27.6.20

A Fé, o milenarismo e outras digressões teórico-sentimentais

Há aproximadamente quatro ou cinco vidas interessei-me por neurologia, biologia e outros ias. Lia François Jacob, Jacques Monod, Edward Hall, Gregory Bateson, Paul Watzlawick, descobria Jean-Pierre Changeux, devorava o Morin do Paradigma Perdido e do Método... Foi um período que durou alguns anos e de que ainda hoje guardo muitos traços. Lá para o fim dele li uma tese segundo a qual a fé religiosa é uma parte constitutiva do cérebro humano e não uma opção. É o resultado de um processo evolutivo. O homem seria naturalmente religioso e o ateísmo uma desviância. Não me lembro do autor mas lembro-me de que na altura não levei aquilo muito a sério. Ateu desde os catorze anos, habituara-me a olhar para as manifestações de fé como formas particularmente bem sucedidas da superstição, um pouco à imagem da diferença entre dialecto e língua: "uma língua é um dialecto que tem um exército e uma marinha" diz a piada (que não o é assim tanto). Acreditava que as pessoas têm fé porque pensar dá mais trabalho do que acreditar. A fé não me interessava muito mais do que as práticas voodoo. Era-me mais próxima porque a conhecia, mas não havia grande diferença entre estas e aquela.

Hoje o meu interesse pela fé religiosa vai um pouco mais longe. Continuo a pensar que não há grande diferença entre comer uma hóstia acreditando que se está a comer o corpo de Cristo e espetar alfinetes num boneco pensando que assim se vai vingar uma ofensa qualquer; mas acredito, sim, que ambas as crenças são parte intrínseca do humano, que o nosso cérebro evoluiu com a necessidade de fé - com ou por causa da capacidade do simbólico, se preferirem. A fé tem a ver com o símbolo, é a estruturação do simbólico. E o homem precisa de símbolos, está "programado" para simbolizar.

Mas não é isso que está em causa. O que me fez pensar nisto tudo é a fé que as pessoas continuam a depositar em jornalistas e em políticos, duas classes profissionais cuja capacidade de fazer mal é conhecida há muitos séculos (na Roma antiga não havia jornalistas mas havia manipuladores de opinião. A actividade não é de hoje).

Os próprios jornais confessaram, há poucos dias, que tinham manipulado a opinião pública em favor do confinamento; a capacidade que os políticos têm de fazer qualquer coisa bem feita espelha-se perfeitamente na pobreza crónica do nosso país, na corrupção de que somos vítimas, no nepotismo, na endogamia das nossas «elites» (entre aspas porque é um sarcasmo). Mas as pessoas continuam a acreditar nuns e noutros da mesma forma que acreditam na virgindade da Senhora, coitada. 

(Há tempos li uma coisa sobre um fenómeno de hiper-plasticidade do hímen: parece - confesso que não dediquei muito tempo a pesquisar o assunto pela razão simples e explícita de que o hímen da senhora me interessa zero - que é possível engravidar mantendo-se tecnicamente virgem. Talvez haja aí um leitor médico que me confirme ou infirme isto. Quanto a mim é irrelevante e não chega para me fazer regressar à fé. Suponho porém que um fenómeno semelhante faz as pessoas acreditarem num político ou num jornalista: há uma possibilidade remota de o que ele diz ser verdade, portanto acredita-se no bolo todo.)

O problema desta necessidade de fé é que não se limita ao Bom. Quem acredita em Deus (no sentido lato) precisa de acreditar no demónio. Sem este, aquele não faz sentido, não pode existir. Do demónio as teorias milenaristas são parte integrante: "o fim está próximo", andam doidos a gritar pelas ruas e pelos caminhos desde que o primeiro homem se lembrou de cortar um tronco de árvore às rodelas e pô-las debaixo de uma carga pesada. Aliviar a carga é desafiar a ordem divina. O homem nasceu para sofrer e tudo o que lhe reduza o sofrimento é intrínseca e inevitavelmente mau.

Para grande pena minha, esses doidos hoje têm acesso a jornais e a políticos e anunciam o fim do mundo em termos bonitos: aquecimento global, micro-plásticos, Covid-19. Preferiria de longe que o demónio regressasse, o bom velho demo. E que os curas deixassem de invadir as redacções e não pudessem ser eleitos. 

25.6.20

Narrativas, confrontos

Devíamos confrontar a nossa ideia de nós com a que o mundo faz. Uma espécie de confronto de narrativas. "A realidade e eu, um tango ou uma tanga?"

Pelo menos uma vez por dia, não vão as coisas mudar de repente.

23.6.20

Vida, viver

Nunca percebi claramente porque é que viver é tão bom. A vida não se resume a um gaspacho ou uma paletilla de cordero no "mini-restaurante casa Júlio", nem a um livro bem escrito, a um beijo recebido ou dado a uma mulher que nos ama. A vida é mais do que este tempo cálido, feliz, acolhedor, mais do que esta perspectiva de em breve estar no mar, a bordo do "meu" P. (ainda não sei bem para onde, mas isso é um pormenor insignificante).

A vida é muito mais do que as peças de que é feita, mas vivê-la consiste em apreciar cada uma delas separada e lentamente.

Por isso é tão difícil vivê-la: há que esquartejá-la primeiro e saboreá-la depois.

22.6.20

Dispersas do dia

"I'd rather not to" é a atitude correcta face aos tempos que vivemos e aos que aí vêm,  que serão piores.

A menos que se forme alguma resistência, claro. Mas quando vejo a mansuetude com que o povo do meu país aceita a incompetência, a arbitrariedade, a injustiça tenho sérias dúvidas sobre a possibilidade de isso acontecer.

Desçamos devagarinho para um "I'd rather not to" generalizado, com excepções escolhidas a dedo, cereja a cereja.

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O sono é uma droga muito viciante. Sempre dormi pouco e mesmo esse pouco  era a contragosto. Hoje dou por mim a ter de lutar para sair da cama e a entrar nela com inegável prazer. 

Não sei é se isto acontece porque eu mudei. Talvez tenha sido o mundo.

PS - O problema é haver um tipo de cansaço que o sono não resolve.

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Três contrariedades e uma boa notícia. O P. tem pelo menos a vantagem de me proporcionar dias ricos e variados.

Quando daqui a umas semanas o vir pronto e a navegar, verei que as contrariedades não passaram de uma ilusão de óptica.

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Nos Países Baixos há manifestações contra as restrições. Em Portugal pedem ainda mais restrições. 

E ainda há quem duvide de que somos pobres porque queremos.

PS - É que nem sequer se pode falar de apatia. Eles aprovam activamente estas medidas. Gostam de estar presos. Esta terra ainda vai tornar-se um imenso Estocolmo.

21.6.20

Teologia, idiotice

Mini-discussão em torno do SNS, outra vez. A algumas pessoas fala-se no SNS e o cérebro transforma-se-lhes num imenso paúl de sentimentos de amor, declarações de fidelidade eterna, paz, amor e água fresca, Allah o misericordioso, Santo Arnaud, a pomba da paz, sou-mais-santo-do-que-tu-porque-gosto-mais-do-SNS-do-que-tu, és um bandido porque queres desmantelar o SNS e por aí fora. Além disso, vêem uma estranha ligação entre o sistema americano de saúde pública - do qual desconhecem até os nomes - e o SNS. Dizer que o SNS devia ser reformado é imediatamente defender o sistema americano, numa espécie de salto cognitivo equivalente aos saltos do Evel Knievel - sistema esse que os coitados ignoram ser a merda que é por causa das intervenções do estado americano e querer, imediatamente, um sistema de saúde para os «ricos» (para eles, qualquer pessoa que ganhe o suficiente para comer decentemente).

