Talvez seja a sorte do principiante; talvez seja apenas uma sequência de má sorte; talvez seja simplesmente uma sequência de acasos sem sortes nem azares. Talvez não seja sequer acaso e tenha havido instruções superiores: já vou no terceiro revisor seguido que me recusa a transição para a primeira classe. Começa por «Tenho de ir perto da bicicleta» e depois desfiam um colar de razões, como se rezassem o terço - cada um tem as suas, diferentes das do anterior. Resultado: faço a maior parte da viagem no bar, a ocupar indevidamente uma mesa mas com ainda mais espaço e conforto do que na primeira - e igualmente longe da burra, coitada, que ali ficou amarrada com o cadeado. Desde «se acontecer qualquer coisa o senhor tem de estar perto da sua bicicleta» até «se vem aí um chefe sobra para mim» (verbatim), passando por «não há lugares disponíveis em primeira» já ouvi de tudo. . Só o futuro dirá, que o passado é mudo, toda a gente sabe.
Já sobre o atraso do comboio - vem de Valença e chega a Caminha, meia dúzia de metros depois, com mais de cinco minutos de atraso. Chegaremos a Lisboa vinte minutos depois da hora, no mínimo, e meia-hora em média. Ou sobre a ovalização das rodas. Ainda hoje comentava com a L. a desilusão que foi para mim a primeira vez que andei num TGV: vai-se a quase trezentos quilómetros por hora e não se sente a velocidade. Nestes comboios, a partir de cinco quilómetros horários (passe a piada) parece que vamos a trote num cavalo jovem.
O que não me impede de continuar a gostar destes trajectos. Agora, por exemplo, atravessamos um banco de nevoeiro e a paisagem desfila por trás de uma cortina de gaze, como se quisesse fazer-me concentrar no que escrevo e não perder-me em contemplações e pensamentos sobre o meu horror à névoa, o que eu a detesto quando estou no mar, por muitos radares e AIS e olhos que tenha a bordo. Aqui não: é quase confortável, se bem a carruagem do bar não tenha o aquecimento ligado, suponho que por causa de não quererem que as pessoas façam a viagem aqui sentadas com bilhetes de segunda classe...
A verdade é que prefiro cinco horas num comboio ao mesmo tempo num avião, se bem num caso o destino seja Lisboa e no outro pudesse ser, sei lá, talvez Cabo Verde ou Turquia ou outra coisa qualquer. Tenho para mais um ano de viagens e depois farei como o outro: viajarei à volta do meu quarto. Ou à volta do meu apartamento em Vilarelho, abençoado seja, que vai acolher os meus livros, a minha escrivaninha e o meu futuro, tudo junto e por atacado. Ou melhor: atado com os fios do passado.
Como eu costumava dizer: vou pôr o meu passado em ordem. (Duvido, mas isso fica para depois.)
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Março é mês de aniversários na família (são três) e a minha filha L. decidiu fazer uma festa única. Quis a sorte que eu possa estar presente. Enfim, não: quis a sorte que eu possa sonhar em estar presente. Só logo à tarde o saberei ao certo. Não sou religioso nem crente mas há momentos em que me apetece sê-lo. Quando navego no nevoeiro, por exemplo. Ou quando espero a certeza de poder celebrar estes aniversários todos em Genebra.
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Saída na Campanhã com quinze minutos de atraso. Talvez a CP devesse actualizar os horários, não? Ou então mudar o nome para SNCF(Pt).
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No Porto mudou o revisor e a sorte voltou. Para além de um bilhete de primeira classe fui recompensado com uma extrema gentileza (extrema mas, é preciso dizê-lo, frequente nestes senhores revisores) e uma explicação para os atrasos nos comboios. Parece que é só na linha do Minho e são devidos a ser via única. Ou seja: tudo volta ao normal. O mundo recompõe-se. Posso deixar o bar e ir para o meu lugar. Posso acreditar que o nevoeiro se levantará em breve. E que a saloiice do «cuidado com o espaço entre o degrau e a plataforma» um dia acabará, juntamente com o «portuguesas e portugueses», como muito razoavelmente mas sem exclusividade pede o MAB hoje no Facebook. É uma expressão que me faz dar saltos a cada vez que a oiço. Antigamente os políticos falavam bem e o povo tentava imitá-los. Agora falam ao nível do povo. Ou melhor: daquela parte do povo que é ignara.
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Lisboa
Vinte e três minutos de atraso. Respirei aliviado: na estação do Oriente pensei que chegaríamos com menos de vinte minutos de atraso, mas vá lá. A CP manteve garbosamente a média (a qual, verdade seja dita, é estimada).
Depois foi o adorável trajecto de Sta. Apolónia até ao Cais do Sodré. Choque de realidade: vou ao quiosque de S. Paulo, dantes um templo da boa e barata comida de rua. Paguei nove euros e noventa cêntimos por um copo de vinho tinto e uma empanada. Nove e noventa, assim discriminados: três e noventa e cinco a empanada - que estava boa até eu lhe ver o preço - e cinco e noventa e cinco por um copo de Papa-Figos, também e mais justamente conhecido por Papa-Tolos.
Sou liberal e aceito isto facilmente de um ponto de vista ideológico. Mas sou também um teso e revolto-me: mais um dos meus antros aos quais não poderei regressar tão cedo. Saudoso Maria Rapaz a dois euros, saudosos ovos verdes a não sei quanto mas pouco.
Agora, Cascais. Senhora, porque me cascais? (Senhora pode ser substituído ad libitum.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.