22.7.16

Diário de Bordos - Cambrils, Catalunha, Espanha, 22-07-2016

Não sei se é por aqui que devo começar o post de hoje. Estou numa esplanada banal numa rua idem de Cambrils. Não vi muitas, mas tenho a impressão de que todas serão igualmente banais. Pedi no escritório da Marina que me indicassem um restaurante "espanhol". Nada de chinesices, indianos, tailandeses, italianos ou - outra peste - "hamburgueserias". A miúda - de resto muito gira e simpática, isto parece apanágio das espanholas com uma idade inferior à minha - indicou-me o Les Fonts (Calle Colon 1, Cambrils, aqui fica para não dizerem que não presto serviço público).

A rapariga teve o cuidado de me prevenir que "não tem muito estilo". É verdade, mais do que verdade. Mas apesar disso inspira confiança. O homem é calado e façanhudo, a ausência de decoração consegue ser mais feia do que uma decoração feia, os móveis são banais, a iluminação má.

Mas é o tipo de lugar onde entraria mesmo sem ter sido aconselhado. Sou capaz de identificar quem - um pouco como eu, às vezes - acredita mais no conteúdo do que na forma e não recorre a artíficios para se vender. O que tu vês não é o que tu terás, eu caro. O que se terá está reservado a quem possua aquela mistura de fé, intuição e capacidade de sofrer desilusões que separa algumas pessoas de outras.

Um desses artifícios é, claro, o wifi. Quando pergunto ao senhor se o tem responde-me com um "Não" mais seco do que um papo-seco. "Não". Subentendido "Vens aqui para comer ou para quê?" Comi uns chocos excelentes. acompanhados por cava cuja qualidade era inversamente proporcional ao preço. Quando lhe peço para ver a marca explica-me que aquilo é engarrafado para ele. Ponto. Nada de floreados.

O único problema do restaurante é, claro, o wifi. Por mim ficaria ali até ao fim dos dias (no plural) a beber cava e a apreciar a banalidade da rua onde estou. Uma banalidade avassaladora, esmagadora mas estimulante: "est-ce ainsi que les hommes vivent?". É, Leo. É. Eu próprio poderia viver numa rua assim se tivesse, claro, wifi.

Meia dúzia de metros (enfim, meia dúzia de meia dúzia de metros) à frente, na mesma rua, está uma outra esplanada, de chineses, com um autocolante gigante na porta. É aquele antigo da "Wifi Zone". Recebem-me (é um casal) com um sorriso enorme, não sabem o que é cava e quando peço vinho branco perguntam-me se o quero doce ou seco.

Com a taça de vinho trazem-me de presente uns boquerones medíocres e uns biscoitos que têm a forma de chamuças mas em tamanho minúsculo e sem recheio.

Um dia os chineses vão aprender como escolher boquerones e o que é cava e o senhor façanhudo vai dizer que está a ser invadido.

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Não sei se vale muito a pena falar do dia: oito horas e meia menos duas em que fui substituído a governar com as máquinas, mais as tarefas habituais da chegada. Acordei às quatro e meia da manhã e dei volta às seis e um quarto da tarde. Agora são oito e meia e só estou aqui porque não tenho força para me levantar (é mentira. Estou aqui porque quero e adoro esta rua, sinto-me em Dunkerque, não sei porquê.

Talvez por causa da arquitectura, estúpido).

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Quando chegámos tínhamos os mecânicos à espera. Especialistas dos bons, um gajo fala com eles cinco minutos e percebe que fala com quem sabe. Vai ser preciso tirar o bote da água. Vamos ficar aqui até quarta-feira pelo menos.

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O Les Fonts tinha televisão e foi lá, muito de passagem, que soube do atentado de Munique. Vim imediatamente para fora. Não quero saber.

Um dos convidados de R. a bordo diz que tomou uma decisão: não se interessa por nada que se passe a mais de quinhentos metros da porta da frente de sua casa. Não tenho casa e preciso de adaptar o conceito. Ou então: tenho mas adapto-o na mesma: não quero saber de nada que se passe a mais de cem milhas da minha proa.

Infelizmente não posso. Há muita vida a mais de cem milhas para poder ser ignorada.

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Os chineses são adoráveis, mas antes de ir para bordo vou beber um cava ao Fonts. Pode ser que assim da poróxima vez que aqui passar ele tenha wifi.

Uma das poucas coisas que aprecio em mim é o altruísmo.

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