I (28.01.2011)
Dia 10 de Outubro [de 2010] apanhei um avião da TACV para ir ao Brasil buscar uma embarcação de vela; a qual devia levar de seguida para Portugal, fazendo assim uma viagem com a qual sonho há muito tempo: atravessar o Atlântico (à vela) no sentido Oeste - Leste. Por razões diversas essa viagem atrasou-se e, em vez de regressar à Europa e lá esperar que o barco ficasse pronto resolvi vir para as Caraíbas - realizando assim um outro sonho, ainda mais antigo: vir por terra do Brasil à Guiana Francesa.
Escolhi viajar como "antigamente": camionetes, pensões baratas (podia haver uma vírgula entre "pensões" e "baratas") e, sobretudo, a passagem mágica de barco entre Belém do Pará e Macapá - 24 horas pelo delta do Amazonas que só elas justificam não ter voltado para Lisboa.
A ideia original era chegar a Trinidade e aí embarcar para as Antilhas; mais uma vez por razões diversas acabei por apanhar um avião e vir directamente para a Martinique, onde não vinha há 27 anos.
A partir do Marin - o porto no sul da Martinique para onde se transferiram todas as actividades da náutica de recreio desta ilha - embarquei algumas vezes (não tantas quanto teria desejado), conheci ilhas como St. Kitts e St. Martin, voltei a Grenada, onde estive pela primeira vez em 2004, encontrei pessoas com quem liguei laços de amizade fortes.
Hoje estou de novo no Marin, onde espero conseguir uma equivalência entre o meu curso e as exigências da legislação francesa; tenho um círculo de amigos e uma vida social; actualizei os meus conhecimentos sobre o mercado do aluguer de embarcações de recreio. Daqui a três semanas começo um trabalho de skipper que vai ser o culminar desta experiência. Uma vez terminado esse serviço regresso ao Brasil para ir buscar a embarcação que me fez, em Outubro de 2010, apanhar uma avião da TACV, ver uma jovem senhora no aeroporto do Sal que parecia saída de um livro do Corto Maltese e trazia ao peito um badge que dizia "Temporário", para o qual todos os homens olhavam como se fosse uma promessa e não uma informação, dormir num backpackers de Belém onde conheci duas alemãs que davam aulas na Universidade local sobre "climate changes" (não sabia que já era tema de aulas nas Universidades), comprar um hamac para dormir no barco entre Belém e Macapá, aborrecer-me mortalmente em Cayenne, apanhar um arraial de pancada entre Grenada e Bequia num catamaran de 40', viajar num super-iate de 82' entre o Marin e St. Martin, conhecer uma velejadora solitária de 66 anos, um skipper filipino de 33, um casal dono de um pequeno teatro em Avignon, um francês cuja única actividade na vida parece ser construir um muro à sua volta para se refugiar sabe Deus de quê, um tipo que atravessa o Equador pelo menos duas vezes por semana e não sabe o que é o Equador, e, sobretudo, descobrir que ao contrário do que pensava não perdi a capacidade de ser feliz.
Uma linha recta talvez seja o caminho mais curto entre dois pontos; não é de certeza o melhor.
Escrevi este texto em faz hoje pouco mais de um ano. Afinal não voltei ao Brasil "uma vez terminado esse serviço": vou amanhã. Muitas coisas aconteceram nos doze meses e poucos dias que vivi desde então.
Utilizo o verbo viver propositadamente: depois de ter escrito aquelas linhas arranjei muitos mais "serviços" de skipper; conheci uma jovem (não é fórmula) senhora com quem, todas as coisas bem pesadas, me vou casar, um dia; desesperei: estive quase, e por várias vezes, a deixar cair o projecto do Brasil, que me condicionou desde que naquele dia de Outubro apanhei o avião; fui infeliz, muito, nos meses de Verão que passei em Portugal e voltei a ser feliz, muito mais do que fui infeliz, nos meses que passei em Antigua; tive comigo a minha filha, dois meses e meio nos quais navegámos duas mil e quinhentas milhas, viagens inesquecíveis que moldarão, tenho a certeza, toda a nossa relação daqui para a frente. Provei cerveja colombiana e a simpatia daquele povo; passei quinze dias à bolina cerrada (o meu recorde até agora); fui rebocado pela primeira vez na vida para um porto por causa de uma avaria, vivi num sítio magnífico em Falmouth Harbour; deixo - pela primeira vez em muitos anos - um país com pena de o deixar.
