Talvez devido às nossas origens animais, temos tendência a ver um refúgio como um lugar físico, uma paisagem, uma casa, uma gruta. Não é necessariamente assim: podemos por exemplo refugiar-nos na música (particularmente na de uma cantora de jazz chamada Jeanne Lee; na música medieval e mística de Hildegarde von Bingen; na 5ª sinfonia de Mahler; ou em tantas outras). Podemos também refugiar-nos no álcool, especialmente no vinho ou no whisky, numa tentativa camusiana - isto é, inútil mas necessária - de afogar os demónios; podemos refugiar-nos nos livros, num corpo feminino (desde que esse corpo tenha uma alma, porque um corpo sem alma não é um refúgio, é um poço, é como cair a um poço). Muitos de nós refugiam-se na solidão: não é um bom refúgio, para mim. É o lugar da memória, da abjecção (“Solo una cosa no hay: es el olvido./ Diós, que crió el metal, crió la escória / y cifra, en su profética memória / las lunas que seran, y las que han sido”, dizia esse outro gande refúgio argentino.
A depressão é um refúgio, também; o pior e o melhor deles: o mais doloroso, mais cruel, mais indescritivelmente maldoso mas também o mais eficaz, porque nos isola de metade do mundo, do prazer, da felicidade e só nos deixa a miséria. A depressão é como ter que andar com uma fractura exposta que não se vê, não se vêem as feridas dilaceradas, não se vêem as carnes rasgadas, não se vê o sangue, não se pode cortar o mal pela raiz sem cortar o mal tout court, nem a raiz. A amizade tão-pouco é um bom refúgio: não depende só de nós e num bom refúgio devemos ser autónomos, por definição. Sozinhos.
(Alguém dizia que a liberdade é a possibilidade de cada um escolher as suas própias prisões; um refúgio devia ser a versão optimista de uma prisão - como se houvesse versões optimistas do que quer que fosse...)
Mas enfim, devo reconhecer que tenho um refúgio secreto em Portugal e que esse refúgio é um lugar físico: é o mar; em especial aquele pedaço de mar que vai do Cabo da Roca ao Cabo Raso, do qual nunca me canso, no qual nunca me canso. Gosto do contraste entre as linhas verticais do cabo (que não são bem verticais, são oblíquas e um pouco grosseiras, como se estivesse a chover rocha) e a curva graciosa e horizontal da praia. Gosto do Guincho a pé, a cavalo ou de bicicleta, de carro ou de avião. Gosto de passar o Raso quando venho a navegar do norte porque é quando se começa a cheirar a terra e a serra de Sintra tem um cheiro bonito, a pinhais e a maquis – um pouco como o da Córsega, mas mais bonito, porque esta é a minha terra e o cheiro vem carregado de passado; o da Córsega só tem presente. Gosto de estar no mar a olhar para a terra e na terra a olhar para o mar. Gosto do Guincho nos dias de vento, que são muitos e nos dias sem vento, que são mágicos. Gosto do Guincho aos domingos, nos dias de procissão automóvel e às segundas-feiras à noite, quando não há ninguém para ver o facho luminoso do farol apontar para a América, para o mundo. Isto apesar de não gostar de praia. Mas o Guincho e aquela zona da qual ele é a alma, se não o centro, não é só uma praia: e ainda bem, porque como praia deixa um pouco a desejar, não é?, com aquelas correntes, a água glacial, as rochas, as ondas desencontradas, o vento.
Gosto daquele bocadinho de mar porque nele me refugio desde a infância e os refúgios da infância nunca mais nos abandonam, sejam eles uma paisagem ou uma cabana nas árvores. Gosto daquele bocadinho de mar: é nele que gostaria de me refugiar, um dia. Para sempre.
Grande texto. Brilhante
ResponderEliminarObrigado.
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