20.4.04

Tubarão

O tubarão corria, apavorado. Tinha fugido dos contos de Maldoror e ouvia hordas de Lautréamonts a correr atrás dele. Entrou num restaurante chinês, onde lhe serviram um escelente Mei Kwei Lu. "Estou salvo", pensou. Respirou fundo e estendeu-se um pouco mais na cadeira. Assim que adormeceu os chineses cortaram-lhe as barbatanas e, por generosidade, fizeram com elas uma magnífica sopa. Quando acordou, o tubarão viu que não tinha barbatanas, o que o aborreceu bastante; mas também viu que estava vivo. "Que se lixe, não preciso de barbatanas para nada". E foi-se embora, a coxear.

Um senhor convidou-o a beber um copo, e ele aceitou. "Afinal ainda há gente boa no mundo!" Contudo, o senhor era proprietário de um snack-bar chamado "The Yellow Shark", cuja especialidade eram os bifes de tubarão, com música dos Beatles aos altos berros. O homem era míope e a casa cheirava a comida que tresandava. A mulher tinha mau hálito, e o empregado, alcoólico, costumava fornicar as clientes que lho pediam em cima do bar na sala ao lado.

Quando acordou, o tubarão viu que lhe faltavam metade dos lombos - e que ainda estava vivo. Continuou a procurar uma razão para viver e um médico honesto. Não encontrou nem uma nem outro, claro. Dias mais tarde, alguém lhe tirou a pele para fazer lixa; resolveu voltar aos livros (este tubarão era um sobrevivente, um objecto de estudo em todas as pesquisas sobre a resiliência), mas só encontrou um texto medíocre, uma sátira mal feita aos Contos de onde, alguns anos antes, ele tinha saído. "Será que ninguém quer um tubarão usado?"

O Conde de Lautréamont não. Nem ouvir falar dele sequer: "foi o tubarão mais estúpido que me passou pela páginas", dizia. Porém, atrás do Conde vinha uma personagem do Roald Dahl que costumava cortar dedos aos proprietários de isqueiros que não acendiam mais de 99 vezes seguidas. E atrás desse, o Oncle Oswald, a tentar sacudir uma leprosa que se agarrava a ele como um boxer à perna de um maquinista da marinha mercante na costa de Moçambique, onde só os Rodhesian Ridgeback tinham o direito de se agarrar às pernas fosse de quem fosse, desde que fosse negro, e nunca oficial num navio da Companhia Moçambicana de navegação.

O Oncle Oswald resolveu ir às trutas no Doubs, e foi comer à Tante Yvonne. Esta, antes de o servir, fez-lhe uma felação soignée. O vinho branco estava bastante fresco, e o Doubs respirava sol. Yvonne foi para a cozinha despejar o esperma nas trutas para que estas ficassem bem peganhentas - ela sabia que Oswald gostava delas assim.

Entretanto, a leprosa desencaixava vaginas, umas atrás das outras. Contei sete, cónicas, feitas em aço inoxidável. Quando as tirou todas descobri que era um homem; tarde demais: disse-lhe para voltar a pô-las e fiz-lhe um cunnilingus acompanhado com champagne Charles Bertin, uma boa relação qualidade/preço para esse efeito. Quando terminei, a leprosa transformara-se numa imensa bolha especulativa.

Kurz, na selva, espetava mais uma cabeça num pau, e Lord Jim deixava-se apanhar por um bando organizado de coolies que traficavam ficções de outrém para ontem. Naipaul e Theroux discutiam num canto: era o princípio do fim de uma tão bela amizade. Theroux voltara de África, onde descobrira que os cenários podem não mudar, mas os filmes sim. Naipaul, em Kisangani, contava histórias ao Mobutu enquanto este a fazia e condenava o seu povo a uma miséria, passe a expressão, negra. Em Lubumbashi, nascia uma jovem senhora chamada Tschombé a quem Dylan Thomas dedicaria, provavelmente, o seu livro "The Map of Love", o qual começa assim: "Because the pleasure-bird whistles after the hot wires / shall the blind horse sing sweeter?" A resposta é não, claro: o cavalo cego está num pub chamado Pig & Pigeon a beber cerveja Courage e a cantar laudas à vida. Hoje, Tschombé cavalga ventres masculinos e leva-os às estrelas, enquanto estuda história africana na universidade. Se é que se pode chamar Universidade àquilo: uma sequência de pavilhões em ruínas enttre os quais os alunos e professores plantam milho. Tem, contudo, uma linda vista sobre a região circundante.

Dylan ele-mesmo lia em voz alta poemas aos clientes:

"Lie still, sleep becalmed, sufferer with the wound
In the throat, burning and turning. All night afloat
on the silent sea we have heard the sound
That came...

...all the from China
and you know you have no love to give her
and she tells you you've always been her lover
because you touched her perfect body with your perfect mind"

Dylan já não conseguia ler. Foi beber whisky. Como não tinha dinheiro, pagou ao barman assim:

"Too proud to die, broken and blind he died
The darkest way, and did not turn away.
A cold, kind man brave in his burning pride

On that darkest day. Oh, forever may
He live lightly, at last, on the last, crossed
Hill and there grow young, under the grass, in love.

...
Go calm to your cruxifixed hill, I told

The air that drew away from him."

O barman não aceitou "Elegy" em pagamento, e o Dylan mandou-o lixar-se. Foi para o México disfarçado de Cônsul. No Doubs, Tante Yvonne continuava a fazer felações e trutas sublimes, aéreas. Resolveu escrever um livro chamado "Histoire de la Felation". O título era um erro: ela queria dizer "Histoires de la Felation", mas como não sabia escrever muito bem tirou-lhe o S. Óptima ideia: 30 anos mais tarde, num outro país do terceiro mundo europeu, estalou uma polémica por causa de um "erre" - que não era "erre", mas sim "erro". Esse país era rodeado por um mar chamado Défice, no qual se banhavam umas coisas em forma de espermatazóide chamadas "políticos". Esses "políticos" mexiam-se muito porque eram realmente espermatazóides, mas provinham de um eunuco (era um eunuco com tomates) pelo que apesar de se agitarem bastante não procriavam. Do outro lado do mar Défice havia o oceano Europa, e comunicavam os dois, segundo o princípio dos vazos comunicantes.

Entretanto o sol resolveu ir ver a execução pública do cavalo cego, que também não tinha massa para pagar a prodigiosa quantidade de whiskies, Piñas Coladas e Alexanders que, para aparar a dor, bebera depois das cervejas. O cavalo aparava dores e golpes habilidosamente, mas acabou por sucumbir à pressão popular. Com a retirada do sol o país ficou às escuras, o Cônsul ficou sem cavalo (branco), o Thomas sem cavalo (cego), o arrumador de carros do Jardim da Estrela sem cavalo (tout court) e nós, o leitor e eu, sem paciência.

É verdade que o cavalo branco do Cônsul era simbólico, ao contrário dos outos dois, mas isso não chega para nos devolver a paciência. Entretanto, um poeta português chamada Reinaldo Ferreira dizia que "a vida é um vôo cego a nada" e exortava o cavalo (seria o cavalo branco?). "voa, cavalo, galopa mais / rumo àquele ponto, exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais".