30.8.12
Cartagena, Múrcia, Espanha, 30-08-2012
29-08
Não sei se li, inventei ou deturpei que em Espanha só os tesos e os turistas é que se passeiam pelas ruas antes das cinco da tarde. Nós integramos às vezes uma dessas categorias e permanentemente a outra; hoje foi dia de dupla apartenencia: andámos pelas ruas desertas de Cartagena até o próprio sol troçar de nós e nos refugiarmos na Heladaria Reina Sofia, que não é tão boa como o Santini mas está mais perto.
Não sei se li, inventei ou deturpei que em Espanha só os tesos e os turistas é que se passeiam pelas ruas antes das cinco da tarde. Nós integramos às vezes uma dessas categorias e permanentemente a outra; hoje foi dia de dupla apartenencia: andámos pelas ruas desertas de Cartagena até o próprio sol troçar de nós e nos refugiarmos na Heladaria Reina Sofia, que não é tão boa como o Santini mas está mais perto.
A cidade tem as ruas bem tratadas e os prédios mal; eu preferiria o contrário se pudesse preferir fosse o que fosse. Como não posso, limito-me a aceitar o facto simples e linear de que o fachadismo não é, nem de longe, pecha exclusiva dos nossos autarcas.
O calor faz da luz uma coisa branca, leitosa, como se o sorvete de limão da Heladaria Reina Sofia tivesse derretido nas praças, nos prédios, nas ruas, nas árvores.
A sudoeste de Cartagena há um cabo chamado Tiñoso. Todos os cabos deviam chamar-se assim, por muito bonitos que sejam - e este é-o, quase tanto como o de S. Vicente, que, verdade seja dita, é muito mais tinhoso.
A sudoeste de Cartagena há um cabo chamado Tiñoso. Todos os cabos deviam chamar-se assim, por muito bonitos que sejam - e este é-o, quase tanto como o de S. Vicente, que, verdade seja dita, é muito mais tinhoso.
27.8.12
25.8.12
Marina del Este, Andaluzia, Espanha, 25-08-2012
Fuengirola
Um gajo vai pelo cais de recepção da Marina de Fuengirola e a primeira coisa que vê é o café Ku-Damm (o menu inclui Goulasch e Sauerkraut). Ao lado, ou quase, há o Welcome Arms, e mais ou menos entre os dois o Schnitzel Haus. A caminho do duche ainda vê, não muito longe, o London Arms. Os turistas gostam, definitivamente, de se sentir em casa.
Em Gibraltar havia mais coisas escritas em espanhol do que aqui.
De resto, as surpresas são poucas e irrelevantes. A praga das pizzerie tem fraca expressão, por exemplo: uma só (na Marina. Aposto que a cidade está pejada delas). Os prédios são muito ligeiramente menos feios do que esperava; nem todos os bares têm televisão; há lugar na Marina em Agosto (tem havido "menos barcos este ano" em todo o lado, desde Portimão).
O dia de vela foi glorioso, o melhor em muito tempo: força 5 na alheta, sol, o S. a mostrar de novo o que tem no ventre; e é bastante. O barco é realmente espantoso de bom. Desembarcamos daqui a dias, mas lembrar-me-ei dele durante muito tempo.
Esta navegação diária (F. não gosta de navegar, muito menos à noite; faz esta viagem para não decepcionar o marido) é cansativa. Gostava de fazer dois ou três dias seguidos de mar. E se fossem semanas ainda melhor.
Uma caneca de cerveja diz-se um "tanque de cerveza". A exactidão tem uma beleza própria, que dispensa comentários.
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À chegada aos portos o calor tem sido infernal - perdão, celestial, já que tínhamos acordado, há tempos, a infernalidade do frio de Brighton. O calor aguenta-se melhor. Com mais duches e mangueiradas, menos roupa, mais copos de água fresca. À nossa frente no pontão está o O., um belíssimo Oyster 54 que era nosso vizinho em Brighton. Lembro-me do West Jetty nos dias de chuva e vento e sinto-me grata por estar a morrer de calor. Esta morte, ao contrário de outras, passará em Agosto (a menos, claro, que tenhamos a sorte de ir morrer longe, de preferência nas Caraíbas, já em Setembro ou Outubro).
F. adora os andaluzes e diz que se sente andaluz. Têm um sotaque fechado, como se falassem com a boca cheia de batatas, mas são simpáticos e atenciosos e estão sempre em festa. Vez por outra, há um de cara tão fechada como o sotaque, como a mulher que na praia de Barbate amaldiçoava o filho, um matulão de 11 anos, por alguma coisa que lhe fez. Gritou-lhe que se iria ver con su padre e, mais tarde, vimo-los passar de carro numa rotunda: o pai a conduzir, o filho ao lado e a mãe atrás a sovar o miúdo, todos numa gritaria aciganada. O quadro era tão dramático como a expressão enraivecida da mulher, mas a verdade é que nos desmanchámos a rir com aquela crise.
Há dez anos que não ia a Gibraltar. Não tendo nada a ver, fez-me lembrar St. Martin: a fúria duty free misturada com uma magnífica paisagem natural e um improvável aeroporto mesmo ao lado da marina. A Rocha é imponente e, tivesse havido tempo, tê-la-ia visitado com gosto. De resto, é surpreendente ter aquele bocadinho de Reino Unido em Espanha, em que os semáforos nos dizem "WAIT" e as bicicletas contam tanto como os automóveis.
Mas o importante foi a passagem. Pensar que há uma parte do mundo em que Europa e África, tão diferentes, quase se tocam é tão emocionante como atravessá-la. A bombordo uma tão próxima e familiar, e a estibordo a outra, mais longe e coberta de neblina, como um desejo que não se realizou. O Estreito, para quem tem destino marcado, é mais largo do que parece.
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Marina del Este
A marina é minúscula, mas muito bonita. "Há menos barcos este ano", diz-me de novo o marinheiro quando lhe pergunto se é normal haver lugar assim, sem reserva, em pleno mês de Agosto. Bem pode ser o refrão da viagem.
Qualquer dia chegamos. Temos tido sorte com os barcos - tanto o D. H. como S. são soberbos, cada um no seu estilo. Só espero que continue assim. E que as viagens sejam mais longas. Navegar oito horas por dia é, seja Deus louvado, infinitamente melhor do que trabalhar num escritório o mesmo número de horas; mas é pouco. Há muito mar por essa proa; ou, como escreveu le Clézio, "il n'y a jamais assez de mer pour les visages aigus des bateaux". Não conheço frase mais bonita, nem mais exacta para definir o que sinto cada vez que tenho de entrar num porto ao fim de tão pouco tempo no mar, e com tanto e tão bom vento para navegar.
(Post a duas mãos.)
Um gajo vai pelo cais de recepção da Marina de Fuengirola e a primeira coisa que vê é o café Ku-Damm (o menu inclui Goulasch e Sauerkraut). Ao lado, ou quase, há o Welcome Arms, e mais ou menos entre os dois o Schnitzel Haus. A caminho do duche ainda vê, não muito longe, o London Arms. Os turistas gostam, definitivamente, de se sentir em casa.
Em Gibraltar havia mais coisas escritas em espanhol do que aqui.
De resto, as surpresas são poucas e irrelevantes. A praga das pizzerie tem fraca expressão, por exemplo: uma só (na Marina. Aposto que a cidade está pejada delas). Os prédios são muito ligeiramente menos feios do que esperava; nem todos os bares têm televisão; há lugar na Marina em Agosto (tem havido "menos barcos este ano" em todo o lado, desde Portimão).
O dia de vela foi glorioso, o melhor em muito tempo: força 5 na alheta, sol, o S. a mostrar de novo o que tem no ventre; e é bastante. O barco é realmente espantoso de bom. Desembarcamos daqui a dias, mas lembrar-me-ei dele durante muito tempo.
Esta navegação diária (F. não gosta de navegar, muito menos à noite; faz esta viagem para não decepcionar o marido) é cansativa. Gostava de fazer dois ou três dias seguidos de mar. E se fossem semanas ainda melhor.
Uma caneca de cerveja diz-se um "tanque de cerveza". A exactidão tem uma beleza própria, que dispensa comentários.
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À chegada aos portos o calor tem sido infernal - perdão, celestial, já que tínhamos acordado, há tempos, a infernalidade do frio de Brighton. O calor aguenta-se melhor. Com mais duches e mangueiradas, menos roupa, mais copos de água fresca. À nossa frente no pontão está o O., um belíssimo Oyster 54 que era nosso vizinho em Brighton. Lembro-me do West Jetty nos dias de chuva e vento e sinto-me grata por estar a morrer de calor. Esta morte, ao contrário de outras, passará em Agosto (a menos, claro, que tenhamos a sorte de ir morrer longe, de preferência nas Caraíbas, já em Setembro ou Outubro).
F. adora os andaluzes e diz que se sente andaluz. Têm um sotaque fechado, como se falassem com a boca cheia de batatas, mas são simpáticos e atenciosos e estão sempre em festa. Vez por outra, há um de cara tão fechada como o sotaque, como a mulher que na praia de Barbate amaldiçoava o filho, um matulão de 11 anos, por alguma coisa que lhe fez. Gritou-lhe que se iria ver con su padre e, mais tarde, vimo-los passar de carro numa rotunda: o pai a conduzir, o filho ao lado e a mãe atrás a sovar o miúdo, todos numa gritaria aciganada. O quadro era tão dramático como a expressão enraivecida da mulher, mas a verdade é que nos desmanchámos a rir com aquela crise.
Há dez anos que não ia a Gibraltar. Não tendo nada a ver, fez-me lembrar St. Martin: a fúria duty free misturada com uma magnífica paisagem natural e um improvável aeroporto mesmo ao lado da marina. A Rocha é imponente e, tivesse havido tempo, tê-la-ia visitado com gosto. De resto, é surpreendente ter aquele bocadinho de Reino Unido em Espanha, em que os semáforos nos dizem "WAIT" e as bicicletas contam tanto como os automóveis.
Mas o importante foi a passagem. Pensar que há uma parte do mundo em que Europa e África, tão diferentes, quase se tocam é tão emocionante como atravessá-la. A bombordo uma tão próxima e familiar, e a estibordo a outra, mais longe e coberta de neblina, como um desejo que não se realizou. O Estreito, para quem tem destino marcado, é mais largo do que parece.
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Marina del Este
A marina é minúscula, mas muito bonita. "Há menos barcos este ano", diz-me de novo o marinheiro quando lhe pergunto se é normal haver lugar assim, sem reserva, em pleno mês de Agosto. Bem pode ser o refrão da viagem.
