Este post é dedicado ao meu amigo Manuel Monteiro, que reclama quando a dose de Don Vivo tarda. Com um abraço, grande e grat, claro.
Não é por acaso que o charter nasceu nas Ilhas Virgens Britânicas (BVI para os amigos): o arquipélago tem tudo para transformar um cruzeiro de uma semana numa viagem de sonho. Ilhas lindas e próximas umas das outras, praias maravilhosas, bons restaurantes, fundeadouros em tudo quanto é canto, protegidos e bonitos.
Não há, porém, bela sem senão. Em Road Town (nos outros portos passa-se o mesmo, mas em menor escala) os funcionários públicos são de uma arrogância insofrível. Deve haver uma lei que os proíbe de ser simpáticos, amáveis e bem educados. Além de que esta cidade é, ela também, feia e agressiva, mas deixemos os senãos e concentremo-nos no que é bom: as tripulações são impecáveis e os barcos em excelente estado. Tudo indica que a travessia vai ser calma, sobretudo agora que já se decidiu pôr de lado a nvegação de conserva. Manter juntos quatro barcos - para mais, tão diferentes - é um delírio sem pés nem cabeça. Enfim, já está posto de lado.
No mar (28º 05’N, 061º
20’W)
Comecemos pelo
meio, uma vez não são vezes. Como se começássemos pelo cume da montanha e
depois fôssemos às encostas que a ele levaram. Mesmo não sabendo ainda se
estamos no cume ou que vales nos reservam os dias que aí vêm. Comecemos
portanto por este dia magnífico, dezasseis a dezoito nós de vento a um largo
que o DREAM agradece e retribui, voando baixinho e docemente a oito, nove, por
vezes dez nós. Rumo directo, qui plus est. Vento SSW a vinte e oito
graus de latitude? Os deuses resolveram compensar-me, aposto. Entre muitas
outras coisas, da lamentável peça de auto-sabotagem que ontem pus em cena. Bem
podia começar com um daqueles apresentadores de circo, chapéu alto e smoking
de fantasia: «Senhoras e senhores, eis mais uma obra do genial Luís Serpa, mestre
incomparável em tudo o que lhe provoque danos, sejam eles quais forem. Podem
aprender com ele tudo sobre a auto-sabotagem, dos simples começos às teses mais
avançadas. Teoria e prática» Enfim, nada que possa fazer a esse respeito, terei
que viver com este meu dom até ao fim, como sempre vivi. Já nem me chateio
muito. Só um bocadinho.
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Talvez. Ou dos lamentáveis inícios de toda esta viagem, o salário de merda que
aceitei por uma mistura de razões nenhuma das quais me parece válida agora
(excepto talvez a perspectiva de dia assim. Será?), as chatices com a agência
que me paga... Não sei e pouco me importa. Aceito de bom grado a compensação
que os deuses me enviam e espero que venham mais. Largámos há quatro dias,
estamos todos amarinados – enfim, quase todos. O V. continua enjoado como uma
pescada, mas cada vez menos. A. revelou-se uma pessoa impecável e um tripulante
aceitável, o DREAM tem alguns problemas mas nenhum deles muito sério – o mais
chato sendo a falta da bomba de água doce. Felizmente todos conseguimos viver
sem água corrente, como «antigamente». Entre aspas: antigamente a vida não era
melhor. Era igual, só que mais chata. Isto é: menos confortável.
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Estamos a seiscentas milhas de Tortola. Nada mau para quatro dias de mar, sobretudo
se considerarmos que estas milhas são em VMG. Para chegar aqui navegámos pelo
menos umas setecentas. Estes Lagoon são um achado, não há dúvida: rápidos, bem
construídos, bem concebidos. Se alguém souber de um sessenta ou sessenta e
cinco à procura de skipper, conheço um disponível.
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Tenho a felicidade melancólica. Sorte para aquela e azar para esta.
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Não se pode mentir ao mar, não se pode mentir no mar. Ele é um grande
revelador, seja de mentiras seja de verdades. Já aqui o disse uma vez e
repito-o agora: nunca é demais.
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Falemos das encostas: Road Town continua a ser a cidade agressiva, feia, pouco
hospitaleira de sempre. Pelo menos no que toca aos funcionários públicos,
Coitados, devem ser objecto de uma lei que os obriga a ser antipáticos, rudes,
pouco colaborantes (isto é um eufemismo: onde puderem pôr um obstáculo põem
três). Chamar-lhes Pequenos Hitlers é uma ironia de peso: são todos gordos
obesos, arrogantes, mal-criados. Bati o meu recorde: um dia inteiro para fazer
uma clearance de saída. Um dia! Das ilhas, nada a dizer senão bem: Jost
van Dyke, Virgin Gorda... Até Peter Island tem o seu charme. Mas de Road
Harbour livre-nos Deus e todos os santinhos.