Se isto não é viver não sei o que viver é.
Ou melhor, sei: é o que me espera. O objectivo é simples: entregar o barco aos (agora) armadores como gostaria de o ter feito em 2010. Isto significa organizar um reboque de 200 milhas (é pouco, mas é contra o vento e a corrente e não vai ser simples); preparar o barco a minima para uma viagem de 1700 milhas até Grenada (é muito, mas é com vento e corrente a favor, vai ser simples); supervisionar os acabamentos em Grenada, uma ilha de que gosto quase tanto como gosto de Bequia. Quatro meses apaixonantes, quatro meses para fechar um círculo que se abriu há mais de quinze, antes da minha partida de Lisboa. Depois não sei. Um novo círculo começará, uma nova etapa.
A vida é uma sequência de portas que se fecham e portas que se abrem. O importante é fazer com que não fiquem portas mal fechadas para trás, e que se as abram bem abertas para a frente.
Escolhi viajar como "antigamente": camionetes, pensões baratas (podia haver uma vírgula entre "pensões" e "baratas") e, sobretudo, a passagem mágica de barco entre Belém do Pará e Macapá - 24 horas pelo delta do Amazonas que só elas justificam não ter voltado para Lisboa.
A ideia original era chegar a Trinidade e aí embarcar para as Antilhas; mais uma vez por razões diversas acabei por apanhar um avião e vir directamente para a Martinique, onde não vinha há 27 anos.
A partir do Marin - o porto no sul da Martinique para onde se transferiram todas as actividades da náutica de recreio desta ilha - embarquei algumas vezes (não tantas quanto teria desejado), conheci ilhas como St. Kitts e St. Martin, voltei a Grenada, onde estive pela primeira vez em 2004, encontrei pessoas com quem liguei laços de amizade fortes.
Hoje estou de novo no Marin, onde espero conseguir uma equivalência entre o meu curso e as exigências da legislação francesa; tenho um círculo de amigos e uma vida social; actualizei os meus conhecimentos sobre o mercado do aluguer de embarcações de recreio. Daqui a três semanas começo um trabalho de skipper que vai ser o culminar desta experiência. Uma vez terminado esse serviço regresso ao Brasil para ir buscar a embarcação que me fez, em Outubro de 2010, apanhar uma avião da TACV, ver uma jovem senhora no aeroporto do Sal que parecia saída de um livro do Corto Maltese e trazia ao peito um badge que dizia "Temporário", para o qual todos os homens olhavam como se fosse uma promessa e não uma informação, dormir num backpackers de Belém onde conheci duas alemãs que davam aulas na Universidade local sobre "climate changes" (não sabia que já era tema de aulas nas Universidades), comprar um hamac para dormir no barco entre Belém e Macapá, aborrecer-me mortalmente em Cayenne, apanhar um arraial de pancada entre Grenada e Bequia num catamaran de 40', viajar num super-iate de 82' entre o Marin e St. Martin, conhecer uma velejadora solitária de 66 anos, um skipper filipino de 33, um casal dono de um pequeno teatro em Avignon, um francês cuja única actividade na vida parece ser construir um muro à sua volta para se refugiar sabe Deus de quê, um tipo que atravessa o Equador pelo menos duas vezes por semana e não sabe o que é o Equador, e, sobretudo, descobrir que ao contrário do que pensava não perdi a capacidade de ser feliz.
Uma linha recta talvez seja o caminho mais curto entre dois pontos; não é de certeza o melhor.
II (08.02.2012)
Escrevi este texto em faz hoje pouco mais de um ano. Afinal não voltei ao Brasil "uma vez terminado esse serviço": vou amanhã. Muitas coisas aconteceram nos doze meses e poucos dias que vivi desde então.
Utilizo o verbo viver propositadamente: depois de ter escrito aquelas linhas arranjei muitos mais "serviços" de skipper; conheci uma jovem (não é fórmula) senhora com quem, todas as coisas bem pesadas, me vou casar, um dia; desesperei: estive quase, e por várias vezes, a deixar cair o projecto do Brasil, que me condicionou desde que naquele dia de Outubro apanhei o avião; fui infeliz, muito, nos meses de Verão que passei em Portugal e voltei a ser feliz, muito mais do que fui infeliz, nos meses que passei em Antigua; tive comigo a minha filha, dois meses e meio nos quais navegámos duas mil e quinhentas milhas, viagens inesquecíveis que moldarão, tenho a certeza, toda a nossa relação daqui para a frente. Provei cerveja colombiana e a simpatia daquele povo; passei quinze dias à bolina cerrada (o meu recorde até agora); fui rebocado pela primeira vez na vida para um porto por causa de uma avaria, vivi num sítio magnífico em Falmouth Harbour; deixo - pela primeira vez em muitos anos - um país com pena de o deixar.