Qualquer dia chegamos. Temos tido sorte com os barcos - tanto o D. H. como S. são soberbos, cada um no seu estilo. Só espero que continue assim. E que as viagens sejam mais longas. Navegar oito horas por dia é, seja Deus louvado, infinitamente melhor do que trabalhar num escritório o mesmo número de horas; mas é pouco. Há muito mar por essa proa; ou, como escreveu le Clézio, "il n'y a jamais assez de mer pour les visages aigus des bateaux". Não conheço frase mais bonita, nem mais exacta para definir o que sinto cada vez que tenho de entrar num porto ao fim de tão pouco tempo no mar, e com tanto e tão bom vento para navegar.
(Post a duas mãos.)
23.8.12
Gibraltar, Reino Unido, 23-08-2012
I - Barbate
A vida devia ser um longo, interminável verão. Teria sido, não fora o frio e o mau tempo e a chuva desde antes da Horta. Só no Porto comecei a apanhar um tempo decente; e só agora estou no verão, no Sul. Barbate é o porto onde se espera pelo vento de Oeste (Poniente) quando se vai para o Mediterrâneo; há também quem o use para descansar de uma travessia difícil no outro sentido.
Não vinha cá há trinta anos. Podia dizer que está diferente, claro; mas a verdade é que pouco me lembro. Na altura chamava-se Barbate de Franco e era um porto de pesca, com uma entrada difícil, estreita, e uma rua com muitos restaurantes. Agora é um porto de pesca com uma marina e uma entrada fácil, longe da cidade, com um passeio marítimo frente à praia.
Como todos os passeios marítimos do mundo é uma longa sucessão de restaurantes e tendas de produtos para turistas.
Estamos longe do rigor pombalino de Vila Real; e perto do norte de África, aqui mesmo ao lado.
......
Almôndegas de choco, tortilla de camarão, espetadas de camarão, vinho tinto, a praça, pequena, incaracterística e incompreensivelmente bonita. Tudo é bom, amo tudo, (e amo-te mais do que tudo, mas isso é outra coisa). Há que destruir urgentemente o mito de que em Portugal se come bem. Não come. Pode comer-se bem, o que é diferente. O equivalente da tasca onde estamos, em Portugal, seria uma nojo.
Referência especial para a Salazone de Mojama, ou a arte de transformar atum em excelente presunto . Isto no De Pinxos y Tapas, calle Bogavante, s/n, 11160 Barbate (Cádiz), tel.: 699 35 81 48
........
O excesso de prudência, ou medo para ser mais conciso, é sem dúvida o complemento ideal da ignorância; o problema é que os medrosos confundem ter medo e saber. São coisas diferentes.
........
II - Gibraltar
Gibraltar, uma vez mais. Gostaria de ter ido à Roca, mas desta vez não deu. Fica para a próxima, que não estará longe.
A cidade é sempre a mesma: turismo de compras, a Main Street com lojas de bebidas, relógios, electrónica, bebidas, tabaco, joalharia, electrónica, relógios, de vez em quando um pub. A Gibraltar Bookshop resiste heroicamente; e o Angry Friar, onde escrevo estas linhas, também.
A vida devia ser um longo, interminável verão. Teria sido, não fora o frio e o mau tempo e a chuva desde antes da Horta. Só no Porto comecei a apanhar um tempo decente; e só agora estou no verão, no Sul. Barbate é o porto onde se espera pelo vento de Oeste (Poniente) quando se vai para o Mediterrâneo; há também quem o use para descansar de uma travessia difícil no outro sentido.
Não vinha cá há trinta anos. Podia dizer que está diferente, claro; mas a verdade é que pouco me lembro. Na altura chamava-se Barbate de Franco e era um porto de pesca, com uma entrada difícil, estreita, e uma rua com muitos restaurantes. Agora é um porto de pesca com uma marina e uma entrada fácil, longe da cidade, com um passeio marítimo frente à praia.
Como todos os passeios marítimos do mundo é uma longa sucessão de restaurantes e tendas de produtos para turistas.
Estamos longe do rigor pombalino de Vila Real; e perto do norte de África, aqui mesmo ao lado.
......
Almôndegas de choco, tortilla de camarão, espetadas de camarão, vinho tinto, a praça, pequena, incaracterística e incompreensivelmente bonita. Tudo é bom, amo tudo, (e amo-te mais do que tudo, mas isso é outra coisa). Há que destruir urgentemente o mito de que em Portugal se come bem. Não come. Pode comer-se bem, o que é diferente. O equivalente da tasca onde estamos, em Portugal, seria uma nojo.
Referência especial para a Salazone de Mojama, ou a arte de transformar atum em excelente presunto . Isto no De Pinxos y Tapas, calle Bogavante, s/n, 11160 Barbate (Cádiz), tel.: 699 35 81 48
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O excesso de prudência, ou medo para ser mais conciso, é sem dúvida o complemento ideal da ignorância; o problema é que os medrosos confundem ter medo e saber. São coisas diferentes.
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II - Gibraltar
Gibraltar, uma vez mais. Gostaria de ter ido à Roca, mas desta vez não deu. Fica para a próxima, que não estará longe.
A cidade é sempre a mesma: turismo de compras, a Main Street com lojas de bebidas, relógios, electrónica, bebidas, tabaco, joalharia, electrónica, relógios, de vez em quando um pub. A Gibraltar Bookshop resiste heroicamente; e o Angry Friar, onde escrevo estas linhas, também.
21.8.12
Barbate, Andaluzia, Espanha, 21-08-2012
Brighton, Londres, Lisboa, Portimão, Vila Real de Sto. António, Cádiz, Barbate... As cidades passam como se estivéssemos num comboio: descemos para uns passeios no cais, espreitamos o café do outro lado da rua, e ala que o apito toca.
Em Londres não foi bem assim, verdade seja dita. Uma ida ao Globe, jantar num restaurante etíope, passear no British Museum, jantar tardio em Chinatown, passear à beira do Tamisa é mais do que espreitar o café do outro lado da rua. E Lisboa também não: por muito de passagem que se esteja, nunca se está de passagem na nossa casa. Uma casa da qual não se conhecem todas as divisões, claro. Fui pela primeira vez ao café Zazou, uma sala que ainda não conhecia mas que a partir de agora vai fazer parte do roteiro.
A passagem do cabo Trafalgar foi memorável. Três nós de corrente a favor, vinte de vento contra, uma passagem estreita, muito estreita, com mar a rebentar a estibordo e terra a bombordo. Que pena tenho de quem tem medo; e que inveja tenho do medo: é a mais ditatorial das emoções, sobrepõe-se a todas as outras. Quem tem medo ganha sempre (enfim, quase sempre).
Agora estamos em Barbate, uma escala que vai ser mais longa do que as outras porque precisamos de fazer uma reparação que exige pôr o barco em seco. Sabe bem, esta pausa. Barbate é o primeiro sinal de Sul que vemos: uma praia cheia às sete da noite, palmeiras, calor, calor, calor. Que bom é o calor à beira-mar.
------------------------------------------------------------------------------
Voltar a Lisboa como se não tivesse nascido em Lisboa. E a Portugal como se já não vivesse lá -- e é verdade que não vivo, não vivo em lado nenhum. Voltar a casa é outra coisa, aos braços dos meus pais e avós, aos sorrisos dos meus irmãos, às sardinhas assadas e saladas de pimentos, ao pão com manteiga e ao café com leite. Ainda assim, sete meses não bastaram para que queira voltar. Essa coisa da crise sente-se no ar como o mar aqui tão perto, que não se vê, de tão escuro que se pôs. «Claro que não é tarde, aqui em Espanha janta-se às 23.» Eu não estou em crise; estou em trânsito. Sou, sem me dar conta, dos lugares onde estou. E quero ser de cada vez mais.
Não vi a passagem do Cabo Trafalgar. Com o sono que tinha, nem Trafalgar Square me manteria acordada. Desabituei-me de quartos nocturnos, mas quero mais - neste último que fiz vi uma estrela cadente e um pássaro mágico. Hoje apanhei um escaldão que se transformará em bronze a limpar S., um barco confortável e bom de manter de um ponto de vista feminino: pequeno, novo, limpo a priori. A armadora F. é adorável, divertida, belíssima anfitriã. Lamento muito a sensação que tenho de que não vamos cumprir o nosso objectivo: fazê-la gostar de navegar. Como pode ser que a coragem e generosidade que demonstra -- tentar acompanhar o marido numa coisa que ela detesta e ele adora -- sejam menos implacáveis do que o seu medo?
Não sei se é do calor, se da viagem (simples, fácil, quase férias), mas hoje o meu futuro é hoje (pleonasmo propositado). Às vezes surge-me más adelante e sopro-lhe, mando-o passear. A felicidade é uma coisa simples, desde que não se defina. Tudo é simples, desde que não se defina.
(Post a duas mãos. Amanhã há mais.)
Em Londres não foi bem assim, verdade seja dita. Uma ida ao Globe, jantar num restaurante etíope, passear no British Museum, jantar tardio em Chinatown, passear à beira do Tamisa é mais do que espreitar o café do outro lado da rua. E Lisboa também não: por muito de passagem que se esteja, nunca se está de passagem na nossa casa. Uma casa da qual não se conhecem todas as divisões, claro. Fui pela primeira vez ao café Zazou, uma sala que ainda não conhecia mas que a partir de agora vai fazer parte do roteiro.
A passagem do cabo Trafalgar foi memorável. Três nós de corrente a favor, vinte de vento contra, uma passagem estreita, muito estreita, com mar a rebentar a estibordo e terra a bombordo. Que pena tenho de quem tem medo; e que inveja tenho do medo: é a mais ditatorial das emoções, sobrepõe-se a todas as outras. Quem tem medo ganha sempre (enfim, quase sempre).
Agora estamos em Barbate, uma escala que vai ser mais longa do que as outras porque precisamos de fazer uma reparação que exige pôr o barco em seco. Sabe bem, esta pausa. Barbate é o primeiro sinal de Sul que vemos: uma praia cheia às sete da noite, palmeiras, calor, calor, calor. Que bom é o calor à beira-mar.
