31.3.19

Apologia do erro

Só fica a conhecer os caminhos todos quem não tem medo de se perder.

O nível da felicidade

Tinha uma espécie de linha de baixo continuo - à qual ele chamava "bem estar" por achar "felicidade" excessivo - sobre a qual vinham enxertar-se todos os outros estados de espírito pelos quais passava com uma frequência e uma irregularidade assustadoras.

Podia estar depressivo a ponto de só pensar em morrer e saber-se bem, feliz lá no fundo de si, num universo que só não é paralelo porque existe a um nível diferente.

Era um morto vivo, mais vivo do que morto. 

30.3.19

Dispersas de hoje, camionete Lisboa - Mértola, 30-03-2018

Verdade seja dita: se eu tivesse trazido roupa apropriada a chuva não seria uma chatice por aí além. Mas não trouxe e este vai ser um domingo molhado. E segunda-feira também, que um mal nunca vem só. Ainda não vi como está o tempo em Palma, mas lá tenho roupa para o que der e vier.

A ver se chego, janto e me deito, sem chuva entre cada uma destas etapas. Talvez não fosse má ideia lembrar-me de que não estou a viajar entre portos, mas sim entre terras. Ando feito terráqueo, daqueles que saem do avião e entram na sala de reuniões e de lá voltam para de onde vieram. Credo, homem, vade retro. Antes molhado do que engravatado.

Nómada em processo avançado de sedentarização? Ando a sonhar com ladrões, é o que é. Não me parece que alguém um dia me apanhe simultaneamente em cima da terra e quieto. Imóvel, só debaixo dela; ou a sair pela chaminé, que não é bem estar quieto mas anda lá perto.

É verdade: gosto de vadiar de um lado para o outro. Quando fico muito tempo no mesmo sítio sinto-me como se ele me pusesse na rua. São os lugares que me expelem; ou repelem, se preferirem. Não sei. Todavia algo me diz que por estas bandas vou ficar. Chego daqui a uma hora. Só preciso é de um carro, é mais agradável poder sair e parar quando quero. Não sei.

A quantidade de coisas de que um homem precisa quando pára é aterradora: casa,  carro, fogão, frigorífico, roupa para a chuva e para o bom tempo, uma mulher...

Quando se anda de um lado para o outro também se precisa de uma mulher, mas é diferente. Isto é: são diferentes. A mulher e a necessidade. Não sei. É uma hipótese a analisar.

Por exemplo, hoje estava a fazer uma lista de objecções ao suicídio. Os filhos, o livro,  os projectos em curso e os que hão-de vir... depois apercebi-me de que uma vida que me deu a possibilidade de viver com S. não merece ser abandonada. Não pode sequer ser abandonada.

Bom, estou provavelmente a divagar, preso no sonho do chauffeur da camionete,  o homem esqueceu-se de tomar Paracetemol e levo aqui uma dor de cabeça que só vista. Além disso estou com saudades de Palma, é inútil negá-lo. E do mar também. No meio disto tudo só não tenho saudades do Sena porque nunca o subi. Vai ser a primeira vez. Chegar a Paris de barco faz-me lembrar quando fui contratado para levar um barco viking da Dinamarca ate Nova Iorque. O projecto acabou por ser cancelado, aquilo era uma associação e zangaram-se todos uns com os outros. Chegar a Nova Iorque num drakkar não é a mesma coisa do que chegar a Paris numa lancha a motor? ¡Qué vaya! Não se pode estar sempre a comparar tudo: viagens, mulheres, barcos... É tudo bom, todas, todos, cada um individualmente, em conjunto. Vou subir o Sena. Chega.

Hoje tive a confirmação de que o livro vai sair, finalmente. Devia estar mais feliz do que estou, eu sei, mas isto é só uma falsa impressão. A verdade é que estou feliz, muito. Penso no caminho todo que me trouxe aqui. De manhã estava a folhear um livro qualquer, tão qualquer que não me apetece sequer lembrar-me de qual era. Estava muito bem escrito, mas era desinteressante como um dia de chuva. Ocorreu-me que talvez fosse um livro órfão de vontade, um livro que não pediu para ser escrito. Pediu, não. Exigiu. A boa literatura nasce dos livros e vai para o autor, não o contrário. Não recordo quem disse que um livro só é bom quando teve de ser escrito, quando apontou uma pistola à cabeça do autor e lhe disse "escreve-me ou morres". Perguntem ao Hemingway, ao London, ao Conrad, ao Beckett. O livro está-se nas tintas para o estilo do autor, para a escolha lexical ou para seja o que for que não seja ele, livro.

Ao Don Vivo faltarão todas as qualidades menos essa: conseguiu vergar-me, ganhou esta roleta russa, obrigou-me a fazê-lo. (Com uma aliada de peso, uma senhora chamada JMV). Estou-lhes grato (ao DV, à J. e ao editor).

Falta um quarto de hora para chegar. Falta uma vida, que a morte já temos.

Podia ser pior

Um pouco como escorregar por uma alameda coberta de safiras verdes e não saberes que na verdade são algas. Isto é, palavras: às vezes algas, outras safiras.

E não tens onde te agarrar: as palavras escorregam como algas, verdes e viscosas. Já as safiras não:  brilham, ferem. Ofuscam-te.

Contrabandeias safiras, escorregas nas algas e tentas agarrar-te às palavras. Podia ser pior.

28.3.19

Misturas

Juro: não bebi de mais. A intensa comoção que me faz chegar as lágrimas ao quase canto do olho não é de origem etílica. Nasce desta mistura de favas com entrecosto e leituras entre favas de excertos de um livro ainda fresco da compra na estação do Cais do Sodré: Mundos de Fronteira, de uma senhora chamada Ilse Pollack, numa edição da Cotovia e traduzido por João Barrento.