Se isto não é viver não sei o que viver é.
Ou melhor, sei: é o que me espera. O objectivo é simples: entregar o barco aos (agora) armadores como gostaria de o ter feito em 2010. Isto significa organizar um reboque de 200 milhas (é pouco, mas é contra o vento e a corrente e não vai ser simples); preparar o barco a minima para uma viagem de 1700 milhas até Grenada (é muito, mas é com vento e corrente a favor, vai ser simples); supervisionar os acabamentos em Grenada, uma ilha de que gosto quase tanto como gosto de Bequia. Quatro meses apaixonantes, quatro meses para fechar um círculo que se abriu há mais de quinze, antes da minha partida de Lisboa. Depois não sei. Um novo círculo começará, uma nova etapa.
A vida é uma sequência de portas que se fecham e portas que se abrem. O importante é fazer com que não fiquem portas mal fechadas para trás, e que se as abram bem abertas para a frente.
III (10.10.2013)
Pela primeira vez escrevo este resumo no dia de aniversário. Devia ser uma norma, daqui para a frente. É curioso ver o que as coisas podem mudar no espaço de um ou dois anos, e ver o que delas fica.
Não me casei com a jovem senhora, uma decisão que agora me parece acertada, por muito errada que tenha sido a forma como a tomei; fiz a viagem de quase 200 milhas a reboque de uma embarcação de pesca, uma das viagens da minha vida, que merecia um dia ser contada por quem saiba escrever; não acompanhei a construção do barco que ficou em S. Luis.
Atravessei o Atlântico no sentido Oeste - Este, com o prémio de o ter feito num barco magnífico; conheci Palma, pela qual me enamorei desde e para sempre; fiquei sem gasóleo, por azelhice, poucas milhas antes de Denia; fiz uma travessia de Denia para Mallorca que me ficará, para sempre, no coração; descobri a sobrasada, atravessei o canal do Panamá - uma travessia que começou no dia do nonagésimo nono aniversário do canal e acabou cinco dias depois, a reboque - e tomei algumas das piores decisões da minha vida.
Atravessei o Atlântico no sentido Oeste - Este, com o prémio de o ter feito num barco magnífico; conheci Palma, pela qual me enamorei desde e para sempre; fiquei sem gasóleo, por azelhice, poucas milhas antes de Denia; fiz uma travessia de Denia para Mallorca que me ficará, para sempre, no coração; descobri a sobrasada, atravessei o canal do Panamá - uma travessia que começou no dia do nonagésimo nono aniversário do canal e acabou cinco dias depois, a reboque - e tomei algumas das piores decisões da minha vida.
Decisões essas que me levaram a uma provação como não pensava ser capaz de viver, da qual agora saio, mais forte e melhor; como um homem que acaba de atravessar o deserto e já bebeu água e descansou (ainda não bebi água nem descansei tudo, mas está quase). Descubro com o prazer de sempre que alguns dos meus preconceitos - assumindo que tudo o que pensamos se transforma inevitavelmente num preconceito, e se não se transformar não foi suficientemente bem pensado - estavam errados. Os meus preconceitos sobre a fidelidade, a necessidade (ou utilidade, melhor dizendo) de construir muros à nossa volta, a prioridade do trabalho sobre a vida afectiva mudaram. O meu conceito de amizade sofreu um ajustamento bastante necessário; descobri que a minha vida de skipper está mais perto do fim do que jamais teria pensado. Tornei-me - sem querer - armador de uma embarcação à qual dei o nome da minha filha e da qual cada dia gosto um bocadinho mais, inesperadamente.
Vou, enfim, regressar às ilhas que tanto são a minha casa, todas elas: Palma, Antigua, St. Lucia, St. Martin; arrepio-me à ideia de que voltarei um dia a S. Luís, cidade (e país) que detesto particularmente; continuo a acreditar que as portas se devem fechar bem fechadas.
E, muito mais do que tudo, acima de tudo, confirmo que ao contrário do que pensei (e quase desejei, este ano) não perdi a capacidade de ser feliz.