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Voltar a Lisboa como se não tivesse nascido em Lisboa. E a Portugal como se já não vivesse lá -- e é verdade que não vivo, não vivo em lado nenhum. Voltar a casa é outra coisa, aos braços dos meus pais e avós, aos sorrisos dos meus irmãos, às sardinhas assadas e saladas de pimentos, ao pão com manteiga e ao café com leite. Ainda assim, sete meses não bastaram para que queira voltar. Essa coisa da crise sente-se no ar como o mar aqui tão perto, que não se vê, de tão escuro que se pôs. «Claro que não é tarde, aqui em Espanha janta-se às 23.» Eu não estou em crise; estou em trânsito. Sou, sem me dar conta, dos lugares onde estou. E quero ser de cada vez mais.
Não vi a passagem do Cabo Trafalgar. Com o sono que tinha, nem Trafalgar Square me manteria acordada. Desabituei-me de quartos nocturnos, mas quero mais - neste último que fiz vi uma estrela cadente e um pássaro mágico. Hoje apanhei um escaldão que se transformará em bronze a limpar S., um barco confortável e bom de manter de um ponto de vista feminino: pequeno, novo, limpo a priori. A armadora F. é adorável, divertida, belíssima anfitriã. Lamento muito a sensação que tenho de que não vamos cumprir o nosso objectivo: fazê-la gostar de navegar. Como pode ser que a coragem e generosidade que demonstra -- tentar acompanhar o marido numa coisa que ela detesta e ele adora -- sejam menos implacáveis do que o seu medo?
Não sei se é do calor, se da viagem (simples, fácil, quase férias), mas hoje o meu futuro é hoje (pleonasmo propositado). Às vezes surge-me más adelante e sopro-lhe, mando-o passear. A felicidade é uma coisa simples, desde que não se defina. Tudo é simples, desde que não se defina.
(Post a duas mãos. Amanhã há mais.)
10.8.12
Marie-Thérèse
“Tu sabes como eu era, já te
contei: um bocadinho radical, ou totalmente idiota. O mundo era a preto e
branco, nessa altura. Ou é sim ou é não; ou estás dentro ou estás fora; ou é
dos nossos ou és contra nós. À medida que fui crescendo fui percebendo que as
coisas não eram assim tão simples, que o mundo, como ele dizia, não é digital,
é analógico.
Tenho duas filhas, uma excelente forma de aprender que as coisas, tal como as pessoas, não são simples. Sim, amava Pierre, muito. Estávamos casados havia doze ou treze anos – doze, tenho a certeza, foi quando a mais velha fez aquela asneira no colégio e tivemos de a mudar de escola – e nunca o tinha enganado.
Conheci-o quando estava a fazer uma reportagem sobre as micro-empresas estrangeiras em Paris. Fiquei com as portuguesas e as brasileiras, naturalmente. A ideia era seleccionar duas ou três de cada país, de diferentes sectores, e fazer um trabalho de fundo sobre elas. «Y en a marre des grosses boîtes, c’est des petites que je veux», disse-nos Stéphane, o editor. Não conseguia dizer uma frase que não tivesse pelo menos dois sentidos. Fiz o percurso habitual: consulado, anuários económicos, sites, amigos e conhecidos. Tudo. Sabes como sou, quando tenho de procurar alguma coisa. Não há porta que fique por abrir. Acabei com uma selecção gira, quatro empresas portuguesas e quatro brasileiras. É sempre melhor ficar com uma de reserva.
A dele importava produtos exóticos biológicos. Começara por ter uma série de fornecedores em Marselha, mas depois fartara-se de negociar com aquela gente e arranjou fornecedores em Paris. Não ganhava dinheiro, claro, muito antes pelo contrário. Mas era teimoso como um caracol. Acompanhei-o duas ou três vezes nas suas expedições a Rungis; falei muito com ele, mas só de coisas relacionadas com o trabalho. Nunca me falou na família (tinha dois filhos) nem na mulher (uma russa linda de morrer, a julgar pelas fotografias que vi depois, quando já nos encontrávamos regularmente).
Um dia convidou-me para jantar. Vinha a Paris uma vez por mês; ficava três dias. Ligou-me ainda de Lisboa. Disse-me que chegava essa noite e se eu quisesse teria muito gosto em convidar-me para jantar. Achei graça, nessa altura já ganhava bastante bem a minha vida. Ele andava sempre aflito, mas mesmo assim convidou-me. Disse-lhe que sim. De qualquer forma Pierre estava habituado aos meus horários, e as miúdas também.
Fomos jantar a um restaurantezito – em Portugal seria uma tasca – perto da rue Daguerre. Ele ficava sempre pelo XIVème ou XVème, porque o avião aterrava em Orly. O restaurante chamava-se Au Vin des Rues, comia-se bem, tinha uma boa selecção de vinhos e não era muito caro. Lembro-me perfeitamente dessa noite. Foi a primeira vez que o vi com uma aliança. Estava apreensivo: no dia seguinte teria um encontro com um produtor marroquino de especiarias e não confiava nos marroquinos; mas achava que valia a pena encontrá-lo. «Deve haver pelo menos um marroquino honesto neste negócio. Só preciso de um, e pode ser este. Porque não correr o risco? O não já o tenho». Essa era outra das suas expressões favoritas, «o não já o tenho; agora há que procurar o sim».
Disse-lhe que não me apetecia falar do trabalho dele. Estava intrigada pela aliança e perguntei-lhe porque a pusera, nessa noite. «Porque queria que tu soubesses que sou casado», respondeu-me. Falava muito devagar, pronunciando claramente todas as sílabas, todas as letras.
Já nos tratávamos por tu. Os pais dele também tinham sido emigrantes em França, como os meus, mas voltaram para Portugal quando ele tinha quinze ou dezasseis anos. Não tinha essa mania portuguesa de tratar toda a gente por você, durante anos e anos. A verdade é que eu simpatizava com ele, e muito depressa estava a falar-lhe de mim, da minha vida, das crianças, do casamento. Ele ouvia devagar, também. Parece tolo, eu sei, mas a verdade é que se ficava com a impressão de que ele gravava tudo o que se lhe dizia, revirava cada palavra, a observava de todos os lados e depois a arrumava num canto da memória. Meia hora depois, um mês, um ano depois essa palavra saía do armário onde estava guardada e ele dizia uma coisa qualquer relacionada com o tema que te deixava perplexa.
Não me perguntes porque fui para a cama com ele a primeira vez. Não sei. Como te disse nunca tinha enganado Pierre e para mim as coisas não tinham muitas nuances, se bem já tivessem algumas. Porque é que enganamos a pesssoa com quem vivemos, que amamos, com quem passámos os piores e os melhores dias da nossa vida? Foi no dia seguinte a esse jantar; ele acompanhou-me a casa de carro. À porta disse-me «gostava de te ver outra vez», eu respondi «telefona-me amanhã à tarde», ele ligou-me e nessa noite fizemos amor pela primeira vez.
Ele estava outra vez com a aliança. «Não gosto de enganar as pessoas. Sou casado e gosto da minha mulher». «Então porque estás na cama comigo?»
Talvez não acredites, mas isto durou quase dois anos. Uma vez fui ter com ele a Lisboa. Nunca me escondeu; era como se o que fazíamos não fosse ilícito, imoral. Se nos encontrávamos com alguém que conhecia apresentava-me como “uma amiga de Paris”. «O que disseste à tua mulher?» «Que estava com uma pessoa de Paris e provavelmente não viria a casa muitas vezes». «E ela não se importa?»
Respondia a todas as perguntas que eu lhe fazia, nota; mas por vezes não respondia logo.
A verdade é que raramente falávamos das nosas famílias. Vi a fotografia da mulher porque um dia deixou a mala no quarto do hotel. Telefonou-me pouco depois de ter saído para me pedir uma morada num cartão de visita que estava num dos compartimentos. Quando chegou, nessa noite, disse-lhe que tinha visto a fotografia. «É bonita, a tua mulher». «Obrigado». «Parece russa». «É». «como se chama?» «Ludmila». «Ela sabe que nos encontramos?» «Não». «E sabe que a enganas? Tens outras mulheres, para além de mim?»
«Não engano ninguém; não gosto de ser enganado, e não faço aos outros o que não quero que me façam a mim». «E se a tua mulher tivesse amantes?» «Tudo o que lhe peço é que não mo diga, e eu não saiba por outras vias. De resto, pode fazer o que quiser. Ela sabe que eu a amo». «E tu sabes se ela te ama?» «Não. Não me interessa. O amor é apenas uma entre muitas razões que mantêm um casal junto. O que é amar alguém? Tu amas o teu marido?» «Amo» «E amas-me?» Dessa vez fui eu que não respondi.
A verdade é que começava a amá-lo, muito. E cada vez amava menos o Pierre. Era como vasos comunicantes. O amor de um enchia o outro. Ele era atento, educado – não me lembro de uma vez, uma que seja que não me tivesse aberto a porta do táxi, por exemplo – correcto. Sabia que eu tinha muito mais dinheiro do que ele mas raramente me deixava pagar um jantar ou um táxi; nunca o vi zangado, por muito mal que lhe tivesse corrido o dia. Cada vez que eu tentava falar-lhe de nós dizia-me «Marie-Thérèse, nós temos uma relação. Não a transformemos em meta-relação, está bem?»
Ele nunca se deu verdadeiramente, mas também nunca fugiu; percebes o que quero dizer?
«Todos gostamos de determinadas coisas em cada pessoa; ninguém é suficientemente grande para encher uma vida. O que é feio é enganar, é o adultério, é trair uma confiança. A infidelidade é normal; é quase uma inevitabilidade. Que me interessa saber se a Ludmila me ama, se tem amantes, se não tem? É a vida dela. O que amo nela é a parte desse vida que toca na minha, o seu gosto por música clássica, a maneira como educa os nosssos filhos ou me sorri quando chego a casa cansado ou me recita um poema em russo, de que não percebo nem as vírgulas. Mas não tenho com ela aquilo que encontro em ti». «E que encontras em mim?»
Costumávamos ver-nos neste mesmo hotel. Foi por causa dele que o conheci. Vivo no XVIème, o XVème era-me estranho, apesar de estar mesmo ao lado. Gosto deste aspecto familiar, paisible, pouco teatral do arrondissement. As coisas aqui são o que são. Venho cá muitas vezes. Compro um livro na Arbre à Lettres, vou lê-lo para o Rallye Perret, janto no Vin des Rues. De vez em quando tenho um amante que trago para este hotel, como tu. Pouco me interessa o que o pessoal pensa. Foi outra coisa que aprendi com ele, a ignorar o olhar dos outros. É difícil, ao princípio; depois é terrível, um pouco assustador. E finalmente é a coisa mais apaziguadora e relaxante do mundo. «O que os outros pensam de mim interessa-me pouco, porque o que eu penso deles também», disse-me. «Os outros interessam-te pouco», corrigi. «Não, os outros interessam-me muito. Mas não tudo nos outros». Era verdade: nunca vi ninguém que se interessasse tanto pelas pessoas; interessava-se pelo que faziam, pensavam, como viviam. Só não lhe importava o que pensavam dele, ou das outras pessoas.
