, talvez: significa que te amo e te amarei. Nada mais; mas isto já é tanto,  não achas?

A menina percebe?

É uma história de amor portátil: amar-te-ei onde quer que esteja, onde quer que vá. Como se tu morasses em mim, percebes?

Bares

Só devia haver dois tipos de bar no mundo: os que são como o Procópio e os que são como o Hat Bar, em Palma. Tudo o que lhes fica entre cheira a mofo, a banal, a n'importe quoi, a média-burguesia, a horror, a assim-assim, a pata que vos pôs.

Experimenta dizer "pata que te pôs" aqui  e percebes o que quero dizer.

Auto-citação

"Continuo a não ser capaz de me preocupar muito com o futuro. Limito-me a sonhá-lo: o passado e o presente chegam para me encher os dias e as noites com coisas sólidas.

Preciso violentamente de mar. Preciso violentamente de mim."

Não sei quando escrevi isto, mas uma coisa é certa: não mudei muito desde esse dia.

Selenitas

No Facebook há vários grupos que ligam pessoas da mesma nacionalidade: os franceses de Lisboa, os espanhóis de Roma (suponho), os chineses do Togo (idem).

Não vi ainda é um grupo dos selenitas na Terra. Verdade seja dita: também não procurei. Somos individualistas e só saímos à rua nos dias de lua cheia.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-09-2019

O "frio" chegou. Vai entre aspas porque não é frio, é só ausência de calor. Em dias assim ocorre-me compreender a malta que reclama contra o calor, mas é um sentimento fugaz. Claro que esta temperatura é agradável, ninguém discute isso, mas que vem aí? O inverno, meus caros. O inverno.

Ontem tive o meu primeiro ataque sério de alergia. Dois anti-histamínicos, seis ou sete pacotes de lenços, uma quantidade infinita de espirros. Nos anos em que não tive invernos isto não acontecia. Cada vez me parece mais que a minha estadia no outro lado da poça vai ser mais longa do que o (agora quase abortado) cruzeiro. Atravessar no P., navegar no P. nas Antilhas, seguir no P. para as Marquesas, ou para a Patagónia. O mar é o mais eficaz dos anti-alérgicos, a única forma aceitável de frio e... como dizer? A única forma aceitável de tudo, provavelmente.

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Por falar em P.: o antiderrapante está quase terminado. É óptimo, pelo menos em seco. A ver como se comporta no mar.

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Entre meados deste mês e a primeira semana de Outubro vou passar a vida em aviões. Penso nos dias em que quase vivia no aeroporto de Lisboa e fico feliz por agora ser a excepção e não mais a norma. Ao mesmo tempo, luto ferverosamente para que a estúpida da miúda faça baixar os preços das viagens. Parece que na Suécia as pessoas já começaram a viajar menos de avião.

O homem não sabe viver sem religião, seja ela qual for. É uma pena.

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Enquanto isso, Palma começa finalmente a abrir-se-me. Ou eu a ela, vá lá saber-se. Dia 17 vou falar numa rádio local sobre as minhas experiências no Burundi e no Zaire, dia 10 de Outubro faço o meu primeiro "Evento literário", em torno do Zen e da Arte de Manutenção de Motocicletas. O livro seguinte será Mistérios, de Knut Hamsun, se estiver traduzido em espanhol. Faço isto tudo sabendo que pouco depois partirei.

Desapego deve ser mais ou menos assim, não é?

4.9.19

Ambição, vocação

No fundo, a minha maior ambição era chamar-me senhor Silva e ser escriturário numa repartição na Avenida Fontes Pereira de Melo. Falhei a vocação.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-09-2019

O P. acabou por não ir para a água, por razões que agora não interessam. Há muito tempo que não me encontrava com o desespero desta maneira. É como se tivesse chocado de frente com um camião despistado; ou como se o camião do Duelo me tivesse apanhado. Tentei esticar a corda e ela rebentou, revelou-se um elástico e esmagou-me.

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Dei um nome à minha lista de Afazeres: "Concurso de bolas no ar". A ordem de importância é igual à ordem cronológica: a primeira a acontecer é a mais importante, depois a segunda e por aí fora até ao fim.

Dia 19 de Setembro às sete e meia da tarde no restaurante TodoMundo, avenida Duque de Loulé nº 3, angariação de fundos para a publicação de Avenida da Liberdade, nº 1. Oxalá não se confundam as moradas.

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"Fazes-me florescer", diz-me D. Nunca perceberei as pessoas que são contra os piropos, mesmo vindo da namorada de um amigo, ou seja, de um homem. O amigo é colocatário e ambos (isto é, a D. e eu) sabemos que se não fosse deixaria de ser amigo, Camus explicou-o tão bem. D. é uma alemã francamente bonita, loira, mora confortavelmente nos seus cinquenta e poucos anos, faz ioga mas não é vegetariana nem vegan nem alérgica ao amarelo. Conhece Leonard Cohen de cor e salteado, conhece os Madredeus melhor do que eu e é pouco provável que saia de Palma sem ficar a conhecer Eleni Karaindrou, vai ser a minha contribuição.

Claro que "fazes-me florescer" não era um piropo. C. vai passar uns dias ao Reino Unido e ela volta para a Alemanha, suponho e era uma espécie de adeus, um reconhecimento da impossibilidade de certas coisas, uma maneira de dizer que podemos tocar alguém sem a tocarmos, há azimutes nas linhas de vida que se prolongam durante muito tempo, como quando no plotter temos o rumo e a proa visiveís até ao infinito, mais tarde ou mais cedo encontrarão outras proas, outros rumos, outras vidas e reconhecer-se-ão, "you've touched her perfect body with your mind" não é bem verdde, nem lhe toquei o corpo nem a mente é perfeita mas não faz mal. Ficamos assim. Flor vista mas não cheirada. Lembrar-nos-emos um do outro por muito tempo, encontrarás tu outras primaveras e eu outras flores.

3.9.19

"É preciso ter um plano para se poder não o respeitar"

Rever filmes, reler livros e amar a mesma mulher.

Nunca terei uma reforma, mas se a tivesse seria assim que a passaria.

1.9.19

Dogmas por dogmas. Em louvor da liberdade. Obrigado, Pai.

D. fuma Gauloises. Têm filtro e só muito vagamente fazem lembrar os horríveis Gauloises que durante um certo período fumei, convencido de que era um existencialista à séria.

Penso nos hippies, que tanto lutaram para encher o mundo de cores. Falharam os hippies e os Gauloises. Estamos de novo no mundo monocromático e maniqueísta pré-hippies e pré-Camus: há o bem, o mal e o cinzento.

"Não caminhamos para a verdade. Trocamos um dogma por outro, é tudo". Continuo sem saber quem escreveu isto, mas penso que tive sorte: vivi um longo período de troca de dogmas.

(Adenda: graças a Camus, Nietzsche, Cioran, Beckett, Debord, Vaneigem e - sei-o agora - Wilhelm Reich, Ivan Illich -. Hemingway, a começar no H e a acabar no Y. John dos Passos, Manhattan Transfer. O Steinbeck de Tortilla Flat. O Conrad de Lord Jim. Jack London todo menos os "comunistas". To Light a Fire, meu Deus. The Sea-Wolf. Somerset Maugham: The Moon and Six-Pence. The Razor's Edge.

Numa palavra: graças ao meu Pai.)