Adoro teologia, mas há dias em que não tenho paciência para idiotas, nada a fazer.

20.6.20

Vírus, nihilismo e outras considerações sobre o século XX

Oiço o R. preparar a piña colada como lhe ensinei: com o shaker, ligeiramente mais leite de coco do que o recomendado, nada de gelo, seja ele moído ou em cubos. Gelo é água, coisa de demónios: precisamos deles - que seria uma vida só com anjos? - mas temos de os manter à distância. (Pequena nota ao post anterior: a margarita do 7 Machos continua impecável. Recomendo-a.)

A polícia interrompeu duas vezes a festa no Lo Divino, diz-me A., a DJ. Querem deixar-nos um mundo perfeito. Visivelmente já se esqueceram do resultado das tentativas feitas no séc. XX, o melhor da história da Humanidade - pelo menos se o critério for o número de mortos. Nunca se matou tanta gente por milhão de habitantes como no séc. XX e nenhuma das mortes foi por maldade. Todas tinham um objectivo "bom": a pureza da raça, a igualdade, a liberdade. Agora não matam pessoas, matam a vida. Sempre dá melhor consciência. Porra, já não se pode fazer uma festa num restaurante a meio do dia? Que cidade queremos? Asséptica, insonora, desinfectada, sem «maldade», feita de paz e amor - fake peace and fake love, que nada disto suporta um grama que seja de verdade, de realidade, sem racismo, sem história.

Não há nihilismo que resista a tanta estupidez. É preciso ir para as barricadas.

Há machos e nachos

Já me aconteceu muitas vezes entrar sóbrio no 7 Machos; hoje é a primeira vez que o lamento. O Johnson foi trabalhar para outro (a L. abriu mais dois, apesar de ter finalmente arranjado um namorado) e os nachos hoje estavam... enfim, estavam. Pode argumentar-se que mesmo assim são melhores do que noventa por cento dos nachos que se comem noutro lado qualquer (e a dois anos-luz dos que se comem em Lisboa) mas isso não satisfaz.

Quero-os bons como eram, não os quero melhores do que, como agora são. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-06-2020

Aos sábados, a madrugada em Palma acaba às onze da manhã. Só a essa hora as ruas ganham um pouco de vida e muitas mulheres bonitas, felizes porque é sábado, estão frescas e se sabem atraentes. A Rambla cheira a flores de uma ponta à outra e eu pedalo vagarosamente, distraído pelo cheiro e pela vista. Daqui a pouco o Lo Divino faz uma experiência e quero lá estar, fazer número e volume.

Comecei o dia à procura de uma escotilha para o P., irritação que me enfurece mais do que me irrita: a que temos está boa, mas precisa de uma fechadura, uma porcaria de uma peça de plástico que deve custar dez cêntimos a produzir e uns vinte euros a comprar. É uma Vetus que provavelmente está a bordo desde os tempos da Arca de Noé e já não há fechaduras para ela. Solução, uma de três: a) fechar a escotilha, impermeabilizá-la e esquecê-la. Esta era a opção original, mas agora decidimos fazer ali o armário de molhados e quero ter ventilação; b) comprar uma escotilha nova. Revolta-me, tanto pelo preço como pela ideia de substituir uma peça  que está em condições por causa de uma merda de um componente ínfimo (mas essencial); c) procurar uma escotilha em segunda mão, por muito que me chateie pôr material em segunda mão num barco que está a fazer um refit  de dois anos. Chateia, mas foi o que fiz. Creio que tive sorte. Vamos a ver. Se encontrar uma fechadura suplente para esta, fica. Se não encontrar, vem a nova. Não me apetece ter este problema na Patagónia.

Nem na Patagónia nem em lado nenhum, de passagem seja dito. Neste momento a minha mente já tem um espaço reservado para «compra de sobressalentes», actividade que para mim epitomiza o conceito de «dissonância cognitiva»: comprar uma coisa da qual se espera não vir a precisar, sabendo que a) um dia precisaremos e b) não compraremos nunca aquela de que viremos a necessitar. Múltiplas dissonâncias.

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No Lo Divino a festa prossegue. Já disse ao R. que não me sirva mais boquerones mesmo que eu os peça, pedido esse ao qual ele acedeu e que desrespeitou mal lhe voltei a pedir mais uma dose. A música está bem engendrada. É da A., uma rapariga italiana que viveu muitos anos no Porto e em Lisboa e fala um português escorreito. Não me lembro o que estudou. Ela disse-me, mas a minha memória anda por baixo (isto é pescar auto-cumprimentos. Nunca foi alta. Aliás sempre fui acusado de não ligar nenhuma ao que me dizem. Acusação injusta, ça va de soi. Posso não as ouvir, ou não me lembrar do que me dizem, mas sinto-as muito melhor do que parece).

Sou um urso sensível, essa é que é essa. Um bloco de granito écorché vif, pobre de mim. Por isso sou obrigado a defender-me com Albariño no Lo Divino, «cheio» de miúdas giras (aspas porque o restaurante está vazio. Está toda a gente lá fora, miúdas insensíveis ao meu appeal incluídas). A música é a que se podia esperar, o que já é bastante bom. Podia ser pior.

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O vírus já me provocou três ou quatro desamiganços no Facebook. Não sei que pensar. A priori parece-me pouco mas depois pergunto-me se não será simplesmente consequência de má escolha dos «amigos». Se os tivesse bem escolhido de começo teriam sido muitos mais.

Este último acusa toda a gente por «não cumprimentar a mãe há quatro meses». Preferiu acreditar em tretas, mas a culpa é dos outros, claro. É sempre dos outros. Sem as nossas asneiras os outros seriam o paraíso, não o inferno. 

18.6.20

Pão, migalhas e circo

Uma das grandes vantagens dos tempos modernos sobre os antigos é que hoje já não é preciso dar pão e circo às massas para as satisfazer. O circo - se preferirem, o futebol, que é a sua versão hodierna - chega perfeitamente. 

É mais barato, mais fácil de gerir e - sobretudo - mais ao alcance das "elites" actuais. (Entre aspas para não usar pontos de interrogação. Seriam precisos muitos.)

Não se queixem só das "elites" (ditto). Um povo que dispensa pão e se contenta de migalhas e palhaços pagos a peso de ouro também tem culpas no cartório. 

17.6.20

Cama de mim

Uma fatiga que não se dissolve em sono, nem em Bailey's nem em nada que eu conheça. Um cansaço feito de altos e baixos, são os piores (os baixos espevitam, os altos iludem, a mistura dos dois esgota).

Talvez transformando-me em cama. 

Cama de mim.

16.6.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-06-2020

Desligar o dia. Ou desligar-me do dia? Ele continua, agora feito noite, mas eu prefiro a primeira. Oiço Eleni Karaindrou, folheio os livros que hoje comprei na "livraria" do Rodney (entre aspas porque aquilo não é bem bem uma livraria. Leram aquele livro do Doctorov sobre dois irmãos de Nova Iorque que morreram numa mansão transformada em labirinto de jornais? A história é simultaneamente trágica e linda. Esta livraria é assim, mas sem a tragédia. E os livros não estão sequer desarrumados. Estão acumulados. Rodney diz que estão assim porque ele não se importa: "I don't care".)

Enfim, deu-me para pensar nos preconceitos, no prazer que trocá-los dá, no cuidado que se deve ter ao construir novos e por aí fora. Já ali tinha estado, há pouco menos de dois anos, mas a minha interacção com o homem não foi das melhores e nunca mais lá pus os pés. Agora conheço-o do Abrakadabra e claro, é outra pessoa. Tenho uma certa pena de não ter lá voltado depois da primeira tentativa - na qual não passei da entrada, note-se - mas é pouca. As coisas são o que são e a impressão com que fiquei dele não era falsa. Era só parcial. Agora continua a ser parcial, mas a iluminação mudou para melhor.