Ao fim de dois anos estava confusa. Cada vez o amava mais; cada vez a distância me era mais difícil de suportar. Ele escrevia-me, de vez em quando: uma carta, um postal, um SMS. Eu respondia-lhe com longos mails que, sei agora, não lia. E cada vez se tornava mais claro que a nossa relação nunca seria mais do que era: duas bolas de bilhar juntas numa mesa até que um taco as separe. «O amor é o encontro de duas liberdades, não de duas prisões», escreveu-me um dia. Foi a primeira vez que utilizou o termo amor comigo.
Um dia descobri que Pierre tinha uma amante. Fiz-lhe uma cena, mas na verdade não estava magoada. Era-me totalmente indiferente que ele visse alguém para além de mim. Fiquei incomodada com as suas desculpas esfarrapadas, as suas promessas que eu sabia não cumpriria – não via razão para elas, nem muito menos para que as cumprisse – a sua incapacidade de assumir. Estupidamente, foi também nesse dia que decidi que não o queria deixar. O amor tinha definitivamente saído do nosso casamento, e o que nos manteria juntos dali para a frente seria outra coisa. Não as miúdas, ou o dinheiro, ou a sua dor, se dor houvesse. Uma relação é uma escolha; pode ser interessante tentar definir o que nos fez escolher A ou B, mas não é de forma alguma essencial. A vida não se esgota numa pessoa, tal como o amor, o desejo, o prazer de uma conversa sobre um livro, o cinema ou a economia. Não há um aquilo que nos une uns aos outros; há um número infinito de aquilos que nos unem uns aos outros; não se excluem, antes pelo contrário: adicionam-se. O meu amor por Pierre acabara, e fora substituído por outra coisa qualquer – amizade, ternura, passado, futuro? Que interessa?
Não vou ao ponto de te dizer que o amor não existe. É óbvio que existe; para muita gente até tem essa função exclusiva, de fronteira, território, prisão, o que quiseres. Pouco me importa. Pensem o que quiserem, vivam como queiram. «Liberdade é poder escolher as suas prisões», disse-me ele um dia (era uma das suas citações favoritas, de resto). Para mim o amor, a sua ausência, a coabitação de vários amores ou a coabitação de várias ausências de amor é um dos dados do problema, não é o problema todo. A vida é um quadro no qual várias cores, várias formas, várias personagens coabitam; tira-lhe uma dessas cores, uma dessas personagens e o quadro fica incompleto, tosco, desajeitado. Pode também ser que para alguém esse quadro seja pintado com um amor, e que contenha uma personagem; muito bem. Não é menos verdadeiro do que o meu quadro, nem mais.
Sim, sou feliz. O meu casamento com Pierre nunca foi tão bom como é hoje. Ele não sabe de nada. Pensa que eu sou fiel; por vezes surpreendo-o num jogo de sedução com outra mulher qualquer, uma empregada, a mulher de um amigo. Não sei se os leva até ao fim ou não e não quero saber. Sou feliz quando estou com ele, como sou quando estou com outro homem, como sou quando estou sozinha. O mundo não é digital; é analógico. Entre zero e um há um número infinito de possibilidades, de escolhas, opções, vidas. Tudo tem um princípio, um meio e um fim, mas cada uma dessas etapas é escolhida por nós. O taco que ele mencionava na sua analogia somos nós, sei-o agora e graças a ele, que o seguramos. Por vezes apaixono-me; é bom, estar apaixonada. Mas uma paixão não é a vida; é parte dela, só. Não me dou toda a ninguém, mas também não quero ninguém todo e só para mim.
Como é que acabámos? Um dia cheguei ao hotel e deitei-me. Estava cansada, inquieta, tensa. Levantei-me, sentei-me à secretária, peguei numa folha de papel e escrevi “sou infiel; não sou adúltera”. Não sabia como continuar. O texto não era para ele, não tinha qualquer intenção de lhe escrever, ele chegaria daí a uma hora ou pouco mais. Foi pouco tempo depois de ter descoberto o affaire do Pierre.
Peguei no meu saco, pus a folha de papel em cima da cama desfeita e fui-me embora. Mandei-lhe um SMS a dizer «Obrigada» ao qual ele respondeu «Obrigado eu. Beijo». Nunca mais o vi. Por vezes manda-me um SMS ou um mail. Não respondo, mas sei que ele não espera uma resposta. As palavras são um mundo à parte, não é? Os actos são concretos, vêem-se, é como se se pudessem tocar, não se podem ignorar. As palavras não. São o que nós queremos que sejam. Esta mesa é azul. O que é azul? Que importa o azul? Porque é azul? Amo-te. O que é amar-te? Porquê? Para que serve o amor?”
II
Marie-Thérèse é uma mulher grande, com um ligeiro excesso de peso; quase não se nota. Há pessoas assim, de tão magras por dentro não se vê que são gordas por fora. Ruiva, sardenta, com um nariz demasiado grande num rosto demasiado redondo não é muito bonita; começa-se por olhar para ela como para um puzzle com peças fora do lugar; depois qualquer coisa prende o olhar, que por ali fica a tentar perceber porquê. Está habituada. “Ainda bem que não sou bonita”, dizia por vezes. “Faria se fosse”.
É jornalista num jornal económico. Conheci-a há pouco tempo numa festa. Tivemos esta conversa no dia em que, por inabilidade minha, ela me deixou. Disse-lhe «Pois eu amo-te e sei o que é amar-te» e ela respondeu «Tens sorte. Vou-me embora. Adeus».
Genève, 09-08-2012
Tenho duas filhas, uma excelente forma de aprender que as coisas, tal como as pessoas, não são simples. Sim, amava Pierre, muito. Estávamos casados havia doze ou treze anos – doze, tenho a certeza, foi quando a mais velha fez aquela asneira no colégio e tivemos de a mudar de escola – e nunca o tinha enganado.
Conheci-o quando estava a fazer uma reportagem sobre as micro-empresas estrangeiras em Paris. Fiquei com as portuguesas e as brasileiras, naturalmente. A ideia era seleccionar duas ou três de cada país, de diferentes sectores, e fazer um trabalho de fundo sobre elas. «Y en a marre des grosses boîtes, c’est des petites que je veux», disse-nos Stéphane, o editor. Não conseguia dizer uma frase que não tivesse pelo menos dois sentidos. Fiz o percurso habitual: consulado, anuários económicos, sites, amigos e conhecidos. Tudo. Sabes como sou, quando tenho de procurar alguma coisa. Não há porta que fique por abrir. Acabei com uma selecção gira, quatro empresas portuguesas e quatro brasileiras. É sempre melhor ficar com uma de reserva.
A dele importava produtos exóticos biológicos. Começara por ter uma série de fornecedores em Marselha, mas depois fartara-se de negociar com aquela gente e arranjou fornecedores em Paris. Não ganhava dinheiro, claro, muito antes pelo contrário. Mas era teimoso como um caracol. Acompanhei-o duas ou três vezes nas suas expedições a Rungis; falei muito com ele, mas só de coisas relacionadas com o trabalho. Nunca me falou na família (tinha dois filhos) nem na mulher (uma russa linda de morrer, a julgar pelas fotografias que vi depois, quando já nos encontrávamos regularmente).
Um dia convidou-me para jantar. Vinha a Paris uma vez por mês; ficava três dias. Ligou-me ainda de Lisboa. Disse-me que chegava essa noite e se eu quisesse teria muito gosto em convidar-me para jantar. Achei graça, nessa altura já ganhava bastante bem a minha vida. Ele andava sempre aflito, mas mesmo assim convidou-me. Disse-lhe que sim. De qualquer forma Pierre estava habituado aos meus horários, e as miúdas também.
Fomos jantar a um restaurantezito – em Portugal seria uma tasca – perto da rue Daguerre. Ele ficava sempre pelo XIVème ou XVème, porque o avião aterrava em Orly. O restaurante chamava-se Au Vin des Rues, comia-se bem, tinha uma boa selecção de vinhos e não era muito caro. Lembro-me perfeitamente dessa noite. Foi a primeira vez que o vi com uma aliança. Estava apreensivo: no dia seguinte teria um encontro com um produtor marroquino de especiarias e não confiava nos marroquinos; mas achava que valia a pena encontrá-lo. «Deve haver pelo menos um marroquino honesto neste negócio. Só preciso de um, e pode ser este. Porque não correr o risco? O não já o tenho». Essa era outra das suas expressões favoritas, «o não já o tenho; agora há que procurar o sim».
Disse-lhe que não me apetecia falar do trabalho dele. Estava intrigada pela aliança e perguntei-lhe porque a pusera, nessa noite. «Porque queria que tu soubesses que sou casado», respondeu-me. Falava muito devagar, pronunciando claramente todas as sílabas, todas as letras.
Já nos tratávamos por tu. Os pais dele também tinham sido emigrantes em França, como os meus, mas voltaram para Portugal quando ele tinha quinze ou dezasseis anos. Não tinha essa mania portuguesa de tratar toda a gente por você, durante anos e anos. A verdade é que eu simpatizava com ele, e muito depressa estava a falar-lhe de mim, da minha vida, das crianças, do casamento. Ele ouvia devagar, também. Parece tolo, eu sei, mas a verdade é que se ficava com a impressão de que ele gravava tudo o que se lhe dizia, revirava cada palavra, a observava de todos os lados e depois a arrumava num canto da memória. Meia hora depois, um mês, um ano depois essa palavra saía do armário onde estava guardada e ele dizia uma coisa qualquer relacionada com o tema que te deixava perplexa.
Não me perguntes porque fui para a cama com ele a primeira vez. Não sei. Como te disse nunca tinha enganado Pierre e para mim as coisas não tinham muitas nuances, se bem já tivessem algumas. Porque é que enganamos a pesssoa com quem vivemos, que amamos, com quem passámos os piores e os melhores dias da nossa vida? Foi no dia seguinte a esse jantar; ele acompanhou-me a casa de carro. À porta disse-me «gostava de te ver outra vez», eu respondi «telefona-me amanhã à tarde», ele ligou-me e nessa noite fizemos amor pela primeira vez.
