10.12.16

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 10-12-2016

Nada é simultaneamente mais simples e mais complicado do que uma espera. É simples porque não há nada que fazer; é um martírio porque não só não há nada que fazer como dependemos de terceiros.

W., o barco onde estou foi atingido por um raio antes de eu chegar. O equipamento eléctrico foi todo para o galheiro, claro, bem como a electrónica, as ferragens dos diamantes (dos dois lados) e talvez - não sabemos - o mastro e os brandais. Na melhor das hipóteses - se não tivermos de mudar o mastro - cem mil dólares; na pior duzentos. Os armadores tinham previsto gastar quinze mil.

Fiz um protesto aos seguros, claro. O caso era límpido: um raio na Flórida está muito longe de ser raro - é uma das regiões com mais raios do mundo, a seguir a uma ilha na Costa Rica - o barco estava atracado, os sintomas de raio não enganam. Os seguros começaram por aceitar, seguiram-se os trâmites habituais e toca de esperar uma resposta que só podia ser positiva.

Não foi: o barco estava seguro para as Caraíbas e portanto na Flórida estava fora da área de cobertura. Ou seja: não estava seguro.

Os armadores são inexperientes, não sabiam que um seguro marítimo tem áreas pela razão simples e irrefutável de que os riscos não são os mesmos em todo o lado. Lembraram-se, contudo, que a companhia de seguros lhes tinha exigido um Plano de preparação para ciclones (Hurricane Preparedness Plan em inglês, HPP daqui para a frente), o qual eles tinham naturalmente entregue e mencionava especificamente a Flórida como local onde o barco estaria durante a época dos ciclones.

É importante ver que a apólice tem a mesma data do HPP (23 de Junho. Isto é relevante porque a época de ciclones começa a 1 de Junho). Ou seja: a companhia de seguros vendeu um produto sabendo (ou devendo saber. Trata-se mais do que obviamente de um erro de um funcionário menor) que não era adequado às suas próprias exigências. Não há volta a dar-lhe: os seguros puseram o pé na argola.

Acontece que se há sector no qual a regra do caveat emptor se aplica sem a mais pequena flexibilidade é o dos seguros. Tem de ser assim: uma companhia de seguros que facilite sai do mercado em meia dúzia de meses.

Portanto neste momento o mar da companhia de seguros está a bater contra a rocha dos underwriters (que ainda por cima é a Lloyds de Londres, não muito conhecida por deitar dinheiro pelas janelas em casos em que não tem de o fazer). Duzentos mil dólares é uma pipa de massa para uma pequena companhia de seguros como a do W. Os armadores - que entretanto já gastaram o dobro do que tinham para gastar - disseram "acabou. Se quiseres ficar aí ficas com um per diem até se resolver o imbróglio dos seguros" (isto há aqui algumas elipses, mas o grosso da história é esta).

Decidi ficar por duas razões. Uma delas é que estes armadores já me tiraram de dois apertos e penso que agora chegou a altura de lhes pagar. O outro barco no qual trabalhei para eles acabou por ser vendido por uma soma ridícula devido à sua inexperiência (fazem-me pensar em focas bebés no meio de um bando de tubarões) e se tiverem de vender este ao menos que isso não se repita.

De modo agora só nos resta esperar que a companhia de seguros reconheça que errou. É como esperar que a Virgem Maria venha dizer aos pastorinhos que esteve numa orgia. Enfim, não tanto: ainda há uma probabilidade e é a essa que me agarro. Penso para a semana ter uma resposta definitiva.

Penso ou espero? Não sei. Para um marinheiro a clivagem entre pensar e esperar é muito muito ténue. Não haveria marinheiros se não fosse assim.

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Vou com o Ed do F.C. ao supermercado português de Pompano Beach. Uma hora de comboio (cada trajecto) para comprar morcela e vinho tinto decente. Há piores motivações.

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Quero definitivamente mudar de vida, mas a história do clima assusta-me. Não o aquecimento, benza-o Deus, que venha e depressa. Ao contrário: estão vinte e dois graus (diz a net) e tenho de pôr uma sweat shirt e meias porque estou cheio de frio.

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Ah, e café. Não esquecer o café.

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Ontem fiz beringelas recheadas no F. C. Ed diz-me que foi a melhor refeição do ano. Fiquei contente: é um gastrónomo, sabe de comida e tem sobretudo uma qualidade que aprecio cada vez que a encontro e infelizmente encontra cada vez menos - diz o que pensa. Quando cozinho e não gosta - ou não acha muito bom - diz-mo exactamente como me disse que aquelas beringelas estavam uma delícia.

Estavam: foram feitas com todos os éfes e érres, como se estivesse a fazê-las para uma senhora que me encantou. (Estava, apesar de ela não estar aqui. O encanto tem um raio de acção ilimitado, sempre teve).

A tapenade também não ficou má, mas sofreu um bocadinho com a má qualidade das azeitonas.

(Acrescentar azeitonas à lista).

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As previsões dizem que a frente vai ficar até segunda-feira, mas amanhã vem o sector quente e as temperaturas sobem. West Palm Beach fica a pouco menos de vinte e sete graus de latitude. Posso estar enganado, mas assim de repente devem ser uns dez a mais do que o que deviam ser. Ou então sou eu que tenho de me readaptar.

Não será difícil, penso. Ter frio é como não ter dinheiro: três meses suportam-se melhor do que três dias.

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