São nove da noite. A esta hora estou ou a dormir ou a pensar no que fazer para dormir. Agora não. Penso que tenho de dedicar este post à B. A. P. e à L. C. B. (por que raio de carga de água temos tantos nomes, nós portugueses?) e é por aqui que começo, Bárbara, Luíza. Ou começo antes? Cheguei a casa e fiz um café, uma coisa do Congo que comprei em Fort-de-France e que é bastante bom, ma parole. E depois pus a Hildegarde von Bingen não sei cantada por quem, mas pouco importa. E fiz um ti'punch com um rum da Habitation La Favorite e despi-me, inundei a casa de anti-mosquitos e penso que tenho de tomar um duche antes de ir para a cama mas depois pergunto-me «quem é que quer palavras lavadas?» e continuo a escrever e quero que o duche se lixe. As palavras querem-se feias, ninguém gosta de palavras bem penteadinhas, como meninos que saem de casa para a escola. As palavras querem-se à vinda, joelhos sujos e camisas rasgadas.
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E são essas as palavras que se me acumulam, como se a porta da escola estivesse fechada e os putos todos quisessem sair e lutassem para ser os primeiros.
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Cheguei ao Marin faz hoje dez dias. Talvez onze. (Onze, fui ver.) À chegada tive o barco cheio de bombeiros, primeiro. Era preciso levar a Nigist para o hospital. Levaram-na. Depois chegaram os polícias. Era "preciso" levar a Mihret, o Amanuel e o pequeno Nehemiah para o posto do aeroporto («posto» é um eufemismo para prisão, se por acaso). Na sua grande generosidade, o chefe do dito concedeu um visa temporário à Nigist e ao filho, a fim de conseguirem um visa para St. Lucia. Ninguém imagina a violência que é para mim estas pessoas que precisam de um visa para ir à casa de banho. O homem é por natureza livre e qualquer entrave a essa liberdade - seja ela uma fronteira - é uma violação.
O resto da semana foi passado entre o «posto», sito no aeroporto, o hospital, o consulado de St. Lucia em Fort-de-France. Isto estando no Marin, a trinta e qualquer coisa quilómetros e duas horas de carro. Preciso da ajuda da Hildegarde que agora canta pela voz de alguém: consegui. Consegui tudo: o visa para a Nigist e para o seu filho, trocar as datas dos bilhetes do ferry, levar comida e roupa aos «prisioneiros», convencer o chefe da polícia que aquilo era boa gente, acompanhá-los ao ferry, consegui os papéis do hospital. Consegui. Puta que foda a puta da vida. Consegui. Foram horas ao volante, horas a falar com funcionários para quem esta história cheirava a uma versão mal cozinhada de ET, horas sem dormir, horas a ouvir «sir...» mas foda-se, consegui. A prova está agora a Hildegarde a fornecer-me-la. Halleluijah!!!
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Depois, ao contrário do que queria, não consegui repouso. A culpa não é minha, é do meu Pai, da porra dos genes, não sei de quê. Mas não me queixo: amanhã tenho o dia para mim. Só tenho de ir buscar a roupa à Roseline - uma senhora que faz milagres, se por acaso alguém precisar dos serviços de uma lavandaria no Marin - antes das sete e meia da tarde. Chateia-me porque queria passar a soirée em Fort-de-France mas paciência. Há pior. Vou almoçar de novo no Impératrice a menos que o Pain de Sucre esteja aberto, o que é pouco provável. Vou passear de carro sem me preocupar com os excessos de velocidade.
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Não percebo uma coisa: se eu vou depressa demais (na opinião deles) e tenho de pagar uma multa, porque é que quando vou devagar demais (ditto) eles não me reembolsam o dinheiro da multa? É como nos aeroportos: um gajo tem quilos a mais e pumba! mas quando tem quilos a menos nada, zero, nix. Puta que pariu as assimetrias.
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De maneira estou em casa a beber ti'punch e a ouvoir Hildegarde von Bingen, mistura que poderia parecer surpreendente não fora a porra dos dez ou onze dias que acabo de passar.
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O pior não são os dias. É eu gostar deles.
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Não sei se alguma vez pensaram na problemática da idade. Eu penso, às vezes. Noventa e nove por centos delas não é um «problema».Um por cento é. Agradeço muito a estes um por cento, quando acontecem. Também agradeço à senhora, sentada na mesa ao lado da minha e acompanhada que me provocou tão ternos sentimentos.