10.1.16

Gabriel

Começo pela anjo. Alvas asas abertas estendidas de um lado ao outro das ruas da nossa cidade. Espessa sobrancelha negra, uma só, que lhe liga as orelhas como a faca liga a mão ao coração que acaba de matar. Espalha a doença e o ódio pela cidade.

Mais tarde a avó chamar-lhe-ia Angélica; o avô acrescentou Cimbra. As anjos não têm pais, como se sabe.

Uma anjo que distribui ódio e arrotos pelas ruas da cidade e canta Streets of London, melopeia melosa e merdosa feita para anjos merdosos e melosos.  Uma anjo atópica, assexuada como algumas dores alguns sorrisos. É por ela que começo.

Pede desculpa todos os dias várias vezes ao dia. Quer peidar-se em paz, suponho. Vai à Versailles tomar o pequeno-almoço mas as asas não lhe passam pela porta e fica cá fora. "É assim que gosto da cidade".

Pausa.

"Ventosa cinzenta e chuvosa".

Pausa.

Ninguém responde. A pausa deixou de ser pausa e transformou-se em vazio. Num canto alguém pigarreia, incomodado; cospe ruidosamente para partilhar o incómodo. "O egoísmo é muito feio", concorre a anjo Angélica.

Pausa. Parece uma peça do Beckett. Uma nódoa no silêncio.

Um pum no angélico silêncio. Gabriel traz boas notícias: a peste alastra na cidade. Precisa de aparar as asas. "Quantos anos têm as suas penas?" pergunta a alacure. "Não me lembro. Há anos que não as aparo". "Vamos a elas".

Gabriel interpreta mal as palavras da senhora mas nada diz. Vamos a elas. Às penas, palerma.

Angélica tem uma mama grande e outra pequena. "Mamas ecuménicas, para todos os gostos e todas as mãos. Fui eu que as fiz e recuso ser feita por elas (refere-se a si própria no feminino). Eu não sou as minhas mamas."

Todos podem olhar mas poucos tocar. O ecumenismo tem limites. Angélica sublinha cada olhar com um arroto. Um olhar mais intenso tem direito a um pum ruidoso. Gabriel desvia o olhar. A conversa cheira-lhe mal.

A anjo Angélica Cimbra, neta de avô cinéfilo e o anjo Gabriel, distribuidor e anunciante de pestes várias encontraram-se na rua.

(Cont.)

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