Ele estava outra vez com a aliança. «Não gosto de enganar as pessoas. Sou casado e gosto da minha mulher». «Então porque estás na cama comigo?»
Talvez não acredites, mas isto durou quase dois anos. Uma vez fui ter com ele a Lisboa. Nunca me escondeu; era como se o que fazíamos não fosse ilícito, imoral. Se nos encontrávamos com alguém que conhecia apresentava-me como “uma amiga de Paris”. «O que disseste à tua mulher?» «Que estava com uma pessoa de Paris e provavelmente não viria a casa muitas vezes». «E ela não se importa?»
Respondia a todas as perguntas que eu lhe fazia, nota; mas por vezes não respondia logo.
A verdade é que raramente falávamos das nosas famílias. Vi a fotografia da mulher porque um dia deixou a mala no quarto do hotel. Telefonou-me pouco depois de ter saído para me pedir uma morada num cartão de visita que estava num dos compartimentos. Quando chegou, nessa noite, disse-lhe que tinha visto a fotografia. «É bonita, a tua mulher». «Obrigado». «Parece russa». «É». «como se chama?» «Ludmila». «Ela sabe que nos encontramos?» «Não». «E sabe que a enganas? Tens outras mulheres, para além de mim?»
«Não engano ninguém; não gosto de ser enganado, e não faço aos outros o que não quero que me façam a mim». «E se a tua mulher tivesse amantes?» «Tudo o que lhe peço é que não mo diga, e eu não saiba por outras vias. De resto, pode fazer o que quiser. Ela sabe que eu a amo». «E tu sabes se ela te ama?» «Não. Não me interessa. O amor é apenas uma entre muitas razões que mantêm um casal junto. O que é amar alguém? Tu amas o teu marido?» «Amo» «E amas-me?» Dessa vez fui eu que não respondi.
A verdade é que começava a amá-lo, muito. E cada vez amava menos o Pierre. Era como vasos comunicantes. O amor de um enchia o outro. Ele era atento, educado – não me lembro de uma vez, uma que seja que não me tivesse aberto a porta do táxi, por exemplo – correcto. Sabia que eu tinha muito mais dinheiro do que ele mas raramente me deixava pagar um jantar ou um táxi; nunca o vi zangado, por muito mal que lhe tivesse corrido o dia. Cada vez que eu tentava falar-lhe de nós dizia-me «Marie-Thérèse, nós temos uma relação. Não a transformemos em meta-relação, está bem?»
Ele nunca se deu verdadeiramente, mas também nunca fugiu; percebes o que quero dizer?
«Todos gostamos de determinadas coisas em cada pessoa; ninguém é suficientemente grande para encher uma vida. O que é feio é enganar, é o adultério, é trair uma confiança. A infidelidade é normal; é quase uma inevitabilidade. Que me interessa saber se a Ludmila me ama, se tem amantes, se não tem? É a vida dela. O que amo nela é a parte desse vida que toca na minha, o seu gosto por música clássica, a maneira como educa os nosssos filhos ou me sorri quando chego a casa cansado ou me recita um poema em russo, de que não percebo nem as vírgulas. Mas não tenho com ela aquilo que encontro em ti». «E que encontras em mim?»
Costumávamos ver-nos neste mesmo hotel. Foi por causa dele que o conheci. Vivo no XVIème, o XVème era-me estranho, apesar de estar mesmo ao lado. Gosto deste aspecto familiar, paisible, pouco teatral do arrondissement. As coisas aqui são o que são. Venho cá muitas vezes. Compro um livro na Arbre à Lettres, vou lê-lo para o Rallye Perret, janto no Vin des Rues. De vez em quando tenho um amante que trago para este hotel, como tu. Pouco me interessa o que o pessoal pensa. Foi outra coisa que aprendi com ele, a ignorar o olhar dos outros. É difícil, ao princípio; depois é terrível, um pouco assustador. E finalmente é a coisa mais apaziguadora e relaxante do mundo. «O que os outros pensam de mim interessa-me pouco, porque o que eu penso deles também», disse-me. «Os outros interessam-te pouco», corrigi. «Não, os outros interessam-me muito. Mas não tudo nos outros». Era verdade: nunca vi ninguém que se interessasse tanto pelas pessoas; interessava-se pelo que faziam, pensavam, como viviam. Só não lhe importava o que pensavam dele, ou das outras pessoas.
Ao fim de dois anos estava confusa. Cada vez o amava mais; cada vez a distância me era mais difícil de suportar. Ele escrevia-me, de vez em quando: uma carta, um postal, um SMS. Eu respondia-lhe com longos mails que, sei agora, não lia. E cada vez se tornava mais claro que a nossa relação nunca seria mais do que era: duas bolas de bilhar juntas numa mesa até que um taco as separe. «O amor é o encontro de duas liberdades, não de duas prisões», escreveu-me um dia. Foi a primeira vez que utilizou o termo amor comigo.
Um dia descobri que Pierre tinha uma amante. Fiz-lhe uma cena, mas na verdade não estava magoada. Era-me totalmente indiferente que ele visse alguém para além de mim. Fiquei incomodada com as suas desculpas esfarrapadas, as suas promessas que eu sabia não cumpriria – não via razão para elas, nem muito menos para que as cumprisse – a sua incapacidade de assumir. Estupidamente, foi também nesse dia que decidi que não o queria deixar. O amor tinha definitivamente saído do nosso casamento, e o que nos manteria juntos dali para a frente seria outra coisa. Não as miúdas, ou o dinheiro, ou a sua dor, se dor houvesse. Uma relação é uma escolha; pode ser interessante tentar definir o que nos fez escolher A ou B, mas não é de forma alguma essencial. A vida não se esgota numa pessoa, tal como o amor, o desejo, o prazer de uma conversa sobre um livro, o cinema ou a economia. Não há um aquilo que nos une uns aos outros; há um número infinito de aquilos que nos unem uns aos outros; não se excluem, antes pelo contrário: adicionam-se. O meu amor por Pierre acabara, e fora substituído por outra coisa qualquer – amizade, ternura, passado, futuro? Que interessa?
Não vou ao ponto de te dizer que o amor não existe. É óbvio que existe; para muita gente até tem essa função exclusiva, de fronteira, território, prisão, o que quiseres. Pouco me importa. Pensem o que quiserem, vivam como queiram. «Liberdade é poder escolher as suas prisões», disse-me ele um dia (era uma das suas citações favoritas, de resto). Para mim o amor, a sua ausência, a coabitação de vários amores ou a coabitação de várias ausências de amor é um dos dados do problema, não é o problema todo. A vida é um quadro no qual várias cores, várias formas, várias personagens coabitam; tira-lhe uma dessas cores, uma dessas personagens e o quadro fica incompleto, tosco, desajeitado. Pode também ser que para alguém esse quadro seja pintado com um amor, e que contenha uma personagem; muito bem. Não é menos verdadeiro do que o meu quadro, nem mais.
Sim, sou feliz. O meu casamento com Pierre nunca foi tão bom como é hoje. Ele não sabe de nada. Pensa que eu sou fiel; por vezes surpreendo-o num jogo de sedução com outra mulher qualquer, uma empregada, a mulher de um amigo. Não sei se os leva até ao fim ou não e não quero saber. Sou feliz quando estou com ele, como sou quando estou com outro homem, como sou quando estou sozinha. O mundo não é digital; é analógico. Entre zero e um há um número infinito de possibilidades, de escolhas, opções, vidas. Tudo tem um princípio, um meio e um fim, mas cada uma dessas etapas é escolhida por nós. O taco que ele mencionava na sua analogia somos nós, sei-o agora e graças a ele, que o seguramos. Por vezes apaixono-me; é bom, estar apaixonada. Mas uma paixão não é a vida; é parte dela, só. Não me dou toda a ninguém, mas também não quero ninguém todo e só para mim.
Como é que acabámos? Um dia cheguei ao hotel e deitei-me. Estava cansada, inquieta, tensa. Levantei-me, sentei-me à secretária, peguei numa folha de papel e escrevi “sou infiel; não sou adúltera”. Não sabia como continuar. O texto não era para ele, não tinha qualquer intenção de lhe escrever, ele chegaria daí a uma hora ou pouco mais. Foi pouco tempo depois de ter descoberto o affaire do Pierre.
Peguei no meu saco, pus a folha de papel em cima da cama desfeita e fui-me embora. Mandei-lhe um SMS a dizer «Obrigada» ao qual ele respondeu «Obrigado eu. Beijo». Nunca mais o vi. Por vezes manda-me um SMS ou um mail. Não respondo, mas sei que ele não espera uma resposta. As palavras são um mundo à parte, não é? Os actos são concretos, vêem-se, é como se se pudessem tocar, não se podem ignorar. As palavras não. São o que nós queremos que sejam. Esta mesa é azul. O que é azul? Que importa o azul? Porque é azul? Amo-te. O que é amar-te? Porquê? Para que serve o amor?”
II
Marie-Thérèse é uma mulher grande, com um ligeiro excesso de peso; quase não se nota. Há pessoas assim, de tão magras por dentro não se vê que são gordas por fora. Ruiva, sardenta, com um nariz demasiado grande num rosto demasiado redondo não é muito bonita; começa-se por olhar para ela como para um puzzle com peças fora do lugar; depois qualquer coisa prende o olhar, que por ali fica a tentar perceber porquê. Está habituada. “Ainda bem que não sou bonita”, dizia por vezes. “Faria se fosse”.
É jornalista num jornal económico. Conheci-a há pouco tempo numa festa. Tivemos esta conversa no dia em que, por inabilidade minha, ela me deixou. Disse-lhe «Pois eu amo-te e sei o que é amar-te» e ela respondeu «Tens sorte. Vou-me embora. Adeus».
Genève, 09-08-2012
8.8.12
Genève, Suíça, 08-08-2012
Genéve é uma cidade sólida, cheia, consistente; nada aqui parece improvisado ou temporário. Como viver numa cidade que desconhece o efémero?
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A comuna de papala-les-papalots põe objecções a um projecto que lhe vai trazer mil empregos. Há três razões. Uma delas é que o projecto tem demasiados lugares de estacionamento. Voltar a Genève é tão exótico como ir de férias ao planeta Marte.
"O eléctrico passa a cinco minutos do local previsto", explica o maire. "Não há razão para tantos lugares de estacionamento".
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É apaixonante deambular por Genève e tentar perceber porque não gosto de viver nesta cidade.
Hoje vi peixe à venda a 130 francos suíços o quilo. 109 euros. Procurei na net e vi que era peixe-galo-espinhoso, em português (em filetes, é preciso acrescentar).