É obviamente um lugar-comum dizer que se João Barrento se dá ao trabalho de traduzir um livro ele é bom. Não vale portanto a pena falar do português límpido, claro, "escorreito" (entre aspas porque ontem usei este termo e usar a mesma palavra dois dias seguidos pede aviso) de que João Barrento se serviu para traduzir um original que se adivinha ser igualmente limpido. É contudo necessário sublinhar a feliz coincidência de estar a comer um prato eminentemente nacional enquanto leio pedaços de vida de escritores desse mundo errante que é e sempre foi a Europa do Leste.

Em vésperas de partida é uma mistura comovente, no mínimo. 

27.3.19

Os risos e o resto

Escorreita corre a escrita ao correr da pena e das penas, corre melancólica por essa longa estrada fora como se as penas fossem uma só, elas que tantas são; e a pena muitas, cada uma para a sua cor. Na estrada desenham a traços largos e cores ligeiras as linhas todas das diversas dores, cada uma mais alegre do que a vizinha (e sabe Deus se a senhora é alegre, senhora de riso contagioso e ironia fina, senhora de si, de vastos reinos onde riso e penas se misturam ao correr da pena, levemente, como quem não quer incomodar a sorte, sabe Deus).

E que mais sabe Deus, ele que tanto se enganou todos os dias? Nada ou muito pouco, está a cotovia rouca de tanto rir e a senhora sábia de tanto a ouvir esquece as penas e vai dormir. Escorreita, claro.

Rir, chorar, volume

Bruno anda preocupado, coitado: tem um problema por resolver e não lhe antevê solução fácil. A mulher da vida dele recusa-se terminantemente a assumir esse papel. Ora Bruno sabe que sem a mulher da vida dele nunca terá vida; e sem vida nunca terá a mulher na vida dele. Se ao menos pudesse dizer "a mulher ou a vida", como dantes se dizia da bolsa. Mas não pode. É "ou a mulher e a vida ou nada".  Bruno convive mal com dilemas por resolver e isso desinquieta-o, coitado. Que fazer? Talvez rir, não, Bruno? Sempre dá menos trabalho do que chorar e não há dilema que resista a uma boa gargalhada.

Ou então, ouve, Bruno aprende comigo que eu não viverei para sempre, ouve as tocatas de Bach pelo Glenn Gould; ou seja o que for de Bach, verás o dilema dissolver-se à tua frente e transformar-se num triângulo isósceles, dois lados iguais e um de tamanho variável, os dois variáveis sendo a vida e a vida e o outro a mulher da tua vida e tu estarás no centro desse triângulo, Bruno, a desenhá-lo todos os dias, todas as vidas. É mais ou menos isto, Bruno: um triângulo, tu e a vida e a vida e a mulher da tua vida, é vida a mais para uma mulher só, é um triângulo, uma história de amor a três, contigo a sobrevoá-la fica uma pirâmide, Bruno e é preciso dar volume às coisas.

26.3.19

As duas faces das palavras

"Amo-te" ou é de mais ou é inútil, consoante sou eu que to digo ou tu que o ouves.

Vidas, vida

Acreditem se quiserem, mas fui feito para trabalhar numa livraria, num café e num barco. Ou seja: no espaço, na terra e no mar. Como é aquela frase famosa de um grego pré-socrático? "Há três espécies de seres: os vivos, os mortos e os que vão para o mar".

Talvez se possa mudá-la um bocadinho: "há três espécies de vidas: as que se lêem, as que se bebem e as que se navegam. E depois há uma que as junta a todas e não deixa nenhuma delas por viver".

25.3.19

Arrogância, paciência

Peço-vos encarecidamente que não o digam a ninguém, mas sou extremamente arrogante.

Isto é, se falta de paciência e arrogância forem sinónimos, do que me sinto longe de estar seguro.

Lista original

Ao fim da quinquagésima visita que faco à vida... Reticências porque isto não é verdade. Como contar as visitas ao planeta? Logicamente escolheria a data da primeira os quinze anos, a primeira vez que li Zaratustra e apanhei uma bebedeira (da qual não me lembro, de resto). Mas isso é falso. Já uma vez em Quelimane bebera de mais e foi nessa cidade que li Sven Hassel e Erich Maria Remarque, Jack London, Somerset Maugham, Conrad, Steinbeck, Hemingway e O'Henry, imprescindíveis preâmbulos a Nietzsche. Ora eu saí de Quelimane aos catorze anos e o facto - incontestável - de não ter percebido rigorosamente nada da maioria das páginas que lia pendurado num ramo de mangueira não invalida outro facto incontornável: é difícil saber quando visitei este mundo pela primeira vez.

Ou seja: cada visita é a primeira. Perpetuamente virgem, entro no lupanar sabendo o que me espera, mas sabendo apenas teoricamente. "Conhecimento livresco", acusar-me-ia muitos anos mais tarde o meu Pai, quiçá lamentando ter-me presenteado com uma biblioteca de sonho e uma liberdade de leitura ainda mais vasta.

Reticências.

Este post divergiu da sua intenção inicial: falar desta mistura de espanto e prazer, maravilhamento que sinto cada vez que entro no bar Number Two, na minha modesta mas fundada opinião um reflexo perfeito da vida.

A música é contestável. A decoração também. A poncha é incontestavelmente a melhor dos dois mundos, este e o outro. A clientela oscila. Os tremoços oscilam entre o bom, o muito bom e o resto (como a vida, não é?)

Ou seja: é prá poncha. O resto, caros amigos, ou é conversa ou é Ler por aí... Das duas, antes esta do que aquela.

O post continua a divergir.

Nada disto consta da lista original. 

Um problema e dois poetas

O grande problema da poesia portuguesa da actualidade só não é o maior porque me parece ser o único: nós temos dois poetas excepcionais e uma multidão doutros, que oscilam entre a mediania, a mediocridade e o zero absoluto.

Os dois são Cláudia R. Sampaio e Miguel Martins.