Excepção: devia
estar no plural, são muitas. Entre as quais avulta o Pusser’s, um velho
clássico da ilha, onde comemos e bebemos bem.
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Reflexões mundanas de um marinheiro vagabundo: o mundo está cada vez mais
feminino, é ponto assente. Há cada vez mais feministas, outro ponto assente. A
questão sendo: há mais feministas porque o mundo está mais feminino, ou ele
está assim por haver cada vez mais daquelas? Tendo para a primeira mas no mar
não posso investigar muito. E se pudesse provavelmente não o faria: o dia está
realmente demasiado bonito para perder tempo com futilidades.
A única coisa que
me chateia é isto de os barcos serem cada vez mais casas e menos barcos, mas
também a isso resolvo não prestar atenção. A verdade é que uma bomba de água
doce torna a vida mais agradável. Isto é, mais feminina.
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O meu corpo faz-se sentir cada vez mais. À primeira reacção – corpo que se
sente não é boa gente –, contraponho a segunda – corpo que se faz sentir é
porque quer partir. Nenhuma delas é verdadeira, mas a verdade é que dispensava
bem este estúpido formigueiro no braço esquerdo, as «enxaquecas oftálmicas»
(aspas porque cito) e as dores no ombro direito que ainda não apareceram mas
não tardam, eu sei. Estão aí mesmo ao virar da esquina. Este trabalho é físico.
Não sei se também, se sobretudo. Mas entre marear panos e ir buscar água com o
balde o raio do braço não pára. Isto além de ter de o usar para me agarrar
quando me desloco. E Deus (mai-los marinheiros todos, mai-los arquitectos
navais, mais toda a gente ligada a isto) sabe como os movimentos de um cata são
bruscos, violentos, deselegantes e desagradáveis.
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08-05-22, 29º 20’N
058º 51’W
Os crepúsculos
estão consideravelmente mais longos, o que é normal; o vento S mantém-se, o que
é um milagre. Refrescou, inclusivamente: agora anda pelos dezoito a vinte. Resultado:
cento e oitenta milhas por dia. Estamos a mil e seiscentas da Horta. «É fazer
as contas» (aspas porque cito). Claro que isto não se vai manter, mas tudo o
que contribuir para encurtar a viagem é bem vindo.
Paradoxo que estou
longe de ser o primeiro a relevar: gostamos do mar, mas queremos sempre chegar
depressa. Quem diz o contrário ou mente ou não é marinheiro. Não há homem do
mar que não goste de ver o seu bote a dar o máximo. Está-nos no código, desde
que as velas existem e com elas os piratas ou os negócios: o primeiro a chegar ganha
mais do que o segundo e este mais do que o terceiro. Na verdade, esta vida tem duas
componentes: o mar e a vida em si. Estamos a simplificar, quando dizemos que
gostamos do mar. O que realmente amamos é o conjunto: estar e não estar, ser e
não ser. Para a mais ambivalente das personalidades – a do marinheiro – esta
duplicidade só pode ser atractiva. Antigamente dizíamos que um dia bom (no mar)
vale por nove maus. A proporção mantém-se, mas somos mais realistas: quão maus
terão de ser os que aí vêm para compensar estas duas maravilhas, às quais
acresce o bónus da surpresa? Dois dias perfeitos... Vou deixar de falar nisto,
ainda falta muito até à Horta e não quero chamar o azar. O filho da mãe
responde sempre a estas provocações. A beatitude atrai-o.
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A relação com os espanhóis não está a correr muito bem. Estou a
desobedecer-lhes frontalmente. Seguir ordens não me é difícil, desde que façam
sentido. A tal hierarquia do saber, a única a que um marinheiro obedece. Às
outras pode fingir que obedece, mas respeitá-las não.
A verdade é que dos
cinco barcos iniciais já só estamos três. Um veio por cargueiro e o outro teve
de voltar para trás e ficar em Road Harbour por manifesto mau estado. As
tripulações são porreiras, mas estão mais perto de escuteirinhos do que de
marinheiros. Daí as dificuldades com a agência: não sabe lidar com a sua
própria ignorância, por um lado; e atribui demasiado peso ao dinheiro, por
outro. Os escuteirinhos lá vão dizendo que sim ou tentando contemporizar. Pela
primeira vez na vida, tive de dizer «ou me pagas o que deves ou não saio».