IV - (10-10-2014)
Faz hoje quatro anos saí de Lisboa para o Brasil buscar uma embarcação de vela. A embarcação - um catamaran de quarenta e três pés construído em madeira - não estava pronta; afundou-se no dia em que foi posto na água; quase perdi a vida para a salvar.
Deixei-o na cidade para onde tinha voado e lá ficou dois anos, durante os quais fui por terra para a Guiana Francesa - uma viagem inesquecível que me relembrou que o mar não é a única forma de se viajar, naveguei nas Caraíbas e fui feliz como há muito tempo não o era.
Regressei a essa cidade - Parnaíba, no estado do Piauí, uma espécie de buraco no qual a cada esquina se espera ver um coronel do antigamente de pistola à cintura, bigodes e chapéu, cavalo e amante - dois anos depois para ir buscar o barco e levá-lo para S. Luís. Mais uma viagem que vai para a estante das viagens irrepetíveis. Quatro dias a reboque de uma embarcação de pesca, primeiro pelo mar depois por uma baía que é dos sítios mais lindos que vi em toda a minha vida.
Téu-téu - "um homem honesto como não há dois", dizia-me Pelé, a quem eu contratara o reboque. "O senhor deixa dez mil reais em cima da mesa e ele não lhes toca. O negócio dele é furar pessoa" e fazia o gesto de me espetar uma faca na barriga; Chaguinha, tão pequeno como o outro era grande, que governava dez horas por dia com a facilidade e o sorriso com que eu bebo um copo de vinho; Pelé, ex-contrabandista que "só conhecia os portos onde não há autoridades. Os que têm não conheço, nunca lá entrei de barco"; o piloto que metemos para nos ajudar a chegar a S. Luís e que descobrimos que não ia lá havia "mais de quarenta anos". Foi uma viagem maravilhosa, apesar da chuva dentro do barco, das sessões de bomba, da comida pouco apetecível que eles faziam em quantidades gargantuescas e devoram da mesma forma.
A esta viagem seguiu-se outro interregno de dois anos durante os quais atravessei o Atlântico duas vezes, vivi em Palma de Maiorca, de onde levei um barco a motor para a Holanda, fiz uma viagem sublime de S. Francisco, na Califórnia, para o Panamá, onde vivi durante um ano. E fui infeliz, muito. Apesar da viagem pela costa Oeste do continente americano, que me deu a ver mais vida marinha do que outra qualquer, apesar da tripulação magnífica, apesar das duas semanas em Napa Valley, numa marina que cheirava a estrume de vaca e parecia uma peça de Lego que alguém esquecera fora do armário, apesar de tudo, e tudo podia ter sido tão bom. Não foi. Foi. Não foi. Foi.
Este ano voltei de novo ao Brasil, de novo a S. Luís, cidade que detesto particularmente. A construção do barco avançou, mas mais devagar do que eu esperava. A principal característica de quem quer que seja que trabalhe com embarcações - todas, sejam elas à vela, a motor, de recreio ou não - é estar preparado para surpresas. Há quem chame flexibilidade a esta qualidade. Ou adaptabilidade. Ou pragmatismo. Um marinheiro sabe desde que nasceu - desde que os barcos existem - que se quer ir para Norte e o vento está norte pouco há a fazer senão adaptar-se. Vociferar contra o vento, as correntes (ou as mulheres) de pouco serve, ou nada.
Agora estou em Lisboa. Preparo-me tranquila, lentamente, para mudar de vida. É uma perspectiva que me assusta, que não me acolhe de braços abertos. Hesito. A dois anos de felicidade seguiram-se dois de tristeza profunda; quero ter a certeza de que não me engano de novo.
Não sei. Penso nos amigos que fiz em S. Luis, com quem em breve jantarei de novo e declamarei poesia nas ruas da cidade. Penso no mar das Caraíbas, que não serei capaz de deixar, a quem sou indiferente - todos somos indiferentes a todos os mares. Têm mais com que se ocupar, os oceanos, do que com as pessoas inquietas e desassossegadas que insistem em atravessá-los como se do outro lado fossem encontrar coisas e pessoas diferentes das que deixaram, ou eram quando partiram.
Continuo a não ser capaz de me preocupar muito com o futuro: o passado e o presente chegam para me encher os dias e as noites.
Preciso violentamente de mar. Preciso violentamente de mim.
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