PS - "Poetas de casa de banho que se queixam com grafitti" é um manifesto exagero (o António Cabrita também faz parte dos dois melhores poetas portugueses, por exemplo) mas esta descrição de Ferlinghetti é bastante boa.

Cadeiras, solidão

Poder-se-ia talvez pensar que andar sozinho tem uma vantagem: um gajo senta-se à mesa e em menos de cinco minutos é abordado por metade do restaurante: "posso levar esta cadeira, por favor?" (A maioria das pessoas é polida). Enquanto há cadeiras livres ninguém está sozinho. Depois sim, ainda mais: pedem-nos cadeiras para irem para outras mesas, claro. E um gajo fica sem a possibilidade de oferecer um lugar à Jacqueline Bisset.

24.3.19

Lábios

Lábios ressequidos, lábios sedentos, saciados... Que lábios usarei para te falar? Não os posso usar todos ao mesmo tempo, como agora faço. 

22.3.19

Sono, mundo

É de retórica que te falo, daquele conjunto de planos intersectáveis de que uma vida é composta, das facas que a cortam em fatias, dos pedaços de Lua que a preenchem e lhe dão forma, do sabor que o frio da manhã te põe nos lábios, da alegria simples dos amores complicados (ou vice-versa), da verdade toda que um polegar contém, igual à de um corpo.

É a retórica do desejo, a gramática do amor, o alfabeto dos dias de sol, o prazer líquido de construires uma torre cujo fim não sabes se é o céu, o inferno ou o limbo do que lhes fica entre, o limbo da mediania, a tangente a um sorriso que te agradece o calor, tangente cujo nome procuras e por vezes encontras, outras balbucias, outras ainda decides esquecer: o nome das coisas sem nome não deve ser recordado, a alegria tangível da flecha que ainda não saiu do arco, o mergulho lento no sono que te acolhe, braços abertos como um mundo.

19.3.19

Amanhã (provavelmente a palavra mais justa num diário)

Isto vai a ver-se, um gajo percorre o mundo de A a Z e descobre que o mundo está em M,, de Mértola. Descoberta que nada tem de estranho a quem percorreu o dito globo, claro: o mundo é o que queremos que seja, onde o queremos.

Procuro uma citação de Beckett para a) me confortar nesta ideia e b) exprimi-la correctamente. Há pouco tempo comprei uma edição trilingue de Mal Vu Mal Dit. A versão portuguesa é de um senhor chamado Rui qualquer coisa e devia chamar-se só Mal Traduzido. Esta mania que os tradutores portugueses têm de se subsituir ao autor é confrangedora, mas neste caso a inépcia é visível logo desde o prefácio. Nunca vi coisa mais pedante, mais redundante, cassante. Felizmente bebo um Cabriz e oiço os Carmina Burana de Clemencic: não há melhor antídoto para um balão de ar quente do que um par de pés na terra húmida e de repente a necessidade de citar desaparece.  Apesar disso: "Absence meilleur des biens et cependant. Illumination donc repartir cette fois pour toujours et au retour plus trace. ... Et si par malheur encore repartir pour toujours encore. ... Au lieu de s'acharner sur place. ... Encore faut-il pouvoir. Pouvoir s'arracher aux traces. De l'illusion."

Hora de cama: os  cânticos da liturgia eslava dos monges de Chevretogne substituem os bêbedos anteriores, eu deixo o sono entrar pouco a pouco, educadamente, pé ante pé e pergunto-me se estas linhas não estariam melhor no lixo. Amanhã saberei.

18.3.19

Cheira a leite

Em meados do século passado começou a feminização da civilização ocidental. Questão de tecnologia, dizem uns; resultado da luta das mulheres, outros; da morte de milhões de homens na Segunda Grande Guerra, arrisca quem não concorda com os dois primeiros.

Alguém me sabe explicar a que se deve a infantilização que actualmente vivemos? Assim, até se compreende a revolta das mulheres: estavam quase lá e são substituídas por adolescentes cujos cueiros ainda cheiram a leite.

Vida, gramática

Na gramática da vida o sujeito e o predicado nem sempre concordam, o complemento directo distrai-se e perde-se, o indirecto não sabe que verbo o rege, as preposições ligam termos mais desemparelhados do que meias depois da lavagem e dos advérbios só se safam os de modo, por causa do sufixo. Viver deve ser uma tentativa de escrever qualquer coisa de jeito nestas condições.

Incêndios...

Como numa pradaria queimada por um milhar de incêndios, todos eles ateados com a melhor das intenções, o mais puro dos amores.

Tesos? Nem isso

Vai fazer quase dez anos que o hospital de Cascais mudou de instalações. Hoje passei à frente das antigas, onde o meu Pai morreu.

O edifício - que fica em pleno centro de Cascais, para quem não sabe - está abandonado, a caminho de se tornar uma ruína. Não é caso único, claro, mas não deixa de ser revoltante verificar-se uma vez mais que Portugal é um país de tesos que nem tesos sabem ser.

Gostamos de viver entre ruínas e de reclamar quando alguém no-las tira.

17.3.19

"Para não dizerem que não falei de flores"

Comprei um "livro" na livraria do metro. Passo as cancelas, sento-me e vejo que o coiso está "escrito" (a razão das aspas é a mesma nos dois casos) em acordês. Volto para trás com o intuito de o trocar. Pensei que teria de procurar livros estrangeiros mas encontrei dois portugueses respeitantes à história dos Descobrimentos que ostentavam a orgulhosa nota sobre a ortografia seguida: a correcta.

Volto a pagar bilhete, sento-me à espera do comboio e lembro-me de que em breve apresentarei um livro (sem aspas) escrito (idem) por um amigo. Recordo o auto-debate pelo qual passei para tomar a decisão.

Coisa complexa, que envolvia um distinguo entre dogmatismo e coerência (sou coerente mas não sou dogmático) outro entre a amizade e a auto-estima (este foi rápido) e finalmente uma declaração de derrota: as coisas são o que são e não o que queremos que sejam. A verdade é que já amei uma mulher que defende o AO e não deixa apesar disso de ser uma pessoa amável,  profundamente e eternamente amável, tanto que não me atrevo sequer a mexer nos tempos verbais.