Pagaram, claro. Quase tudo, vá. Deixei-lhes uma folga: toda a gente sabe que um
cabo demasiado caçado parte. A ver se eles sabem. Na Horta reajustaremos as
amarrações, se for caso disso. Trabalhar a meio preço chateia-me, mas está
digerido. Agora fazer palhaçadas não. Queriam que eu esperasse pelo monocasco,
para lhe fazer companhia, coitado. Dizem que por causa dos seguros. A minha avó
também dizia que era malabarista num circo. Não era.
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09-05-2022 (30º 37’ N 056º 11’ W)
O milagre continua,
mas hoje já há sinais de que vai acabar em breve. Talvez amanhã, talvez depois,
mas este mar cruzado não engana. Se tudo correr bem, vai rondar a leste e vou
poder subir para norte sem usar o motor. A ver, como dizia o ceguinho. E nos
trinta e oitos estarão os canónicos Oeste à minha espera e ooops, num ápice
estaremos todos no Peter a beber gin, que isto das tradições tem que se lhes
diga e são de respeitar.
O DREAM é um barco
misterioso. A. diz que é feminino (todos são, A.). De repente e sem que nada se
tenha feito para isso o anemómetro começou a funcionar. Foi posto de novo em
Road Harbour, mas continuou a não dizer peva sobre o vento. Agora diz. Também
as baterias rejuvenesceram e aguentam muito mais tempo do que nos primeiros
dias. São animais misteriosos, estas. Caprichosas. Ignoro que Deus interveio em
meu favor, mas a verdade é que estou a usar o gerador muito menos (PS – talvez
os painéis solares com Sol ajudem, não?). A bomba de água doce é que não há
maneira. Já pedi ao V. para encomendar uma nova na Horta, se bem esteja longe
de seguro de que o problema venha daí. Mas mais vale gastar dinheiro numa bomba
e ficar com ela de reserva do que passar dias e dias à espera caso seja mesmo
essa a razão. Navegar é a arte de conciliar opostos, aposto que já alguém o
disse. E se não disse pensou.
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A glicemia continua a cair. Acho que nem vou dizer ao médico, não vá o homem
«proibir-me» de tocar numa gota de vinho ou de rum. E encho-me de doces, ainda
por cima. Brincadeira, claro. Na verdade já estávamos à espera disto, ele e eu, e até vinha com
instruções para cortar nos comprimidos caso baixe demasiado. Um já foi e o
outro não tarda. O stock que tenho na caixa fica para a Horta, que bem vai ser
necessário.
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Cada vez que ralho contra a modernidade vem-me o GPS à mente. Quando lhe dou o
uso que dou aqui, penso que só um idiota diz mal de um tempo que nos trouxe tal
ferramenta. Saber em permanência a posição, o rumo e a velocidade é o sonho de
qualquer marinheiro desde que há marés.
Este é um B&G
igual ao que pus no P.
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Falo no P. de propósito: posso sair dele, mas não há quem o tire de mim. Estava
a precisar de vir para o mar, essa é que é essa. Quatro anos em terra é muito
tempo. Tenho de o pôr a navegar, presto. (Para não mencionar a glicemia,
naturalmente, para a qual o mar é o melhor remédio).
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Não tentar aproveitar ao máximo o potencial do barco é desperdiçar vento. Ou
seja: é pecado mortal. De todos os desperdícios, o de vento é o pior.
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O aquecimento global continua a ter uma concepção muito particular e exclusiva
de «global»: é onde eu não estou. Tem estado um frio de rachar, agravado agora
por estarmos de vento sul e nem assim ele ser quente.
De todos os mitos
do nosso tempo, este é o que mais me irrita. Supor que o clima muda por causa
do homem é de uma húbris insuportável. Mesmo aceitando que sim, que é
antropogénico e que são os puns das vacas, os escapes dos automóveis e as
pegadas ecológicas que fazem o clima mudar – ignorando olimpicamente o facto
lhano e inegável de que o clima sempre mudou (talvez devido aos puns dos
dinossauros, vá lá saber-se) – a verdade é que querer alterar a nossa vida de
alto a baixo tem custos infinitamente superiores. E quem vai pagá-los, quem é?
Adivinharam: não são os ricos.
O anticapitalismo
provoca mais miséria do que o dito cujo que pretende combater.
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Estou com dois cobertores dobrados e mesmo assim a noite tarda a aquecer-me. A
mim e a ela de resto. Ó dona Noite, veja lá isso, senhora. Chegue-se a mim,
aconchegue-se, aqueça-nos dos pés às almas. Se tanto é que tem vocemecê uns e
outra.
