30.12.25

Diário de Bordos - Gustavia, St. Barth, França DOM-TOM,

Não escrevo, não fotografo e não penso. Só fumo e trabalho e perco a cabeça, alternadamente. Não sei que mal fiz eu a Deus ou ao Freud ou a quem quer que seja para só me saírem borderline na rifa. Desta vez é a stew, que me tem envenenado a vida para além do que é suportável, aceitável ou acreditável. Claro que isto tudo é culpa da RN, a estúpida empresa para a qual trabalho, devido a esta habitual mescla de estupidez e necessidade, tão ligadas como um dedo e o anel de casamento, também conhecido por aliança. Necessidade e estupidez são uma espécie de Yin e Yang da minha vida.

De maneira aqui estou em St. Barth, aonde a clearance de um cata de quarenta e seis pés custa cento e setenta euros (o normal oscila em torno dos quinze), uma imperial seis e aonde acabo de ver o BLACK PEARL e o MALTESE FALCON juntos e ao vivo, a desenrolarem os panos a uma milha de mim.

Gustavia - a capital de St. Barth - é uma cidade simultaneamente linda e detestável. Não é um oxímoro: são categorias diferentes. Cada vez suporto menos esta mistura de Pradas, Vuittons, Zadigs e mai-los raios que a partam. Vale o extremo bom gosto que as senhoras ostentam generosamente. Se pudesse pesar a quantidade de mamas meio despidas que já vi andaria com um saco às costas maior do que o do Pai Natal em início de tournée.

Vá lá que ao menos os clientes são porreiros, duas famílias canadiano-americanas. Entre os adultos há dois cirurgiões e uma médica creio que generalista, três miúdas adolescentes que ontem se produziram para jantar em terra como eu já não via há muito tempo e rapaz, também ele simpático e educado. O único problema é a maldita música, claro, mas essa é uma guerra perdida. As agências de charter deviam fazer um desconto aos amantes de jazz ou de música clássica. De boa música, em geral. 

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Encontrei um café quase vazio aonde a cerveja custa o preço acima mencionado. Nos outros é mais cara e estão cheios. E este barman é super-simpático (é o proprietário. Acaba de me contar as horas de trabalho que faz. São como as mamas das senhoras: excessivas.)

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Já não tenho nada que fazer em terra mas resolvi ficar até à próxima boleia para bordo, que não sei a que horas será. A parte feminina da tripulação resolveu vir às compras. Suponho que vão comprar metade da cidade, a julgar pela quantidade de malas que trouxeram para uma semana nas Caraíbas. 

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O bar chama-se La Cantina e recomendo-o fortemente, se por acaso.

20.12.25

Diário de Bordos - Anse Marcel, Saint Martin, DOM-TOM França, 20-12-2025

De regresso a Anse Marcel, aonde em Abril tão bons momentos passei. A praia continua convidativa mas desta vez nem fato de banho trouxe, de maneira o objectivo é claro. Ou melhor, os objectivos: chatear a empresa para que me mandem dinheiro, beber cerveja (pouca, que é Carib) e planteur, escrever postais e disparates (não é um pleonasmo, ao contrário do que se poderia pensar), experimentar a nova objectiva e - sobretudo - imaginar que flutuo num largo rio que me atravessa e deixar-me levar por ele, nele.

Ao meu lado I. trabalha, concentrada e eficazmente. Agradeci-lhe ter-me dado o fim de de dia de ontem; estava (ainda estou) a precisar de estar sozinho mas seria inaceitável não a trazer. Acresce que ela gosta de praia e entre dois menus (tem um charter a começar dia vinte e cinco) dará um mergulho ou dois. Infelizmente não poderei comer aqui, isto é exageramente caro mas não muito longe há um chiringuito - aí sim, um chiringuito. Isto é um beach club armado ao pingarelho.

Abençoado pingarelho, abençoados alísios, bendito mar, benditos azuis, o do céu e os do mar. Benditos momentos, poucos que sejam.

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É um prazer ver I. trabalhar. É um prazer conviver com ela. É inteligente, articulada, culta. E bonita, o que não estraga nada, muito antes pelo contrário. Só lhe faltam trinta anos. Ou então sou eu que os tenho a mais, não sei.