Fica uma certeza: é a primeira e última vez.

(Não sei se me refiro ao livro se à senhora e ficaria grato se não perguntassem).

Ela por muito mais do que ela

O que não ganho em dinheiro ganho em palavras. 

Fraternidade

Não há nada na vida que substitua uma fratria, com a óbvia excepção da paternidade. Nem amores, nem amizades, nem uma chuva de estrelas cadentes numa noite de verão. 

16.3.19

O mar e as mãos

Posso pôr as mãos em concha e apanhar um bocadinho do mar, é fácil. Mais difícil seria apanhar o mar todo com as mãos em concha.

Tanto quanto apanhar o amor que um dia me puseste nas mãos. 

Olhares

Vou dizer-te, mas só a ti: por ti, para ti escreveria rios de linhas, faria como o outro e inventaria palavras que não existem, iria mais longe do que ele e inventaria emoções e sentimentos que nunca ninguém viveu, criaria alfabetos cujas letras se dissessem com as mãos e só com elas, espalhá-las-ia pelos campos, pelas nuvens para que quando chovesse elas te molhassem os cabelos, tão lindos e tu as visses cair, escondida na tua casa atrás das janelas; por ti, para ti, inventaria dicionários, daqueles que só as peles sabem ler e distribuí-los-ia pelo mundo fora, que todos aprendessem a falar as línguas que tão bem falámos, tantas vezes; por ti percorreria as línguas todas do universo e com elas faria uma língua nova, que só tu e eu entendêssemos.

Uma língua de olhares.

Sesta

Já a sesta levava um atraso dos grandes, mas assim mesmo não a deixei sozinha. Levei-a comigo para a cama e dormimos juntos, tão bem, tão profundamente.

Auto-indeterminação

Não sei se estou cansado, se com sono, se simplesmente farto. Talvez seja uma mistura disto tudo. Talvez não seja nada disto.

Idiotice, alienação e outros conceitos extraterrestres.

Um marciano que chegasse a Portugal pensaria que o bem estar e a prosperidade das pessoas dependem de uma coisa chamada futebol. Teria, é certo, dificuldades em perceber a relação entre aquilo e a comida, a roupa, as férias, o salário, a renda da casa dos portugueses, mas concluiria, sem sombra de dúvida, que algo tão presente, tão dominante nas conversas tem de ser preponderante, fundamental para a riqueza do povo.

Depois veria como as pessoas vivem e pensaria "estes gajos são idiotas".

Vigorante

O ar fresco das manhãs de primavera: dá vontade de respirar, não é?

15.3.19

Fragmento - Pensando em ti

Pensando em ti penso em mim, na vida... Em tudo menos em nós.

Nunca fomos "nós", pois não? Fomos alternadamente um mais um, um mais um mais dois... Fomos até, imagina, um só, um só corpo um só espirito e uma só carne, sangue, tudo um só, uma só pele e um só arfar.

Às vezes parece-me que sim, fomos nós às vezes mas afasto logo essa ideia, não vá ela entranhar-se.

Rios, amores

Não deixa de ser curioso: a maioria das pessoas vê o amor ao contrário. Para mim, ele é um rio, começa pequeno e vai  engrossando, à medida que passa por quedas, cascatas, barragens e sabe Deus que mais.

Muitos começam com ele largo e em luta para chegar ao mar, poderoso e prometendo infinitos. Depois o tempo passa e o rio estreita-se, não sobrevive às barragens, as quedas e cascatas transformam-se em subidas, os calhaus em pedregulhos e acaba num fio de água. A nascente passa a morrente e o amor acaba-se-lhes perante os olhos espantados e incompreendidos.

Dispersas de hoje, 15 de Março, em Lisboa

Ontem foi dia de limpar demónios. Afoguei-os numa piscina constituída por vinho tinto, medronho, limoncello e ponchas (em camadas sucessivas, não todas misturadas). Os filhos da mãe sabem nadar, claro, mas levaram um bom afago. Sinto-me o corpo um bocadinho moído, ofereceram resistência (oferecer é o verbo adequado. Não gosto de lutas em que o adversário se entrega. Melhor do que "oferecer resistência" só "vender cara a pele", que neste caso apenas parcialmente se aplica: o limoncello, por exemplo, foi oferta de uma senhora encantadora. Uma parte do tinto veio de um monte de senhores simpáticos e excelentes profissionais que encontrei numa feira de turismo actualmente a decorrer em Lisboa).

De modo tenho o corpo ligeiramente moído e com traços da áspera batalha de que ontem foi palco. Vá lá: a Coluer aguentou-se à bronca e não me pôs no chão, como às vezes acontece quando bebe muito e tem de parar num sinal, por exemplo. Mas entre o Number Two e o S. M. II só há um sinal e uma linha de comboio a atravessar e a burra estava de bom humor e portou-se bem. Sentia-me mais leve, sem aqueles diabos todos.

Agora está calor, um dia lindo e eu ando naquilo a que os ingleses chamam personal errands. É uma das expressões mais lindas que conheço, personal errands, apesar de lhe preferir la bourlingue. Je suis, tu es, il est un bourlingueur. Nous bourlingons. Veux-tu bourlinguer avec moi? J'ai bourlingué toute ma vie...

A minha bourlingue de boje é pequena: Saldanha, Massamá, talvez Cascais (esta será feita de bicicleta, se for feita), regresso a Lisboa (talvez de burra talvez de comboio, se for de Cascais. De Massamá nem em sonhos). Não é bem uma bourlingue, é mais personal errands.

14.3.19

Infelizmente

- Já alguma vez viste um amendoim antes de ser torrado?
- Não.
- Pois, a quantidade de coisas que ignoramos...
- ... Um dia será igual à quantidade de coisas que sabemos. 
- Quando estivermos mortos.
- Sim. Infelizmente não ressuscitamos.