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(12-05-2022, 35º
37’ N 48º 36’ O)
Hoje passámos a
barreira dos quatro dígitos na distância ao objectivo. Daqui a novecentas
milhas só teremos dois; noventa milhas mais tarde, um. O declive da encosta
acentua-se, para contrabalançar o dito chinês (já aqui tantas vezes
mencionado): «Metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.»
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O marinheiro tem dois mundos: o mar e o outro. Não se tocam, nem de perto.
Basta ver as minhas preocupações de momento:
- A minha R., rosa de vida, minha canoa;
- O meu neto Leonardo (adoro este nome), mai-los daquele lado;
- O meu P.;
- Guerra na Ucrânia – o Putin já se apercebeu de que tem de levar nas trombas?
Pena que sejam precisos tantas mortes.
- A mascarada. Os meus amigos pró-Covid que fui perdendo ao longo desta
pantomimada já se aperceberam de que foram engrolados? Perdi tantos e de quem
gostava tanto.
- Mértola & Moura...
Isto em terra. No
mar:
- Onde raio de carga de água estão os fluxos de Oeste? (Repetir três vezes);
- Vou aguentar o gasóleo até Gibraltar? Espero que sim. Mesmo quando o dinheiro
não é meu, pagar impostos altos e mal utilizados é imoral;
- O sacana do puto é mole como melaço. Já o médico é porreiríssimo;
- Quando é que entra o raio do noroeste? (Repetir três vezes);
- A electrónica vai aguentar?
- Terei lugar na Horta? Deixar-me-ão ficar de braço dado? (Reservar uma
amarração);
- Está a entrar norte. Não tarda tenho aí o noroeste (repetir três vezes);
O marinheiro –
também já aqui o tenho dito – é o equilíbrio entre um conjunto vasto de
opostos: é sociável e egoísta, é gastador e poupado, cobarde e valente, gosta
de prever tudo e adapta-se a tudo, sabe que é o elo mais fraco da cadeia e é
também o mais forte, «sabe fazer tudo vírgula mal». Um equilíbrio? Talvez mais
um desequilíbrio. Este é só mais um: não se pode dizer que seja «um pé no mar o
outro em terra». É «os dois pés no mar e os dois em terra, simultaneamente.»
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O noroeste entrou, um bocadinho mais cedo do que o previsto e fraquinho, ainda.
Que longe estamos do Mediterrâneo, com as suas mudanças bruscas e definitivas.
Aqui tudo é gradual, tanto as subidas como as descidas.
(50 nós previstos
para Domingo ou Segunda. Que seria de uma travessia sem badanal?)
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Mudança de rumo: afinal vamos para Ponta Delgada e não para a Horta.
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13-05-2022 (35º 53’ N 046º 22’ O)
Arrastamo-nos a
três nós e a cinquenta graus do rumo. O que me trouxe aqui? Uma série de más
informações. Telefone satélite sim, sem dúvida. Mas para ser utilizado por mim.
Isto é, usá-lo eu para procurar informação e não para a receber vinda de quem
não sabe dá-la.
Estou furioso.
Desliguei os motores: só estávamos a gastar gasoil, do qual vou precisar para a
chegada. Quarta-feira dezoito estarei atracado no porto de Ponta Delgada, se as
porras das previsões todas se confirmarem. Se não se confirmarem, não estarei.
Mas pelo menos fui eu que as fui buscar, não fulano ou sicrano.
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Não vai haver badanal nenhum. Falso alarme. Isto é, aparentemente. Por estas
bandas nem o passado é garantido, quanto mais previsões incertas.
Com a possível excepção
do frio: está um briol do caraças e isso sim, é garantido. Alguém ligue o
aquecimento global, por favor. Ou pelo menos o local, que com o mal dos outros
posso eu bem.
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Entretanto (são duas da tarde) entrou vento. Infelizmente de SO; sempre é melhor
do que nada. Vinte nós pela alheta. Estamos a avançar bem, mas a trinta graus
do rumo. As coisas são o que são.
O barómetro
continua a baixar, tão depressa como ontem ou anteontem subiu. Vamos ver quem
tem razão, se o Garmin – diz que não vai refrescar muito mais, mas vai rondar a
NNO -, se o D., que prevê trinta e dois nós no domingo. Infelizmente não me dá
a direcção. Esta malta da Tripulaciones é tudo muito boa gente, mas de
marinheiro tem pouco. Em Road Harbour pareceu-me um bando de escuteirinhos.
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Ansioso por chegar e dar um beijo à minha R.