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Ontem o restaurante indiano em Philipsburg levou-me, mal entrei, ao Indian Club em Londres, aonde o pedófilo do Gandhi ia discutir a independência da Índia. Ao princípio - isto é, durante os primeiros anos que lá ia eu, não o Mahatma - era óptimo. Depois estragou-se e a última vez que lá fui o jantar foi intragável, se bem me lembro. Seria preciso pesquisar este verdadeiro baú que é o DV, quase a fazer vinte e dois anos de vida. De vidas. E esperar que não aconteça o mesmo ao Shiv Shakti.

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Em Genebra dava aulas de vela com um aluno que já tinha a carta necessária. As autoridades genebrinas consideraram que o curso da escola náutica era suficiente para navegar no lago mas com barcos a motor. Para veleiros necessitava de outra carta. Precisava de ter alguém com carta a bordo. Quando naveguei na marinha mercante não fiz os tirocínios para passar de praticante a terceiro piloto, apesar de ter as horas ou milhas mais do que suficientes. Toda a minha vida naveguei baseado naquilo que sei e não no que os papéis dizem que sei. Infelizmente, o real tem mais força do que eu e estou agora a pedinchar, é este o termo, que a DGRM me forneça equivalências porque os papéis pesam cada vez mais nesta balança. Viver fora da caixa é muito bonito - até que a caixa te apanhe. Depois é uma seca.

Maldita modernidade. Puta que pariu o tempo - o dos outros, quero dizer. O teu é muito bom. Ou foi, vá lá saber-se.

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Todas as épocas são assim: expulsam quem nelas já esteve quanto basta. É por isso que acho estúpido esta merda de prolongar a vida, de «cuidar de si».  Vive, homem. Quando chegar a tua vez o tempo se encarregará de te dizer que chegou e abre-te a porta para que saias graciosamente. 

19.12.25

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, DOM-TOM França, 19-12-2025

Cheguei ao Marin no dia dois deste mês. Passaram dezassete dias. Costumo dizer que se deve mudar de vida de dez em dez anos (máxima essa que não aplico desde dois mil e dez, já lá vão quinze, mas isso por agora é irrelevante). Por quantas vidas passei nestes dezassete dias? A família etíope levou-me aos meus tempos de UNHCR / CICR. Lidar com pessoas vulneráveis, vítimas de burocracias e de egos, perdidas num mundo que não é o delas; depois, o reencontro com o meu filho T. no Marin; e depois ainda o regresso ao normal: transporte para as BVI, voo para St. Martin aonde tenho de esperar quatro dias porque não há aviões para a Martinique, reencontro com o J., cada vez mais igual a ele-próprio. St. Martin no Natal: um dia para encontrar dois quartos de hotel (por sorte, na primeira noite consegui um quarto para os dois no Centr'Hotel, uma «júnior suite» (aspas porque cito) com duas divisões, tudo isto a um preço Centr'Hotel: mais do que correcto. Depois é que foram elas. I. encontrou um quarto no Shrimpy's, uma crew house que faz parte do imaginário mítico de St. Martin; e eu um quarto  em Concordia, está longe de valer o preço mas é o que há. En attendant: rhum punch no Lagoonies e na D'Beach, ontem um jantar no L'Authentic - agradável descoberta - e hoje visitas aos ships e depois excursão a Philipsburg.

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Volto ao Boolchand's com o pretexto de comprar um estojo para a máquina e como não havia saio com um zoom 12-28. Não é grande coisa mas também não foi muito caro e para o escasso uso que lhe vou dar serve perfeitamente. Fico com focais de 12 a 180, se bem com aberturas muito variáveis. 

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Philipsburg subiu bastante na minha consideração: fomos almoçar a um restaurante indiano chamado Shiv Shakti. A I. também gosta de comida indiana e regalámo-nos os dois. A melhor refeição indiana em muito tempo. 