(PS - este site diz que o peixe-galo-espinhoso é "pouco comercial". A net está sempre a ensinar-nos coisas quase tão apaixonantes como as deambulações por Genève.)
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É possível ser-se pontual (por exemplo) em Portugal. É irritante, desesperante, estúpido, inútil mas não é o fim do mundo. Ser desorganizado na Suíça é.
Entre as sete e as oito da noite há dois supermercados abertos em Genève (dois é uma generosidade; um e meio, talvez seja mais exacto). A partir das oito não há nada se não as mesmo assim abençoadas lojas de afegães que vendem as coisas mais básicas a preços estratoféricos.
(Enfim, é uma cidade pequena e os amigos não estão longe, por mais longe que vivam.)
........
Fui ver uma exposição sobre os rios de Genève. Um dos pontos da exposição era a renaturalização de rios que tinham sido "canalizados" (entre aspas porque não sei se o termo está correcto). É curioso como a inteligência muda tudo. Por exemplo, ecologia inteligente é diferente de ecologia tout court. Assim até eu sou ecologista.
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A comuna de papala-les-papalots põe objecções a um projecto que lhe vai trazer mil empregos. Há três razões. Uma delas é que o projecto tem demasiados lugares de estacionamento. Voltar a Genève é tão exótico como ir de férias ao planeta Marte.
"O eléctrico passa a cinco minutos do local previsto", explica o maire. "Não há razão para tantos lugares de estacionamento".
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É apaixonante deambular por Genève e tentar perceber porque não gosto de viver nesta cidade.
Hoje vi peixe à venda a 130 francos suíços o quilo. 109 euros. Procurei na net e vi que era peixe-galo-espinhoso, em português (em filetes, é preciso acrescentar).
(PS - este site diz que o peixe-galo-espinhoso é "pouco comercial". A net está sempre a ensinar-nos coisas quase tão apaixonantes como as deambulações por Genève.)
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É possível ser-se pontual (por exemplo) em Portugal. É irritante, desesperante, estúpido, inútil mas não é o fim do mundo. Ser desorganizado na Suíça é.
Entre as sete e as oito da noite há dois supermercados abertos em Genève (dois é uma generosidade; um e meio, talvez seja mais exacto). A partir das oito não há nada se não as mesmo assim abençoadas lojas de afegães que vendem as coisas mais básicas a preços estratoféricos.
(Enfim, é uma cidade pequena e os amigos não estão longe, por mais longe que vivam.)
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Fui ver uma exposição sobre os rios de Genève. Um dos pontos da exposição era a renaturalização de rios que tinham sido "canalizados" (entre aspas porque não sei se o termo está correcto). É curioso como a inteligência muda tudo. Por exemplo, ecologia inteligente é diferente de ecologia tout court. Assim até eu sou ecologista.
7.8.12
Genève, Suíça, 07-08-2012
Ao fim do dia vamos passear o cão. Escolhemos um sítio sempre diferente do campo genebrino e damos um longo passeio.
Hoje, pela primeira vez, le fond de l'air não estava quente; ainda não estava frio, mas já não estava quente. Não sei se foi à minha avó se nos Açores, a alguém que não recordo, que ouvi pela primeira vez "primeiro de Agosto primeiro de inverno". Hoje é dia sete, e já houve o primeiro sinal do fim do verão. Dias quentes virão de novo, dias de sol radioso, dias estivais; mas o inverno já pôs a ponta do pé na porta e ela não se fechará mais.
O cão - na realidade uma cadela, Leeloo de sua graça - adora os passeios. É bonita, salta e corre com leveza e elegância. É muito jovem ainda, persegue ratos imaginários (ou pelo menos parecem: nunca vi nenhum), fareja notícias invisíveis, anda às voltas em trajectos cuja lógica nos escapa completamente.
Nós falamos do presente; muito raramente do passado. Alguns passados parece terem sido enterrados vivos, mas não sofrem por isso.
........
H. recupera com toda a força dos seus vinte indomáveis anos. Hoje tivemos uma boa notícia: ao contrário do que pensávamos (e nos tinha sido dito) não ia em excesso de velocidade. Vão ser três meses aborrecidos, com um colete, mas vão ser três meses, só. Se forem mais, será pouco mais. Talvez mantenha uma dor ocasional, uma pequena lembrança de que não é imortal. Não sei se é demasiado cedo - essa lição chegou-me muito mais tarde, e aos bocadinhos - mas tem, e temos, pelo menos a sorte de poder viver para a lembrar.
........
Nunca se está verdadeiramente no campo, em Genève. Salvo raras excepções há sempre uma aldeia, uma casa, uma estrada, uma auto-estrada à vista. Apesar disso consegue ser bonito, arrumado, limpo e sobretudo calmo, que ser calmo é a função do campo.
........
Um passado enterrado vivo não pode ser desenterrado, sob pena de morrer. É mais uma das coisas que se aprendem no campo, mesmo que já se o soubesse há muito tempo. Muito tempo: é preciso muito tempo para o aprender; e muitos passados.
Hoje, pela primeira vez, le fond de l'air não estava quente; ainda não estava frio, mas já não estava quente. Não sei se foi à minha avó se nos Açores, a alguém que não recordo, que ouvi pela primeira vez "primeiro de Agosto primeiro de inverno". Hoje é dia sete, e já houve o primeiro sinal do fim do verão. Dias quentes virão de novo, dias de sol radioso, dias estivais; mas o inverno já pôs a ponta do pé na porta e ela não se fechará mais.
O cão - na realidade uma cadela, Leeloo de sua graça - adora os passeios. É bonita, salta e corre com leveza e elegância. É muito jovem ainda, persegue ratos imaginários (ou pelo menos parecem: nunca vi nenhum), fareja notícias invisíveis, anda às voltas em trajectos cuja lógica nos escapa completamente.
Nós falamos do presente; muito raramente do passado. Alguns passados parece terem sido enterrados vivos, mas não sofrem por isso.
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H. recupera com toda a força dos seus vinte indomáveis anos. Hoje tivemos uma boa notícia: ao contrário do que pensávamos (e nos tinha sido dito) não ia em excesso de velocidade. Vão ser três meses aborrecidos, com um colete, mas vão ser três meses, só. Se forem mais, será pouco mais. Talvez mantenha uma dor ocasional, uma pequena lembrança de que não é imortal. Não sei se é demasiado cedo - essa lição chegou-me muito mais tarde, e aos bocadinhos - mas tem, e temos, pelo menos a sorte de poder viver para a lembrar.
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Nunca se está verdadeiramente no campo, em Genève. Salvo raras excepções há sempre uma aldeia, uma casa, uma estrada, uma auto-estrada à vista. Apesar disso consegue ser bonito, arrumado, limpo e sobretudo calmo, que ser calmo é a função do campo.
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Um passado enterrado vivo não pode ser desenterrado, sob pena de morrer. É mais uma das coisas que se aprendem no campo, mesmo que já se o soubesse há muito tempo. Muito tempo: é preciso muito tempo para o aprender; e muitos passados.
6.8.12
Explicação jugular
Algo me diz que a Jugular School of Economics Artists terá uma explicação para isto; e que essa explicação vai ser a) Os números estão errados; b) Os números estao certos mas é preciso ter em conta os benefícios; c) É uma cabala; d) Mas estes gajos ainda continuam a falar do Sócrates?
5.8.12
4.8.12
Londres, Reino Unido, 03-08-2012
(Isto hoje vai por telegramas, como faz o patrão.)
Nunca percebi a pergunta que se faz quando há boas e más notícias (quais preferimos primeiro?) , se não há má notícia que não arruíne uma boa. Hoje não houve más notícias, só más decisões. São aquelas que a cabeça segue e o corpo rejeita. O pecado religioso em geral e cristão em particular, new-age em mais particular ainda, é a forma, não o conteúdo. Apregoar verdades sobre corpo e mente é uma sobranceria que só se perdoa aos médicos e aos filósofos -- ou talvez só aos últimos, que os primeiros estão cada vez mais desacreditados --, mas uma coisa é certa: devíamos ouvir o nosso corpo mais vezes. Quando nos pede para parar, quando nos pede para agir; quando nos parece que lhe falta um bocado e o sentimos oco ou esburacado. A cabeça arranja explicações para o que sentimos e o que sentimos é subordinado a essas explicações. Sermos incapazes de ouvir o nosso corpo é a prova de que existimos para além dele.
Assim, a premissa de hoje é uma, muito simples: o corpo (ser) e o pensamento são duas coisas diferentes, existem independentemente uma da outra, o que não significa que sejam independentes uma da outra ou de outras coisas. Isto anda tudo ligado.
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F. aparece-me com uns Wayfarer iguais aos que perdi da maneira mais estúpida na semana passada: levados por uma rajada de vento da mesa de uma esplanada para a água. O vento também é independentemente de nós e, no caso, parece ser até independente. Existe mesmo quando não sopra, na memória da minha perda. Eram uns belos óculos tartaruga. A única coisa tartaruga que alguma vez tive -- o cágado Rogério não conta e a sua morte prematura prova que nunca me pertenceu, independência que homenageei com um funeral em caixa de fósforos, a que a minha mãe assistiu, em lágrimas.
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Hoje vi rosas azuis e lembrei-me da minha mãe. Vi um preto lindo de morrer e lembrei-me da minha mãe. Senti-me desesperada e lembrei-me da minha mãe.
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Quando abro os olhos, todos os dias, olho para a escotilha e leio este sinal: «Hatch to be closed at sea». Penso no mar e em como o sinal está para a escotilha como para a cabeça. Ninguém sobrevive no mar se não a fechar vazia, depois de deixar sair o pensamento. Ao contrário de alguns lixos, o pensamento não polui o exterior e não pode ser usado como desculpa para o agravamento do aquecimento global. Que eu não sinto porque, salvo raríssimas excepções, tem feito sempre frio.
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Não sei como sobrevivi a um dia em Londres com umas calças de ganga demodées, uns ténis da nada fashion Decathlon, um casaco cinzento-fato-de-treino e sem uns Wayfarer. Mas ninguém deve ter reparado, porque as t-shirts e casacos Adidas Team GB andam por todo o lado, como os anúncios aos Jogos Olímpicos. A quantidade de pessoas parece a mesma, mas vejo ligeiramente mais japoneses. As crianças que não estão agasalhadas vestem camisolas com a Union Jack, a bandeira mais bonita do mundo, e são geralmente gordas ou bonitas (as gordas não são bonitas, mas a culpa não é delas). É uma pergunta importante: até que ponto se deve alimentar uma criança que nunca parece estar satisfeita? Segundo a minha mãe, passámos por esse dilema: tive de fazer dieta. Continuo a adorar açorda.
