29.12.16

Silêncio portátil

O homem estava sozinho na praça. Era uma praça circular, junto ao rio. Tinha pombos e gaivotas. Isto é, os pombos vinham quando as gaivotas iam para o rio. Mal estas regressavam os pombos fugiam. O homem via alternadamente o rio, as casas que rodeavam a praça, os pombos ou as gaivotas. Por vezes chovia e olhava para baixo, para o chão, abrigava-se nas arcadas e sonhava com um dia sem chuva.

Raramente falava com alguém: por vezes um turista perguntava-lhe onde era o museu que ficava ao lado da praça; ou um empregado de café tentava meter conversa com ele. Respondia educada mas laconicamente a todos. Com o tempo os empregados dos cafés habituaram-se à sua presença silenciosa e neutra, quase transparente. Os turistas não: um turista raramente se habitua ao que quer que aconteça nos locais que visita. "Obviamente", pensou o homem. "Habituar-se requer tempo, permanência, repetição. Curioso porém como nos podemos habituar a algo que não compreendemos". Os turistas viam nele aquilo que queriam ver. Essa é a essência do turismo: olhar para as coisas e pessoas e ver nelas o que para aquele lugar se levou.

"Turistas, viajantes e nómadas. Um viajante é um turista com tempo. Um turista um sedentário que se enganou no prédio. No fundo o nómada é quem viaja menos: está sempre em casa".

"Ao diabo os paradoxos".  O homem pensava depressa, saltava abruptamente de uma premissa a uma conclusão e à sua refutação como se jogasse à macaca, a pé coxinho e por impulsos bruscos.

Há muitos anos que vivia sozinho. Começara a ir àquela praça havia pouco tempo: antes disso estivera noutras praças noutras cidades noutros países e noutros continentes. "Não passo de um silêncio portátil".

"Se parar morro afogado em palavras. E não haverá colete que me salve. Estão furiosas, como se eu as tivesse enganado, como se lhes tivesse prometido uma quermesse e em vez disso as tivesse levado a um convento de beneditinos ou de carmelitas descalços".

As palavras vingam-se: transformam o silêncio em solidão, alquimia maldosa. Melhor tratá-las bem para que tragam paz, venham uma a uma e se vão embora tranquilas. "Não há bagagem mais pesada do que as palavras", disse o homem em voz alta, sem querer.

Ninguém o ouviu. Silêncio portátil. 

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