19.7.16

Diário de Bordos - Cartagena, Murcia, Espanha, 19-07-2016

Escala forçada em Cartagena, a  minha amada Cartagena. As avarias sucedem-se e não se assemelham, como dizem os franceses (a quem, convem lembrar, ganhámos recentemente um jogo de futebol).

Desta vez foi o leme, piloto automático incluído. Fizemos três quartos da viagem a governar com as máquinas. À chegada vi que não tinha bow thruster (à largada tinha visto que não tinha luzes de navegação, mas faltava pouco tempo para ser dia).

Aqui encontrei uma espécie de génio que amanhã me vai resolver o que falta disto tudo (tudo. Hoje precisou de quatro horas para desmontar a barra de ligação dos lemes, de tão calcinada aquilo estava. E repôr óleo hidráulico no circuito. O rapaz é bom. Fiquei-lhe com o número de telefone, tal como já fiquei com o do Frank em Almerimar. Nesta vida um gajo encontra um homem decente e é de não o largar. (Noutras também, suponho, verdade seja dita).

Mas estou cansado de mais para ir passear. Vim jantar ao restaurante mais próximo da marina depois do da marina e não tarda estarei a dormir. Ou, mais provavelmente, numa versão suave e reversível de morto.

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Juan Pedro (o génio que encontrei aqui e que recomendo vivamente a quem quer que precise de um génio para reparações de mecânica e electricidade a bordo) trabalha sozinho. Sugiro-lhe que o posso ajudar, quanto mais não seja a transportar o material. Borrega gentilmente. "Este é como eu", comento para R., o armador. "Não trabalha em equipe" ("he's not a team player". Se alguém tiver melhor tradução agradeço).

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Janto no terraço do restaurante, que não sendo o da marina fica na marina. Por detrás dos mastros as primeiras colinas nuas e austeras daquilo que algumas milhas mais longe será o Cabo de Palos. De onde estou não vejo o cabo Tiñoso,cujo nome parece ser mais do que justificado. Não há ponta de vento, são nove e meia da noite e ainda está dia (e quente), comi lulas e bebo vinho branco; em altitude as núvens imóveis dizem-me que amanhã vai ser igual, com a provável e aprovável excepção de estar em Denia em vez de Cartagena.

Tenho trabalho para fazer, mas não consigo: o cansaço é violento; a ideia que um dia estarei sempre no mesmo sítio (a fazer outras coisa de que gosto, forçoso é reconhecer) paralisa-me.

Vou dormir. Amanhã estarei menos cansado, se dormir hoje. Além disso, dormindo perco pouco -

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(Seguia-se a descrição do que perco se for dormir. Só um palerma blasé e pedante - coisas que de todo não sou - chamaria pouco a isto). A noite cai sobre a paisagem como o avião no Saturday de Ian McEwan: sabemos que vai cair, mas não quando. Tal lentidão podia ser enervante, mas não é. Antes pelo contrário: pacifica, acalma, faz-me pensar na sorte que é poder ver colinas nuas, rugosas e austeras desaparecerem por detrás de mastros e por cima de um plano de água tão imóvel que parece uma mesa.

Nada do que vejo é bonito. Hopper tiraria noventa por cento de clientes ao terraço e provavelmente todos os mastros; Hockney encheria tudo de cores berrantes; nenhum fotógrafo dos que conheço faria disto um tema.

Eu talvez. Chamar-lhe-ia "A interminável queda de uma noite de verão em Cartagena, quando entre ela e o mar estão o cansaço e a paz". Um pouco longo como título, mas muito para lá do certeiro.

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