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Perdi o day ticket. Sete libras para o galheiro e mais quatro e trinta para voltar a Victoria. Camden Town é longe e as minhas pernas de oito quilómetros a pedalar ontem numa velha ferrugenta contra o vento não aguentariam outra vez o passeio lindo pelo canal.
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Gasto demasiado dinheiro e sinto culpa. Talvez o primeiro passo para deixar de gastar tanto dinheiro será deixar de sentir culpa. Agora não há nada a fazer. A culpa como o arrependimento é pura perda de tempo.
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Leonard Cohen não está muito bem nos meus auscultadores novos. Numa canção diz que é preciso deixar a família para trás -- «You who must leave everything that you cannot control / It begins with your family, but soon it comes round to your soul» --, na outra diz que não vale a pena falar do que nos prende -- «Let's not talk of love or chains and things we can't untie». Nunca apreciei pessoas coerentes, foi uma maneira de me apreciar mais. Agora exijo coerência dos outros como se ela me fosse possível, a mim que me sinto um saco de arroz cru.
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Grão a grão o rapaz preto e maravilhosamente simpático que está à entrada do metro de Swiss Cottage não vai conseguindo encher o balde para ajudar as crianças em África que precisam de água potável (é sempre África, já nem pergunto onde em África, seria preciso ir a um atlas de cada vez que me falassem num dos seus países, ponho a moeda e já está): a abordagem é bastante ineficaz: «aposto que consigo adivinhar a tua data de nascimento!» Depois de 17 tentativas, acerta no mês. Dou-lhe duas libras e digo-lhe «és adorável, mas não vales nada a adivinhar datas de nascimento». Responde-me com um riso que explica porque é que África existe, graças a Deus.
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F. leva-me ao café português em Camden Town onde vai beber café todos os dias. Bebo uma bica portuguesa, deliciosa, e como um pastel de nata que não é dos melhores que já comi mas é decerto o melhor que provei nos últimos sete meses -- escusado será acrescentar que foi o único. Os empregados são portugueses e, perdoem-me o aparente elitismo, diferentes de nós. Vão, decerto, à terra comer chouriças todos os agostos e trazer para casa uma garrafa de aguardente caseira. Estou cada vez mais convencida de que os lisboetas não são bem portugueses, embora apreciem chouriças e aguardente caseira. Lisboa é um país. Na mercearia-café, onde há Sumol e Nestum compro, a dez libras, uma garrafa de EA (que me ensinaram ser infalível) e a oito uma de Vinha da Defesa 2008, que nunca provei. Gasto demasiado dinheiro e adoro a palavra touriga -- nacional é-me indiferente, mas não no vinho.
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Adormeço no comboio. Leio no comboio. Saio do comboio para o autocarro. Leio no autocarro. Tenho frio no autocarro. Saio do autocarro e tenho frio no trajecto que me leva até ao barco. Sinto a cada passo o chão, os músculos das pernas doridos do exercício dos últimos dias, tento não ler as promoções dos restaurantes e o "Portuguese peri-peri" anunciado pelo Nando's. Penso em sentir para suspender o pensamento, suspendo o pensamento de suspender o pensamento e sinto a incapacidade de não pensar. Ser humano é uma doença crónica.
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Descobri que só em português usamos com esse sentido a palavra que melhor define o estado do tempo em Inglaterra: desagradável. Quando está desagradável é isso que está, e aqui está quase sempre.
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O vento aqui já só me incomoda. Para que serve? É como o pensamento. Em estado puro, indomável, para que serve? O vento que sopra aqui só me incomoda, mas incomoda também de onde vem ou para onde vai?, serve para alguma coisa noutro lugar qualquer? Isto, se fosse tão verdade como certo pensamento não servir para nada, levar-nos-ia a uma premissa melhor do que a primeira: o vento é melhor do que o pensamento. Mas não é. O vento aqui já só me incomoda. O pensamento também. Hoje não houve más notícias, só más decisões: a de não fechar a escotilha, por exemplo, porque choveu bastante (dentro do barco e da cabeça). É precisar tratar o pensamento como o vento: se vem em rajadas, deixá-lo passar, deixá-lo ir onde tiver de ir. Se for violento, abrigar-se, deixá-lo passar também. Não lhe dar muita importância. Ele é uma coisa, nós somos outra.
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O vento aqui já não me incomoda. Mas ainda estou muito incomodada.
Nunca percebi a pergunta que se faz quando há boas e más notícias (quais preferimos primeiro?) , se não há má notícia que não arruíne uma boa. Hoje não houve más notícias, só más decisões. São aquelas que a cabeça segue e o corpo rejeita. O pecado religioso em geral e cristão em particular, new-age em mais particular ainda, é a forma, não o conteúdo. Apregoar verdades sobre corpo e mente é uma sobranceria que só se perdoa aos médicos e aos filósofos -- ou talvez só aos últimos, que os primeiros estão cada vez mais desacreditados --, mas uma coisa é certa: devíamos ouvir o nosso corpo mais vezes. Quando nos pede para parar, quando nos pede para agir; quando nos parece que lhe falta um bocado e o sentimos oco ou esburacado. A cabeça arranja explicações para o que sentimos e o que sentimos é subordinado a essas explicações. Sermos incapazes de ouvir o nosso corpo é a prova de que existimos para além dele.
Assim, a premissa de hoje é uma, muito simples: o corpo (ser) e o pensamento são duas coisas diferentes, existem independentemente uma da outra, o que não significa que sejam independentes uma da outra ou de outras coisas. Isto anda tudo ligado.
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F. aparece-me com uns Wayfarer iguais aos que perdi da maneira mais estúpida na semana passada: levados por uma rajada de vento da mesa de uma esplanada para a água. O vento também é independentemente de nós e, no caso, parece ser até independente. Existe mesmo quando não sopra, na memória da minha perda. Eram uns belos óculos tartaruga. A única coisa tartaruga que alguma vez tive -- o cágado Rogério não conta e a sua morte prematura prova que nunca me pertenceu, independência que homenageei com um funeral em caixa de fósforos, a que a minha mãe assistiu, em lágrimas.
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Hoje vi rosas azuis e lembrei-me da minha mãe. Vi um preto lindo de morrer e lembrei-me da minha mãe. Senti-me desesperada e lembrei-me da minha mãe.
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Quando abro os olhos, todos os dias, olho para a escotilha e leio este sinal: «Hatch to be closed at sea». Penso no mar e em como o sinal está para a escotilha como para a cabeça. Ninguém sobrevive no mar se não a fechar vazia, depois de deixar sair o pensamento. Ao contrário de alguns lixos, o pensamento não polui o exterior e não pode ser usado como desculpa para o agravamento do aquecimento global. Que eu não sinto porque, salvo raríssimas excepções, tem feito sempre frio.
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Não sei como sobrevivi a um dia em Londres com umas calças de ganga demodées, uns ténis da nada fashion Decathlon, um casaco cinzento-fato-de-treino e sem uns Wayfarer. Mas ninguém deve ter reparado, porque as t-shirts e casacos Adidas Team GB andam por todo o lado, como os anúncios aos Jogos Olímpicos. A quantidade de pessoas parece a mesma, mas vejo ligeiramente mais japoneses. As crianças que não estão agasalhadas vestem camisolas com a Union Jack, a bandeira mais bonita do mundo, e são geralmente gordas ou bonitas (as gordas não são bonitas, mas a culpa não é delas). É uma pergunta importante: até que ponto se deve alimentar uma criança que nunca parece estar satisfeita? Segundo a minha mãe, passámos por esse dilema: tive de fazer dieta. Continuo a adorar açorda.
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Perdi o day ticket. Sete libras para o galheiro e mais quatro e trinta para voltar a Victoria. Camden Town é longe e as minhas pernas de oito quilómetros a pedalar ontem numa velha ferrugenta contra o vento não aguentariam outra vez o passeio lindo pelo canal.
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Gasto demasiado dinheiro e sinto culpa. Talvez o primeiro passo para deixar de gastar tanto dinheiro será deixar de sentir culpa. Agora não há nada a fazer. A culpa como o arrependimento é pura perda de tempo.
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Leonard Cohen não está muito bem nos meus auscultadores novos. Numa canção diz que é preciso deixar a família para trás -- «You who must leave everything that you cannot control / It begins with your family, but soon it comes round to your soul» --, na outra diz que não vale a pena falar do que nos prende -- «Let's not talk of love or chains and things we can't untie». Nunca apreciei pessoas coerentes, foi uma maneira de me apreciar mais. Agora exijo coerência dos outros como se ela me fosse possível, a mim que me sinto um saco de arroz cru.
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Grão a grão o rapaz preto e maravilhosamente simpático que está à entrada do metro de Swiss Cottage não vai conseguindo encher o balde para ajudar as crianças em África que precisam de água potável (é sempre África, já nem pergunto onde em África, seria preciso ir a um atlas de cada vez que me falassem num dos seus países, ponho a moeda e já está): a abordagem é bastante ineficaz: «aposto que consigo adivinhar a tua data de nascimento!» Depois de 17 tentativas, acerta no mês. Dou-lhe duas libras e digo-lhe «és adorável, mas não vales nada a adivinhar datas de nascimento». Responde-me com um riso que explica porque é que África existe, graças a Deus.
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F. leva-me ao café português em Camden Town onde vai beber café todos os dias. Bebo uma bica portuguesa, deliciosa, e como um pastel de nata que não é dos melhores que já comi mas é decerto o melhor que provei nos últimos sete meses -- escusado será acrescentar que foi o único. Os empregados são portugueses e, perdoem-me o aparente elitismo, diferentes de nós. Vão, decerto, à terra comer chouriças todos os agostos e trazer para casa uma garrafa de aguardente caseira. Estou cada vez mais convencida de que os lisboetas não são bem portugueses, embora apreciem chouriças e aguardente caseira. Lisboa é um país. Na mercearia-café, onde há Sumol e Nestum compro, a dez libras, uma garrafa de EA (que me ensinaram ser infalível) e a oito uma de Vinha da Defesa 2008, que nunca provei. Gasto demasiado dinheiro e adoro a palavra touriga -- nacional é-me indiferente, mas não no vinho.
