Estou em mudanças de casa e de vida. É - ou melhor, tem sido - suficientemente raro para ser registado notarialmente.
25.11.21
Praguês inesperado
Tinha de esperar dezoito minutos pelo comboio e fui comprar um livro à livraria da estação. (É daquelas livrarias de fundos, querida. Os livros são baratos.) Comprei Estrada de Beirute - Uma saga familiar moçambicana, de Gabriel Mithá Ribeiro. (Cinco euros, mor. É o preço de um copo de vinho - que dura muito menos.)
Li as duas primeiras páginas e arrependi-me amargamente da compra. Antes tivesse gasto a massa em vinho. O livro está escrito em acordês, a outra praga dos tempos correntes.
Confesso que não percebo como é que Gabriel Mithá Ribeiro, intelectual respeitável s'il en est, aceita publicar livros em praguês, (de praga, infecção, doença). Mais um que vai para a prateleira dos "não lidos, nunca".
23.11.21
Ser detestado
Entre todas as pessoas que me detestam, bloquearam, pensam que sou insofrível, intolerável e por aí fora há gente com talento, inteligente, culta, educada. Estou-lhes bastante grato.
Seria uma pena que apenas imbecis medíocres, daqueles por quem ser odiado é um dever, me detestassem.
16.11.21
Silêncio, braços
Se por acaso nos meus braços caíres, silêncio, cai de forma a que ninguém te oiça. Como se do silêncio tivesses mais do que o nome, do que a forma. Cai suave, redondo, mudo, aconchega-te, acaricia-me suavemente, não fales nem - sobretudo - me deixes falar. Escutemo-nos um ao outro, que tão bem nos entendemos.
11.11.21
Amor voa perdido
10.11.21
Estes «palermas» que nos governam e os palermas que lhes obedecem
Na verdade, penso que é uma simples forma de gregarismo, de mostrar que fazem parte integrante do rebanho e que estão satisfeitas por assim ser. É como aqueles ciclistas urbanos que trabalham toda a semana num escritório ou numa bomba de gasolina e ao fim-de-semana vestem fatos de licra para montar as suas bicicletas: fazem parte de um grupo, de uma tribo. A proto-religião covidiana deixou de ser uma crença e acedeu ao estatuto de religião pela simples força dos números. No fundo, continua a ser um exercício de pensamento mágico posto em prática. Ou então de palermice, mas nisso não acredito. Vou pôr aspas no segundo palermas do título.
8.11.21
Pérolas da sabedoria marítima
- «Se uma asneira é possível, já a alguém a fez. Se é impossível, algum idiota a fará um dia.»
- «A mais bonita das manobras é a que está na fronteira da asneira.»
- «Um marinheiro sabe fazer tudo, vírgula, mal.»
- «Si tu veux vivre vieux, marin, arrondis les caps et salue les grains.» (Se queres chegar a velho, marinheiro, dá um bom resguardo aos cabos e riza nos aguaceiros.)
7.11.21
Diário de Bordos - Lisboa, 07-11-2021
5.11.21
Casa
3.11.21
Anti-thanatos?
Desço a rua de S. Bento e entro no mercado, quase mecanicamente. As salsichas «100% biológicas» da jovem austríaca que lá tem uma tasquinha são francamente boas, a moça é simpática e - não estraga nada - gira. Bebo uma cerveja ou duas e sou assaltado por uma dúvida terrível: o contrário de «salsichas biológicas» é «salsichas tanatológicas»? E das salsichas passo para tudo o mais «biológico» que nos assombra os dias. Ele é a carne, o vinho, os legumes, os queijos, o pão. Thanatos tem um par em tudo, um pouco como a matéria e a anti-matéria?
Raízes, outra vez
Lisboa anoitece e eu com ela. Calcorreio-lhe as ruas - ainda não sabem se hão-de estar secas se molhadas, a chuva hesita entre cair e ficar queda lá nas alturas das nuvens, (nimbus para quem não sabe) - acompanhado pela minha melhor amiga. Procuramos um sitio para jantar, a chuva decide não nos molhar, não escorrego no pavimento mais seco do que molhado e penso na beleza desta amizade, vasta como a idade (se bem ligeramente mais recente).
Lisboa anoitece, a amizade resplandece, a chuva guarda-se para depois, o vinho é esplêndido e volto para casa a pensar na portabilidade das raízes. Talvez não seja tão grande como a penso, ou desejo.
1.11.21
Viver não é estar vivo
A senhora tem oitenta e um anos, sempre fumou (dois maços por dia) e bebeu o seu copito de tinto. Agora, a filha restringiu-lhe os cigarros e proibiu-lhe o vinho. Diz que é para bem dela (isto é, da senhora).
A qual senhora passa os dias num anseio permanente, a tentar arranjar um bocadinho de tinto e meia dúzia de cigarros.
A filha acha que infernizar os últimos dias da mãe é bom para ela, mãe. Não é. De boas intenções está o inferno cheio. Os últimos dias da senhora são um calvário que - feliz e provavelmente - a crueldade da filha não conseguirá prolongar.
Ideia para disfarce de Halloween: disfarcem-se de anjos. É um disfarce antigo e frequente para a maldade, mas não deixa de ser eficaz. E a mim, pelo menos, assusta-me mais do que a mais feia das bruxas.
Prazos
Acabo a primeira volta da revisão da continuação do Avenida. Com sorte, daqui a uns (largos) meses estará cá fora; em breve, o «RIO CUANZA e outras histórias» estará publicado e nas livrarias. Foi escrito em 2017. Com excepção dos blogues e da imprensa, escrever é uma actividade de prazos longos. Como o amor, o vinho e os filhos.
(Para o T. e a H., com todo o amor do mundo.)
Diacronicidades
Sinto-me na Genebra dos squatters, a que tantas festas fui. Ainda serão assim, hoje? Ainda haverá bares de squatters?
A música era outra, a iluminação idem. Só as pessoas são as mesmas Um bocadinho mais velhas...)
Raízes portáteis
Homens, árvores, enguias, tartarugas... Somos tantos a ter raízes. A diferença é que as nossas são portáteis. Levamo-las connosco para onde quer que vamos. E elas seguem-nos, gratas. As raízes gostam - e precisam - tanto de nós como nós delas. Devíamos era poder transferi-las, emprestá-las, oferecê-las a outros.
Que outros? Quem amamos ou quem detestamos? Quem queremos venha connosco ou quem preferimos deixar onde está? Poderiam as raízes ser como acções de uma empresa, ao portador? Obrigações? Títulos de dívida?
Alguém devia organizar um congresso sobre «Raízes portáteis, raízes transferíveis».
Vícios e vícios
O rapaz era capaz de beber duas garrafas de whisky numa noite, sozinho. "Não era todas as noites", precisa. "Mas quando lhe dava era a sério." Deixou de beber álcool. Há três anos que só bebe água e refrigerantes. "Nem uma gota de álcool", explica orgulhoso.
A temperança também é um vício.