10.4.10

Táxis, ilusões de óptica, metamorfoses

A circular por Lisboa a toda a velocidade, num táxi voador. "Voa, táxi, galopa mais, desce às camadas da cidade sem fundo, para onde tendem as solidões". "Oh, mãe, quando é que me ensinas a comer com pauzinhos?" O miúdo pergunta mas a mãe não tem coragem para lhe dizer "eu também não sei, filho" e balbucia qualquer coisa mais ou menos ininteligível do género "mas aqui é difícil, filho". Não percebi bem, e pouco me importa. O miúdo é gordo, obeso, mas apesar disso a mãe deixa-o comer profiterolles à sobremesa. Estou febril, com fome, com vontade de rir do que me aconteceu hoje. Disse ao táxi "ande por todas as ruas que conhece cujo nome começa por P", mas ele pensou que eu estava a gozar ou bêbedo. Perguntei-lhe "quer que eu lhe pague 20 euros adiantados?" "Sim", claro. Eu paguei, e quando chegámos à rua do Patrocínio disse-lhe "fico aqui, se faz favor" e como o taxímetro só indicava quatro euros e cinquenta cêntimos ele perguntou-me se eu queria o troco. Eu disse-lhe "guarde o troco, senhor chauffeur, guarde o troco", assim mesmo com o chauffeur em itálico, espero que o homem tenha percebido.

O restaurante é muito bom, kitsch como todos os restaurantes chineses devem ser, até tem uma árvore lá dentro, de plástico, claro, ou borracha ou o raio que a parta mas come-se bem, realmente bem.

A senhora fala com o filho que terá para aí oito anos, talvez nove (com os gordos nunca se sabe) como se ele fosse um adulto atrasado mental com quem ele deve fazer cerimónia. Não é de estranhar que o puto seja obeso. Eu não: sou gordo, mas é uma gordura sã, daquelas que nos mandam desta para melhor num ápice, se Deus quiser. O que me impressiona cada vez que vou a um restaurante chinês em Lisboa é as pessoas não saberem comer com pauzinhos. Não há uma única mesa, uma só que seja, a comer com pauzinhos. E com uma tigela em vez de prato então ainda há menos.

"Voa, táxi, voa depressa". O Mei Kwei Lu é servido nos copos apropriados, pequenos e com uma senhora nua no fundo, que só se vê quando o copo está cheio. Continuo a circular no táxi, "quero um táxi de várias cores, quero que ande depressa porque vou partir para prados cheios de flores e só um táxi de várias cores pode servir". De repente parece-me ver Z. entrar. É possível que seja ela, mora ali perto. Como seria, se lhe encontrasse o marido e lhe dissesse "não percas a tua mulher, porque pessoas como ela não há muitas nos perdidos e achados"?

Estou a 200 à hora em Lisboa, mas afinal não era a Z., nem a A. nem a B. nem o alfabeto inteiro. Era uma ilusão de óptica com duas pernas feias e uma cara bonita. Contrariamente a Z., cuja cara só era bonita quando se a via por dentro (também de passagem seja dito, são as únicas que interessam). Continuo no táxi; agora recitamos os dois, o chauffeur e eu, o poema de Reinaldo Ferreira:

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sózinho
Sem um cavalo de várias cores?


Ele sabe-os todos de cor. Acelera, faz as curvas com os pneus a guinchar, passa sinais encarnados ou, pelo contrário, fica neles parado tempos sem fim.

Mínimo sou, começa,
mas quando ao nada empresto, continuo;
os dois: a minha elementar realidade
num grito, em uníssono o nada é só o resto.

Os outros condutores olham para nós: estamos num semáforo há pelo menos duas mudanças de luz; ninguém ousa buzinar. A cidade cala-se. Arrancamos. A noite é propícia a ilusões de óptica. "Devíamos esperar pelo dia".

Juro que foi isto que ouvi: "devíamos esperar pelo dia" (este texto é o relatório hiper-realista do que me aconteceu hoje entre as nove da noite e a meia-noite; não iria mentir). Mas a voz tinha mudado, e o condutor do táxi também. Agora já não era um chauffeur, mas uma chauffeur. Uma mulher. Que me dizia "devíamos esperar pelo dia" com uma voz grave; ou melhor: rouca. Mais rouca do que grave.

Sou muito sensível à voz das mulheres; e as vozes roucas atraem-me de uma forma dificilmente explicável. Havia uma, antigamente, que dava aulas de português na Internet. Nunca lhe vi a cara, mas ouvi-lhe a voz, muitas vezes. Era especialista em português e em música bantu; e criava (ainda cria; não morreu, graças a Deus) caracóis. Tinha uma voz extraordinária, mágica, grave e rouca. Há muito tempo que não a oiço, essa voz. Pelo que hoje, quando o condutor se metamorfoseou em condutora e me disse, com uma voz quase, quase igual "devíamos esperar pelo dia" eu pensei "claro". São vozes que nos impedem de pensar, notem: vão directamente à parte irracional de cada um de nós (não é irracional, é tectónica).

De maneira quando a senhora me disse aquilo eu pensei "claro" e disse "sim". E logo a seguir: "deixe-me descer, por favor". Mas já era tarde.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.