Trouxe de lá três livros e não trouxe quatro porque ele se esticou um bocadinho. Fica para a próxima. 

Por hoje é tudo. Estou cheio de sono e ou eu ou o dia temos de desligar-nos. 

Da série Epitáfios

"He died unbroken; he never lost his own wonder of life. He never did a thing he did not want to do and nothing and nobody could make him. He never wrote a word he did not mean at the time he wrote it. He never compromised with the little powers that be; if ever there lived a free, proud man, Lawrence was that man"

(Epitáfio de D. H. Lawrence por Frieda Lawrence.)

E ainda há quem diga que comprar livros que nunca se conseguirão ler totalmente é deitar dinheiro à rua.

15.6.20

Metades

A metade de mim que conheces, a outra que nunca viste, a que lês, a que não ouves, a que não te fala... De quantas metades somos compostos, tu e eu?

Fragmentário

As peças para a enora começaram hoje a ser instaladas. Quis celebrar a ocasião com uma fotografia mas infelizmente o excesso de sol mai-las lentes escuras frustraram o projecto e quando fui a ver havia duas meias-selfies. Fica para amanhã. 

Agora celebro: gambas al ajillo no Aurélio, café do Ruanda (exprès pour moi) no Arabay, grappa do Lucca, chocolate 85% do Gana.

É o primeiro passo: faltam-nos o piano e meia dúzia de "pentelhices" da electrónica até termos todos os grandes projectos fechados e começarmos finalmente a escolher a cor dos coxins. (Pentelhices vai entre aspas porque com a água que nos têm dado pela barba tomara eu o fossem.)

Ter em mente: metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.

14.6.20

Apologia do aquecimento (global)

Alguém pode ligar o aquecimento global, por favor? Ainda não é esta semana que se prevê a chegada da mínima aos vinte graus. Enfim, chegar chega, mas não fica. É só uma vez. Depois continua nos dezoito, dezanove.

É certo que os catastrofistas do ambiente mudaram a designação de aquecimento global para alterações climáticas. Qualquer pessoa com dois dedos de testa prefere um mundo mais quente (há excepções, eu sei. Conheço uma) e aquecimento global não suscitava o mesmo medo do que as tais alterações. O objectivo dos profetas da desgraca sempre foi assustar as pessoas, coisa que me faz perguntar aos mais esquerdistas dentre eles (quase todos, sendo que também aqui há excepções, claro) como conciliam o desgosto que têm do mundo actual com o medo que ele acabe. 

Como toda a gente sabe, o calor faz bem aos modos. Alguém imagina o bom selvagem do Rousseau esquimó? Não. Era africano ou índio da Amazónia, aqueles lugares onde também situamos o paraíso. Ninguém vê a Eva e o Adão serem expulsos de um iceberg na Antártida. Nem maçãs haveria, se assim fosse. Ora nos trópicos toda a gente é boa, são todos uns santos. Ninguém faz mal a ninguém. Foi preciso os brancos chegarem a África, carregados de frio, para a humanidade descobrir o racismo, e talvez deixando o planeta aquecer ele desapareça.

Deixai aquecer o planeta, vá. Parti estátuas, mas deixai subir as mínimas para cima dos vinte graus. O resto é conversa de encher UCI.

PS - Se quiserdes destruir estátuas do Rousseau estou inteiramente de acordo. Rousseau e Marx. É só dizerem, que eu aplaudo (da varanda).

Birras e hamburgers

O meu corpo e eu temos andado envolvidos naquilo a que um jornalista chamaria «diálogo tenso» e eu chamo «diálogo dinâmico». Uma espécie de toma lá dá cá, toma cá dá lá entre ele e mim. Desde sexta-feira (se quiséssemos ser rigorosos diria desde quinta, mas não quero dar-lhe argumentos, ainda por cima discutíveis) que estamos envolvidos numa disputa sobre quem manda em quem.

Hoje ao jantar essa disputa chegou ao fim. Quem manda sou eu mas comprometo-me a dar-lhe um pouco mais do ouvido que ele me deixa intacto. O outro não tem recuperação, faça eu o que fizer. Não lhe peço que volte a ouvir, tão-só que deixe de me chatear. Não é muito complicado, é simples. E que rompa essa aliança espúria que fez com o fígado, nunca vi uma aliança entre o fígado e o ouvido interno (o pâncreas também deve andar metido ao barulho, mas a esse deixei de ligar há muito tempo. Ele que fique a falar sozinho ou se alie a quem quiser. Estou-me nas tintas). Quem manda na máquina sou eu, ponto final.

PS - O Wine and Food faz uma Margarita louvável e o hambúrguer é quase tão bom como o do H. F. no Porto. Bem sei que este «quase» é maior do que a maior ponte suspensa do mundo, mas é o que está mais perto do outro. The Burger Point: Rua de Santa Catarina, 800, no Porto, primeiro, segundo e terceiro lugares. Logo a seguir: Wine and Food, Carrer del Sindicat, 3, Palma.

E a carcaça que se aguente, que estou farto de lhe aturar as birras.

Riqueza do nómada

Estar de passagem em todo o lado e em todo o lado viver como se fosse de lá. 

Diário de Bordos - Palma a calma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-06-2020

Onze da manhã de domingo. Palma começa docemente a fremir, muito levemente. Venho passear para a Palma extra-muros, a Palma que fica para lá das Avingudas e conheço mal. O S'Escorxador está aberto. É um antigo matadouro hoje convertido em zona de lazer e mini-centro comercial. Cafés, uma biblioteca, o único cinema da ilha que só passa filmes em versão original, um supermercado e dúzia e meia de lojas. 

Palma a calma, uma calma da qual é impossível não se gostar, por mais que às vezes canse. Mas descansa mais vezes do que cansa, essa é que é essa. Efeito das árvores, provavelmente. Tantas e tão grandes. Sombreiam as ruas e absorvem-lhes os ruídos. 

Anda mais gente de máscara na rua agora, que o governo ameaça com multas. E há mais tensão, mensurável à quantidade de buzinadelas ou reclamações de peões que oiço na minha Peugeot. Ouvi mais de umas e outras desde o fim do confinamento do que nos dois anos mais dia menos dia que o precederam. Verdade que são justificadíssimos, mas antes também eram e mais ainda, porque não conhecia a cidade como conheço hoje. Espero que não esteja para ficar. A bonomia era tão bonita... 

Ainda é, forço-me a reconhecer. Mesmo hoje oiço infinitamente menos imprecações numa semana do que num dia em Lisboa.

Porcaria das máscaras. A miúda do Mise en Place não a tinha. Esta tem. São as duas lindas, mas jovens demais para entrar na categoria mulheres espectaculares. Essa está reservada a senhoras com mais de trinta e cinco anos. Algumas nunca mais dela saem... Até aos trinta e cinco anos as miúdas são sacos de hormonas que só pensam em reproduzir-se. Precisam de ter um filho ou dois para que essas preocupações se diluam e os corpos se afirmem. Quem diz corpos diz cabeças, naturalmente. (E afirmem é figura de estilo, se por acaso.)

A miúda vem buscar a massa e no caminho baixa a máscara, para falar com duas amigas. É ainda mais bonita do que a imaginara. "Prefiro assim", digo-lhe. "Claro", responde. Gosto destes diálogos curtos e honestos, sem tergiversação. 