Ter, haver

- A questão é sempre a mesma: o que escreves faz sentido?
- Não é faz, estúpido. É tem.
- Qual é a diferença?
-...

Sotavento

Não digas a ninguém, prometes? Vou dizer-te o que nunca disse.

Primeiro: a bicicleta, tão linda. Imagina que à noite só faço pequenos trajectos. Saio da Cossoul e páro no Irreal, saio do Irrreal e o Number Two salta-me ao caminho. Felizmente entre este e o bote não há nada de potável, se não antes andar de patins.

Segundo: a solidão. É tão relativa... Hoje estás sozinho, amanhã cheio de coisas sólidas como granito e depois de merdas gasosas. Ou seja: na verdade raramente estás sozinho, se te considerares companhia.

Terceiro: a vida em geral. Nada a dizer. É o que é.

Quarto: as coisas efémeras, como sentimentos, emoções, o desejo ou o fugaz momento de felicidade que um sorriso alheio te procura. Nada a dizer. Um cavalheiro não navega para barlavento e não suspira pelo que se passou a sota.

Fragmento (editado)

Bom, não faz mal. Imaginemos que eu queria escrever-te: de que te falaria? Não sei. Tudo é tão pouco importante, não é? O jantar foi delicioso, uma bratwurst na Wurst, um pouco de queijo na Cossoul, uma aguardente de pera na Wurst - outra vez - uma agradável pedalada até bordo. Nada de especial.

Quando cheguei, o barco estava demasiado quente. As minhas casas em terra estão sempre demasiado quentes porque gosto de andar nu, mas a verdade é que ambientes sobre-aquecidos me aborrecem. Há um equilíbrio difícil entre a nudez e o meio ambiente, culpa de evolução, sem dúvida. Não fez bem o seu trabalho, qualquer viajante o verifica facilmente: devíamos ter mais braços e mãos. (Curiosamente, os amantes chegam depressa à mesma conclusão, o que nos levaria a pensar nas semelhanças entre o amor e a viagem. Agustina, esse génio, percebeu-as bem. "Por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica", escreveu. Mas isso é demasiado redutor: o amor não se limita ao sexo e este não preenche o amor.)

De maneira escrevo-te sem querer e sem nada para dizer, coisa que de tão frequente deixou de me afligir. Pior, de resto, seria o contrário: quem tem algo a dizer nunca sabe se aqueles a quem o diz têm algo a ouvir.

Há bocadinho escrevi uma coisa que dirigi depois à A.. Não sei se o deveria ter feito, apesar de saber que não devia. Estas dúvidas e certezas são  como aquelas iluminuras medievais, nunca se sabe qual é a planta de que vemos a flor, há sempre mais trinta, todas juntas, emaranhadas umas nas outras. Irremediavelmente juntas, diria mesmo se pudesse dizer. Não posso ou não quero. Querer é poder. E não querer, será não poder?

Claro que podemos sempre esquiar entre palavras com a elegância de um slalomeur pista abaixo, mas neste caso esquiar entre silêncios seria mais adequado, apesar de os silêncios não se verem e as marcas na pista de slalom sim. Mas a analogia continua perceptível, não achas? Os silêncios não se vêem mas ouvem-se.

Penso que sim e penso também que já não-te-disse o suficiente. Daqui em diante teria apenas pleonasmos, redundâncias, repetições sem fim.

Posso, apenas, desejar-te uma boa noite.

Beijo,

(Para a P., com um beijo escrito e sublinhado).

13.3.19

Dos limites da vontade, respectivas incapacidades e outras mágoas

Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei a Carta do Achamento do Brasil, mas tentasse ele escrever a Carta do Achamento das Diferenças entre nós e ver-se-ia em palpos-de-aranha, o pobre. Descobrir o que nos separa seria dez vezes mais complicado do que descobrir o Brasil.

Já descobrir porque nos mantemos separados seria dolorosamente fácil e é por isso que ele nunca sequer tentou.

12.3.19

Dispersas de hoje, 12 de Março, em Lisboa

Gosto imenso de peixe, mas detesto-o quando vem para a mesa mal-amanhado. É-me insuportável.

Infelizmente, com a idade descubro que isto se aplica a tudo e não só ao peixe. Fui jantar a uma tascazita que se pretende medieval e não é mais do que medíocre. Idade média mal-amanhada? Obrigado, não.

.........
O bar Number Two (um bar respeitável, apresso-me a esclarecer) faz as melhores ponchas do Universo, incluindo neste universo as teorias einsteinianas do tempo-espaço e relacionadas: não há, nunca houve nem haverá, aqui, ali ou onde quer que seja melhor poncha do que esta, com a possível excepção das do bar É Prá Poncha em Câmara de Lobos, que foi onde tudo isto começou.

Até agora, vazio, passava um interessantíssimo documentário sobre lingerie feminina, uma compilação (suponho) dos melhores momentos de Victoria's Secret e coisas no género. Infelizmente começaram a chegar clientes e o momento cultural...

... espera, nada disso. Aquilo deve ter sido um desvario breve. Estamos de novo na alta cultura. Ou costura. Ou assim, não sei.

A poncha tem, sobre os outros cocktails, a vantagem singela de ser melhor na boca, mais bonita à vista e mais pesada na carteira (isto é, não a alivia como os outros, continua pesada).

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A minha bicicleta Coluer tem qualidades: é paciente, aguenta muito álcool e é linda. Permite-me pedalar direito, como se estivesse sentado numa poltrona em casa frente à lareira, a beber vinho do Porto, um bom LBV.

(Digo isto esperando que a Vitus Velox não tenha acesso a este blog. Ela também é linda e gosto muito dela).