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Adormeço no comboio. Leio no comboio. Saio do comboio para o autocarro. Leio no autocarro. Tenho frio no autocarro. Saio do autocarro e tenho frio no trajecto que me leva até ao barco. Sinto a cada passo o chão, os músculos das pernas doridos do exercício dos últimos dias, tento não ler as promoções dos restaurantes e o "Portuguese peri-peri" anunciado pelo Nando's. Penso em sentir para suspender o pensamento, suspendo o pensamento de suspender o pensamento e sinto a incapacidade de não pensar. Ser humano é uma doença crónica.
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Descobri que só em português usamos com esse sentido a palavra que melhor define o estado do tempo em Inglaterra: desagradável. Quando está desagradável é isso que está, e aqui está quase sempre.
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O vento aqui já só me incomoda. Para que serve? É como o pensamento. Em estado puro, indomável, para que serve? O vento que sopra aqui só me incomoda, mas incomoda também de onde vem ou para onde vai?, serve para alguma coisa noutro lugar qualquer? Isto, se fosse tão verdade como certo pensamento não servir para nada, levar-nos-ia a uma premissa melhor do que a primeira: o vento é melhor do que o pensamento. Mas não é. O vento aqui já só me incomoda. O pensamento também. Hoje não houve más notícias, só más decisões: a de não fechar a escotilha, por exemplo, porque choveu bastante (dentro do barco e da cabeça). É precisar tratar o pensamento como o vento: se vem em rajadas, deixá-lo passar, deixá-lo ir onde tiver de ir. Se for violento, abrigar-se, deixá-lo passar também. Não lhe dar muita importância. Ele é uma coisa, nós somos outra.
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O vento aqui já não me incomoda. Mas ainda estou muito incomodada.
3.8.12
2.8.12
Genève, Suíça, 02-08-2012
Hoje vi uma mulher feia. Outra coisa que não muda, nesta cidade.
........
"Genève é uma cidade pequena com todas as qualidades das cidades grandes e nenhum dos defeitos", dizem os que gostam dela; "É uma cidade pequena com todos os defeitos das cidades pequenas e nenhuma das qualidades", respondem os que a detestam.
Tendo para a primeira das fórmulas, mas isso não significa que gostaria de cá viver. Nunca gostei. Contudo o familiar prazer de voltar a Genève reaparece. Nunca gostei de cá viver, mas sempre gostei de regressar após uma ausência, uma viagem. Uma cidade onde os horários dos autocarros são cumpridos com uma tolerância de dois minutos, não há mulheres feias e celebra a festa nacional a agradecer aos estrangeiros que nela vivem...
É a primeira vez que passo tanto tempo sem voltar a Genève.
........
Leio num jornal a expressão "crise do alojamento". Genéve tem uma "crise do alojamento" há dezenas de anos. As razões são conhecidas: impossibilidade de construir em terrenos "agrícolas" (entre aspas porque a noção de terrenos agrícolas é vasta, muito vasta) e legislação de protecção ao inquilino, que defende quem tem um apartamento e dificulta, como em todo o lado, o acesso a eles a quem não tem.
É uma "crise" com a qual as pessoas convivem bem - se não já teriam facilitado a reclassificação de pelo menos alguns terrenos "agrícolas" (anátema) e flexibilizado a legislação de arrendamento (a esmagadora maioria da população arrenda a sua casa, não é proprietária. Ou seja: isto nunca acontecerá).
........
Há uns anos Genève chegou à conclusão de que havia cada vez menos empresas estrangeiras a instalar-se no cantão e criou um organismo (ou três, se bem me lembro) para contrariar tão molesta tendência.
Os suíços podem tardar a reagir, mas quando fazem qualquer coisa fazem-na bem e o investimento estrangeiro voltou ao cantão, mais rápido e em maior quantidade do que todos esperaram. Infelizmente a perfeição não é deste mundo, e as autoridades aperceberam-se de um problema aborrecido: não havia alojamentos suficientes para alojar os funcionários das empresas que responderam positivamente àquelas iniciativas.
A primeira iniciativa do governo foi fazer um acordo com o cantão de Vaud, que tem um regime fiscal radicalmente diferente (e muito mais leve do que Genève). Não conseguiu, pelo que se voltou para a France voisine. Esta disse que sim, claro; pelo que se assistiu ao interessante desenrolar de um cenário não muito frequente, quiçá impensável noutro país: o cantão de Genève organizava em França o alojamento dos funcionários das empresas que atraíra.
Os terrenos "agrícolas" continuam agrícolas, e os respectivos donos a receber subvenções para manter viva a "agricultura" (as aspas não são completamente justificadas. Há alguma produção agrícola em Genève, e alguma - mas muito longe de toda - consegue ser sustentada pelo mercado).
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"Genève é uma cidade pequena com todas as qualidades das cidades grandes e nenhum dos defeitos", dizem os que gostam dela; "É uma cidade pequena com todos os defeitos das cidades pequenas e nenhuma das qualidades", respondem os que a detestam.
Tendo para a primeira das fórmulas, mas isso não significa que gostaria de cá viver. Nunca gostei. Contudo o familiar prazer de voltar a Genève reaparece. Nunca gostei de cá viver, mas sempre gostei de regressar após uma ausência, uma viagem. Uma cidade onde os horários dos autocarros são cumpridos com uma tolerância de dois minutos, não há mulheres feias e celebra a festa nacional a agradecer aos estrangeiros que nela vivem...
É a primeira vez que passo tanto tempo sem voltar a Genève.
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Leio num jornal a expressão "crise do alojamento". Genéve tem uma "crise do alojamento" há dezenas de anos. As razões são conhecidas: impossibilidade de construir em terrenos "agrícolas" (entre aspas porque a noção de terrenos agrícolas é vasta, muito vasta) e legislação de protecção ao inquilino, que defende quem tem um apartamento e dificulta, como em todo o lado, o acesso a eles a quem não tem.
É uma "crise" com a qual as pessoas convivem bem - se não já teriam facilitado a reclassificação de pelo menos alguns terrenos "agrícolas" (anátema) e flexibilizado a legislação de arrendamento (a esmagadora maioria da população arrenda a sua casa, não é proprietária. Ou seja: isto nunca acontecerá).
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Há uns anos Genève chegou à conclusão de que havia cada vez menos empresas estrangeiras a instalar-se no cantão e criou um organismo (ou três, se bem me lembro) para contrariar tão molesta tendência.
Os suíços podem tardar a reagir, mas quando fazem qualquer coisa fazem-na bem e o investimento estrangeiro voltou ao cantão, mais rápido e em maior quantidade do que todos esperaram. Infelizmente a perfeição não é deste mundo, e as autoridades aperceberam-se de um problema aborrecido: não havia alojamentos suficientes para alojar os funcionários das empresas que responderam positivamente àquelas iniciativas.
A primeira iniciativa do governo foi fazer um acordo com o cantão de Vaud, que tem um regime fiscal radicalmente diferente (e muito mais leve do que Genève). Não conseguiu, pelo que se voltou para a France voisine. Esta disse que sim, claro; pelo que se assistiu ao interessante desenrolar de um cenário não muito frequente, quiçá impensável noutro país: o cantão de Genève organizava em França o alojamento dos funcionários das empresas que atraíra.
Os terrenos "agrícolas" continuam agrícolas, e os respectivos donos a receber subvenções para manter viva a "agricultura" (as aspas não são completamente justificadas. Há alguma produção agrícola em Genève, e alguma - mas muito longe de toda - consegue ser sustentada pelo mercado).
1.8.12
Genève, Suíça, 01-08-2012
É estranho chegar a Genève e estar calor. "Tropical", disse hoje a rádio. É o dia nacional suíço, e a perspectiva de um ambiente "tropical" para a festa - em Genève um dos grupos é tuaregue (Tinariwen) - deu com certeza um empurrãozinho ao entusiasmo do locutor.
A última vez que assisti a um 1º de Agosto em Genève o discurso do Maire foi para celebrar - e agradecer - a presença de estrangeiros. Desta vez há um músico suíço também, e já houve algumas especialidades nacionais: combates de vacas, por exemplo. Deve ser por causa do resultado da direita populista na últimas eleições.
Deus (e meia dúzia de pessoas) sabem que não sou de esquerda (e pouco dado a festas nacionais), mas devo reconhecer que em Genève prefiro de longe a extrema-esquerda à extrema-direita. Apesar dos inconvenientes - as rendas, por exemplo, exorbitantes devido à mirabolante protecção dos inquilinos - Genève é uma cidade agradável.
Já foi mais, diz-me S. A insegurança aumentou bastante. Já não se pode deixar a porta de casa aberta, e tiveram de pôr portas na garagem do prédio. Há violência juvenil, também. Mas não penso que com a direita populista no poder fosse muito diferente; e haveria decerto mais tráfico automóvel e menos bicicletas nas ruas.
De qualquer forma a verdade é que na Suíça os políticos têm pouco poder. Qualquer das suas intenções (ou ausência delas) pode ser refutada (ou instituída) via iniciativa popular, e muitas (as que concernem os impostos, por exemplo) têm obrigatoriamente de ir a referendo.
A música não estava muito alta; nada dos exageros lusos, nessa matéria. Neste país o único exagero é a falta de exageros.
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Isto dito, Genève não muda. Há dois anos e meio que não vinha cá; duas semanas e meia. "Mais obras", diz-me Helena. "Não", respondo. "Só mudaram de sítio. Genève está em obras há pelo menos sessenta anos, talvez mais". Os cafés não mudaram de nome, de decoração, de donos nem - provavelmente - de menus; algumas ruas fecharam, outras mudaram a circulação, mas isso significa apenas que as coisas estão na mesma; as árvores no jardim em baixo da casa de S. cresceram, mas pouco, muito pouco, como se não quisessem alterar a primeira visão que dele tivemos.
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Vou ao hospital e sou recebido com um sorriso luminoso. Duas vértebras e o cóccix partidos e é como se os seus problemas se resumissem a um pelo teimoso no sovaco, ou não poder trabalhar amanhã.Penso no "meu" hospital, em Lisboa. Na verdade não era muito diferente deste: corredores largos, limpos, sem doentes. Os hospitais portugueses reflectem bem a ambivalência do país, metade terceiro mundo metade primeiro (e não se misturam, coabitam em quartos separados).
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Talvez não se deva regressar a um lugar onde se foi feliz, mas não há nada de errado em voltar a um onde se foi infeliz. Antes pelo contrário.
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O francês é a língua mais bonita que conheço, a que vai mais longe na maldade e melhor exprime a paixão.
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