.........
Da calle Blanquerna desço para zonas que me são mais familiares: Santa Catalina, la Lontja. Digo desço em vários sentidos, alguns dos quais literais, outro menos: em Palma as ruas não sobem. Só descem. Algumas - raras - sobem e descem e uma, uma só, sobe sempre: chama-se Costa de sa Pols (Costa do Pó, em português, porque em cima fica a igreja e havia muitas caleches e coches a passar por ali). Essa só sobe, não sei porquê. (Talvez por causa do Antiquari, vá lá saber-se, que lhe fica a meio). Mas a esmagadora maioria das outras ruas de Palmas só têm sentido descendente. Voltasse eu agora para a Blanquerna e iria a descer. Uma das maravilhas de Palma, mais uma.

A lingua que se ouve na rua mudou: deixou de ser espanhol ou mallorquin e passou a ser inglês e alemão. Na Plaza Drassana escolho o bar Arenas, um dos raros que foge à regra. A empregada não me liga nenhuma: está ocupada a zangar-se com uma cliente cujos filhos desmontaram a fita que ela pôs em torno da esplanada, vá lá saber-se porquê. É uma daquelas disputas mediterrânicas que se eternizam, externalizam, envolventes e continuam mesmo depois de a mãe dos garotos se ter ido embora. Ao meu lado dois senhores que me parecem vagabundos, trolhas ou talvez sem-abrigo comentam, simpatéticos: "é a vida".

A empregada tem sangue na guelra, cabelo louro, deve estar quase a chegar ao mágico patamar dos trinta e cinco anos e agora zanga-se com um senhor - provavelmente pai dela - que levanta a mesa onde estavam a prevaricadora, filhos e (soubemos todos depois) mãe. 

A calma voltou. Palma, a calma.

Prémio

São seis da manhã e acabo de conhecer uma rapariga giríssima. Dei-lhe o nome de Deveras Brilhante; na realidade chama-se Vera Brilhante. Trabalha em cinema, mas não percebi exactamente o que faz. Talvez seja operadora de câmara, talvez realizadora. Vive perto de Genebra, naquilo a que ali chamam France voisine. É mulata, pequenina, magrinha, tem cabelos pretos compridos e ri-se com facilidade, um riso amplo que lhe envolve os olhos e faz oscilar a cabeleira.

Conheci-a através de um amigo cineasta, um rapaz que encontrei na escola de cinema e desde aí nunca mais vi. Não percebi como é que ele veio parar ao sonho mas agradeço-lhe a boleia no jeep Willys. Só não percebo porque se foi embora e me deixou em casa da Deveras, que não tinha quarto para mim e me disse que podia acabar a noite na cama dela, onde já estava o namorado. "Ele não se importa", explicou-me. Tivemos um diálogo relativamente curto mas intenso, profundo se se considerar que não nos conhecíamos. Foi durante essa conversa que a tratei por Deveras e o apodo ficou.

Não me lembro de como terminou porque acordei (na cama onde durmo habitualmente, sozinho - claro - e onde ontem passei algumas horas bastante penosas, sendo essa a razão - suponho - que levou o meu inconsciente a premiar-me).

Se é que se pode chamar prémio a isto.

13.6.20

Beleza, matinas

Uma daquelas mulheres em quem Deus revela os seus dotes de artista plástico. A senhora é de tal forma escultural que lhe perdoo o marido e o filho infante e chato, passe o pleonasmo. Passa tudo: as carrinhas de entregas que me estragaram o silencio da praça, a dor de cabeça provocada pelas múltiplas bebidas que ontem escorregaran por mim dentro, a insuportável claridade do céu,  tão cedo e tão azul. Suponho que Deus ande por ali a espreitar a obra. A refastelar-se na obra.

A senhora põe-se de perfil, apercebo-me de que está grávida (quatro meses, a olho) e lembro-me de que pensar me faz doer os joelhos. O céu continua azul, a carrinha foi-se embora, a família também, a empregada do café vem levantar a mesa e eu faço uma profunda e grata vénia à evolução, a Deus, à geografia, seja a quem for que me tenha povoado esta dorida manhã de tanta beleza.

12.6.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-06-2020

O frio foi-se embora, voltou o calor,  mas um calor calmo, primaveril, gentil. I. vai trocar o carro e deixa-me perto da capitania. Na volta deambulo mais do que caminho, páro no Minyones para uma cerveja e um bocadinho de presunto "só para dar gosto à cerveja", explico ao senhor e ele percebe, ando por estas ruas de que tanto gosto à velicidade de um caracol bêbedo, penso nos versos de Baudouin:

«Mais l’air du printemps est une chose souple et tendre.
Les pores s’ouvrent, tout l’espace entre
en nous et nous nous répandons délicieusement en lui


Sim, é verdade: derramo-me neste espaço que entra em mim por todos os poros, espalho-me, encho de mim estas ruas que me devolvem a empatia em dobro.

........
O X. telefona-me a dizer que o sensor afinal não funciona. Temos de encontrar outra solução e pede-me o fim-de-semana para pensar nisso. Claro, X. De qualquer forma os moitões para a enora ainda não chegaram, não serve de nada excitarmo-nos. Aliás, só torna tudo pior: que faria eu de Baudouin, das ruas de Palma, da tapa no Minyones?

(- Felizmente o telefonema chegou depois, estúpido. Queria ver essa calma toda se tivesse chegado antes.
- Cala-te, parvalhão. Achas que é a primeira vez que isto acontece?
- E tu achas que mudas só porque aprendes?
- E se te calasses?
- ...
- Obrigado. )

........
Tenho uma paella reservada no Aurélio e já a tinha esquecida. Por mais que um gajo tente comer menos, a memória opõe-se.

11.6.20

Quase nada

Verdade seja dita, as coisas são cansativas. Basta agora definir coisas. Não sei o que são. Coisas é isto tudo que me rodeia e de que eu não gosto, menos o que me rodeia e eu gosto, menos o que me rodeia e eu não posso evitar. Ou seja: quase nada. 

Como é que quase nada pode ser tão cansativo? Alguém mo explica, por favor?

O homem branco e a civilização

Não seria talvez má ideia lembrar que o racismo não é específico do homem branco. O que é específico do homem branco é o anti-racismo. O mesmo se aplica à escravatura: foi o homem branco que acabou com ela. Ou à desigualdade de género. Ou a tudo o que  hoje faz de uma civilização uma civilização.

Incluindo - mas não se limitando a - manifestar-se nas ruas por idiotices.

10.6.20

Correcção

  • Objectivo número um: não comer as brevas todas;
  • Objectivo número dois: não se deixar vencer pelo desprezo;
  • Objectivo número três: expurgar o telefone de todos os brasileirismos e acordismos e substituí-los por português correcto;
  • Objectivo número quatro: não desesperar;
  • Objectivo número cinco: não misturar tudo.

Rio, tempo e outras histórias tristes

Dois objectivos simples e fáceis: a) não me deitar antes das dez da noite; b) não dormir antes das onze. Nada mais fácil, digo-me eu também. 

Não sei que pensar. A revolta contra o tempo faz mais sentido do que essas revoltas que estão agora na moda - escravatura, racismo, desigualdade de género e por aí fora e tem o mesmo resultado: nenhum.

(É muito fácil gritar contra a escravatura agora. Gostava de ver os meninos a reclamar era no século XIX.) 

Não te desvies. Falavas do tempo, da tua revolta, das tentativas infantis que fazes para não te deixares submergir, como se nadasses num rio particularmente violento e te perguntasses se te deves deixar ir, lutar contra a corrente ou nadar em diagonal, para a margem, para a calma da cama, para o acolhedor porto do sono, essas coisas que normalmente te fazem sorrir. 