........
Devo uma vida ao Facebook: sei quem é um senhor chamado Messi (joga futebol) e num registo mais actual que há programas de televisão a promover encontros de senhoras com agricultores.  Porém, é forçoso afirmar que descobri quem é Cristiano Ronaldo muito antes do Zuckerberg (aposto); e ainda antes de saber do nosso herói nacional sabia quem era um gajo chamado Beckham.

É um tipo odioso porque nos televisores do bar acabou de substituir a lingerie feminina (não é um pleonasmo: há lingerie masculina, sei-o graças ao Facebook). 

Diário de Bordos - o dia seguinte à noite de ontem

(No rescaldo das notas nocturnas de ontem, uma coisa boa: a malvada gigantesca cadela negra que me acompanhou estes últimos dias está reduzida ao tamanho de uma Chihuahua anã).

O dia começa alegre e leve, a acenar-me com trabalho e sol, uma boa combinação. A idiotice de quem faz ou importa regulamentação económica dá uma noção aproximada da dimensão do universo. Por defeito, claro. Uma xafarica de trinta lugares é regulada como se se preparasse para envenenar metade do país. Têm um problema de perspectiva, mas verdade seja dita: é transversal. Deputados, sindicatos, opinadores e tutti quanti imaginam-se num país diferente e maior, mais rico do que o nosso é.

Os únicos que o vêem bem são os futebolistas e os emigrantes.

Vim tomar o pequeno-almoço a um café diferente do habitual, era o mínimo que podia fazer face aos acenos do despertar. Uma das empregadas é mestiça, pequenina, bonita. Passeia-se entre a cozinha e o balcão com um sorriso tão grande como o do meu dia. Salvé!

11.3.19

Diário de Bordos - Lisboa, 11-03-2019

- Jantar em casa da A. I., acompanhado pela grande cadela negra;
- Povo, onde encontro M. e L., que me apresentam
- R., basicamente o fenómeno da noite. Parece que foi picada por aquele gás que transformou o puto de Krypton em super-homem, mas em quantidade insuficiente para fazer dela uma super-mulher. A dose só chegou para a fazer falar e impedi-la de ouvir. Não voa, não tem uma visão de raios-X e não fura paredes, mas no fim é tocante, tanta fragilidade (pelo menos o primeiro embate. A longo prazo deve ser mais esmagadora).
- R. estava com a mãe, uma senhora bonita, calma, adorável.
- Quase não ouvi o que se disse no Povo. A sessão começou com o pior poema de "Sophia" (aspas porque não leva apelido): aquela coisa abominável que ela escreveu sobre o 25 de Abril. "Sophia" tem muitos maus versos. Nem todos são como esta beleza:
"Ele porém dobrou o cabo e não achou a Índia
E o mar o devorou com o instinto de destino que há no mar".
Ou esta:
"Nus se banharam em grandes praias lisas
Outros se perderam no repentino azul dos temporais",
Mas hoje estava lá o M. e fomos para fora conversar;  cravei-lhe um favor, ao qual ele acedeu graciosa e elegantemente. A sessão começou com aquele horror e depois pronto. Não se fala mais nisso porque M. acedeu ao que lhe pedi.
- Fui ao Roterdão. Estava cheio. Ainda bem: não consigo dançar aquela música e de qualquer forma não sei dançar e menos ainda sei em salas cheias. Na verdade devem fazer qualquer coisa à música, porque não reconheci os Unknown Pleasures que passaram logo ao princípio. Estava cheio de efeitos, daqueles mais certo do que eu chamar-me Luís Serpa servem para fazer as pessoas dançar ou para destruir a música, o que vier primeiro.
- Depois do Povo e antes do Roterdão, longa conversa sobre cinema. É mais ou menos garantido que um dia terei uma televisão tamanho piscina e uma colecção infinita de DVD. A vontade de ver e rever filmes, essa já cá está, cada vez mais forte.
- Não sei por onde anda a cadela. Sinto-a perto mas não a vejo.

(Brut de décoffrage)

10.3.19

Pergunta isolada e descontextualizada

Quando duas pessoas se encontram, sejam matarruanes do pior sejam pessoas cultas e educadas e conversam usam a razão para trocar opiniões. Juntem-se a essas duas outras duas, ou três ou quatro e - salvo ocasionais e esporádicas excepções - a razão continua a ser o principal veículo para as suas trocas.

Quantas pessoas é preciso ter para que a razão desapareça da cena e seja substituída pela animalidade que em termos evolutivos a precedeu?

Amantes de sempre

Uma das minhas amantes mais antigas é uma gaja porreira. Quando passa a noite comigo não durmo um minuto (isto é exagero, claro, mas ela é tão boa que mo faz parecer sem dificuldade).

Chama-se insónia e não a aconselho a ninguém. 

Velha cadela preta

A velha cadela preta veio visitar-me. Mandei-a passear, claro, mas ela não foi. Fui eu, passar dois deliciosos dias ao Porto. Poderia dizer que mal pus um pé em Lisboa ela me acolheu alegre e saltitante, mas não é verdade. Esperou até eu chegar à Baixa, cansado, esfomeado e com vontade de uma pratalhada de spaghetti. Estou-lhe grato: foi quase meia hora sem ela por essas linhas de metropolitano fora. Depois aliou-se ao gajo do restaurante - o spag bolo estava uma merda, coisa que não surpreenderia nem um marciano - e ao chauffeur de táxi, que apanhei porque não me apetecia esperar por um Uber: com a maior das delicadezas e simpatias fez uma exibição de boçalidade que não vou esquecer tão cedo.

Não gosto muito de animais mas estou longe de lhes desejar a morte. Excepto a esta.

Dos pequenos prazeres e dúvidas de uma existência fora de normas, pelo menos se se atender à origem social do protagonista

Regresso a Lisboa numa boleia encontrada num grupo do Facebook. A condutora (até agora) e proprietária do veículo é professora de matemática num liceu.