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A minha luta com a RN continua mas tudo indica que a estou a ganhar, pouco a pouco. Veremos, como dizia o ceguinho à mulher que era surda. Cada vez suporto menos trabalho mal feito, atabalhoado, amador. E cada vez me sinto mais excluído deste mundo para quem só a forma conta, as «qualificações», os papéis. Como não estar do lado dos etíopes? E como não pensar que a culpa é minha, que vejo esta merda deste nevoeiro chegar há tanto tempo e não fiz nada?


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A I. é adorável e inteligente. Hoje percebeu que eu precisava de um momento sozinho. Aposto singelo contra dobrado que ela também, de maneira ficou no Shrimpy's e eu venho ao Arhawak beber uma cerveja e comer uns nems. Ainda estou cheio do almoço. Amanhã vou à praia. Isto é, vou para o chiringuito da Anse Marcel tentar não pensar no Y., que está no Marin a ser reparado pela M. Hoje passei horas ao telefone com ela e parece-me que está a fazer um excelente trabalho. Amanhã haverá mais e no domingo verei.

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Sinto-me no meio de um jogo de Tetris em que as peças não têm todas as mesmas formas.

Sorte

Com um bocadinho de sorte, amanhã poderei escrever.

Para descrever será preciso muito mais do que um bocadinho.

13.12.25

Intuitivamente

Ainda não percebi bem se o papel da memória é dar cabo do presente ou de o realçar. Intuitivamente, diria que é os dois, alternadamente. 

Do mar e das mulheres da nossa vida

Estava a sonhar com ladrões. Imaginei que amanhã o dia seria meu. Só meu. Todo meu. Não vai ser. Terei de ir verificar o nível das baterias. Que sorte! Um passeio em dinghy... Separarmo-nos do mar é pior do que separamo-nos da mulher da nossa vida. Ela só fala. O mar nem de falar precisa para nos prender.

Balanços

Tomar um duche grosso em terra é como tomar um sóbrio no mar. Não vale sequer a pena perguntar porquê.

Eleni, Hildegarde e o tempo

Passo da Hildegarde para a Eleni Karaindrou por razões que têm a ver com a memória e a má consciência. Andam muitas vezs juntas, essas duas cabras. Não sei. Não há rum que chegue para me dar uma resposta. Só o tempo, se eu viver tempo que chegue.

Equivalências, sortes

Domingo vou para Road Harbour. É um dos sítios das Caraíbas que mais detesto. É-me difícil perceber porque estou tão contente. Difícil?

Não é o destino que conta, estúpido. De qualquer maneira não vais sequer ter tempo de ver aonde estás. É sair de bordo, ir buscar as injecções e os sapatos de que te esqueceste e correr para o aeroporto para voltar para o mar. O mundo devia ser feito de mar. Ou de amor, é quase a mesma coisa.

Se tiveres muita sorte, vais ao Purser's beber um rum. Muita sorte.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 12-12-2025

São nove da noite. A esta hora estou ou a dormir ou a pensar no que fazer para dormir. Agora não. Penso que tenho de dedicar este post à B. A. P. e à L. C. B. (por que raio de carga de água temos tantos nomes, nós portugueses?) e é por aqui que começo, Bárbara, Luíza. Ou começo antes? Cheguei a casa e fiz um café, uma coisa do Congo que comprei em Fort-de-France e que é bastante bom, ma parole. E depois pus a Hildegarde von Bingen não sei cantada por quem, mas pouco importa. E fiz um ti'punch com um rum da Habitation La Favorite e despi-me, inundei a casa de anti-mosquitos e penso que tenho de tomar um duche antes de ir para a cama mas depois pergunto-me «quem é que quer palavras lavadas?» e continuo a escrever e quero que o duche se lixe. As palavras querem-se feias, ninguém gosta de palavras bem penteadinhas, como meninos que saem de casa para a escola. As palavras querem-se à vinda, joelhos sujos e camisas rasgadas.

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E são essas as palavras que se me acumulam, como se a porta da escola estivesse fechada e os putos todos quisessem sair e lutassem para ser os primeiros.

