7.12.10

Talento, prazer e música no mercado

A cena precisaria de um Fellini, ou, noutro registo, de um Kurosawa; ou do Jorge Amado, claro. Infelizmente era eu que lá estava, e não saberei reproduzi-la. Mas posso tentar.

O restaurante (algumas mesas num dos cantos do mercado) La Maison, sito no Marché Couvert do Marin, onde de novo me encontro, acolhe quotidianamente, ao almoço, um grupo de velejadores, turistas poupados (e conhecedores), jovens empregados locais; e um outro, pouco variável, de aproximadamente meia dúzia de bêbedos locais. Há poucas interacções entre os dois grupos, para além de um eventual diálogo ao balcão quando uns vão buscar a comida e outros a bebida - os Ti'punch são servidos de acordo com a regra local "cada um prepara a sua morte", pelo que a garrafa de rum, o açúcar e a lima ficam à vista, e cada um os prepara e se serve como gosta. Ainda não percebi como são feitas as contas, mas como aquilo está ali todos os dias presumo que as senhoras do restaurante não perdem dinheiro.

Hoje, o outro grupo contava uma presença nova - um senhor que era visivelmente cantor profissional, ou pelo menos tinha uma formação musical. Estava a cantar à desgarrada com um outro senhor, este cliente habitual e, infelizmente, menos dotado. A actuação do grupo lá ia, com os habituais soluços destas cenas: os restantes membros intervinham ligeiramente fora de tom, havia muitas dúvidas sobre as letras, e discussões sobre a próxima interpretação.

Eu estava mais ou menos ocupado com a minha cerveja, o chili con carne créole  e  o entrecosto que a senhora, generosa e gentilmente, acrescentara no meu prato, já de si bastante cheio diga-se de passagem - esta simpatiza bastante comigo, e acha, justamente se calhar, que quem tem uma barriga como a minha deve sustentá-la (a barriga); pelo que falhei o princípio. Mas, de repentemente, o senhor que sabia cantar zangou-se. "Laaaaaaaaaaa" cantava - suponho que em la, não sei - "laaaaaaaaa"; o tom ia descendo, tornava-se cada vez mais grave, mas a nota era a mesma. O outro, incapaz de seguir, abanava a cabeça. "Laaaaaaaaaaaaa" - agora as mãos acrescentavam um elemento visual: ora, as duas palmas viradas uma para a outra, faziam um gesto como se fossem um porta-voz; ora, uma imóvel,  mais ou menos ao nível do lábio inferior, palma para cima, e a outra ao nível do lábio superior, palma para baixo desenhava uma curva descendente, à medida que o tom ia baixando - era extremamente poderoso e sugestivo, o efeito; quase se via o som. Mas o outro não seguia e resolveu recomeçar a música onde a tinha deixado (eram cânticos de Natal, e a cena no seu conjunto bem mais agradável que os de Grenada).

Pelo que se zangaram, e o senhor que cantava "laaaaaaaaaaaaaaa" foi ao balcão buscar mais uma cerveja, o outro foi fazer um Ti'punch, e o resto do grupo desinteressou-se da música. A minha surpresa foi, portanto, grande e agradável quando vi que, bebidas as bebidas, tudo voltou ao statu quo ante: um bom cantor, outro mau, um bando de bêbados em agradável e fraternal convívio, o resto de mercado a rir e a interpelar ocasionalmente os artistas (em todos os sentidos do termo "artistas"), e um observador atento e solitário a pensar no talento que lhe falta para descrever isto como deve ser, e a mandar o talento para a pata que o pôs, ele, talento. Escrever bem é muito mais difícil do que navegar à vela, mas tentar dá quase tanto prazer.

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