A outra passageira e agora condutora é oficial de Justiça num tribunal criminal. Passados os primeiros temas (compra de casa pela professora, informações pela outra, que antes de trabalhar no tribunal era solicitadora) a conversa volta-se para os casos criminais do dia, muitos com informações de dentro. Curiosamente, Neto de Moura não vem à tona, coisa que a) não sei se hei-de agradecer se b) lamentar ou, melhor ainda, c) chamar à colação.

Falta uma hora para chegarmos, tenho tempo para optar pela a).

Definições - vida, amor

É como guiar através de uma paisagem muito bonita, não é? De vez em quando tens uns lampejos da beleza que está à tua volta, mas a maior parte do tempo é muito chato.

Refiro-me à vida, claro.

Da esperança

A favor da modernidade: o homem é um animal simbólico e irracional (que ocasionalmente pensa e lida com a realidade, mas só ocasionalmente). As gerações precisam de renovar símbolos e causas pelas quais se mobilizar (o real é uma seca e a racionalidade não é suficientemente motivadora. Juntos levam ao abulismo).

Objecção à modernidade: podia ter encontrado causas e símbolos mais bonitos.

Auto-crítica: cada velha geração diz o mesmo.

Crítica da auto-crítica: cada nova geração faz as mesmas asneiras.

(O mundo fica melhor a cada mudança de guarda. Talvez os símbolos e as causas não tenham o peso que lbes atribuis. Talvez o real e a razão acabem por vencer. Talvez o único verdadeiro problema seja a esperança de vida ter aumentado: confrontamo-nos com aquilo de que não gostamos cada vez mais longamente. Talvez a histeria, a mentira e a manipulação sejam ferramentas legítimas. Talvez a Shoah e o Gulag não se repitam. Talvez um dia morras).

9.3.19

Instruções

Não te deixes levar por essa cadela e não percas tempo a lutar contra ela. Engana-a, ilude-a, mente-lhe, goza-a. Essa ideia de que ela percebe tudo, tudo vê é apenas meia verdade. Ou duas meias verdades, quando muito e é na linha que as separa que deves manobrar. Morde-a, abocanha-a. Afoga-a. Não a matarás, claro, ela acaba sempre por ressuscitar, mas pelo menos põe-la a milhas por um bom pedaço de tempo. Manda-a passear e se ela te convidar para a acompanhar não aceites o convite. Não te deixes ir na conversa dela.

No fundo: vocês conhecem-se tão bem e há tanto tempo. Não precisam um do outro.

7.3.19

Diálogos sintéticos, nada de muito sério

- É uma aguarela, mas as cores representam dores, umas ligeiras, outras extensas...
- Sorte a tua. Imagina que era gouache. Ou óleo, indelével.
- Seria preciso cobri-las com dores novas, dor em camadas...
- E um dia alguém identificaria a que ano cada uma pertenceria.
- Só as tectónicas. As outras esvair-se-iam, confundir-se-iam com simples tristezas, nada de muito sério.

6.3.19

Pergunta de passagem

Alguém já  se lembrou de dizer aos jovens poetas portugueses que não é Herberto Hélder quem quer?

Fragmento - Uma vida simples

"E é assim, pouco mais, pouco menos. Quase não leio mas compro muitos livros porque sei que isto é passageiro. Pedalo feliz por essas ruas esburacadas e barulhentas. Vejo amigos e estou sozinho, alternadamente. Trabalho muito alguns dias e outros menos. Faço projectos e satisfaço-me com o que tenho em mão. Vivo e deixo viver, simultaneamente. Espero com impaciência o regresso a Palma e tenho saudades antecipadas de Lisboa.

Uma vida simples."

5.3.19

Dispersas - Prima Terça, Rimbaud e Verlaine

- Se um gajo sai à noite ouvir poesia é para aprender o que não sabe e não para confirmar o que já sabe.
- Alguém em 2019 precisa que lhe contem a história de Rimbaud e Verlaine?
- Isto dito, a segunda e a terceira partes da leitura foram muito boas.

- On ne devient que ce que l'on a été. C'est pour ça que l'on s'améliore avec l'age.
(Só nos tornamos no que já fomos. É por isso que melhoramos com a idade.)

Pés, Lisboa

Por mim, na minha óptica, da minha perspectiva, isto é, do meu ponto de vista, Lisboa és a mais bela cidade do mundo que eu conheço. Pedalo-te as ruas escondendo-me entre os carris dos eléctricos, ponho-te as consoantes mudas antes das consoantes articuladas, vomito-te os grafitti, abomino-te os políticos, suporto-te os jogos de futebol nas televisões e amo-te como se ama uma mulher linda que nos despreza: não há defeito que chegue para nos impedir de a amar, de a querer deitada numa cama, num relvado, num banco à beira-rio. És mulher, Lisboa. Mais forte do que qualquer homem que te imagine vencida. És mulher e eu, homem prosto-me a teus pés.

Que os tens longos e brincalhões, como os dedos, os olhares e o desejo.

Não é? Disparates

"O dia está de chuva", diz-me o Sr. Coelho, da Ginja sem Rival. "O dia está de chuva", replico. "Hoje vão três em vez das duas habituais, Sr. Coelho, por favor", digo em voz alta. Continuo para mim: "A chuva dá-me para a melancolia, para a pieguice, soltam-se-me as mágoas, vá lá que são poucas, mas são profundas, sempre as mesmas seja Deus louvado, nada como lidar com os diabos que se conhecem, as pessoas, as multidões, a falta de gosto, a adesão cega e irreflectida às causas do dia, senhoras gordas com a barriga à vista (isto pode ser incluído no grupo geral "falta de gosto"), o barulho dos automóveis, a chuva, enfim." Curioso é que tudo isto se acompanha de cada vez mais tolerância, cada vez aceito mais as pessoas mas lhes tolero menos os defeitos, não sei como explicar que a indiferença não é a mesma coisa que tolerância, talvez seja, não sei, como se o importante fosse o que não se vê e não o que é, quando o que se mostra também conta, não há fronteira entre o visível e o invisível, somos um em tudo o que somos, parafraseando. Somos um e é tudo o que somos, graças a Deus, já assim é tão complicado, sermos hoje o que fomos ontem e seremos amanhã, sermos um por dentro e o mesmo por fora, apesar de sermos tão divisíveis, tão múltiplos, tão tantos. Aposto que esta mulher gorda com a barriga à mostra é gorda e feia por dentro também e tem a barriga à mostra lá dentro e se calhar o namorado até gosta, parece um toureiro português com cara de francês, destoa um pouco na Confeitaria Nacional onde vim comer um prego e pensar que devia ser pintor em vez de ser escritor a menos, claro, que fosse tão mau pintor como sou escritor, aí não valeria a pena e antes continuar a escrever, uma palavra é um milésimo de uma imagem portanto um disparate escrito é mil vezes menos do que o mesmo disparate pintado, não é?