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Cheguei ao Marin faz hoje dez dias. Talvez onze. (Onze, fui ver.) À chegada tive o barco cheio de bombeiros, primeiro. Era preciso levar a Nigist para o hospital. Levaram-na. Depois chegaram os polícias. Era "preciso" levar a Mihret, o Amanuel e o pequeno Nehemiah para o posto do aeroporto («posto» é um eufemismo para prisão, se por acaso). Na sua grande generosidade, o chefe do dito concedeu um visa temporário à Nigist e ao filho, a fim de conseguirem um visa para St. Lucia. Ninguém imagina a violência que é para mim estas pessoas que precisam de um visa para ir à casa de banho. O homem é por natureza livre e qualquer entrave a essa liberdade - seja ela uma fronteira - é uma violação.

O resto da semana foi passado entre o «posto», sito no aeroporto, o hospital, o consulado de St. Lucia em Fort-de-France. Isto estando no Marin, a trinta e qualquer coisa quilómetros e duas horas de carro. Preciso da ajuda da Hildegarde que agora canta pela voz de alguém: consegui. Consegui tudo: o visa para a Nigist e para o seu filho, trocar as datas dos bilhetes do ferry, levar comida e roupa aos «prisioneiros», convencer o chefe da polícia que aquilo era boa gente, acompanhá-los ao ferry, consegui os papéis do hospital. Consegui. Puta que foda a puta da vida. Consegui. Foram horas ao volante, horas a falar com funcionários para quem esta história cheirava a uma versão mal cozinhada de ET, horas sem dormir, horas a ouvir «sir...» mas foda-se, consegui. A prova está agora a Hildegarde a fornecer-me-la. Halleluijah!!! 

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Depois, ao contrário do que queria, não consegui repouso. A culpa não é minha, é do meu Pai, da porra dos genes, não sei de quê. Mas não me queixo: amanhã tenho o dia para mim. Só tenho de ir buscar a roupa à Roseline - uma senhora que faz milagres, se por acaso alguém precisar dos serviços de uma lavandaria no Marin - antes das sete  e meia da tarde. Chateia-me porque queria passar a soirée em Fort-de-France mas paciência. Há pior. Vou almoçar de novo no Impératrice a menos que o Pain de Sucre esteja aberto, o que é pouco provável. Vou passear de carro sem me preocupar com os excessos de velocidade.

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Não percebo uma coisa: se eu vou depressa demais (na opinião deles) e tenho de pagar uma multa, porque é que quando vou devagar demais (ditto) eles não me reembolsam o dinheiro da multa? É como nos aeroportos: um gajo tem quilos a mais e pumba! mas quando tem quilos a menos nada, zero, nix. Puta que pariu as assimetrias.

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De maneira estou em casa a beber ti'punch e a ouvoir Hildegarde von Bingen, mistura que poderia parecer surpreendente não fora a porra dos dez ou onze dias que acabo de passar.

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O pior não são os dias. É eu gostar deles.

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Não sei se alguma vez pensaram na problemática da idade. Eu penso, às vezes. Noventa e nove por centos delas não é um «problema».Um por cento é. Agradeço muito a estes um por cento, quando acontecem. Também agradeço à senhora, sentada na mesa ao lado da minha e acompanhada que me provocou tão ternos sentimentos.

10.12.25

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-12-2025

Um gajo pensa em tudo aquilo por que acaba de passar e começa a elaborar uma estrutura para a narrativa. De repente cai-lhe um raio em cima. Morreu a C. P-C.  O gajo sabe que não é uma grande surpresa mas sabe também que é injusta, surpresa ou não. Há mortes que não são uma filha da putice? Há. Esta não é uma delas. A cabrona leva os melhores de entre nós até morrermos e só aí reequilibra a média. Puta que a pariu, à morte.

Foi ela também que ceifou a minha Avó Filipa antes de eu a poder levar a comer um linguado ao Leão D'Ouro. Não é só a morte que é filha da puta. 

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Tive de voltar ao hospital para pedir um papel sobre o internamento da Nigist. «You are a miracle worker», diz-me a Brooke. Não sou nada. Sou um worker e já é muito.