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14-05-2022 (N 36º 47’ O 46º 13’)
O que me vai ficar
desta viagem? Até agora: o frio e o sacana deste mar desencontrado que temos
desde ontem. O cata é horrível nestas circunstâncias. Anda bem, é certo – mas
mesmo assim menos do que o que deveríamos para este vento.
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16-05-2022 (N37º
27’, O 35º 07’)
O badanal passou.
Ficou o frio e este NO lindo, vinte e cinco nós, céu limpo, mar ligeiramente
menos caótico. O DREAM chama-lhe um figo, claro: galopa por aí fora a mais de
dez nós. Ainda vou ser capaz de ganhar a minha aposta e chegar quarta-feira?
Depois de amanhã? Parece-me difícil, sobretudo porque o vento vai cair de
certeza. Fica a esperança, que nunca é feia.
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As baterias ressuscitaram, definitivamente. Não chego a fazer quatro horas de
gerador por dia, o que para os frigoríficos e para o piloto nestas condições é
bastante bom.
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Ontem, A. perguntou-me se havia ar quente a bordo, para secar o oleado. Se
tivesse que resumir a atitude do homem – de resto adorável – durante esta
viagem usaria este momento de alta dissonância cognitiva. É certo, e aí dou-lhe
razão, que o barco parece uma casa: três frigoríficos, um congelador, gerador,
dessalinizador (nunca usado), ar condicionado (idem – terá ar quente?) As
pessoas querem uma casa no mar, não querem barcos.
PS – A pergunta não
é de todo absurda. Absurdo sou eu e a minha mania de que o mar é o mar e a
terra terra e não se misturam, excepto nos portos e nas praias. (Gosto muito
daqueles e pouco destas, mas isso fica para depois.)
Tê-lo de quarto ou
a ajudar a uma manobra ou ter a fotografia dele seria a mesma coisa. Mas é
simpático, adorável, boa companhia. Já rizámos e desrizámos algumas seis ou
sete vezes e continua a perceber patavina do que se passa, a não saber o que
é uma escota ou uma adriça. Decorou o amantilho, vá lá.
Há pouco a escota
da genoa rebentou porque... Porque estava velha, pronto. Fica assim e fica bem.
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Vou fazer pão. O último antes de Ponta Delgada. Até agora têm ficado bons. Pena
é a manteiga que temos a bordo ser uma merda. Quase tudo o que comprámos em
Road Harbour é. O leite de leite só tem a cor. lhas francófonas, meu caro.
Francófonas.
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18-05-2022 (50 milhas a Oeste de S. Miguel)
Quatro horas
debaixo de chuva. Há muito tempo que não tinha as mãos tão engelhadas como tenho
agora. E molhadas: já as sequei duas ou três vezes à toalha, mas cinco minutos
depois voltam a ficar molhadas, como se a água lhes tivesse passado para o
interior e agora jorrasse através da pele. Felizmente o Henry Lloyd faz jus ao
nome. As Dubarry também. Isso sim, foi um presente, Vasco. Mudam a vida, como me
disse o biólogo marinho que há anos veio comigo para Copenhaguen. Obrigado, mil vezes mais vezes.
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Afinal vamos chegar mais cedo do que pensei: este dezoito nós de vento ajudaram
bastante, apesar de terem começado em SSO e já estarem em SE. Desde que não
fechem mais, tudo bem: às oito ou nove da noite estarei atracado e com a minha
canoa nos braços.
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O post vai como saiu do forno. Um dia será editado, corrigido, revisto,
polido, limado e até, quem sabe?, pintado. Mas agora vai assim, tem urgência em
sair, em fazer aquilo que fazem as palavras: exporem-se. E exporem-nos, de
caminho. Como feridas a sangrar, fragilidades, pontos de ruptura ou de fricção
com o mundo real. Pelo menos as palavras de um diarista. Mas aqui entre nós:
qual é o escritor que não é diarista?
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Quarto de noite: três horas a olhar para o horizonte e para um ecrã cheio de
números, alternadamente. Isto não significa que o ritmo seja rápido: um desses
números é um relógio e toda a gente sabe quer o tempo é tímido. Não aguenta
miradas frequentes ou insistentes. Se se olha demasiado para ele, pára
congelado e não se mexe até o esquecermos.
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Está um tempo abominável. Parece que estou no norte da Europa. A diferença
sendo que naquelas bandas chegaríamos a um café e ele estaria aquecido e aqui
vai estar tão frio como no exterior. Enfim, na cidade estará de certeza mais quente.
É o chamado aquecimento urbano, ou aquecimento bem educado. Daqui a três ou
quatro horas terei rede GSM. Vou finalmente regressar ao outro mundo, o mundo
secundário.