4.3.19

Labirinto, silêncio, vida

Basta uma palavra, sabe-lo perfeitamente, uma palavra para nos perdermos, uma palavra com uma só saída para centenas de entradas, sem vista nem janelas nem portas, uma palavra na qual entrámos, tu e eu há tanto tempo que já não podemos voltar atrás e dela não conseguimos sair.

Uma palavra na qual tacteamos o caminho e nos tacteamos sem saber o que andámos para ali chegar e muito menos o que nos espera. Uma palavra sem saída. 

Stakhanovistas da buzina

Nós, ciclistas passamos muito tempo a queixar-nos do comportamento dos automobilistas. Uso a primeira pessoa do plural: faço parte do grupo. Porém, tenho estado a viver numa cidade - Palma de Mallorca - onde as bicicletas são respeitadas, apreciadas e defendidas. Num ano de Palma oiço menos buzinadelas do que em dois dias de Lisboa. Razias tive uma, talvez (mas não estou seguro). As bicicletas são admitidas em quase todas as lojas, apesar de haver parqueamentos a cada esquina. Não menciono os pavimentos, porque dependem das câmaras municipais e não dos carros, claro. Mas posso dizer que há menos buracos em toda a cidade de Palma do que numa rua da nossa cidade.

Acabo de passar um mês em Lisboa e ocorreu-me que somos injustos com os nossos automobilistas. Em primeiro lugar porque eles são selvagens entre eles também, não é só connosco. Apitam-se, insultam-se, cortam-se o caminho uns aos outros como homens de antes da hominização. Depois, porque nos esquecemos de apreciar devidamente o trabalho que ser selvagem dá. É enorme: é preciso estar constantemente à espreita de uma "asneira" (entre aspas porque a maioria das vezes nem isso são), apitar, gritar, exaltar-se por dá cá aquela palha, gesticular, fazer manguitos e por aí fora.

Os nossos automobilistas são verdadeiros stakhanovistas da irritação. Devem ser admirados; e nós não nos devemos queixar de ser o alvo dos seus violentos esforços para não serem absorvidos pela boa educação, pela urbanidade, pela - osemos o termo - civilização.

(Publicado no grupo Massa Crítica).

Auto-retrato: o troglodita tranquilo

Não é que seja muito civilizado, não sou. Mas não alinho em matilhas. Geram e alimentam-se de desonestidade intelectual, de violência descontrolada. São o homem antes da civilização. Tão pouco respiro o ar do tempo: na melhor das hipóteses é irrelevante, na pior pestilento. Sou um troglodita, mas um troglodita tranquilo.

(Post 11111 deste blog, que perfaz hoje 5544 dias de existência. Dá uma média de dois disparates por dia. Podia ser pior, mas eu avisei: sou tranquilo).

3.3.19

Calor, paz

A cidade está cheia de sol e de gente. É tão bonita! O sol divide-se igualmente por tudo e todos: ruas, praças, gente, rio, prédios, as velas de dois ou três gajos do day charter. Dá-lhes vida, luz e paz: o calor apazigua, pacifica. Tudo se torna menos frenético, mais calmo, como se a luz e o calor fossem obstáculos sólidos a precisar de ser afastados a cada passo.

2.3.19

Ausências

Se do mar é cedo para lamentar a ausência, que será de amar?

Miragem

Algures perante mim uma planície, um largo rio tranquilo, searas que onduleiam ao sol, uma camponesa de faces rosadas, estantes cheias de livros (os meus). Pode ser miragem, mas é bonita, não é?

Vida, escrever

A desvantagem de escrever pouco é que requer mais medronho, ponchas, rum, whisky do que escrever muito. Ou até mesmo, imagine-se, vida.

Amor, definição definitiva

Entregares-te nas mão de alguém? Só se tiver unhas para te tocar.

Vida, muro

Constróis um muro. Chegas ao fim e descobres que ficaste fechado no lado errado. Chama-se vida, não é?

[Há uma porta nessa parede. É a música.]

Crença

Vejamos, diz o cego: o futuro é brilhante.

O infinito e os círculos

Estas coisas acontecem nos círculos? Não. Acontecem em círculos: andamos-lhes às voltas. como se tivéssemos um faro de cachorro. Não temos e os nossos círculos não são perfeitos. Parecem oitos deitados, como o infinito.

Lamento do solipsista

Talvez o mundo exterior tenha alguma coisa a dizer; não sei. Ou eu tenha algum comentário sobre ele; ainda menos. Tudo o que acontece acontece em mim e o que não acontece em mim não existe. Nada que não seja eu existe e sou tão pouco. Espalho-me pela vastidão do que sinto, penso, imagino e perco-me na selva de tudo o que é fora de mim, tão pequena.

Os leões estão em mim, as panteras, os leopardos e as serpentes. Fora só vejo o sol, o cálido vento que mo traz e o mar que os deixa passar.

Ler, escrever

Quem escreve gosta de tecelagem, quem lê não gosta de crochet. Parece uma contradição, mas não é.