(Porque é que se dá tanto espaço à idiotice, à palermice, à ignorância? Terá sido sempre assim? Não sabes o suficiente de história para responder.)

Não sabes o suficiente de nada. Vai dormir e cala-te. O tempo ganha, faças o que fizeres. Não gastes energia mal gasta. Concentra-te no local da margem ao qual queres chegar e avança assim, ziguezagueando. Cada dia escolhes uma margem e nela um ponto. Esquece o tempo. Ele nem sequer sabe da tua existência.

O Deus do Mediterrâneo

Descobri recentemente um queijo azul chamado Basajo, feito no Veneto. É um queijo de ovelha madurado três semanas em Passito di Pantelleria, um vinho doce dali de ao lado da Sicília e que em cima leva passas. O que eu comprei tinha as passas embebidas em grappa. O homem que mo vendeu explicou-me que era uma inovação, que o seu fornecedor tinha várias experiências mas esta é a que ele aprecia mais.

A vida de um tipo que gosta de queijo é uma vida dura, sujeita às mais terríveis provações. Como esta, por exemplo: conviver com o facto de que só aos sessenta e dois anos descobri mais uma prova não só da existência de Deus mas também de que o senhor vive no Mediterrâneo e tem muitos saberes: faz vinho, faz queijo, faz os tagliatelle alla Carbonara que comi ao almoço, faz brevas, faz as mulheres de Palma (mas não só de Palma, a verdade objectiva deve ser dita).

Não sei se algum dos meus generosos e tolerantes leitores gosta de queijo; e se gosta de queijo azul; caso as respostas sejam sim: basta procurar quem o importe para o nosso país. Aqui em Palma é a queijaria Saglá, com estabelecimentos (ia dizer capelas) nos mercados de l'Olivar e de Santa Catalina. 

9.6.20

Divinas lástimas

Às mulheres de Palma passa-lhe Deus a mão por cima, todas, todos os dias.

Pena não ser eu Deus.

8.6.20

Hoje. Ou: Dar de dormir à vida

Vim para casa. Prefiro a cama à vida. Oiço Uri Caine sublimar as Variações Goldberg, se tanto é que sublimar é o verbo adequado. Não tenho a certeza. Não tenho a certeza de nada, aliás, com a possível excepção de que este vírus é uma fraude, de que o meu cansaço não se resolve só com sono e de que a cerveja que comprei não estará fria a tempo.  Um monte de certezas, para alguém tão dubitativo. Pergunto-me: o que exige mais energia, a dúvida ou a certeza? Na dúvida, vou buscar um copo de vinho tinto. A garrafa está a meio e é uma pena deixar este vinho estragar-se. Devemos ater-nos às certezas simples, as certezas incontestáveis: o vinho tinto, a cama, a organização de eventos culturais em Palma. (Dia 25 vamos organizar o dia do marinheiro no Abrakadabra e na Ler por Aí..., com um programa similar: rum, sea chanties, leitura de excertos do Nigger of the Narcissus.)


«Next morning, at daylight, the Narcissus went to sea.

A slight haze blurred the horizon. Outside the harbour the measureless expanse of smooth water lay sparkling like a floor of jewels, and as empty as the sky. The short black tug gave a pluck to windward, in the usual way, then let go the rope, and hovered for a moment on the quarter with her engines stopped; while the slim, long hull of the ship moved ahead slowly under lower top-sails. The loose upper canvas blew out in the breeze with soft round contours, resembling small white clouds snared in the maze of ropes. Then the sheets were hauled home, the yards hoisted, and the ship became a high and lonely pyramid, gliding, all shining and white, through the sunlit mist. The tug turned short round and went away towards land. Twenty-six pairs of eyes watched her low broad stern crawling languidly over the beating water with fierce hurry. She resembled an enormous and aquatic blackbeetle, surprised by the light, overwhelmed by the sunshine, trying to escape with ineffectual effort into the distant gloom of the land. She left a lingering smudge of smoke on the sky, and two vanishing trails of foam on the water. On the place where she had stopped a round black patch of soot remained undulating on the swell -- an unclean mark of the creature's rest.

The Narcissus left alone, heading south, seemed to stand resplendent and still upon the restless sea, under the moving sun. Flakes of foam swept past her sides; the water struck her with flashing blows; the land glided away, slowly fading; a few birds screamed on motionless wings over the swaying mastheads. But soon the land disappeared, the birds went away; and to the west the pointed sail of an Arab dhow running for Bombay, rose triangular and upright above the sharp edge of the horizon, lingered, and vanished like an illusion. Then the ship's wake, long and straight, stretched itself out through a day of immense solitude. The setting sun, burning on the level of the water, flamed crimson below the blackness of heavy rain clouds. The sunset squall, coming up from behind, dissolved itself into the short deluge of a hissing shower. It left the ship glistening from trucks to waterline, and with darkened sails. She ran easily before a fair monsoon, with her decks cleared for the night; and, moving along with her, was heard the sustained and monotonous swishing of the waves, mingled with the low whispers of men mustered aft for the setting of watches; the short plaint of some block aloft; or, now and then, a loud sigh of wind.» (Conrad, The Nigger of the Narcissus.)

Desafio seja quem for a encontrar uma frase mais bonita do que «Outside the harbour the measureless expanse of smooth water lay sparkling like a floor of jewels, and as empty as the sky» para descrever uma largada. Continua: «The short black tug gave a pluck to windward, in the usual way, then let go the rope, and hovered for a moment on the quarter with her engines stopped; while the slim, long hull of the ship moved ahead slowly under lower top-sails.» Com a possível excepção destas: «The Narcissus left alone, heading south, seemed to stand resplendent and still upon the restless sea, under the moving sun. Flakes of foam swept past her sides; the water struck her with flashing blows; the land glided away, slowly fading; a few birds screamed on motionless wings over the swaying mastheads», claro.

Talvez seja só na literatura que encontramos certezas, não é?

«Going up that river was like travelling back to the earliest beginnings of the world, when vegetation rioted on the earth and the big trees were kings. An empty stream, a great silence, an impenetrable forest. The air was warm, thick, heavy, sluggish. There was no joy in the brilliance of sunshine. The long stretches of the waterway ran on, deserted, into the gloom of overshadowed distances. On silvery sandbanks hippos and alligators sunned themselves side by side. The broadening waters flowed through a mob of wooded islands; you lost your way on that river as you would in a desert, and butted all day long against shoals, trying to find the channel, till you thought yourself bewitched and cut off forever from everything you had known once -somewhere- far away in another existence perhaps. There were moments when one's past came back to one, as it will sometimes when you have not a moment to spare to yourself; but it came in the shape of an unrestful and noisy dream, remembered with wonder amongst the overwhelming realities of this strange world of plants, and water, and silence. And this stillness of life did not in the least resemble a peace. It was the stillness of an implacable force brooding over an inscrutable intention. It looked at you with a vengeful aspect.» (Conrad, Heart of Darkness)

«Não havia alegria no brilho do Sol.» Pode parafrasear-se isto para «Não havia alegria nas suas certezas»? «Não havia alegria nas suas dúvidas»? «Não havia alegria no seu horror»?

.........
As rosas perderam o vigor; Parece que estão a rezar. Hoje cortei-lhes o caule, mas não serviu para nada. Continuam de cabeça murcha, como se estivessem a estudar a mesa em vez de olhar para o ar, que é o lugar para o olhar das flores. Talvez estejam com medo.

«How does one kill fear, I wonder? How do you shoot a spectre through the heart, slash off its spectral head, take it by its spectral throat?» (Conrad, Lord Jim.)

