O ano de dois mil e vinte e três, um dos piores da minha vida - que, de passagem seja dito, conta muitos muito maus - prolongou-se por dois mil e vinte e quatro, com algumas hesitações. No dia vinte e um ou dois de Outubro culminou - ou, se preferirem uma linguagem mais astronómica, atingiu o nadir - e suicidou-se. A partir de agora nada poderá ser pior, salvo duas ou três excepções que não quero sequer mencionar.
Pouco a pouco, penosamente, faço o luto daquela mochila e do que ela continha. Todos os dias sou confrontado com a sua falta e todos os dias encontro uma alternativa. Pouco a pouco vão aparecendo ideias, planos para o futuro, promessas - tal e qual como a decisão de publicar o Avenida nasceu de uma experiência horrorosa. É curioso: este tipo de situações devia dar origem a monstros e não dá. É mais parecido com uma mudança de agulhas numa linha de comboio. Dessas decisões, uma é importante: banir a palavra projectos do meu léxico. Náo há projectos. Há planos e ideias e seja eu cego, surdo e mudo se alguns desses planos e ideias não se concretizarem. Talvez uma melhor analogia seja a do tremor de terra: a baixa lisboeta é o que é hoje graças a um deles. Veremos, daqui a um ano.
Entretanto vou redescobrindo uma Palma de que já tinha perdido o hábito: procurar sítios aonde possa escrever sem ter o meu próprio acesso à rede. Exercício curioso, interessante. A net faz a uma cidade o mesmo que a bicicleta. Isto é, tal como a cidade muda consoante se está de carro ou de bicicleta.
Acabei no Capuccino da Sant Miquel, o café mais bonito de Palma. Tem tudo menos um wifi que funcione, pelo menos na mesa aonde eu estava, perto da porta para ver a burra. Acontece porém que tudo isto começa a ter datas. Dia dez terei de novo um cartão suíço. Dia vinte e tal terei um computador. Ou seja: o futuro próximo está balizado. É como entrar num porto que não se conhece com mau tempo: ir olhando para as bóias e ter calma, refrear a impaciência.
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O epicentro da minha Palma é o Mercat del'Olivat e será esse também o do livro sobre Palma que decidi escrever. É fácil: basta ir ao blogue e a primeira metade já está feita. E às fotografias, antes que elas desapareçam da «cloud».
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Como um Rimbaud ao contrário.
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Alguém um dia perceberá a relação quási incestuosa que há entre o mar e o tempo.
E que eu sou um produto dessa relação.
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A quantidade de dinheiro que gastei hoje poderia ser qualificada de insensata, se não tivesse sido gasta em livros e comida (no sentido lato, muito lato).
O rum e a literatura competem afanosamente pelo meu dinheiro. É uma competição sem descanso. Os livros levam sistematicamente a melhor, o que de certa forma é compreensível: o rum é uma necessidade, os livros são um luxo. É portanto compreensível que gaste mais nestes do que naquele (apesar de conter um vasto leque de ingredientes, como vinho tinto, vermute, hierbas, palo, cerveja. Até ingredientes sólidos inclui!, como a maravilhosa sandes de morcela que hoje foi o meu jantar na bodega Bellver, bendito sejas, Cliff). Já de livros a variedade não é tão grande: três de poesia e um do Baricco sobre música cujo título é um sonho: El alma de Hegel y las vacas de Wisconsin.
Poesia: Sobre los placeres de la vida, Anonimo (Anacreonte); Libro del frío, Antonio Gamoneda; Rubayyat, Omar Khayyam (Jayyam, na versão espanhola). O programa também é vasto, poder-se-á dizer.
Resta-me esperar que esta competição continue por muitos anos.
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XXIV
Otro erótico
Otorgó cuernos a los toros
Natura y pezuñas a los caballos,
raudas patas a las liebres,
a los leones dentadas fauces,
a los peces el nadar,
a las aves el volar,
a los hombres el pensamiento.
Para las mujeres nada tuvo.
¿Qué les otorga? La beldade
por todo escudo
y por toda lanza.
Pues vence tanto a hierro
tanto a llamas con ser bella.
VIII
Al vivir sin envidias
No me importa la riqueza de Giges,
de Sardes soberano,
ni aún la envidia me invade
ni ambiciono ser rey.
Proprio es de mi con perfumes
mi barba embardunar,
proprio es de mi con rosas
mi cabeza coronar.
Me importa el hoy.
¿Quién conoce el mañana?
Mientras aún haya tranquilidad,
bebe, lanza los dados
y alza ofrendas a Dioniso.
No sea que te alcance la enfermedad
y digan «te prohíbo beber».
Anacreonte, in Sobre los placeres de la vida, Anonimo, ed. Los secretos de Diotima,