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Tenho rum a bordo (branco), hoje comprei café decente - vem do Congo - e chocolate negro. O motor carrega as baterias. É um mistério para mim, isto de os armadores não instalarem painéis solares.

Tudo é um mistério para mim, na verdade. Até eu. Até a raiva que agora sinto, como se não fosse mais do que de vida. Puta que a pariu. Deixei de gostar de chocolate negro.

8.12.25

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 07-12-2025

Tenho direito a dois finalmentes: a familia etíope está reunida em St. Lucia e eu estou sozinho a bordo. O segundo não vai durar muito tempo: amanhã às nove já tenho de ir buscar a rapariga da limpeza. E depois terei muito trabalho com os barcos. Não terei tempo para parar dois dias, alugar um quarto no norte da ilha e dedicar os dias a dormir, beber rum e escrever (ao mesmo tempo, claro). Mas bom, sejamos optimistas. Com sorte, amanhã conseguirei ir a Ses Salines. Não é o norte da ilha, é aqui ao lado, mas como toda a gente sabe o que se tem é melhor do que o que se quer ter.

Ou seja: amanhã de manhã há trabalho. À tarde também, eu darei parte de doente e irei à praia. Tão certo como chamar-me tio Patinhas.

A máquina principal está a trabalhar para carregar baterias. O grupo não funciona. Já no L. do M. é a genny quem se esforça. Deixei-a sozinha, coitada. Devem contar-se pelos dedos de uma metade de mão as vezes que eu deixei uma máquina, seja ela principal ou auxiliar, a trabalhar sem eu estar a bordo. Mas pronto, alguma vez será a primeira. Ou segunda, vá lá saber-se. Amanhã vou dormir para o L. e o grupo lá vai trabalhar para alimentar o ar condicionado,  tão glutão. E eu a dormir. 


PS 08-12-2025 - Hoje não há Ses Salines para ninguém. Está de chuva.

7.12.25

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 07-12-2025

Venho deixar a Nigist ao terminal de ferries. No caminho, a senhora desfaz-se em agradecimentos e a certa altura oferece-me um pequeno souvenir. Diz-me que o seu filho gosta muito de animais mas que ela me vai oferecer este para que eu me lembre deles. É uma tartaruga. Não há maneira possível no mundo para ela saber que a tartaruga é o meu totem. Estou comovido para além do que é descriptível.

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Isto dito, eu sei que fiz muito por eles, não vale a pena entrar em falsas modéstias. Mas tão pouco é necessário exagerar: fiz aquilo que penso que devia fazer. Aquilo que a minha humanidade pensa que deve ser feito. «Sou humano e nada do que é humano me é estranho». Brooke (a «mãe adoptiva» deles, senhora de religião), pensa que não. Pensa que eu sou um instrumento de Deus que lhes apareceu. (Nigist pensa a mesma coisa. Queria ter uma conversa teológica comigo, mas eu cortei. Deus não é para aqui chamado.) Brooke é elaborada. Diz que há muitos humanos que fazem mal uns aos outros. É verdade. A humanidade é feita de Bem e do Mal. Assim mesmo, com maiúsculas. Brooke diz «Sim, mas tu és do bem. É uma escolha e tu escolheste-a.» Claro que sim. Escolhi a decência, termo que prefiro a Bem. Uma das provas de que Deus não é para aqui chamado é que é uma luta permanente. A decência não é uma pomba que nos pousa na cabeça - e às vezes, quando pousa caga-nos em cima. 

6.12.25

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 06-12-2025

Não sei por onde começar, portanto começo pelo fim. É quase uma da manhã. Estou no Marin, a esperar que o Diego e o Fernando acabem de preparar um jantar, a olhar para a marina - não há um pingo de vento e as luzes da metade superior da paisagem reflectem-se na àgua, como se o universo fosse simétrico, coisa que não é de todo. À chegada tínhamos os bombeiros, que levaram a Nigist para o hospital. A seguir, o Kokoarum já tinha a cozinha fechada.  Depois,  apareceram oito PAF (o equivalente

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06-12-2025

Adormeci com o telefone na mão. Ainda bem: o fim estava muito longe. Ainda não chegou, sequer, se bem o último acto esteja a meio. Estou no terminal de ferries de Fort-de-France para mudar os bilhetes da Nigist e do Nehemiah de terça-feira para amanhã. 

Como dizem futebolistas e pornógrafos, passe o pleonasmo, só conta quando está lá dentro. Neste caso, quando estiverem primeiro dentro do ferry que os levará a St. Lucia e depois dentro da casa que ali alugaram e aonde já estão a Mihret e o Amanuel. Só então poderei respirar fundo e encomendar a piscina de rum em que me quero diluir, lenta e metodicamente.

Só depois, também, poderei contar a história destas duas últimas semanas. 

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A distância entre Le Marin e Fort-de-France é de trinta e três quilómetros. Em condições normais o trajecto faz-se em duas horas, mais ou menos meia hora. Quando não há engarrafamento, leva-se três quartos de hora, uma hora. Às vezes acontece. É um trajecto apaixonante. Os limites de velocidade mudam de quinhentos em quinhentos metros. Setenta, cinquenta, oitenta, noventa, setenta, cinquenta o mais das vezes sem uma razão perceptível. Acoplado a meia dúzia de radares, este método faz milagres. Não para a segurança, claro, mas para as finanças das comunes que a estrada atravessa (ou quem quer que seja que recebe o guito das multas).

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O bilhete está mudado. Embarcam amanhã. 


(Cont.)

1.12.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025 / II

A situação da senhora complicou-se bastante durante o dia e acabei por ter de lhe dar um anti-emético. Instruções do Cross - Antilles Guyane que tive de chamar, Allahu Aqbar, continuam a fazer um trabalho sublime. Injectável, claro, é o único que tenho a bordo. Depois da injecção dada, N. diz-me "you did a great job". O cumprimento encheu-me mais de alívio do que de orgulho. Se não é a primeira injecção que dou na vida é a segunda e disto tenho sérias dúvidas. Valeu-me lembrar-me ainda das aulas de medicina e primeiros socorros da então ENIDH (hoje acrescentaram-lhe um S, para fazer daquilo uma escola superior). A senhora dorme, sob a supervisão da irmã e do cunhado, a quem dei instruções para a acordarem uma vez por hora e trocar com ela algumas palavras para avaliar a sua reactividade.

Agora há que gerir o tema do médico à chegada. Tudo menos que me ponham de quarentena não sei quantos dias ou semanas em Rodney Bay. É pouco provável mas não é impossível. 

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São momentos como este, ou quando estamos num squall ou numa tempestade, ou quando temos de nos encavalitar no galope de um mastro a vinte metros de altura com força seis, ou quando temos de resolver um problema qualquer no mar que justificam o salário que ganhamos. 

Os outros, os dias a saltar de fundeadouro para restaurante de luxo pago pelos clientes também; só que a razão é menos aparente: isto é tudo óptimo até alguma coisa correr mal. Por isso me irrito quando aceito um trabalho com um salário baixo, como é este, que aceitei por causa do Panamá e agora estou em negociações com a empresa para ficar por estas bandas. Vamos ver.

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Como, de resto, só amanhã veremos se geri isto tudo correctamente ou não. O mundo da navegação é um mundo lento, como se ao espaço da relatividade, para definir o tempo, tivesse de se juntar o mar. Há sempre um amanhã e até ele chegar o hoje não se percebe bem. Só no fim da regata ou no fim da viagem saberás se a tua opção de hoje foi a correcta. Amanhã. 

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Amanhã? Amanhã chegamos a Rodney Bay. Depois? Logo se vê. Vamos para o Marin, isso é de certeza. A questão é saber quando. O que vai depender dos senhores da imigração em St. Lucia. Cujo humor vai depender de uma série de outras coisas. Ou seja: prever o futuro nesta actividade é como ir a um desses charlatães que prevêem o futiuro numa bola de cristal. Partida.

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PS - isto hoje vai para o ar quase sem correção. O dia começou às três da manhã e são agora onze da noite. Se ninguém me acordar antes, às seis estarei de novo a pé. E ainda há quem pense que ganhamos muito.