E se escrevesses, em vez de citar os teus escritores favoritos? Vai pôr a vida na cama, como ontem puseste o Sol. Ou anteontem, pouco importa. Põe a vida na cama, apaga o Uri Caine, não deixa ningém dormir, deixa de olhar para as rosas, não te ligam nenhuma. Bebe o vinho tranquilamente. Deixa tudo isto escorrer por ti. Não ligues nenhuma a nada do que por aí vai. Amanhã o trabalho espera-te, o Conrad estará esquecido na sombra de um porão qualquer, o vinho continuará bom, o vírus continuará a assustar os que não sabem apertar-lhe a garganta espectral. Ou preferem não a apertar, com medo da vingança. O medo vinga-se, é bem conhecido: se o afrontarmos deixa-nos desarmados. Nu como um homem corajoso face à ameaça.

Nu como um homem face à vida.

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Chora tudo o que tens a chorar, mas chora sozinho. Contrariamente ao amor, o choro não se partilha.

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Vai dar de comer à noite e cala-te.

7.6.20

Ampulheta dominical

Officium, de Jan Garbarek com o Hilliard Ensemble é uma excelente música para acabar este domingo melancólico que se esvai tranquilamente, como se o orifício da ampulheta só deixasse passar um grão de areia de cada vez e se desse ao trabalho de o escolher, entre milhares de candidatos.

Agora chegou a vez do sono. A ampulheta vai entupir, coitada.  

Adeus - II

Há uma cunha que vai penetrando lentamente entre nós: chama-se adeus e vai-nos afastando pouco a pouco, imperceptivelmente, até que um dia acordamos e vemos que a fenda cresceu e não poderá ser transposta, nunca mais. Entre nós e tudo o que se amou e vai mudando e nós juntos. Uma cunha bonita, que nos fere mas não nos magoa, nos afasta mas não nos separa, nos olha nos olhos e diz: «Olha para a frente, que do que fica para trás trato eu.»

Adeus - I

A Sifoneria (que agora já não se chamava assim, mas Bodega de St. Clara. Mas era a mesma casa, as mesmas pessoas) fechou. O Ca la Seu fechou. No Moltabarra já não se come como dantes. Em contrapartida, o Abrakadabra mudou de mãos e está muito melhor agora; o Lo Divino idem. Palma vai mudando e eu com ela, nós todos mudamos. Mas os desaparecimentos marcam mais, não é? Isto é, nem vinte Abrakadabras chegariam para substituir um Ca la Seu, uma Sifoneria, o bem que se comia no Moltabarra.

Nem os lugares são só as paredes nem nós só feitos de hoje. E tudo indica que os ontens têm mais peso do que os amanhãs, mesmo que estes cantem e aqueles só nos falem a nós.

Amo-te, Homem

Pedro Sánchez prepara-se para prolongar as medidas restrictivas, mesmo depois do fim do estado de emergência, que agora está para 27 de Junho. O objectivo dele é óbvio: ampliar as consequências desta crise para que a sua gestão apareça como decisiva. Não é transformar a Espanha numa ditadura. Isso é só uma consequência perversa. Em nome do vírus as pessoas aceitam tudo. Ao pão e circo há que acrescentar um serviço nacional de saúde, como li recentemente. 

Isto é arrepiante, eu sei. Mas há que manter presente aquela velha máxima segundo a qual «amar alguém é amar-lhe os defeitos» e não deixar o humanismo diluir-se nesta mistura que todos os dias cresce em mim de desprezo, desespero, incredibilidade e frustração.

Coisas que fazem sorrir docemente

Acabo de ouvir um senhor da Guiné-Bissau explicar ao M. do Abrakadabra que os portuguesas foram os melhores colonizadores de África.

(O M. é sul-africano, coisa que o senhor ignora.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-06-2020

Ontem as flores caíram do alforje. Voltei para trás para as apanhar e um jovem casal já lá estava. A miúda - vinte e qualquer coisa, trinta e muito poucos - diz-me "eu apanho-as, mas não sei se te importas com o vírus?"

Digo-lhe que não, claro. Não me importo  nada.  Tem um sorriso bonito, amplo, aberto, igual ao dos olhos. Nem ela nem o namorado têm máscara.

Amaldiçoei o vírus, que nem a mais simples cordialidade deixa em paz. É esta a nova normalidade? Metam-na num certo sítio, vós que a aclamais e desejais.

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Está domingo, procuro um sítio para almoçar, acabo na plaça d'es Coll. O Ambrus tem a vantagem da localização e uma desvantagem de talha: a cozinha não é grande coisa. Não tanto a elaboração, mais a matéria prima. Resta-me o consolo de ter de pedalar pouco até à sesta.

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Calor veranil. É o primeiro este ano. Parece-me bem que calhe a um domingo: torna-se difícil destrinçar a modorra dominical da sasonal. Misturam-se as duas numa abençoada indiferença, nem o vento agita seja o que for. A pele deixa de ser uma barreira e dissolvo-me tranquila, pacificamente na praça, cujo silêncio não é total por causa da clientela do café d'en Coll, que é barulhenta por natureza e descrente por ignorância. 

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Nós, ateus, temos com o divino e com os mistérios uma relação muito mais sã do que os crentes. Não acreditar em qualquer coisa de que se sente a presença quotidiana é o equivalente para o espírito do ginásio para o físico. 

6.6.20

A luz e tu

Se de ti a luz fosse feita, não seria mais luz. Seria mais tu, simplesmente.

Viva a esquerda

1º de Maio, 25 de Abril, a manifestação de hoje «contra o racismo». Foi preciso um vírus para que a esquerda reatasse com a sua velha tradição da ciência. Sabe perfeitamente que é um embuste e age em consequência. Seria caso para dizer Hallelujah, fosse eu daquela banda.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-06-2020

A prodigiosa capacidade que sempre tive de me aborrecer nas festas tem vindo a melhorar com a surdez: aborreço-me cada vez mais, mas agora sei porquê. Em contrapartida, continuo a perder copos como perco mulheres: vão-se embora sem um adeus sequer. Se calhar, fartam-se de mim como eu me farto deles.

Hoje o pretexto da festa foi o fecho da Sifoneria. Mais uma parte de mim que fecha. São tantas, as partes de mim que vão fechando. Perco-lhes a conta, a tal ponto que me pergunto o que sobrará quando eu morrer. Cem quilos de excesso de peso, dois filhos e uma bicicleta, se Deus quiser.

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Vou a muitos bares com um objectivo que me parece louvável: dividir o mal pelas aldeias.

Sou incompreendido: todos me recebem bem.

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O governo espanhol («governo espanhol», nas presentes circunstâncias, ou é um oxímoro ou é uma piada. Tendo mais para esta última) quer começar a multar as pessoas que andem na rua sem máscara. Agora, que a epidemia acabou. Isto teria graça se fosse um daquele shows da televisão, com bonecos animados ou marionetes, sapos cínicos e porquinhas ingénuas.

Infelizmente, não é e não tenho jeito nem para boneco animado nem - muito menos - para marionete. Sobretudo quando o objectivo é contribuir para a sobrevivência política de um palhaço. Que algumas pessoas aceitem isto transcende-me, mas compreendo: sou sensível a fenómenos paranormais. Que os outros não se revoltem é que não aceito.

Posso ir para a rua gritar, não posso é gritar baixinho.

Tenho sorte: posso pôr distãncia entre mim e o que me repugna. Refiro-me a distãncia física, geográfica, daquela medida em milhas náuticas.

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Safam-me o humor e a esperança. Esta para o caso daquele acabar, aquele para quando não houver esta.

