9.2.11

Renata

Não sei se ainda existe um bairro em Atenas chamado Plaka. Antigamente era onde ia beber café “grego” (as aspas servem para assinalar o cuidado necessário para não se dizer “turco”. Arriscávamo-nos a ser sumariamente expulsos do local, se cometêssemos esse erro de base) acompanhado por um brandy áspero. Nos passeios estreitos velhos sentavam-se horas e horas a discutir política. À noite iam para casa e a Plaka era invadida pelas hordas de turistas “intelectuais”, que transportavam dentro de si, todos, um Leonard Cohen à espera de ser descoberto e sonhavam com a autenticidade.

Ia lá encontrar-me com uma jovem checa, ou eslovaca – não me lembro, nessa altura não havia diferença – muito loira, muito bonita, chamada Renata. Assim mesmo – Renata. Se calhar era romena, não sei.

Alta, magra, estudara uma coisa qualquer que terminava em “logia” e começava por psico, antropo, sócio ou algo no género. Encontrávamo-nos ao fim dos respectivos dias de trabalho – ela trabalhava naquilo a que agora se chama um hostel, e na altura pensão barata; e eu num restaurante onde um grego obeso e mudo me explorava selvaticamente; em inglês o homem só sabia grunhir, mas em grego falava num tom odiosamente meloso. Não percebia o que dizia aos clientes, mas via bem a atitude dele, os sorrisos deles. Nojento.

Encontrávamo-nos na Plaka, Renata e eu, sempre no mesmo sítio – um café do qual o dono tinha vivido nos Estados Unidos e que passava jazz num gravador roufenho. O cheiro a tabaco – e nessa altura ainda fumava – era insuportável. Os “café brandy” sucediam-se; o cheiro a tabaco e o barulho dos copos e das conversas misturavam-se e entranhavam-se-nos pela roupa, até às tripas.

Eu estava perdidamente apaixonado por Renata, pelos seus olhos claros, pela sua voz, sobretudo: grave, rouca, directa – Renata nunca hesitava numa frase, nunca procurava uma palavra. A voz saía-lhe profunda e fluida como se tivesse estudado o que ia dizer há semanas. Ela falava um inglês melhor do que o meu, muito melhor; e eu apercebia-me claramente da sua impaciência quando procurava o termo certo, a formulação adequada.

Renata não estava apaixonada por mim tanto quanto eu por ela. Situação banal, dir-me-ão. Noventa e nove por cento da literatura desabaria, se os amores fossem equilibrados, simétricos, “amáveis”. Não são, nem na literatura nem na vida. São chatos, complexos, porcos, e a maioria das vezes cheiram mal. Continuamos a apaixonar-nos não porque o amor seja bom, mas porque a sua ausência é pior.

Renata fazia tudo para me dissuadir de a amar – excepto no amor. Ela entregava-se ao sexo como se a sua vida disso dependesse; e eu agradecia os inúmeros “café brandy” que tinha consumido, porque os cafés mantinham-me acordado e os brandies permitiam-me retardar as ejaculações (foi há muito tempo).

Eu esforçava-me: – pensava que se o caminho para o coração passava pelo corpo, ¡qué vaya!, que passasse. Mas não passava. Mal acordávamos, no dia seguinte, ela voltava à distância, à frieza, ao sarcasmo. Um dia disse-me “Não vale a pena. Aprecio os teus esforços e acho que és um tipo maravilhoso. Mas não concebo que alguém goste mais de mim do que eu”. Renata odiava-se. “Não é difícil, minha querida, encontrar quem goste mais de ti do que tu. Qualquer pessoa que lide contigo mais de cinco minutos encontra-se nessa situação. De resto, amar é muito mais simples do que ser amado, mais fácil, menos sujeito a dúvidas e hesitações. Não te peço que me ames tanto quanto eu te amo; basta que me deixes amar-te”.

Nesse dia à noite ela não veio ao encontro, e eu não a fui procurar. Era o que tínhamos combinado, logo desde o início. No dia seguinte mandei o grego passear e meti-me num navio que ia, descobri quando me acordaram, para a América Latina.


II

Renata tinha o hábito de se masturbar quando fazíamos amor. As primeiras vezes timidamente: ficou surpreendida quando eu lhe disse “não só não me importo, mas também gosto. Algumas tarefas domésticas devem ser partilhadas”. A única coisa que me aborrecia naquela relação era o abismo que havia entre o meu amor por ela e o dela por mim. Não era nada de pessoal: ela recusava-se a amar fosse quem fosse, e incomodava-a ser amada ”de mais, percebes, tu amas-me de mais, eu não mereço esse amor todo. Se te limitasses a fazer-me amor e a cozinhar para mim ter-me-ias ao teu lado por muito tempo”. “Não sou um co-inquilino, Renata”. “Es ist Schade”. Às vezes respondia-me em alemão. Como para acentuar a dureza do que me dizia, como se o inglês não fosse suficiente.

Atenas é (ou pelo menos era) uma cidade suja, feia e poluída. Os automóveis buzinavam como se a buzina fizesse parte do motor e fosse indispensável para os fazer avançar. A pensão onde Renata trabalhava era conhecida no meio dos toxicómanos: o dono, um sri lankês minúsculo proporcionava “curas de desintoxicação” sem qualquer custo para além do do quarto. A cura consistia em fechar a porta à chave e não deixar o cliente (para alguns era “a vítima”) sair de lá enquanto não lhe tivesse passado a vontade. A colega de Renata, uma dinamarquesa pequena e rechonchuda, era um caso de sucesso dessa terapia. “Devem ser raros”, disse-lhe um dia, “os casos se sucesso”. Mas a colega dizia que não. A legislação anti-droga grega era terrível, a heroína de péssima qualidade, e se a pessoa tivesse juízo era fácil não recair. Além disso, a desintoxicação era barata – e difícil e dolorosa, de facto, pelo que eles podiam tentar mais vezes, em caso de recaída (não era verdade. O dono da pensão só aceitava o mesmo cliente duas vezes no máximo). Fui ver o quarto, um dia; tinha colchões pregados à parede. “Deve ser isto que doloroso quer dizer”, pensei.

III
Foi nesse dia de manhã, enquanto tomávamos o pequeno-almoço, que lhe disse que ela não devia ter medo de ser amada – a escolha era minha, ninguém me obrigara a amá-la; e era suficientemente grande para sofrer as consequências da minha escolha. “De resto, amar é muito mais simples do que ser amado, mais fácil, menos sujeito a dúvidas e hesitações”.

Nessa noite que ela não veio ao encontro, e dois dias depois eu acordei a bordo de um tramper grego, desses que aceitavam passageiros contra trabalho e comida, a caminho da América Latina.

1 comentário:

  1. Bem... eu não me considero bem uma turista dessas que vão para Plaka de Leonard Cohen na mochila, sou mais frívola do que isso e Plaka tem, de facto, muitos encantos.

    No resto, very nice writing!

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.