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O P. continua a andar devagar e eu continuo a revoltar-me, como se não soubesse que esta é a velocidade normal. Isto é, é mais depressa do que a velocidade normal: esta é devagar e pára. Nós estamos em devagar e devagar, o que já nos devia alegrar.

Esperar peças (esperar, tout court) é para um marinheiro a mesma coisa do que esperar que a chuva acabe para um açoriano: sabe que vai acabar, mas não sabe quando. Nem - muito menos - quando recomeçará.

5.6.20

Fatiga

Visto o cansaço como se fosse um pijama e deito-me, envolvido nele, aconchegado por ele.

Abençoada fatiga, que me dá de comer quando tenho fome, me agasalha quando tenho frio e me deixa dormir quando estou sozinho.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-06-2020

A rua Sant Miquel está outra vez cheia de peões e decidi apanhar o elevador para a Rambla. À minha frente chega um senhor velhote, um pouco curvado, máscara daquelas que cobre o nariz. Começa por me dizer para lhe passar à frente. Digo que não, ele estava primeiro e mesmo que não estivesse. Responde-me "então vamos os dois". Digo-lhe que por mim não há problema, mas não tenho máscara, ele diz-me "não faz mal, eu tenho, chega para os dois". No elevador: "tenho oitenta e três  anos e nunca vi uma coisa assim". "E eu sessenta e dois e tão pouco". "É por isso que gosto dos políticos do norte da Europa. Preocupam-se com o povo. Aqui é só..." e faz o gesto de encher os bolsos. Chegamos,  eu digo-lhe "Não sou espanhol, não posso falar de política espanhola, mas..." Ele ri-se, despedimo-nos cordialmente. Oitenta e três anos. Quem quer "proteger os velhos" devia apanhar o elevador da Plaza Mayor para a Rambla. Talvez aprendesse que são pessoas com cabeça e sabem proteger-se e pensar, provavelmente melhor do que quem os vê a todos como incapazes.

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Venho almoçar à Bodeguita del Centro, de que aprecio tudo, a começar no piscar de olhos do nome à cozinha, passando pela cozinheira e pela empregada (en tout bien tout honneur, ça va de soi), na esperança de que houvesse arroz negro.

Bingo. Sorte grande. Há. Em vez de pensar em proteger quem sabe proteger-se deviam era interessar-se mais pelas coisas simples da vida: um arroz negro extraordinário, um bom vinho branco, café, hierbas secas e umas flores a caminho de casa. A frugalidade é a porta do paraíso. 

Antes de chegar a casa ainda vou beber um café à argentina que me trata por mi reye. Nada como um verdadeiro título nobiliárquico para anteceder uma sesta.

4.6.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-06-2020

Nada do que é humano me é estranho, excepto eu: no que a humanidade toca em mim o humano é-me distante, indiferente, fosco. A histeria colectiva interessa-me como objecto de estudo; no que toca à minha vida quotidiana esse interesse morfa-se numa mistura de desinteresse apaixonado e ódio desapaixonado, ódio racional e desinteresse emotivo.

Hoje fui de táxi para bordo e no regresso ia a entrar noutro. O chauffeur diz-me masquerilla, assim, sem mais: masquerilla. Fechei a porta e vim-me embora. Não nasci para receber ordens de taxistas. Fui gratificado: o que apanhei respondeu a 3uma inocente pergunta minha sobre a marcha do negócio e contou-me a vida toda, desde os sete anos - o pai pô-lo a guardar porcos - até hoje, que já devia estar reformado mas não está: a mulher não o suporta e ele não a suporta a ela, o que explica que aos sessenta e oito anos continue a conduzir um táxi (que agora não sabe como há-de pagar, porque o comprou mesmo antes do vírus). No entretanto fiquei a saber o que ele faria à jovem acrobata que no cruzamento faz acrobacias com o namorado (ou «o que ela lhe faria a ele, que está com sessenta e oito anos», aspas porque cito).

Lembrei-me do Alexis, meu chauffeur durante os quatro meses que passei em Panamá, no seu pudor, na amizade real que nos ligou, na simpatia mútua que nos unia. Ainda hoje não sei a idade dele. Nunca soube. Percorremos a cidade de Norte a Sul, de Leste a Oeste, estivemos juntos nos maiores engarrafamentos que alguma vez vivi, emprestámo-nos dinheiro um ao outro, almoçámos juntos dezenas de vezes...

Em S. Luis era o Maciel, homem bom, tão bom como o Alexis. Via os programas da National Geographic na televisão e no deia seguinte fazia-me perguntas sobre os países de que os programas falavam. Era daquelas pessoas que nos fazem odiar os sistemas políticos que não proporcionam educação a quem a merece. Cinco meses de convivência diária. Tem duas filhas.

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Verdade seja dita: ando irritadiço, eu normalmente tão calmo. Esta mistura de humanidade e histeria confunde-me o sistema. Aguento uma e suporto a outra, mas separadas, se faz favor. Assim juntas ficam demasiado perto de mim. A humanidade e eu somos como aqueles casais que se amam mas não se tocam.

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Vou deitar-me cedo outra vez. Não dormir por não dormir, antes na cama.

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[Adenda: o Otaku reabriu e no caminho de pôr a burra na garagem páro para um sake. Hoje fui brindado com uma prova: quatro sakes, escolher o que mais me apraz.

O sake desenjoa-me de tudo: humanidade, Bailey's, vírus, histerias, insónias, livros por ler, mares por navegar, corpos por amar, confidências por ouvir.

Escolhi o segundo mais barato. É a melhor  relação qualidade - etc. O mais caro é a melhor relação qualidade - tudo, mas fica para depois. O óptimo é inimigo do suficiente.]

Resumo

Está a chover, o pai da minha melhor amiga morreu, esqueci-me de comprar flores (para mim, não para o Pai dela), tenho  uma vontade feroz de ouvir Cecil Taylor, o P. avança tão lentamente, apetece chicoteá-lo, dar-lhe pontapés no cu, gritar com ele, a palhaçada do vírus continua, quero ir-me embora de Palma apesar de saber o que me vai custar, penso na mulher que amaria se ela me amasse como eu a amo, "en la otra orilla de la noche / el amor es posible", penso na amizade, possível apenas no outro lado do desejo. (Do lado de cá também, mas não saberia destrinçá-la de outros sentimentos.)

Resumo: oiço o Taylor no youcoiso e venho dormir a sesta.

(A. Pizarnik)

3.6.20

Fragmento

Escrevo-te de Palma, escrevo-te de mim.

Boa noite

Espera-me, querida. Vou ali pôr o Sol na cama, chamar a Lua e já volto.

Patinar

Elegantes e velozes patinadores no gelo, mão atrás das costas, inclinados para a frente - quase deitados no ar -, movimentos graciosos, elegantes, como se em câmara lenta.

Assim deslizamos no tempo. Alguns com menos, outros com tanta elegância, uns mais rápidos, outros menos.

Psicanálise, breve resumo

- Doutor, preciso de ajuda. Não sei o que fazer. 
- Então não faça nada, até saber.
- Não brinque. O caso é sério. 
- Se mo contasse? Assim poderia avaliar melhor. Isto é, seríamos dois a avaliar a seriedade da coisa, o que sempre é melhor do que ser só um. Ainda por cima, parte implicada. Mais do que implicada, produtora. 
- Estou rodeado de idiotas.
- Todos estamos. Cada um é o idiota do outro, ad infinitum.
- Não é isso. Se fosse, não seria sério. Os meus amigos são idiotas. Vêm todos da adolescência. Enfim, quase todos. Escolhi-os de propósito: pensava ser idiota eu também. Sempre pensei. Mas agora chego aos quarenta e cinco anos e apercebo-me de que não sou tão idiota como pensei este tempo todo. Já não os consigo ouvir. 
- Devia ter lido Lacan em jovem: "a estupidez é uma histeria. Basta uma pessoa saber-se estúpida para deixar de o ser."
- Doutor, preciso realmente de ajuda. Por favor, convença-me de que sou um idiota. Não quero perder os amigos de uma vida.

2.6.20

Hemisférios

Como toda a gente sabe, o nosso cérebro está dividido em dois hemisférios: o esquerdo e o direito. (O meu e o de mais  meia dúzia de pessoas que conheço estão  divididos em quatro: o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste. Bem espremidos e escolhendo o ponto de vista pode reduzir-se-los a dois por dois, alternadamente. Alguns de nós acrescentamos ainda o hemisfério do vento fraco e o do vento forte perfazendo um total de seis hemisférios. Estes dois últimos sobrepõem-se mais ou menos aos de bom tempo e temporal desfeito, mas este ponto é objecto de discórdia entre especialistas pelo que prefiro afastar-me, sendo avesso a conflitos, riscos e outras peçonhas). Onde é que eu ia?

Hemisférios direito e esquerdo, masculino e feminino, ciências e letras, arte e matemática (esta oposição é falsa. Matemática é uma das formas de arte). Recomeço. A maioria das pessoas tem um cérebro dividido em dois hemisférios. O que esses meio-cérebros fazem à noite é objecto de atentas pesquisas. No meu caso,  tendo - não sou de todo o único - entre quatro e oito hemisférios sei perfeitamente o que fazem: orgias. Todas as noites. Tenho provas disso porque quando acordo os lençóis estão desfeitos, as almofadas esmurradas, o colchão de lado. Acredito mesmo que já por mais de uma vez acordei numa cama partida; mas como não posso provar não digo nada.

A maioria das pessoas tem mais sorte do que eu. Os seus hemisférios portam-se bem, vão à missa aos domingos e raramente se envolvem afectivamente. Quando o fazem, é ordeira e sensatamente. Invejo-as muito. Os meus são selvagens, desordeiros, luxuriosos, lúbricos, priápicos (os masculinos) e ninfomaníacos (os femininos).

Onde é que eu ia? Na frase de um senhor que criou aquele que para mim foi durante muito tempo o melhor jornal do mundo ("simplifiquem e exagerem" dizia ele aos jornalistas) e agora não é porque deixou de ser jornal e comecou a ser mundo.

Isto não tem nada a ver!

Eu não disse?

Livros, amores

O livro que mais me faltou durante estes dois meses chama-se The Hidden Dmension (não sei o título da edição portuguesa. Espero não ser acusado - outra vez e injustamente - de pedantismo. Li-o em francês. Chamava-se La Dimension Cachée). Fala da proxemia e de como as diferentes culturas interpretam diferentemente o espaço intercorporal. Também pensei no Bateson, claro. O double bind, os Metadiálogos. Mas nesses penso todos os dias. Ou melhor: não penso todos os dias, da mesma forma que não penso nas minhas mãos todos o dias. Uso-as, simplesmente.

Pensei, sobretudo, em como esses livros me faltam e na injustiça profunda que é viver longe dos livros que nos fizeram, que fizeram de nós o que somos. Os livros vivem, como o amor: têm de ser revisitados, reanimados, acariciados, relidos, cheirados. Se não, morrem.

Escolhas

Aceito facilmente a maioria das opções ideológicas mas detesto modismos, marianismos-vai-com-as-outras, zeitgeitismos (sim, como em "gaitas"). Até agora, o método para distinguir umas das outras era complicado, quase aleatório, indefinido, obscuro, intuitivo. Tudo menos fiável. 

Há pouco encontrei uma pista que, a demonstrar-se consistente, pode fornecer o início de uma ferramenta para validar uma opção e ajudar a distingui-la de uma coisa em forma de assim.

Uma escolha é válida quando quem a faz conhece todas as opções que deixou de lado para escolher aquela. Se X hoje se declara budista e conhece o catolicismo, o judaísmo, o islão e eventualmente uma religião animista do centro de África então é budista.

1.6.20

Duas flores

De duas flores que se toquem, brandamente curvadas pelo dia, pelo Sol, pela falta de ar - prefiro as duas, encostadas uma à outra, suavemente, duas tristezas que se tocam e se trocam.

De duas flores, as duas.

Despedida, bis

Prefiro a poesia, uma frase bonita, a descrição de uma viagem pelo Mediterrâneo de Lluís Ferrés Gurt, a ideia acalentadora de que hoje é o primeiro dia do que poderá ser o último mês, a esperança de que toda este trabalho vai desabrochar numa coisa linda, de que não terei de me envergonhar. Estou ansioso por ver chegar esse dia e essa ansiedade nova substitui favoravelmente a antiga. De tudo o resto, despeço-me.

"Y sobre todo mirar con inocencia, como si no pasara nada. Lo cuál es cierto."

"...Como una voz no lejos de la noche arde el fuego más exacto."

Alejandra Pizarnik

Despedida

Começo por escrever sobre o medo, mas apago. Estou farto do vírus, das curvas, dos artigos brandidos como espadas. Escolhi ums hipótese que me parece a mais sólida,  a que mais perto está da realidade e da racionalidade e fico-me por aqui até alguém me demonstrar que essa hipótese é falsa. Com factos, argumentos, explicações convincentes e não com indicadores apontados como se fossem pistolas, desvalorizações académicas, opiniões políticas ou pulsações a dois mil. Nunca fui de emprenhar pelos ouvidos e não é agora que vou começar. Factos, números, argumentos e razão. Tudo o que fique fora desse quadrilátero fica fora de mim.

Não é muito complicado. Basta esperar. Mais tarde ou mais cedo a verdade saber-se-á e se estiver enganado reconhecê-lo-ei sem qualquer hesitação. Reivindico para mim o que penso ser um direito universal: o direito ao erro.

A pasta está fora do tubo. Querer metê-la lá dentro é tão útil como querer ressuscitar um amor que já morreu. Os dias de prisão em casa, os dias de trabalho perdidos, as horas de liberdade pelo cano não voltam. 

Não é uma questão de certezas. Sou o primeiro a dizer que posso estar enganado. É uma questão de racionalidade: a hipótese que escolhi pareceu-me - e ainda me parece - a mais racional. Comparei argumentos e apliquei o método popperiano. Até agora, tem resistido à prova da falibilidade. É simples, não é complicado: todas as hipóteses que sustentavam esta escolha estão a verificar-se: o vírus é menos mortal do que inicialmente se pensou; acabou na semana dezanove, ou vinte; se se organizarem as curvas dos contágios em função das datas e dos tipos de medidas tomadas pelos governos não se vê qualquer diferença entre eles (este foi o argumento que acabou por me convencer, mas isso agora é irrelevante). Isto são factos e são comprováveis. Basta querer. 

Quem não quiser e preferir manter-se naquilo que para mim é um erro tem todo o direito de o fazer. Ninguém é menos humano por não partilhar a minha opinião nem a minha atitude. E podem pensar que sou arrogante, desumano ou o que quiserem. Só não podem uma coisa: impedir-me de pensar e de dizer o que penso. Construir uma opinião dá trabalho, consome tempo, requer esforço. Não olhar para os factos também mas é - na minha opinião - menos profícuo. 

Se alguém me demonstrar que os meus factos - aquilo que agora me parecem factos - estão errados, eu recomeçarei o processo todo. Até lá, mantê-los-ei como factos, venha quem vier dizer-me o contrário. Se não acredito em Deus, não é fácil fazer-me crer em quem visivelmente não o é.